Martin & Lewis

Os franceses liderados pela Cahiers du Cinema idolatram Jerry Lewis — que você deve conhecer se tem mais de 40 anos: foi um dos reis da Sessão da Tarde entre o fim dos anos 70 e começo dos 80. Mas a Cahiers, com todo o respeito que tenho por ela, era capaz de grandes idiotices e gigantescos erros de julgamento — e aí se inclui, por exemplo, eleger “Um Rei em Nova York”, um Chaplin outonal e tristemente patético, um dos melhores filmes de 1957.

Se, por um lado, sua opinião acerca de Lewis serve de contraponto à severidade excessiva de um Bosley Crowther — o então crítico do New York Times que nunca se cansava de esculhambar os filmes de Jerry Lewis e seu parceiro por dez anos, Dean Martin —, por outro vê em Lewis qualidades que ele nem sempre apresenta; e grande parte disso parece ser o resultado do seu próprio dogma de que diretores são autores únicos e indissociáveis de sua obra. Esses franceses são uns loucos, e se se apaixonam por alguém, como se apaixonaram por Jerry Lewis, conseguem elucubrar arcabouços teóricos dignos da inveja de dois Kants, três Hegels e um Kierkegaard.

Tenho a impressão de que, em grande parte, a discrepância entre as avaliações que americanos e franceses fazem de Jerry Lewis se deve ao fato de que cada um viu coisas diferentes. Talvez os americanos sejam mais reticentes em relação aos seus filmes (com e sem Dean Martin) porque vêm antes de mais nada o humorista, que conheceram no clube Copacabana e, principalmente, no programa de TV The Colgate Hour, nunca exibido no Brasil mas hoje disponível nas redes de torrents e no YouTube, e que deveria ser visto e estudado por qualquer pessoa que goste de comédia.

Assistir a esses programas possibilita entender o que significou a dupla, o que era a anarquia caótica do humor de Jerry Lewis, sustentada pelo escada magnífico e generoso que era Dean Martin. É possível entender por que os americanos mais tarde torceriam o nariz para Lewis: porque Hollywood o engessou com roteiros sempre inferiores à sua capacidade de comédia, tirou sua espontaneidade, mascarou sua essência subversiva. A impressão que fica é essa: para os americanos, antes de cineasta Jerry Lewis é um humorista que nunca pôde se realizar completamente no cinema, e é daí que vem a sua má vontade.

Aos franceses e ao resto de nós restavam apenas os filmes. Por isso me parece que o padrão de julgamento dos franceses é eminentemente cinematográfico, ao contrário do americano. É mais puro, talvez; mas ao mesmo tempo mais condescendente, porque se consegue encergar nos filmes a genialidade do humorista, para isso precisa relevar os seus defeitos nesse meio. A carreira de Lewis como cineasta é relativamente longa; a relação entre bons e maus filmes é extremamente desigual.

Os franceses parecem analisar Lewis de maneira parcial e extremamente passional, é verdade. Ainda assim o julgamento americano parece muito exagerado. Certo, o próprio Lewis sempre admitiu que seus filmes jamais conseguiram capturar a genialidade anárquica de seus shows ao lado de Dean Martin (segundo ele, o que mais se aproxima disso é “O Biruta e o Folgado”); lembra também que Martin foi o mais prejudicado pelos roteiros esquemáticos que foram obrigados a engolir. Ele tem razão. Mas quer saber mesmo o quanto eles eram geniais, até dentro desse esquematismo hollywoodiano? Assista a um filme de Abbott & Costello.

No início dos anos 40, Abbott e Costello foram um sucesso tão grande nos Estados Unidos que praticamente salvaram a Universal da falência. A América os considerava engraçados e brilhantes. Talvez fossem, mesmo. Os brasileiros puderam vê-los até os anos 70, na série de TV produzida nos anos 50 e exibida pela Tupi. Mas se você assiste a um filme deles depois de conhecer Dean Martin e Jerry Lewis, não pode deixar de se perguntar como aquelas titiquinhas conseguiram salvar um estúdio cinematográfico. Eu, pelo menos, nunca consegui ver a graça do esquete “Who’s on first”, famosíssimo e sempre citado. Do resto, então, nem se fala.

Comparados a Abbot e Costello, mesmo no cinema Martin & Lewis eram incontroláveis, absurdos, geniais. Mais que isso, eram inovadores: sua noção de ritmo era extremamente moderna, rápida. Se a estrutura básica do seu ato era a mesma de outras duplas que vieram antes, como Laurel & Hardy e os próprios Abbott & Costello, eles subverteram — e a palavra não é usada pela milésima vez neste texto por acaso — a fórmula, estendendo-a ao limite e agregando a ela um frescor que, na minha opinião, jamais tinha sido visto antes.

Lewis era anárquico, incontrolável. Mas não é a anarquia dos Irmãos Marx. Se estes são intencionalmente deletérios, a subversão de Lewis vem da incapacidade de adequação ao mundo. Não há má vontade em Jerry Lewis: ele é um ingênuo que tenta fazer as coisas da maneira certa, mas que simplesmente não consegue porque não pode evitar fazê-las do seu próprio jeito.

A subversão presente em Jerry Lewis não era politicamente óbvia — ele jamais faria um filme como “Tempos Modernos”, por exemplo. Em vez disso, o seu era um tipo talvez mais perigoso: subversão social e de costumes. Tudo em Lewis é insolência, rebeldia e incapacidade de se adaptar, ainda que de forma inconsciente e involuntária. Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, embora de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis — e no entanto, inadvertidamente, são eles que acabam ameaçando sua estrutura.

Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder, esse aspecto subversivo de Lewis está bem claro em uma cena que pode servir de ilustração para toda a sua obra: ele interfere em um treino de educação física e, enquanto tenta dar o melhor de si, leva o grupo de garotas ao caos absoluto, destruindo qualquer possibilidade de ordem. O mundo não pode funcionar direito se Jerry Lewis está nele.

É até possível lembrar um pouco dos irmãos Marx a partir dessa capacidade de gerar o caos, embora a comparação com Chaplin fosse mais adequada — e ainda assim as duas seriam insuficientes. Mas Lewis tem atrás de si outras tradições, principalmente a de Bob Hope e Bing Crosby, e uma delicadeza que os Marx, definitivamente, não tinham.

Grande parte do sucesso da dupla Martin & Lewis, claro, se devia a Dean Martin. Ele era o par ideal para Jerry Lewis; provavelmente seria para qualquer outro. Generoso, despreocupado, Martin estava à vontade em seu papel — mais ou menos o de Dedé Santana em relação a Renato Aragão, com mais categoria, mais presença e mais elegância, e um ar de cinismo absolutamente verdadeiro e cafajeste. Dean Martin dava a Jerry Lewis todo o suporte e o contraste necessários para que ele, um talento cômico como poucos outros, pudesse brilhar. E fazia isso sem nenhum problema. Dean Martin era autêntico, coisa rara em Hollywood, e um sujeito que sentia não dever nada a ninguém, nem estava preocupado com isso. Mais tarde, seria o único membro do legendário Rat Pack a não ter medo de Frank Sinatra.

No início dos anos 2000 Jerry escreveu Dean and Me, memórias dos seus anos ao lado de Martin, morto em 1995. É um livro surpreendentemente amoroso, e uma das mais belas homenagens que alguém já fez a seu parceiro. Lewis lembra de Dean Martin com amor genuíno, admiração, respeito. É um livro suficientemente digno para dar conta de boa parte de suas imperfeições, da sua enorme parcela de culpa no rompimento dos dois; é honesto ao ponto de admitir sua própria decadência a partir dos anos 60 sem colocar a culpa no vício em Percodan, um analgésico barra-pesada que tomava para aliviar dores fortíssimas nas costas, e sim no divórcio definitivo entre o seu estilo e os novos gostos da audiência. Obviamente Dean and Me não conta tudo sobre a personalidade detestável de Lewis, a sua capacidade de ser um monstro, sua crueldade e seu egocentrismo aterrorizante (para isso há as biografias não-autorizadas). Mas seria injusto exigir mais do que ele oferece.

A reconciliação dos dois, ao vivo em pleno palco e mediada por Frank Sinatra, é um daqueles momentos inesquecíveis da TV. É genuinamente emocionante. (Se você vai assistir, é preciso entender uma das primeiras frases que Lewis diz a Martin, e que o faz chorar: “Are you workin’?” foi a primeira coisa que Lewis perguntou ao parceiro quando se conheceram, em 1946. O judeu a que ele se refere é Sammy Davis, Jr. E não, Dean Martin não está bêbado.)

Deveria ser ponto pacífico: Jerry Lewis é um dos principais comediantes americanos do século XX. Mas como cineasta, seu papel às vezes é exagerado.

A avaliação mais equilibrada, entre as que conheço, é a de Andrew Sarris, morto há pouco tempo. Ele aponta defeitos claros nos filmes de Jerry Lewis: irregulares, sem a sofisticação verbal que apresentava nos palcos. No entanto, o maior problema diz respeito à narrativa.

Entre o melhor de Jerry Lewis no cinema estão os filmes dirigidos e escritos por Frank Tashlin — um dos maiores diretores de comédia da história de Hollywood, autor de filmes geniais como “Sabes o Que Quero” e “Em Busca de Um Homem”, e nunca suficientemente valorizado. Isso é inquestionável. Mas entre os filmes que Lewis escreveu e dirigiu, e que fizeram sua fama de grand auteur diante dos franceses, apenas três ou quatro se mostram à altura (nome aos bois: “O Terror das Mulheres”, “O Professor Aloprado”, “O Otário”, “O Mensageiro Trapalhão”) — e mesmo esses parecem dirigidos por Tashlin. Lewis foi um excelente discípulo de Tashlin, inclusive se apropriando do seu pendor para o exagero, para as referências ao desenho animado.

Sem Tashlin escrevendo seus roteiros, os filmes de Lewis tendem a ser coleções mal costuradas de gags — muitas brilhantes, outras nem tanto. Eventualmente, como em “O Mensageiro Trapalhão” e “O Mocinho Encrenqueiro”, Lewis abandona qualquer pretensão à unidade narrativa. Nem sempre é algo que funciona: porque se isso possibilita a desconstrução estrutural de seus filmes, por outro lado limita o seu escopo narrativo. Claro que é impossível negar o brilho de “O Mensageiro Trapalhão”, uma sequência algumas vezes genial de gags que provavelmente é o filme mais subestimado de Jerry. Mas ele nem sempre consegue criar uma estrutura forte o suficiente para dar sentido aos seus esquetes, ou esquetes suficientemente bons para dar sentido à mediocridade ou falta de estrutura. Quando consegue, como em “O Otário”, o resultado é brilhante; mas nem sempre conseguia, e aí estão “A Família Fuleira” e virtualmente todos os filmes posteriores a 1965 para provar.

(Um bom resumo do melhor de Lewis está neste post do André Setaro)

Talvez nada disso realmente importe. O que importa é que Jerry Lewis tem alguns filmes em sua bagagem de cineasta que merecem todo o respeito, e isso é muito mais do que se pode dizer da maioria dos diretores que algum dia colocaram uma câmera na mão. Ele encantou pelo menos duas gerações de espectadores de uma maneira que já não é mais possível. E isso deveria ser suficiente.

Porque este texto, no fundo, é apenas para dizer que Jerry Lewis (cujo nome, não canso de repetir, ainda pronuncio “Líus” em respeito à criança que fui) foi, para mim, o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Nunca ao par de Charles Chaplin, mas obviamente mais criativo e diversificado que Harold Lloyd. E mais engraçado que a grande maioria dos humoristas que o seguiram. Ao longo dos anos aprendi a admirar filmes como, por exemplo, Safety Last!, ou uma ou outra comédia mais sofisticada, mesmo aquelas bobagens que Woody Allen tem feito recentemente e recebem elogios desproporcionais. Mas amor, mesmo, bem, isso está reservado a filmes como “Bancando a Ama Seca”. Amores de infância são inesquecíveis.