Por que não vou ao show de Paul McCartney

Eu tenho dois heróis. Um é Al Bundy. O outro é Paul McCartney.

E por isso todo mundo que me encontra pergunta se vou para um dos shows de McCartney no Brasil, mandam notícias e imagens e etc. e etc.

E então tenho que responder que não, eu não vou para o show, não quero ir. É uma longa e triste história, mas com final feliz.

Em abril de 1990 Paul McCartney fez o seu primeiro show no Brasil e eu não tinha dinheiro para ir.

Eu não gosto de megashows. Não gosto de multidão, não gosto de gente suada encostando em mim, não gosto de cotovelos alheios em minhas costelas; como defesa, vou a eles usando umas botas Caterpillar com ponta de aço sob o couro. Meus dedos saem intactos. Não garanto os dos outros.

Mas eu nunca quis tanto ir a um show quanto àquele. 20 anos após o fim dos Beatles, o maior deles finalmente vinha ao Brasil. Era o sonho de qualquer beatlemaníaco, e eu nunca fui tão fã quanto naqueles dias.

Havia um pequeno detalhe, no entanto: eu não tinha dinheiro, e não tem beatlemania que resista à falta de recursos. O resto da história é previsível. Como um menino de rua olha as vitrines das lojas de brinquedos, acompanhei as notícias pelos telejornais, li a resenha do show pelo Jornal do Brasil, vi o compacto exibido alguns dias depois na Globo, comprei posters e revistas. Nada disso serviu como consolo. Eu queria estar no Maracanã, e não pude. Mais de 30 anos depois, ainda não esqueci a tristeza daqueles dias.

Em 1993 McCartney voltou e fez dois shows, em Sumpaulo e Curitiba. Dessa vez, eu continuava sem dinheiro, mas talvez tivesse como conseguir. O que eu não tinha como evitar eram provas na universidade, e já tinha perdido provas demais. Anos mais tarde vi a placa que colocaram na pedreira Paulo Leminski marcando o show de Curitiba, e é claro que eu gostaria de ter estado lá. Ainda mais porque não tinha certeza de que McCartney viveria o suficiente para voltar ao Brasil.

Viveria, claro. A partir de 2010 ele faria do Brasil quase uma segunda casa, iniciando um período pós-crise de 2008 em que o país se tornou uma alternativa lucrativa à Europa e aos EUA em crise. Mas agora o jogo tinha virado. Agora eu podia ir, e estava de tocaia.

As vendas de ingressos teriam início a partir da meia noite. Em um primeiro momento, apenas para clientes do Bradesco e donos de cartões American Express; só depois seriam liberadas para a patuleia.

Eu nunca fui cliente do Bradesco nem tive American Express. E assim, quando as porteiras abriram para o comum das gentes, já não havia mais ingressos para o que chamavam pista prime, diante do palco. Só pude comprar o nível imediatamente abaixo, pista alguma coisa. Odeio o Bradesco até hoje por isso e espero ansioso o dia em que a American Express vai quebrar.

E assim, num belo dia de novembro, me enfiei em um avião rumo a Sumpaulo. Marquei para o dia do show um encontro com blogueiros daquele tempo, como o Doni e o Marmota e a Márcia. Mas encontrei outra amiga antes, e acabei passando o dia com ela e perdendo a hora. Nunca pedi desculpas a eles, por sinal. E já saí atrasado para o Morumbi.

A fila era a mais gigantesca que eu já tinha visto. Parecia não haver jeito de conseguir sequer entrar a tempo para ver o final do show, quanto mais conseguir um bom lugar. Não costumo furar filas, mas naquele momento fiz o que qualquer desesperado faria no meu lugar, certo de que os santos me perdoariam: corri a fila em busca de algum amigo mais próximo da entrada. Não era possível que, de todo o mundo que conheço, não houvesse alguém que também fosse àquele show. E se não houvesse, eu adoraria fazer novas amizades.

Os deuses do fura-filas sorriram para mim e encontrei uma amiga de Fortaleza, que coincidentemente ia para a mesma parte da plateia que eu.

Quando entramos, percebi a estupidez que tinha feito ao comprar a segunda posição mais cara. Era tão longe do palco; vimos o show, na prática, pelos telões. Não demorei a perceber que teria feito muito melhor se tivesse comprado um lugar na arquibancada e, com a diferença de preço, comprado um binóculo. Ainda veria o show sentado.

Saí do Morumbi com uma sensação enorme de desapontamento, quase culpa. Durante o show, ao meu lado, um rapaz de seus vinte e poucos anos chorava enquanto era filmado pelo pai. E eu me perguntava: “Tá chorando de raiva, meu rapaz?”

Um show de Paul McCartney é o mesmo há 30 anos. Ao contrário de Dylan, que reinventa suas músicas praticamente a cada show, McCartney concebe o seu como uma chance de fãs ouvirem suas canções semicentenárias interpretadas o mais fielmente possível ao original. Ele sabe que é isso que a esmagadora maioria dos fãs quer. A cada turnê McCartney muda apenas uma parte pequena do setlist, geralmente umas cinco ou seis músicas dos Beatles que saem para dar lugar a outras e dar aos fãs a desculpa necessária para assistirem novamente ao que é essencialmente o mesmo show que já viram.

É mais ou menos como ir ao Louvre tentar ver a Mona Lisa. É a mesma coisa há décadas, uma multidão tirando fotos e lhe impedindo de chegar mais perto: só que há 25 anos eram japoneses fazendo clic-clic-clic; agora são chineses. Tudo igual, mas diferente. Do mesmo jeito, o coração do show de McCartney permanece o mesmo, inclusive com as mesmas gracinhas: umas frases em português do local, My Love sendo apresentada como uma canção que ele fez para “mia gatchinha Linda”.

Eu já tinha visto tantos shows de McCartney em VHS, DVD e o escambau que ali não havia nenhuma novidade. E a sensação foi de insuficiência, de decepção. Estar tão longe do palco ajudou, claro, mas a sensação geral era a de que, se não estava arrependido, também não me animava a ir ao próximo, se próximo houvesse. Eu já tinha visto um show de McCartney, obrigação de qualquer beatlemaníaco como é, para um muçulmano, a de visitar a Meca. Não estava exatamente feliz, mas me conformava com realização de um sonho antigo. Era o bastante para tornar tudo aquilo válido, para compensar a decepção que eu disfarçava sob um incômodo que não queria descrever. Não fui aos shows seguintes, mesmo o que aconteceram mais perto de mim.

Mas em 2013 minha filha pediu para ir comigo ao show de McCartney em Fortaleza. Tudo bem. Por mim, eu não iria. Mas o que uma filha pede sorrindo ao pai que ele não faz chorando e fazendo contas?

Acontece que dessa vez consegui o que agora se chamava frontstage. Acho que, como McCartney virou arroz de festa no Brasil (já são oito turnês e 26 shows), a ansiedade havia diminuído.

Já contei parte das desventuras neste show aqui. O mais importante, no entanto, deixei de lado.

Aquele show foi redentor.

Perto do palco, a experiência é totalmente diferente. Chega a ser extática. Você finalmente está próximo da única pessoa no mundo que que lhe faria pedir um autógrafo. E então já não interessa se o show é essencialmente o mesmo, se as músicas são tocadas exatamente da mesma forma há 30 anos. Há uma ilusão de comunhão e de proximidade que, no fundo, é tudo o que você quer em um concerto. Foi assim que tirei as fotos que ilustram este post.

Saí do show feliz, e devo isso à minha filha. Finalmente tive a recompensa emocional e artística que me faltou naquele show no Morumbi. E por ter saído satisfeito do show em 2013, não sinto a mínima necessidade de ir novamente.

Para começar, mil reais, 200 dólares, não nascem nas árvores retorcidas da caatinga. Eu teria pago mais em 2010 para ver aquele primeiro show, mas agora estou satisfeito com o que vi dez anos atrás. De qualquer forma, não é isso o que realmente importa. Além da sensação de que não vai fazer diferença ir ao show que já conheço de cabo a rabo, a voz de McCartney hoje me incomoda. Ela vem em um processo acelerado de degradação desde o início dos anos 2000, mas nos últimos anos parece ter saído de controle. O volume de turnês, a duração enorme de cada show, tudo isso deve ter contribuído para que ele simplesmente perdesse a voz. É meio triste vê-lo usar um arsenal variado de truques para disfarçar as notas que já não consegue cantar. É nítido o esforço que ele faz para emitir suas notas.

Ir a um show de McCartney a esta altura, para mim,provavelmente seria melancólico. E já não tenho um “dever” a cumprir; melhor ficar em casa.

Mas essas são apenas minhas idiossincrasias, uma de minahs pinimbas com o mundo. Não valem para todo mundo. Quem nunca foi a um show de McCartney deveria ir. É um grande show, honesto. É o músico mais importante do século XX. É uma lenda viva. É algo que você contará aos seus netos nos anos que virão. Recomendo apenas que, se não conseguir o fronstage, vá para a arquibancada e compre um binóculo. Seja onde for, essa pode ser uma experiência única. Mas talvez por ser única, eu já a tive. Estou feliz assim. Deixa estar.

Hunter Davies

Anos lá atrás publiquei o que chamei de edição definitiva de uma pequena bibliografia dos Beatles.

Mas de umas semanas para cá, ela está me incomodando.

Olhando agora, é uma boa lista. Ou melhor, seria, se eu não tivesse cometido um erro crasso: deixei de incluir “The Beatles”, de Hunter Davies. Na verdade, até incluí, mas o coloquei num saldão final com vários outros, dizendo a seguinte barbaridade:

“The Beatles”, de Hunter Davies, foi a primeira biografia de verdade da banda, definiu a sua história oficial e foi a mais completa até o lançamento de Shout!. Mas não apenas é extremamente sanitizada como chega a insistir em mentiras deslavadas, como as verdadeiras razões pelas quais Lennon espancou Bob Wooler na festa de 21 anos de McCartney; seu valor é meramente histórico.

É uma das maiores besteiras que já escrevi sobre os Beatles neste blog, e por ela eu peço perdão e rasgo minhas vestes e me cubro de cinzas e choro com as mãos na cabeça como uma velha palestina. Enquanto isso, tento entender como cheguei a esse ponto de estupidez.

“The Beatles” foi o segundo livro sobre a banda que li, depois do de Geoffrey Stokes, livro bobo pelo qual, ainda hoje, tenho um carinho imenso — porque ainda lembro do garoto de 15 anos carregando extasiado um livro envolto em papel celofane vermelho, como era o costume da Civilização Brasileira, da rua do Tesouro até Nazaré, e de como ele leu e releu e releu e investigou cada foto de maneira quase obsessiva.

Alguns anos depois veio parar nas minhas mãos o livro de Davies, em sua primeira edição brasileira de 1968, num exemplar já sem capa. Li rápido porque era livro emprestado.

Com o passar dos anos vieram novos livros e matérias e entrevistas e filmes e textos na internet, e o volume de informações aumentava e se cristalizava, e minha visão em retrospecto sobre a obra de Davies foi ficando cada vez mais negativa, mais ou menos como aquele novo-rico que se obriga a gostar de coq au vin e passa a desprezar o pirão de galinha bem-feito que o fez crescer forte, sadio e feliz.

Foi essa a impressão que se cristalizou: era dispensável diante de tudo o que veio depois, porque estes continham as informações do livro de Davies e ainda traziam coisa nova. Além disso era uma biografia autorizada, bastante editada e censurada, repleta de mentiras e conveniência. Por alguma razão, suas falhas foram criando vida própria na minha cabeça, e pelo visto se descolaram da realidade.

O livro teve duas novas edições. A de 1985 acrescentava um pós-escrito que incluía um desabafo de McCartney feito num telefonema ao autor em 1981, onde ele reclamava de acusações de Yoko Ono e dizia que Lennon podia ser um “porco manipulador”. Essa reedição ganhou as manchetes naquele ano.

Em 2009 saiu outra edição, com uma nova introdução e um apêndice sobre os personagens do livro que já tinha morrido.

Foi pouco depois disso que finalmente comprei o meu exemplar, mais para completar minha biblioteca do que para reler o livro. Li rapidamente a nova introdução e o pós-escrito, e o deixei na estante onde permaneceu intocado até há pouco tempo.

Aí, dia desses, resolvi passar os olhos pelo livro, e algumas coisas que vi contradiziam a minha impressão sobre o livro, e agora não tinha mais jeito: eu tinha que relê-lo.

Pois é. Bem que dizem que cabeça vazia é escritório do diabo, e isso era algo que eu não devia ter feito, porque agora estou aqui, envergonhado, com raiva de mim mesmo, me sentindo um picareta por ter escrito essa vergonha sobre o livro.

É verdade, é uma biografia autorizada e partes dela foram realmente censuradas por algumas pessoas, principalmente a tia que criou Lennon, Mimi Smith. Além disso, o próprio autor teve o cuidado de não exagerar nas partes picantes, para não ofender as esposas e parentes. Ele nunca diz que Brian Epstein era gay e masoquista, embora deixe pistas suficientes para que se perceba isso; e as partes mais picantes sobre a temporada em Hamburgo são deixadas de fora, já que todos eles eram casados ou noivos na época.

O problema é que nada disso, em nenhum momento, compromete o livro. E relendo o danado agora, mais de 30 anos depois, me pego tentando entender como cheguei ao veredito que dei a ele nos últimos anos.

Porque “The Beatles”, escrito por Hunter Davies, é um livro fundamental para a compreensão do fenômeno. Ao contrário do que passei a achar, é bastante honesto. Só não entra sempre em detalhes — e sim, ele diz claramente por que Lennon espancou Wooler: “Ele me chamou de bicha”, embora não explique que foi por causa da viagem que Lennon e Epstein fizeram à Espanha enquanto uma Cynthia Lennon recém-parida cuidava do filho, o que ele menciona pouco antes Não faltam, por exemplo, as referências necessárias ao consumo de drogas. Há algumas omissões, claro, pequenos erros aqui e ali, e o livro não pretende fazer alguma análise da música, ainda que mínima. Mas o que realmente importa está presente, e o livro mostra seres humanos falhos, inquietos, em um momento em que tinham chegado ao auge de suas carreiras e se sentiam perdidos e sem saber o que fazer da vida.

De qualquer forma, não é isso que faz do livro uma obra basilar.

A questão é que The Beatles tem algo que nenhuma outra biografia tem, nem jamais poderá ter: é a única construída a partir de depoimentos em primeira pessoa de John, Paul, George e Ringo, de seus pais e colegas, por alguém que conviveu com a banda e seu entorno durante mais de um ano. Davies frequentou suas casas, esclareceu fatos diretamente com eles. Isso jamais vai ser repetido novamente, e já devia bastar para que “The Beatles” seja sempre incluído em qualquer lista de melhores livros sobre a banda, o primeiro de todos — e na verdade sempre basta, porque essa minha lista é a única, que eu saiba, idiota o bastante para não incluí-lo.

Sua importância é tão maior do que eu percebia que uma insuficiência sua definiu a estrutura de todos os livros que se seguiram. Escrito no período do Sgt. Pepper’s, ele não alcançou a crise do “Álbum Branco”, a Apple, não viu as consequências da morte de Epstein e a entrada de Yoko se fazendo sentir e ajudando a levar à dissolução da banda. Por isso o livro se estende e muito sobre seus anos iniciais. Essa estrutura e alocação de tempo estabeleceram o padrão obedecido por todas as biografias que se seguiram: biografia de Lennon até formar os Quarrymen, biografia de McCartney, biografias de cada membro narradas a partir do momento em que se encontram, e maior parte do livro contando o início e a ascensão da banda. É como se todos os autores posteriores se baseassem no livro de Davies, e escrevessem profusamente sobre o período entre 1956 e 1966; e ao se deparar com o que ele não cobriu — os anos finais da banda — se tornam mais resumidos, concisos, mais ou menos como os produtores da série Game of Thrones meteram os pés pelas mãos ao terem que se virar sem os livros de Goerge R. R. Martin.

E aí fico com esse pepino na mão. Por que diabos coloquei o “edição definitiva” no título daquele post? Como posso corrigir esse erro vexaminoso sem que pareça a 217ª turnê de despedida de algum artista caquerado que busca descolar uns trocados antes o que o Alzheimer o consuma totalmente, como Elton John ou The Who?

Então resolvi apelar para a safadeza. Meti a mão no post e simplesmente editei, apaguei aquela referência vergonhosa, coloquei o livro no seu devido lugar. Ninguém vai notar mesmo. E eu vou me sentir menos envergonhado. Não, eu jamais negaria a esse livro o seu devido lugar na história, nunca fiz isso, basta você olhar lá na minha “Pequena Bibliografia dos Beatles — Edição Definitiva”.

Da arte de reescrever a história e enganar otários

Revisionismo é um troço que me incomoda desde os tempos do camarada Kruschev. Tanto pior para mim, porque estes tempos de esgotamento criativo se transformaram na era das releituras e “ressignificações” e outras bobagens do tipo.

Por esses dias andaram comemorando o sexagésimo aniversário de lançamento do Please Please Me, o LP de estreia dos Beatles. Semana passada o youtuber Régis Tadeu fez um vídeo louvando as maravilhas desse disco “revolucionário”. Pouco antes, apareceu para mim no Facebook o anúncio de um curso — isso mesmo, um curso — da CCE/PUC/Rio, seja lá o que isso for, para estudar “toda a repercussão de seu lançamento no cenário musical brasileiro e mundial”.

Quanta besteira e quanta picaretagem, meu santo Asmodeu.

Sabe qual foi a importância mundial do Please Please Me? Nenhuma.

Sabe qual foi a importância no Brasil? Menor ainda.

Vamos começar pelo Brasil, porque a explicação é mais simples. Esse disco só foi lançado aqui em 1976, seis anos depois do fim da banda. Até 1965, a discografia brasileira era totalmente diferente da inglesa. Parte das faixas do Please Please Me tinham sido espalhadas pelos dois primeiros álbuns brasileiros, uma no “Beatlemania” e outras seis no “Beatles Again”. Foi apenas em 1976 que a EMI tirou de catálogo os discos lançados até aquele ano, substituindo-os pelos originais ingleses. Fez isso no mundo inteiro.

Se no Brasil a sua inexistência — a não ser em uns poucos exemplares importados por uns poucos abençoados pela Fortuna e pela fortuna, o que é insignificante — levou à absoluta desimportância em seu tempo, na Inglaterra a história é diferente; e é por não conhecer a história dos Beatles e da indústria fonográfica que as pessoas repetem bobagens como essa.

Mas não é tão difícil de entender. Basta olhar para o próprio Please Please Me. O disco tem 14 faixas. Quatro delas são os compactos lançados anteriormente. Outras seis são covers. Restam quatro faixas originais da dupla de compositores que fez história ao bater pé e exigir que seus primeiros compactos tivessem apenas canções próprias.

(Descontando os lados A dos compactos incluídos, apenas duas das canções do álbum tiveram vida longa: Twist and Shout, depois de redescoberta no filme “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1987, e I Saw Her Standing There, que ganhou vida nova quando Paul McCartney voltou aos palcos no final dos anos 80 e a incorporou ao seu setlist.)

A questão é que LPs não significavam nada naquele comecinho dos anos 60. Eram basicamente coletâneas de compactos e umas faixas de segunda para completar o espaço que faltava. Não é à toa que o título completo do disco é Please Please Me — with Love Me Do and 12 Other Songs. Comprava um LP quem gostava muito de um artista, mas não era para eles que as gravadoras trabalhavam.

O que importava naquele momento eram os compactos. Eram eles que norteavam o mercado e o público, mediados pelas rádios. Para os Beatles, importante mesmo foram o compacto Please Please Me, um disco — este, sim — revolucionário que mudou o cenário da música inglesa, e um pouco mais tarde She Loves You, que catalisou a beatlemania que vinha sendo gestada nos meses anteriores. Até o fim da banda, a grande luta de Lennon e McCartney era emplacar o lado A do próximo compacto, e era para eles que reservavam suas melhores canções — I Want to Hold Your Hand, I Feel Fine, Day Tripper, Strawberry Fields Forever, Penny Lane, Hey Jude nunca foram incluídas em um LP original. O resto, como McCartney sempre lembra, eram “fillers”, canções compostas para completar o álbum. Às vezes não conseguiam e eram obrigados a procurar material antigo e previamente descartado, como Wait no Rubber Soul.

Mas a história dos Beatles é uma história em construção permanente. Eles foram um dos responsáveis pela consolidação do LP como objeto cultural importante, mas isso só se daria alguns anos depois. Antes que eles atentassem para isso, outros faziam seu papel na valorização dessa mídia: Bob Dylan, por exemplo. Mas o tempo passou, os Beatles ocuparam de maneira incontestável o topo do Olimpo da música mundial. O Please Please Me passou a ter uma importância que nunca teve, o fato de ter boa parte de suas canções gravadas em 11 horas passou a ser motivo de admiração e as gentes esqueceram que isso era muito comum em seu tempo. E nestes tempos duros, afinal, as pessoas e as instituições precisam ter assunto para descolar um troco. Faz parte.

Mas eu ainda estou intrigado com esse curso. Fico realmente maravilhado e estupefato diante da possibilidade de que alguém realmente pague por isso. Penso nisso, na abundância de bestas neste mundo despirocado, e dou um esporro em mim mesmo: “É por isso que você é pobre, otário”. Felizmente caio em mim rapidinho: pobre, mas honesto. Só que nunca sei se isso é consolo suficiente.

Mais um original de Dylan e McCartney

Eu tenho um sonho.

Perguntaram a Paul McCartney quem era o único artista que o faria ficar inseguro, gaguejante, num encontro. A resposta foi simples.

“Dylan”.

Bob Dylan foi mais prolixo:

Eu sou deslumbrado por McCartney. Acho que ele é o único que me deixa pasmo. Ele é completo. E nunca deixa a bola cair. Ele tem o dom da melodia, tem o dom do ritmo, ele pode tocar qualquer instrumento. Ele pode gritar e berrar tão bem quanto qualquer um, e canta uma balada tão bem quanto qualquer outro. E suas melodias são tão naturais, é isso que impressiona… Ele é tão natural. Eu queria que ele parasse. Tudo o que sai de sua boca parece envolto em melodia.

Os dois maiores artistas da música pop ainda vivos são apenas elogios um para o outro — mais que isso, reconhecem nele alguém maior que eles mesmos. É isso. O meu sonho de consumo é um disco de Bob Dylan e Paul McCartney.

Ora, direis, grandes merdas. Todo mundo gostaria de um disco com as músicas de McCartney e as letras de Dylan.

Mas não, não. Não é isso. Bob Dylan e Paul McCartney têm mais em comum além do fato de terem perdido a voz anos atrás. No meu sonho, não é o Dylan letrista e o McCartney compositor que eu queria juntos. É o contrário.

As pessoas têm dificuldade em reconhecer em McCartney um grande letrista. Não no sentido mais óbvio, do sujeito que passa uma mensagem importante e significativa e quem sabe revolucionária em suas músicas, como Lennon sempre tentou e Dylan fez tanto e tanto. Mas uma canção não é um poema. A letra de uma canção precisa soar bem, precisa combinar e acompanhar a música, engrandecer a harmonia, e McCartney sempre teve uma capacidade sobrenatural de encaixar a letra na melodia, de dar uma musicalidade rara às palavras. Infelizmente, ele condescende excessivamente em fazer isso em detrimento do conteúdo, o que é uma pena. Mas se a música de McCartney sempre teve uma qualidade superior, quase sobrenatural em sua naturalidade que Dylan tanto admira, é também porque os sons vocais estão no lugar certo.

Depois de um período tenebroso nos anos 70 e 80 — o mundo deveria ter sido poupado de barbaridades como Saved, Shot of Love e Knocked Out Loaded, e mesmo Blood on the Tracks, me perdoem, não é tudo isso que dizem dele — Bob Dylan conseguiu se reequilibrar nos anos 90, para então se acomodar contente em álbuns musicalmente corretos mas nada ambiciosos. Ele não quer fazer um Sgt. Pepper’s, ou um OK Computer. Aparentemente, quer fazer a música de que gosta, sem grandes arroubos de invenção, e com uma elegância madura que não havia nos seus primeiros discos. Dylan se permitiu envelhecer sem traumas, fazendo o que gosta. Seus últimos álbuns têm sempre uma característica simples: a classe conservadora de quem sabe que é impossível errar com os blues ou standards que o fizeram querer sem músico em vez de um novo Holden Caulfield.

Por sua vez, depois de passar pelo mesmo período tenebroso que Dylan — devia ser algo na água dos anos 80 — McCartney continua até hoje buscando relevância e atualidade no mundo; o que mais faria alguém gravar um tecno-sei-lá-o-quê como Back in Brazil no Egypt Station de 2018? Neste momento, ele está escrevendo um musical, e sabe-se lá quando ou se lançará um novo álbum pop. Essa angústia criativa é admirável, mas muitas vezes o coloca em becos sem saída, e o que deveria soar moderno soa modernoso — vide o New, de 2013 —, exagerado, excessivo

É a combinação disso, a busca por relevância e invenção, mas também um senso de raiz, que seria possível em um encontro entre os dois. É perfeitamente possível imaginar McCartney e Dylan combinando duas personalidades musicais tão diferentes: o conservadorismo musical de Dylan e a eterna busca pela contemporaneidade de McCartney, um aparando os excessos do outro, enriquecendo o que o outro oferece: a tradição musical sólida que Dylan tanto valoriza equilibrando a necessidade do novo que McCartney busca, e vice-versa. Assim como seria fantástico ver letras que combinassem a musicalidade de McCartney e a profundidade lírica de que Dylan é capaz.

O rock — aquela música que meninos educados brancos tomaram dos negros e fizeram sua, e que ajudou a definir os caminhos do mundo por uns trinta anos, ou pouco mais — morreu há um bom tempo. É uma linguagem esgotada, e o seu sucessor mais próximo é o que hoje chamam calhordamente de R&B, música feita por computadores numa eterna e cada vez mais esmaecida reciclagem do que já foi feito mil vezes antes

Mas antes de falecer numa prateleira de saldos de CDs ele mudou o mundo como nenhuma música antes dele, e merecia um epitáfio à altura, e ninguém melhor para escrevê-lo dos que seus dois principais artífices, seus últimos gênios vivos.

Infelizmente, este é um sonho que nunca será realizado — esse e o de passar a Ava Gardner nos peitos. Porque são dois egos gigantescos, dois artistas perfeitamente cônscios de seu papel na história e, principalmente, do legado monumental que deixaram na cultura popular. Tenho a impressão de que ambos têm medo um do outro, por reconhecerem nele um artista superior, e têm a consciência do quão difícil seria o processo criativo entre eles. Do seu ponto de vista, provavelmente têm mais a perder do que ganhar com isso.

Mas não custa sonhar. Porque, sem sonhos, como envelhecer como Dylan e McCartney?

Errata: Get Back

De vez em quando a gente escreve umas besteiras sem tamanho. No meu caso, só fui prestar atenção ao responder um comentário do Edkallen ao último post.

No post eu tinha escrito o seguinte:

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína.

É uma das maiores injustiças que escrevi a respeito do finado John Lennon, que Deus o tenha em bom lugar.

Naquelas sessões, mesmo “atoleimado pela heroína”, Lennon emplacou duas das maiores canções dos Beatles. Across the Universe é talvez a letra mais bela de toda a banda. Don’t Let Me Down, em toda a sua simplicidade, é desde sempre uma de minhas canções preferidas. Além das músicas fracas ou velhas que foram para o álbum, Dig a Pony e One After 909, ele apresentou um bocadinho de outas coisas. Ao longo daqueles dias gélidos de janeiro  Lennon trouxe grande parte do que gravaria no Abbey Road ou até no Imagine, mesmo coisas que nunca completou como Mean Mr. Mustard ou Polythene Pam. E um bocado de canções que jamais seriam gravadas também viu a luz naqueles dias. Por eemplo, gosto muito de uma canção que todos parecem detestar, Watching Rainbows.

Nada vai justificar a bobagem que escrevi no último post. O finado George Harrison, que Deus também o tenha em bom lugar, continua o terceirão.

The Beatles: Get Back

Get Back é a melhor coisa que os Beatles lançaram nos últimos 25 anos, a única realmente fundamental e necessária.

Depois do projeto Anthology a Apple Corps vem lançando uma série de caça-níqueis indignos da estatura da banda: raspas de tacho gourmetizados pela remasterização ou filmes canalhas como Eight Days a Week, em que obliteram de sua história Pete Best, o 4º beatle, e se dão ares de grandes responsáveis pelo fim da segregação racial nos EUA.

Uma esfinge significativa, no entanto, ainda restava: as filmagens de janeiro de 1969 que resultaram no filme Let it Be.

Sempre houve algo de realmente especial, ainda que por incômodo, no Let it Be. Mesmo restaurado há décadas, seu relançamento era constantemente adiado. Para os beatles restantes o principal motivo era óbvio: o desconforto diante do registro do que agora sabiam ser o fim do ápice de suas vidas. Mas sempre se soube também que mais cedo ou mais tarde ao menos um Let it Be restaurado, e talvez ampliado, viria à tona, ainda que só depois que os remanescentes envergassem seus terninhos eduardianos de madeira.

O que Peter Jackson entrega agora é muito superior a todas essas expectativas.

O áudio desse material bruto está disponível na internet há muito tempo. O blog A Moral To This Song vem transcrevendo há anos vários trechos dessas fitas, e especialmente o primeiro episódio de Get Back chega a parecer estruturado a partir das seleções feitas pelo blog. Para o fã mais acirrado, não há propriamente muita novidade na informação bruta; e ao mesmo é tudo novo, agora, porque as imagens dão materialidade ao que se ouvia, possibilitam interpretações mais acuradas, e a excelente editoria desse material fornece um guia competente para o espectador. Jackson fez um trabalho excelente de curadoria, agindo com um método simples: contar a história da maneira mais completa possível, sem tentar adicionar o seu “toque pessoal”.

Eu esperava que ele ampliasse o Let it Be original, acrescentando material inédito e corrigindo a narrativa estranha legada pelo diretor Michael Lindsay-Hogg, o 29º beatle. Mas Jackson, que já pode ser considerado o 14º beatle, foi mais sábio do que isso. Partiu do zero, adotando uma narrativa linear e deixando que o desenrolar dos fatos criasse a tensão narrativa necessária, o que faltava no Let it Be que, afinal de contas, deixava a impressão de não ser mais que um amontado desconjuntado de momentos ruins. Claro, Get Back é informado pelo filme original, embora Jackson tente ao máximo evitar cenas já usadas, a não ser quando é realmente impossível.

Mas sua grande conquista, mesmo, foi escapar de duas armadilhas — reprisar o baixo astral enganador do filme original ou transformá-lo em outro conto de fadas chapa-branca, adequado ao esforço de edulcoração de sua biografia empreeendido pelos ex-beatles. Hoje é possível afirmar que Scorsese, há décadas o meu indicado para o serviço, não faria trabalho melhor.

Para quem tem interesse apenas superficial nos Fab Four, o documentário provavelmente é cansativo. São quase oito horas de imagens e músicas incompletas de uma banda que tem um prazo final a cumprir mas não consegue descobrir, em nenhum momento, o que fazer. Cinquenta anos atrás, um filme como esse seria impossível. Mas o tempo não parou, como aliás costuma fazer, e nesse intervalo um novo gênero se afirmou no imaginário das pessoas: o reality show. Décadas de exposição da patuleia a espiadas na intimidade alheia pelo buraco da fechadura possibilitaram que aquilo que era apenas um documentário reencarnasse em algo totalmente imprevisto, uma espécie de Big Beatles Brother. E o triste estado da música mundial permite que esse material tão velho adquira um frescor impensável até mesmo em seu tempo.

Para fãs de longa data, no entanto, o filme não é apenas uma delícia visual, musical e histórica: ele traz algumas surpresas.

O primeiro vai além de comprovar o que sempre foi óbvio: que Michael Lindsay-Hogg não tinha a experiência e o talento necessários para fazer aquele filme. Mas o que Get Back mostra é que sua participação foi ainda pior: foi nociva e deletéria.

Em defesa de Lindsay-Hogg pode-se dizer que o projeto original era irrealizável. Os Beatles estavam esgotados depois da maratona de gravações do “Álbum Branco”. Sair do zero e em dezoito dias aparecer com catorze novas canções, e azeitada o suficiente para dois concertos, era virtualmente impossível até mesmo para uma banda como aquela, e disso ele não tem culpa. Assim como eu, o 37º beatle, Lindsay-Hogg (que alega ser filho bastardo de ninguém menos que Orson Welles) sempre viu o Let it Be como uma história de superação, com um final feliz. Mas isso se dá não por seus esforços e habilidades como diretor, e sim porque nem ele conseguiu subverter totalmente a cronologia dos fatos. Nada disso, no entanto, o redime da culpa por editar um filme cuja mediocridade Peter Jackson agora esfrega em sua cara: quer dizer que ele tinha todo esse material à disposição e só conseguiu fazer aquele filme horroroso? Vergonha, vergonha, vergonha eterna.

Mas foi ao aceitar algo que estava obviamente além de sua capacidade, ao botar constantemente lenha na fervura da panela de pressão em que aquilo se tornou, ao esquecer o seu papel de diretor e tentar se imiscuir na relação já complicada de Lennon e McCartney, ao aparecer com ideias mirabolantes e impraticáveis para complicar ainda mais a situação, Michael Lindsay-Hogg em sua tentativa de ser o 9º beatle foi parte ativa no processo de desintegração da banda. Ele vai entrar na história como o sujeito que disse a Linda McCartney, a 29ª beatle: “Eu sou mais fã que você”. Tenho certeza de que Lennon, se estivesse ali, teria perguntado na hora: “Mas Paul também come você, fio?” (E fã mesmo era Maureen Starkey, roqueira raiz e proto-headbanger, como se vê mais adiante.)

Jackson também corrige uma grande injustiça histórica ao dar o destaque merecido a Mal Evans, o 7º beatle. A história de Mal é talvez a mais triste de todas as que cercaram essa aventura. Absolutamente dedicado à banda, depois do seu fim Mal zanzou pela vida até ser morto pela polícia num quarto de hotel em Los Angeles, seis anos depois. O “brother Malcolm” aparece proeminentemente aqui, inclusive dando uma de suas legendárias contribuições às letras de McCartney. Seu papel na história finalmente é devidamente registrado, e esse é um reconhecimento devido há muito tempo.

Uma das melhores coisas do filme é que agora é possível avaliar com clareza o papel real de George na dinâmica da banda. Para desgosto dos millenials que acham que George Harrison era quase um Paul McCartney, Get Back deixa claro que embora importante para a banda, George sempre foi uma figura secundária no que diz respeito à sua direção musical. Ele sempre foi o terceiro, muito longe da simbiose conhecida como Lennon/McCartney. O que o filme mostra é que agora ele está cansado disso, adotando uma postura passiva-agressiva de rebeldia. Ele simplesmente não quer mais ser tratado como PCD.

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína. Harrison apresentou apenas quatro músicas completas: I Me Mine (que John, ao ser apresentado a ela, disse ser apenas um bom jingle, o que infelizmente não aparece no filme), For You Blue, Old Brown Shoe e All Things Must Pass. E aí a gente se pergunta: ele reclamava de quê, afinal? I Me Mine e For You Blue, duas canções medíocres, foram para o álbum. Old Brown Shoe virou lado B de compacto. E foi ele quem retirou All Things Must Pass da fila, talvez já pensando em seu disco solo.

Sua saída da banda é mais bem explicada, finalmente. Durante meio século se achou que isso tinha acontecido no dia da discussão entre Paul e George sobre a guitarra de I’ve Got a Feeling; só se discutia se tinha sido por causa daquilo ou por uma discussão feia com Lennon na hora do almoço. As datas agora estão corrigidas.

(O filme corrige também um erro deste blog: eu tinha postado um vídeo de uma jam tenebrosa com Yoko — mostrada em Get Back de maneira ainda mais resumida — como se fosse da tarde daquele dia; na verdade ele é posterior, já no estúdio da Apple. Mas infelizmente deixou de fora algumas coisas importantes. Por exemplo, Lennon se perguntando diante de McCartney se, afinal, queria mesmo que George voltasse. Ou o processo de criação de Dig It.)

Por outro lado, é assustador ver a genialidade de McCartney em ação. Dia após dia, diante da pressão e do prazo exíguo, McCartney trazia um novo clássico. Essa capacidade de criação, com tamanha qualidade, é absolutamente sobrenatural. É inexplicável. McCartney acaba emergindo de Get Back como o grande gênio da banda e talvez o maior gênio musical da segunda metade do século XX. Se essa impressão é tendenciosa, já que naquele momento Lennon estava ainda mais ausente de alma que de corpo e isso naturalmente muda a natureza de sua relação, não deixa de ser verdadeira. Paul McCartney é um gênio, e não se fala mais nisso.

Mas um gênio que enfrenta problemas bem comezinhos. Em 1981, depois de ler uma declaração de Yoko dizendo que ninguém magoou tanto Lennon quanto ele, McCartney ligou para Hunter Davies, o 25º beatle, para desabafar: e as vezes em que Lennon o tinha magoado? Lennon, segundo Macca, podia ser “um escroto manipulador”. O filme traz exemplos magníficos de ambas as acusações. Lennon espera McCartney sair para contar aos outros colegas que tinha ido encontrar com o empresário Allen Klein, angariando poder político suficiente para enfrentar McCartney posteriormente. Ali se vê o nascer da última crise que levaria a banda ao fim.

E é em uma gravação de Oh! Darling que o drama daqueles dias está mais claro. Paul no baixo, John no piano. Um olha para o outro, felizes com o que adivinham estarem fazendo. Mas então Yoko Ono, a 23ª beatle, se senta ao lado de John, e então a expressão de McCartney muda completamente. Diferente de George, que nunca escondeu sua irritação d, McCartney era o maior defensor de Yoko na banda, menos por convicção do que por uma tentativa de acomodar o que percebia ser inevitável; mas se sabia o maior perdedor.

Em outro momento, no dia seguinte à saída de George da banda e temendo que Lennon tivesse seguido seu exemplo, não dá para ver McCartney tentando conter o pranto diante da possibilidade que a banda tenha acabado — nem tanto por George, mas por Lennon — sem entender claramente o que ele sentiu. Esse é, talvez, o momento mais pungente de todo o filme: “And then there were two”.

Esse é o outro lado do que mais impressiona no filme: a história de amor entre John Lennon e Paul McCartney. Ali é possível ver, como nunca antes o nível de sincronia em que os dois estavam. A maneira como um entende o outro, como operam quase sempre na mesma frequência, como embarcam facilmente nos esboços de ideias do outro e os levam adiante, é impressionante. É justo imaginar que seria ainda mais, estivesse Lennon em melhores condições.

Get Back é isso: um ajuste de contas dos Beatles com o seu capítulo final, feito de maneira digna e à altura da maior pequena banda da história do mundo. Um fim digno para a maior epopeia musical do século XX. Não se pode querer mais que isso.

Pequena, bem pequena discografia de Ringo Starr

Sentimental Journey (1970)
Primeiro disco solo de Ringo, e elemento involuntário no rompimento dos Beatles, Sentimental Journey foi feito para uma audiência especial: a mãe de Ringo. São as músicas de que ela gostava e com as quais ele cresceu. Foi gravado no período em que a banda achava que estava acabando mas ainda não tinha certeza; Ringo, então, mandou a família escolher seu repertório. Ringo sabe quem é, sabe de suas limitações. O disco inteiro tem um ar de paródia, não se leva a sério demais, e é isso que faz dele uma boa curiosidade. Alguns dos arranjos são bem interessantes, mas pertencem ao seu tempo e não saem de lá nem debaixo de porrada.

Beaucoups of Blues (1971)
Uma joia obscura, Beaucoups of Blues é um disco de country music. É nesse gênero que Ringo claramente se sente mais à vontade como cantor, e para acompanhá-lo chamou um elenco estupendo: D. J. Fontana, The Jordanaires, Jerry Reed — e Scotty Moore foi o engenheiro de som. O resultado é um disco redondo, sincero, de uma qualidade absolutamente surpreendente. Ringo poderia ter se reinventado aqui como cantor country num ambiente de rock and roll, mas aparentemente jamais se levou tão a sério assim. Talvez seja o disco mais subestimado entre as tantas dezenas de discos de ex-beatles.

Ringo (1973)
Até aqui, pode-se dizer que Ringo continuava um beatle ensaiando escapadas solo, mais ou menos como Lennon gravando com Yoko em 1968. É como se seus discos solo corressem em uma raia que não a da sua ex-banda, discos que os Beatles jamais gravariam. Um de standards, outro de country. Em Ringo, no entanto, ele parece admitir que o sonho acabou, e adentra de vez o mainstream. Conta com um auxílio realmente luxuoso: todos os ex-colegas de banda contribuíram com canções e participações no disco. Ringo é considerado universalmente o melhor disco de Starr, mas desconfio que isso só acontece porque este é um disco de rock tradicional — e provavelmente porque tem John, Paul e George dando uma ajudinha. Por isso costumam desprezar o excelente Beaucoups of Blues.

Ringo Rama (2003)
Quando ninguém mais esperava nada de Ringo eis que ele se sai com um disco surpreendente. Ringo Rama é decente, dentro das limitações de Ringo, com algumas boas canções, uma atmosfera geral moderna e forte. Não é uma obra prima, obviamente, mas se sobressai de forma muito evidente na discografia de Ringo. Aqui se encontra, também alguns exemplos tardios do grande baterista que é Ringo, em faixas como Instant Amnesia. É um excelente disco tardio, de um artista que não costuma fazer excelentes discos.

O resto
Ringo tem mais um bocado de álbuns. São uns 20 ao todo, sem contar coletâneas e álbuns ao vivo. Nos últimos tempos ele se acomodou em um estilo bem característico: rock simplório, sempre derivado, que estaria à vontade em uma FM tipo easy listening dos anos 80, com letras que muitas vezes mencionam o seu passado beatle. Obviamente uns são melhores que outros, como o bom Goodnight Vienna, de 1974, que poderia muito bem estar nesta lista; e alguns são vergonhosos, como Ringo the Fourth, de 1977, ou Bad Boy, de 1978. Eventualmente uma ou outra coisa pode ser pinçada, como You Can’t Fight Lightning, faixa-bônus no relançamento do Stop and Smell the Roses (1982), que poderia ter sido gravada por Lou Reed. A maioria dos álbuns tem composições de seus ex-colegas de banda, e eles muitas vezes participam generosamente de várias faixas, mas nem isso os salva. Ouça por sua conta e risco.

And, in the end

Eu preciso confessar que os lançamentos recentes da empresa que se chama Beatles me enchem de tédio. Longe da empolgação inicial trazida pelo Live at the BBC e os discos do Anthology, o que se vê nos últimos 20 anos é indigno do legado da banda. Do engodo que foi o Let it Be… Naked, passando pelos cafés requentados da remasterização de 2009, o segundo Live at the BBC e o razoável Hollywood Bowl à raspagem de tacho que são as edições comemorativas, cada lançamento merece basicamente um bocejo e um tsc, tsc.

Quando o Álbum Branco foi remixado, em 2018, fiz um comentário aqui. Mas a verdade é que esses discos me interessam muito pouco. A essa altura da vida, a perspectiva de ouvir versões sempre inferiores de canções que já conheço de cor há décadas — isso quando não conheço as próprias versões, circulando há décadas no mercado pirata — não abre meu apetite.

Por isso, ouvi os discos de maneira muito superficial — confesso inclusive que na época não cheguei a ouvir muitas das faixas inteiras. Para que eu iria ouvir de novo as demos de Esher? Nessa brincadeira, acabei deixando passar alguns detalhes importantes.

Duas das faixas são realmente boas. Los Paranoias, que já tinha sido incluída em parte no Anthology III, aqui está em sua forma completa. É uma bela jam, talvez o mais próximo que McCartney chegou do jazz enquanto era um beatle. Mas é importante não tanto pelo seu valor intrínseco, mas porque acaba mostrando que talvez George Martin não fosse a pessoa indicada para fazer a curadoria do projeto Anthology, nos anos 90. Martin raciocinava como “o produtor dos Beatles”. Estava mais que disposto a jogar fora o que não se encaixava em um padrão de qualidade bastante alto e muito claro para ele. E nesse tipo de caça-níquel, às vezes o que se quer ouvir é justamente o contrário.

A outra é a faixa que abre o quarto disco, o take 18 de Revolution 1. É uma gravação maravilhosa. Ela consegue encapsular tudo o que Lennon queria dizer em Revolution e em Revolution #9, com a genialidade, coragem, experimentação, capacidade de síntese de uma época e senso comercial que tornaram os Beatles a maior banda da história. Se em vez de incluir essas duas faixas no disco ele tivesse finalizado e colocado só esse take 18, tinha passado o recado e feito um álbum muito melhor. Revolution #9 é uma maluquice de Yoko Ono contrabandeada num disco dos Beatles. Essa nova versão é Beatles puro, ao menos em um determinado contexto histórico.

Mas o principal aspecto que deixei passar é que Giles Martin, ao remixar o álbum, cometeu um crime de lesa-majestade.

A produção do Álbum Branco foi caótica. Geoff Emerick cansou e deu no pé, e isso alterou significativamente o padrão de gravação das músicas. Depois George Martin, de saco cheio, tirou férias e parte do disco foi efetivamente produzida por Chris Thomas.

O resultado é que o Álbum Branco sempre soou diferente. Mais agudo, mais metálico, mais agressivo. É uma prova da diferença que faz um engenheiro de som.

Giles Martin, no entanto, suavizou esse som. Tornou-o mais grave, mais de acordo com o padrão George Martin que voltaríamos a ver, em toda a sua glória, no Abbey Road. O resultado é uma fraude histórica. É desonesto.

Mas independente desses detalhes, minha opinião sobre esses lançamentos continua a mesma. São redundantes. Não comprei nenhum, nem pretendo comprar. Eles já são ricos demais para se importar se apenas baixo as .flacs.

Isso muda com a nova edição do Let it Be. Essa eu quero.

A caixa que anunciam agora é, em parte, o que se esperava, para o bem e para o mal. Traz o disco original remixado (o que deve ser algo bom, porque ele sempre soou mal, abafado, embora eu não saiba se é possível melhorar muito); um EP redundante; o Get Back com a capa original; e uns disquinhos com jams, outtakes e ensaios.

Os discos de adicionais são o mais decepcionante, porque o material disponível é tão absurdamente grande e variado que qualquer um poderia fazer algo melhor do que a sequência medíocre de outtakes que decidiram incluir. Com uma capa ainda mais apalermada que a do Let it Be original, traz uma seleção inexplicável em sua falta de imaginação ou mesmo alegria.

Pelo que vejo, o melhor da caixa é o Get Back. Não pelo disco em si, que não era melhor que o Let it Be final. Mas por finalmente trazer à luz o LP que chegou a ser distribuído para algumas rádios, com a capa em que eles recriavam o Please Please Me sete anos depois. Eu sempre achei que essa deveria ter sido a capa do Let it Be. Pelo significado, pela sensação de que ali se encerrava aquela história, e porque é uma ideia fantástica, mais típica dos anos 60 que minissaia e LSD.

É ele, só ele, a razão eu querer esse lançamento, depois de anos pouco me lixando. Eu faria diferente, claro. Minha caixa traria o Let it Be com a capa dupla da edição americana original e o livro que acompanhava a primeira tiragem, retirado logo em seguida porque aumentava muito o preço. Traria dois Get Back, com os dois mixes de Johns e as capas diferentes, para evitar a confusão que fizeram. E um álbum triplo com o que houvesse de melhor nos outtakes e jams da gravação do filme.

E é aqui que está a grande diferença. O álbum que está chegando às lojas traz basicamente outtakes do que já conhecemos. Sem ouvi-las não dá para saber quais são, mas aparentemente traz, de realmente interessante, apenas um ensaio de Gimme Some Truth, provavelmente uma das versões do dia 3 de janeiro, que mostra McCartney ajudando Lennon a compor a letra da canção. (E espero que a versão de Oh! Darling, que estaria mais à vontade no Abbey Road, seja uma do dia 31, que eu chamo de “bossa nova”).

E no entanto, os 30 dias de sessões têm tantas pequenas maravilhas que é quase impossível entender por que são ignoradas. Eu já falei aqui quais incluiria. Mas há muito mais que isso. Quem quiser conhecer, e tiver paciência, é só procurar nas redes P2P da vida por uma série de discos chamada A/B Road.

Ela só não tem o Get Back com aquela capa.

Mas há um outro motivo para eu achar que essa caixa tem algo diferente dos outros lançamentos.

Ringo Starr e Paul McCartney têm, respectivamente, 81 e 79 anos. Não seria agourar dizer que têm muito mais tempo para trás do que para a frente. A aventura dos Beatles representou um pedaço pequeno de suas vidas, mas foi decididamente o mais importante e o que deixou, durante 25 anos, uma série de problemas com que tiveram que lidar. Ao longo das últimas décadas, eles conseguiram resolver tudo isso: supervisionaram a transição para o digital, fizeram dinheiro como nunca tinham feito antes, e se empenharam em contar a sua versão da história. Faltava apenas o fechamento.

O Let it Be, junto com o filme Get Back, é o ponto final de todo esse esforço. É o último capítulo, a resolução afinal do seu momento mais conturbado, o mais contencioso, e certamente o mais doloroso. É como se Paul e Ringo pudessem dizer, finalmente, que o ciclo se fechou. A partir de agora, tudo o que a Apple Corps soltar é apenas para ganhar dinheiro, como foram as remasterizações dos últimos anos; decisões empresariais, basicamente, que não têm ligação orgânica ou emocional com a maior banda da história. O Let it Be/Get Back é certamente o último trabalho real dos Beatles. Agora eles podem descansar em paz.

Paul McCartney: discografia

Uns tantos anos atrás, escrevi aqui uma pequena introdução à discografia de Paul McCartney, dando minha opinião sobre cada um dos discos lançados até então. (Vi agora que faz mais de dez anos. O tempo passa, e daqui da janela eu dou uma de Carolina.)

Não é uma boa lista. Não é apenas exageradamente superficial, que isso não era problema: é que toda ela foi feita de memória. Não ouvi os discos novamente para confirmar a opinião que tinha formado às vezes há um quarto de século. E havia alguns que eu não escutava havia, literalmente, décadas.

Há algum tempo, no entanto, andei ouvindo esses discos de novo com uma atenção que já não dispensava havia muito tempo, em ordem cronológica, inclusive os de que eu não gostava. E percebi que estava errado em relação a vários deles. Nada como o tempo para lhe fazer criar juízo e perceber sua estupidez; e assim lá vamos nós de novo, dessa vez com um pouquinho mais de seriedade.

A lista original se restringia aos LPs originais. Nos anos 90, ao relançá-los em CD, McCartney adicionou a eles os compactos lançados na mesma época. Na época, ignorei essas novas versões porque elas acabavam deturpando os discos originais, tornando-os invariavelmente mais fortes.

Mas nos anos 2010 McCartney descobriu uma mina de ouro: valorizar novos relançamentos com o acréscimo de um bocado de material inédito.

A Archive Collection traz uma variedade de versões do mesmo álbum para todos os bolsos, com faixas inéditas, sobras de estúdio e demos, em edições de luxo com fotos, textos, qualquer coisa que possa agregar valor e fazer os fãs comprarem novamente o que já têm, e que chegam a custar centenas de dólares. Isso muda as coisas porque a quantidade de material musical incluído costuma ser impossível de ignorar — ao mesmo tempo que é preciso evitar que isso tire a perspectiva do disco original. Assim, embora eu continue essencialmente comentando os álbuns originais, porque me recuso a tirá-los do seu contexto, é preciso fazer uma menção em separado a esse novo material, quando existente.

Por outro lado, a lista continua ignorando os álbuns ao vivo, que ultimamente se multiplicaram também em vídeo, já que a debâcle da indústria fonográfica forçou artistas como McCartney a botarem o pé na estrada com mais frequência para garantir o caviar das crianças.

Ignora também as obras eruditas. Não porque são boas ou ruins, mas porque não tenho capacidade de julgá-las adequadamente; sempre desejei que o Milton Ribeiro fizesse um favor às gentes resenhando os danados. Os três discos de The Fireman tampouco foram incluídos, mais ou menos pelas mesmas razões. O primeiro é bem razoável, o segundo é meio chato, o terceiro tem alguns pontos altos; mas não é uma linguagem que eu entenda. Twin Freaks eu mal ouvi. E o Liverpool Sound Collage é apenas Revolution 9 refeito trinta anos depois.

McCartney
O primeiro disco de Paul McCartney é antes de tudo uma reação à música dos Beatles e uma afirmação pessoal diante dos ex-parceiros. Com Paul tocando e produzindo tudo, o álbum vira as costas aos valores de excelência na produção típicos dos Beatles e investe em uma abordagem artesanal, caseira, refletindo em parte a mesma filosofia do projeto Get Back/Let it Be, mas também o cansaço de McCartney com o mundo que o cercava e uma busca por conforto e alegria no seu ofício. Conscientemente, ele tenta se afastar do som da banda, se livrar da influência e participação dos outros no que sentia ser a sua obra, ao mesmo tempo em que tenta resgatar uma simplicidade e uma individualidade que temia perdidas.

O resultado é irregular. De certa forma, sintetiza tudo o que se poderia esperar da carreira de McCartney a partir dali. Um compositor capaz de encher meio álbum com composições de categoria absoluta (Maybe I’m Amazed, Every Night e Junk são dignas de qualquer álbum dos Beatles, e That Would Be Something parece saída do “Álbum Branco”) mas que muitas vezes apostaria em uma visão bem particular que falha em alçar voo, como em Teddy Boy; um músico autossuficiente que muitas vezes deixa claro que se beneficiaria muitíssimo da colaboração de seus colegas de banda (nas mãos dos Beatles That Would Be Something ou Oo You poderiam ser algo muito melhor); e finalmente, um artista que, ao longo de toda a sua carreira, cederia repetidamente à tentação de lançar material mal acabado, canções que com um pouco mais de esforço e critério poderiam resultar em clássicos.

Também joga luz sobre uma atitude generalizada da crítica em relação a McCartney. Uma canção que chama a atenção é Man, We Was Lonely. É praticamente uma antecipação do que Lennon faria no fim daquele ano com Isolation. Ambas falam das pressões, da orfandade sentida a partir do fim da banda, do consolo e segurança encontrados em suas parceiras. E no entanto, no disco de Lennon isso era uma prova do seu talento confessional; no de McCartney, até pelo tom otimista, é considerado apenas uma bobagem. Era um presságio: a crítica seria injusta com Paul McCartney durante muito tempo.

O passar do tempo e a chegada da internet elevaram a reputação deste disco, mas McCartney continua sendo o que era em seu lançamento: um disco irregular, mas principalmente contraditório. Por um lado preguiçoso, relaxado, autoindulgente, o trabalho de um autor consagrado que pode se dar ao luxo de emplacar a sua visão artística, mesmo quando turva. Por outro, além de trazer algumas grandes canções — o objetivo de qualquer álbum —, mostra que McCartney ainda era o artista com lampejos de genialidade musical que encantou o mundo.

A versão da Archive Collection é das que menos traz material inédito, e provavelmente as mais fracas. De interessante, um outtake razoável de Maybe I’m Amazed e a legendária Suicide, composta para Frank Sinatra.

Ram
Desprezado em seu lançamento e depois alçado à reputação de um dos melhores discos de um ex-beatle, Ram é um grande avanço em relação ao seu predecessor. Agora McCartney se queria levar a sério e foi atrás de outros músicos, como Denny Seiwell e Dave Spinoza. De uma riqueza musical que surpreende até quem já conhecia a capacidade de McCartney de criar grandes melodias, Ram finalmente mostra o seu talento real e virtualmente todos os seus pontos fortes.

Não é nos rocks que o disco se destaca — embora excelentes, há sempre algo de leve demais em Eat at Home ou Smile Away. É na sensibilidade entrevista nos números mais lentos, na extrema inventividade que às vezes mal pode ser contida em uma só canção, que Ram se revela um clássico.

Os Lennon acharam que o disco era todo uma estocada neles. Segundo McCartney era só a primeira faixa, Too Many People Too many people preaching practices / Don’t let them tell you what you wanna be. Mas é impossível ouvir 3 Legs (My dog he got three legs / but he can’t run) e não pensar nos seus ex-amigos. Em resposta, John e Yoko escreveram How Do You Sleep?, um ataque fortíssimo abaixo da linha da cintura (The only thing you’ve done was “Yesterday” / But since you’ve gone you’re just “Another Day”); e Lennon chegou a considerar aparecer na capa do álbum Imagine segurando um porco, como resposta à capa deste disco.

Ram é creditado a Paul e Linda McCartney. Na época, a renda dos discos solo ia para um fundo comum e era dividido igualmente entre os quatro. Embora naquele momento, por incrível que pareça, McCartney não fosse o campeão de vendas do grupo (mérito que, por causa do All Things Must Pass, pertencia a George Harrison), ele achou esse arranjo injusto e deu crédito à mulher para ficar, desde o início, com 50% da renda. Os outros beatles não gostaram de mais essa sacanagem.

A versão da Archive Collection traz três discos adicionais. Um é a versão mono do álbum, redundante. São os outros dois que trazem algo realmente interessante. Thrillington, a versão orquestral e apócrifa do álbum que McCartney lançou alguns anos depois e que agora inclui aqui, é surpreendente. Alguns arranjos são excelentes, eventualmente lançando uma nova luz sobre algumas das faixas do LP original, e me arrependo de não ter querido ouvi-lo antes. O outro traz os compactos, outtakes, gravações caseiras e canções inéditas de sempre. Algumas são excelentes, como A Love For You, canção que inexplicavelmente permaneceu inédita durante tempo demais: eu consigo ouvi-la fazendo sucesso nas rádios no fim dos anos 70.

Wild Life
A falta que McCartney sentia dos Beatles era tanta que ele não resistiu e formou um novo grupo. Mas agora nas suas condições: ele era o dono da bola e isso estava claro desde o início. Os resultados não demoraram a surgir, obviamente, e o primeiro álbum do Wings, lançado pouco mais de seis meses depois de Ram, é uma unanimidade: o elogio mais comum que se faz a ele é “medíocre”

Isso é injusto. Pelo menos metade dele é bem boa, das respostas a Lennon — delicada em Some People Never Know, angustiada em Dear Friend — à belíssima balada Tomorrow, passando por um cover brilhante de Love is Strange, que não lembra em quase nada a versão original de Mickey & Sylvia, e o blues que dá título ao álbum, no mínimo curioso. Mesmo o resto deixa antever coisas melhores. I Am You Singer, por exemplo, cresceria muito com um arranjo mais consistente, e Mumbo, com sua letra que não é letra e que acaba lembrando Charlie Chaplin em “Tempos Modernos”, é um rock que ilustra bem a capacidade de McCartney de não se levar a sério demais. Wild Life merece ser mais bem avaliado. Infelizmente foi lançado pouco depois do Imagine de Lennon, uma obra-prima, o que piorou ainda mais a sua imagem. De modo geral, é um álbum que se fosse mais bem produzido, com mais cuidado, poderia ser muito melhor. No fim das contas, é um disco digno ainda que um pouco estranho.

A versão da Archive Collection traz pouca coisa interessante. O melhor é African Yeah Yeah, algo que parece ser uma jam, “incluída por brincadeira. Paul pede desculpas”. No entanto, é curiosa pelo seu frescor e descompromisso, e por mostrar a influência de Linda — fã absoluta de reggae — na banda.

Red Rose Speedway
Este álbum é a razão para eu reescrever esta discografia. Quando o ouvi pela primeira vez, detestei. Meloso, piegas, chato e depressivo: eu o vi como um lamento dirigido a Lennon — basta prestar atenção à letra de Little Lamb Dragonfly para ter essa impressão. Umas poucas audições posteriores não mudaram essa avaliação, e nos últimos trinta anos não me dei sequer ao desfrute de ouvi-lo inteiro.

Eu estava enganado. Red Rose Speedway é um bom disco. Não é brilhante, mas não é ruim — ou pelo menos não tão ruim quanto acreditei por décadas.

Red Rose Speedway, ao menos, traz um um número suficiente de boas canções. Apesar da crítica torcer o nariz, My Love é, sim, uma das grandes canções de amor da história, com uma melodia lindíssima, uma letra que passa o seu recado com perfeição e um solo de guitarra irrepreensível. E canções como One More Kiss e o medley final são puro McCartney. É um disco que pertence ao seu tempo e que traz muito claro o DNA de seu autor, o que possibilitou que envelhecesse com alguma graça. Longe da perfeição, está mais longe ainda de ser a tragédia que sempre julguei ser.

A versão da Archive Collection traz algumas excelentes canções inéditas, como Tragedy, que enriquecem muito o álbum.

Band on the Run
Um disco exuberante, vigoroso, cheio de alegria musical — Band on the Run é o melhor de McCartney até aquele momento, a obra que lhe devolveu o respeito da crítica, e para muita gente o melhor álbum de toda a sua carreira solo, que já ultrapassa meio século. Das notas iniciais da canção-título à sua retomada no final do disco, o que temos é uma obra completa, coesa, bem pensada e executada com brilhantismo. Band on the Run é um dos grandes discos de rock dos anos 70.

A última versão lançada, da Archive Collection, traz acréscimos medíocres. Mais interessante, pero no mucho, é a comemorativa do aniversário de 25 anos. A verdade, no entanto, é que o disco original continua sendo suficiente.

Venus and Mars
Embora não esteja no mesmo nível do Band on the Run, Venus and Mars é um sucessor digno. É possível defini-lo como um álbum que exemplifica com quase perfeição o mainstream do rock na metade dos anos 70 — e não à toa, junto com o Led Zeppelin os Wings foram a banda de maior sucesso comercial daquela década.

Venus and Mars é um disco coeso, suficientemente denso, com um grande apelo pop sem que isso signifique a perda de qualidade roqueira.

No entanto, tem um aspecto curioso: ao contrário de discos inferiores, elevados por dois ou três clássicos em cada, Venus and Mars é um álbum em que o que mais impressiona é o conjunto, a abundância de boas canções e a qualidade média. Talvez seja o melhor “álbum dos Wings”, ou seja, um disco com participação mais efetiva da banda, que tinha encontrado finalmente sua melhor formação. Não houve muitos discos melhores que esse em 1975.

A Archive Collection não acrescenta muito ao que já tínhamos, além dos compactos contemporâneos. Apenas Soily, um belo rock.

Wings at the Speed of Sound
O papel histórico do Speed of Sound é, essencialmente, interromper a fieira de bons discos dos Wings. Só isso.

Depois de uma sequência brilhante, McCartney resolveu aprofundar a fórmula consagrada em Venus and Mars, mas agora sendo mais democrático e cedendo mais espaço para seus companheiros de banda. O resultado é de uma mediocridade espantosa, apesar de duas ou três grandes canções. A maior parte delas é pobre, e a elas falta aquela qualidade inexplicável que torna as grandes canções de McCartney obras atemporais. Pior: em um ano em que a cena musical inglesa via o surgimento de bandas como o Sex Pistols e o Clash, McCartney se sai com esse disco. Não tinha como dar certo.

A Archive Collection, entre outras bobaginhas como Bonzo Bonham na bateria de Beware My Love, traz Must Do Something cantada por Paul, provavelmente porque não havia nada de melhor para desenterrar. A versão original, com Joe English nos vocais, é melhor.

London Town
Que belo disco, esse London Town. Parcialmente gravado em um barco, o Wanderlust, viu o fim da melhor formação dos Wings, com a saída de Joe English e Jimmy McCullough. Mas aqui não fizeram muita falta. London Town reflete a atmosfera relaxada das circunstâncias de sua gravação, bem como o fato de que a banda tinha se solidificado como uma das mais bem sucedidas dos seu tempo. E tudo isso enquanto o punk comia solto lá fora. Assim como no álbum anterior, McCartney ignora o que se faz de novo. Mas ao contrário daquele, é capaz de expor sua visão da música de maneira sólida, coerente e elegante.

Este álbum traz canções magníficas, pop de primeira qualidade. É um um disco que orgulha o seu autor.

Back to the Egg
Este é, sem nenhuma dúvida, o álbum mais subestimado de McCartney. Lançado em 1979, nos estertores do movimento punk na Inglaterra, é vigoroso e variado, suas guitarras sujas dando um ar moderno e roqueiro a uma abundância de boas melodias. Back to the Egg estreava uma nova formação dos Wings, que infelizmente não sobreviveria à prisão de McCartney no Japão alguns meses depois. A média de qualidade das canções individuais é relativamente baixa, embora três ou quatro  sobressaiam, como Getting Closer, Arrow Through Me ou Baby’s Request: a graça do disco está nos arranjos, essencialmente, e na unidade que ele consegue ter. Back to the Egg é álbum para ouvir inteiro, a cada vez.

McCartney II
O Wings estava para acabar e McCartney se trancou em casa com sintetizadores e sequenciadores. O resultado foi o que é, ao menos oficialmente, seu segundo disco solo, nomeado adequadamente.

Nos últimos anos, McCartney II tem sido reavaliado e alçado à condição de grande disco experimental, ousado, etc. Deve ser o resultado da música ruim que se ouve hoje: as pessoas perderam o critério.

Há duas maneiras de abordar esse disco. Uma é colocando-o na tradição do seu primeiro álbum solo: o artista divertindo-se sozinho, fazendo o que lhe dá na telha simplesmente porque conquistou o direito de fazer isso. O outro é fazer de McCartney II um álbum conscientemente experimental, uma obra avant garde.

Infelizmente, este álbum ficou no meio do caminho e não é nem uma coisa, nem outra. É um disco estranho, irregular e insuficiente sob qualquer ângulo que se olhe. Ele inteiro soa amador, mal produzido; sempre de olho na viabilidade comercial do álbum, McCartney tentou compensou a experimentação em faixas como Frozen Jap ou Temporary Secretary com canções claramente destinadas a tocar no rádio, como Waterfalls. E canções como One of These Days mostram que essa experimentação era muito mais intuitiva, quase aleatória, do que proposital. McCartney II era o que tinha para hoje.

Além disso, a maior parte das canções era ruim, ou ao menos displicente. Pouco antes de morrer B. B. King regravou On the Way (para mim, um quase plágio de uma antiga canção de Elvis) e mostrou aonde se poderia ir com parte do material original. Mas a quantidade de músicas ruins — apesar de Coming Up, Waterfalls e One of These Days — não é apenas considerável: são canções muito, muito ruins. Bogey Music , por exemplo, é assustadora.

A versão da Archive Collection ressalta os problemas do álbum original. Embora enriqueça muito o disco, evidencia que boa parte do material deixado de fora poderia ter ajudado a compor um disco instigante, dentro desse propósito experimental. Com um pouco mais de esforço, foco e coragem, McCartney poderia ter feito um disco ao mesmo tempo à frente do seu tempo e contemporâneo. Mas essa, pelo visto, nunca foi a ideia. O resultado é que McCartney II parece o meme do John Travolta confuso.

Tug of War
Depois de um ano em que, pela primeira vez desde 1961, não lançou nada novo, McCartney aparece com um disco em que parecia reagir a um mundo sem John Lennon.

Tug of War é um álbum variado, rico, um dos excelentes de McCartney. Traz uma de suas mais belas canções, Wanderlust (só McCartney para transformar uma canção que se podia chamar de “Baculejo em Alto-Mar” nessa pequena obra-prima), mas todo o disco é de qualidade superior, com força e qualidade. Liricamente, McCartney parece ter tentado ousar um pouco mais, olhar o mundo ao redor, com comentários sociais como Tug of War e mesmo The Pound is Sinking, além da sensibilidade entrevista em Somebody Who Cares, em que ele retoma um velho tema caro ao seu coração, a solidão. E Ebony and Ivory, um dos dois duetos com Stevie Wonder, é uma bela canção, mas tocou tanto que quem estava vivo naquela época tem arrepios aos primeiros acordes.

A versão da Archive Collection é medíocre, trazendo basicamente as demos das canções.

Pipes of Peace
Eu não tenho condições de julgar adequadamente este disco por uma razão muito simples: foi o primeiro que comprei na vida. Ouvi Pipes of Peace até quase furar; conheço cada canção de uma maneira como jamais conhecerei as mais recentes de McCartney. Junte a isso o detalhe de ter passado décadas sem ouvi-lo; reencontrá-lo, portanto, traz lembranças que vão muito além do seu valor estritamente musical e turvam qualquer capacidade de julgamento.

Isto posto, Pipes of Peace é  feito quase exclusivamente com sobras do Tug of War, e algumas faixas denotam o esforço de dar às duas obras alguma unidade conceitual. Algumas boas melodias, algumas boas baladas, mas não passa disso: um disco de sobras. A produção de George Martin é elegante, com algumas boas ideias aqui e acolá, e ajuda a deixá-lo um pouco menos datado do que poderia ser; mas nem mesmo ele consegue fazer com que esse disco supere totalmente as limitações estéticas do ano em que foi lançado, nem o fato de que foi feito a partir de material que, naquele momento ao menos, não tinha conseguido emplacar no Tug of War e, portanto, era de segunda categoria.

Mas ele não é tão ruim quanto dizem por aí. Colocado em perspectiva, é um álbum que em boa parte das faixas traz a força melódica de um compositor que, mesmo em seus piores momentos, é um gênio. Pipes of Peace, no fim das contas, sofre pela presença de duas ou três faixas realmente muito ruins, o que acaba obscurecendo algumas grandes canções, como a faixa-título, Say, Say, Say ou So Bad.

A edição do Archive Collection não pode fazer muito por este álbum, porque onde achar sobras de um disco de sobras?

Give My Regards to Broad Street
Este disco é um equívoco, e isso é o melhor que se pode dizer dele. Trilha sonora do filme patético que McCartney escreveu e estrelou, podia no máximo almejar a ser uma espécie de Yellow Submarine de McCartney — ao menos nos seus sonhos mais delirantes. Give My Regards é um disco malfadado. Algumas canções inéditas, várias regravações, inclusive de alguns de seus maiores clássicos com os Beatles. Infelizmente, nenhuma das regravações é boa: as de Yesterday, Here, There and Everywhere e For No One são pedestres e mancham a história de McCartney, e as versões de canções dos Wings e do próprio Paul são dispensáveis.

Mas nada chama tanto a atenção quanto The Long and Winding Road. McCartney tinha passado quase 15 anos resmungando que Phil Spector destruíra a simplicidade de sua canção. E aí, quando a regrava, é num arranjo ainda mais pesado, com direito aos saxofones horripilantes dos anos 80 e o escambau, uma versão vergonhosa que só a diminui. Ringo Starr, que participa do álbum e do filme, se recusou a tocar novamente nas canções dos Beatles, mostrando um juízo que faltou a McCartney.

Mas o disco não é uma tragédia absoluta. As três canções novas são excelentes. No Values e Not Such a Bad Boy são rocks dignos desse nome, com letras irônicas que não fazem feio; e No More Lonely Nights, o último mega-hit da carreira de McCartney, é uma belíssima balada, enriquecida ainda pela guitarra de David Gilmour.

Para piorar a situação histórica deste disco, ele inaugurou uma prática que McCartney levaria à perfeição canalha nos anos seguintes. Cada mídia trazia uma versão diferente: LP, cassete (que incluía uma gravação de So Bad) e CD (com duas músicas a mais e versões levemente diferentes de outras). Além da sacanagem óbvia com o fã, nenhuma versão faz do disco algo melhor.

Press to Play
Talvez este seja um disco injustiçado. Talvez não.

Ao ser lançado, Press to Play foi recebido com palmas pela maioria da crítica — a brasileira foi, na época, praticamente unânime em elogios. Elogiavam a nova parceria com Eric Stewart, o esforço claro em modernizar o som do velho e bom Macca com o uso abundante de eletrônica.

Mas o tempo passou, e fazendo valer a máxima de que os discos de Paul McCartney são biodegradáveis para a crítica, Press to Play passou a ser considerado um dos piores da sua carreira.

Nem tanto ao céu, nem tanto à Terra. No esforço consciente e evidente de atualização do som de McCartney, Press to Play, abusando de sintetizadores e outras eletrônicas várias, passa do ponto para tentar alcançar esse objetivo. Aqui se vê muitas influências de artistas contemporâneos, e embora tenha algumas boas canções, como However Absurd, Stranglehold e Only Love Remains (e ninguém mais poderia compor Press, por exemplo, uma canção menor que ainda hoje é uma delícia de ouvir), se ressente da falta de unidade e de força criativa, de modo geral. Há muitas canções ruins, fracas. Mas Press to Play talvez pudesse ganhar uma nota maior do que lhe é concedida atualmente.

Snova V CCCP
Em meados dos anos 80, provavelmente sentindo falta da segurança e conforto que só uma banda de rock pode dar, McCartney realizou algumas jam sessions com artistas convidados, sem um propósito inicial muito claro. Entre eles estava Johnny Marr, dos Smiths. O repertório era a música que todos eles tinham em comum: clássicos do rock ‘n’ roll. A partir dessas jams McCartney resolveu compilar um disco que seria lançado apenas na União Soviética em 1988, como uma espécie de “pirata especial”, e finalmente no resto do mundo em 1991. O resultado é irregular. Algumas das versões são muito boas, como Crackin’ Up; outras, como Kansas City, são inferiores ao que ele mesmo já tinha gravado. O disco é um esforço digno, mas a produção simplória tira muito da força que ele poderia ter. É um rock educado, limpo.

O disco ainda não tem uma versão da Archive Collection, o que é uma pena, porque dessas sessões sobraram uma meia dúzia de covers que prometem muito.

Flowers in the Dirt
Em 1989, este disco foi saudado como o retorno de McCartney à boa forma. E com razão. Flowers in the Dirt traz uma exuberância e uma força que faltavam em seus últimos lançamentos. Ao formar uma nova parceria com Elvis Costello, McCartney recobrou uma dimensão lírica que tinha perdido, mas também uma abordagem musical mais instigante.

Este álbum marca o começo de uma nova era para McCartney, 20 anos depois de John Lennon abandonar os Beatles. Ele tiraria o mofo do seu baixo Hofner e se consolidaria como algo mais que um simples músico, mais até que um gênio. McCartney aceitava que, já há alguns anos sem um número 1 nas paradas, seu período à frente de uma revolução havia passado. A música tinha seguido em frente e não precisava mais dele. A partir dali, McCartney se consolidou como algo mais que um ser humano: uma lenda viva, correndo o mundo em turnês infindáveis diante de plateias de adoradores absolutos— entre os quais me incluí, extático, algumas vezes —, em que ele finalmente fazia as pazes com seu passado e passava a viver dele, sem abdicar, no entanto, de uma busca criativa eterna e indefinível que o faz lançar bons discos aos 78 anos.

A versão da Archive Collection traz, basicamente, as demos da parceria entre McCartney e Costello. É muito pouco.

Off the Ground
Depois de um disco muito elogiado, uma turnê que entrou para o Guinness e enquanto se preparava para uma nova excursão, McCartney entrou no estúdio novamente com sua banda.

Podia ter passado sem essa parada. Off the Ground, na falta de adjetivo mais adequado, é um disco frouxo.

Alguns versos de algumas canções são constrangedores; quando McCartney fala na “way we treat our fellow creatures”, um calafrio sobe pela espinha. Algumas canções estão abaixo do medíocre, como Biker Like an Icon.

Mas este álbum não é uma tragédia total. Traz algumas boas canções, como Hope of Deliverance e as duas canções restantes da parceria com Elvis Costello. Mistress and Maid é uma obra-prima, delicada e angustiada ao mesmo tempo.

O problema é que o disco inteiro parece incompleto, mal cozido. Embora não seja ruim, uma canção como Peace in the Neighbourhood nos faz pensar na tragédia que assola os roqueiros felizes. C’Mon People é grandiloquente e chata demais. E é impossível ouvir Cosmically Conscious sem pensar que McCartney teve 25 anos para transformar essa canção em algo decente, e não fez isso.

Na Alemanha e na Holanda, no entanto, McCartney lançou um disco diferente: Off the Ground: The Complete Works, com um CD a mais que incluía faixas inéditas e gravações do MTV Unplugged.

Algumas dessas faixas fazem pensar que, se McCartney fizesse uma escolha mais criteriosa para o seu álbum original, acrescentando canções como Long Leather Coat e retirando desgraças como Get Out of My Way, teria nas mãos um disco muito melhor. Mas vá entender como funciona a cabeça do sujeito.

Flaming Pie
Uma confissão: ao ouvir este disco pela primeira vez, depois de oito anos sem um bom disco de McCartney e quatro sem nenhum, eu fiquei emocionado.

O disco foi gravado depois que McCartney imergiu nas gravações dos Beatles para o projeto Anthology, e em meio a um período difícil na vida de McCartney: a morte de Maureen Starkey e a luta de Linda McCartney e George Harrison contra o câncer. Talvez esse turbilhão emocional e essa reconexão com o passado tenham ajudado a fazer de Flaming Pie o que ele é: uma obra prima, digna do maior gênio da música popular do século XX. Das lembranças das noites com Lennon em The Song We Were Singing ao consolo aos filhos de Ringo em Little Willow, do recado ao filho problemático em Young Boy à beleza delicada de Calico Skies, este disco traz McCartney em grande forma, como não se via há havia muito tempo.

A edição da Archive Collection é uma das melhores da série. Traz uma infinidade de demos, programas de rádio e canções inéditas que o tornam quase um Anthology.

Run Devil Run
Com a morte de Linda, McCartney parece ter ido buscar consolo no que sempre norteou sua vida: a música que ouvia quando adolescente.

Ele já tinha gravado um disco de covers, com resultados medíocres. Mas desta vez o resultado compensou, com sobra. Como era o costume dos Beatles, em vez de clássicos regravados milhões de vezes McCartney deu preferência a canções menos conhecidas. Juntou uma banda de respeito, com David Gilmour na guitarra e Ian Paice na bateria. O resultado é o melhor disco de covers de rock and roll gravado por um ex-beatle, com o peso e a urgência que faltaram a Snova V CCCP e a seriedade que Lennon não quis em Rock and Roll, acrescido de três canções inéditas — que não estão certamente entre seus grandes clássicos, mas não fazem feio num álbum de rock. Run Devil Run é um dos bons discos de Paul McCartney, e nos lembra que, quando quer, ele é um grande artista de covers.

Driving Rain
Esse é outro disco muito subestimado. Muita gente o acha inferior a Flaming Pie. Não é. Talvez essa impressão derive da faixa-título, que abre o disco e que não é o momento mais inspirado da carreira de McCartney.

O fato é que Driving Rain é um excelente disco, forte, coeso com algumas grandes canções e uma abordagem geral sólida e competente.

De certa forma, é um disco que marca um processo de evolução lírica de MCCartney, cuja carreira solo sempre mostrou um esforço deliberado para fugir do autobiográfico. Agora, de repente, algumas canções são um claramente pessoais, como From a Lover to a Friend, um recado à finada Linda, e Lonely Road, uma das melhores interpretações de sua carreira. E Rinse the Raindrops nos faz lembrar que McCartney ainda é um dos melhores baixistas da história.

Driving Rain marca também, de maneira um pouco mais clara, o processo de deterioração da voz de McCartney. É um processo que vinha de décadas — McCartney já reclamava disso em 1969. Mas pouco antes da gravação deste disco, numa discussão com Heather Mills, Paul perdeu a voz por alguns dias. Quando voltou, já não era a mesma. A rotina posterior de shows acelerou ainda mais o desgaste.

Chaos and Creation in the Backyard
Escrevi sobre este disco aqui. Quinze anos depois, não tenho nada a acrescentar ou a retirar.

 

 

 

 


Memory Almost Full
Também escrevi aqui. Nada a acrescentar, também. A não ser o fato de que essa continua sendo a pior capa de um disco de McCartney em seus mais de 50 anos de carreira.

 

 

 

Kisses on the Bottom
Quando este disco foi lançado eu não tinha muitas coisas boas para dizer sobre ele. Acho que nunca falei tão mal de um disco de McCartney. Nove anos depois, minha opinião é um pouco mais complexa — mas só um pouco. Como imaginei, é o tipo de disco que, depois de vencido o estranhamento, e a partir do momento em que você aceita as limitações da voz destroçada de McCartney e o mais-do-mesmo elegante dos arranjos, o que fica é, como já dava para antever, um disco agradável, quase digno, feito para tocar em BG. O tempo lhe fez bem, ao contrário do acontece com a maioria dos discos de McCartney.

New
Demorou cinco anos para que eu conseguisse ter uma opinião sobre esse disco. Minha primeira impressão foi: é uma droga. Só há pouco tempo fui entender o que aquilo significava. O problema de New está na produção. O esforço de McCartney em estabelecer um diálogo com as novas gerações resultou em uma grande bagunça. Produtores demais, eletrônica demais, tudo isso em detrimento da canção. Ao contrário de Nigel Godrich, que enriqueceu a música de McCartney em Chaos and Creation, aqui os produtores transformaram as canções em coadjuvantes. Para piorar, boa parte delas não tem a qualidade necessária para lhes  erguer acima da produção. Aquela característica de McCartney que fazia suas canções parecerem fáceis, lógicas, quase “como não pensei nisso antes?” deu lugar a algo parece um esforço de artesanato evidente, mas não muito convicto de si próprio. Ainda é muito superior à média atual, nesse aspecto; mas já não é o mesmo McCartney de antigamente.

Egypt Station
Comentário aqui.

 

 

 

 

 


McCartney III
Comentário aqui.

O fim da estrada

A Apple Corps. divulgou ontem uma pequena montagem de cenas do documentário que Peter Jackson está fazendo com o material que deu origem ao filme Let it Be.

É empolgante. É uma colagem alegre e quase inimaginável para quem conhece o filme original. Ao que tudo indica, Jackson deu preferência às sessões gravadas no estúdio da Apple — para voltar à banda, George Harrison exigiu que saíssem do estúdio de cinema da Twickenham, onde começaram as gravações do filme —, notoriamente mais alegres. Pelo visto, ele vai cumprir a tarefa de recontar o fim dos Beatles de acordo com o prisma que a Apple quer que passe à história.

Não é algo menor. O filme de Jackson é provavelmente o último esforço de Paul McCartney e Ringo Starr, e em menor medida de Yoko Ono, de controlar a maneira como a sua história é contada. Eles têm idades que variam dos 78 aos 87 anos. É fácil perceber a importância emocional que isso tem para eles. O filme está fora de circulação há décadas. E só para que se tenha ideia, o trecho de menos de 5 minutos impressiona também como um desfile de amigos mortos. John, George, Linda McCartney, Maureen Starkey, George Martin, Mal Evans, Billy Preston: estão todos lá, e todos já se foram. Este filme deve ser a última nota de envolvimento pessoal e emocional da empresa chamada Beatles. Depois dele, tudo de novo que viermos a ver dos Beatles será somente mais tentativa de ganhar dinheiro.

The Beatles: Get Back pode ser finalmente a peça que vai encerrar um ciclo fundamental nas vidas dos dois sobreviventes, amarrar as pontas soltas numa história que, pela sua dimensão cultural e histórica, parecia ter sido apenas interrompida. A palavra final e positiva sobre a trajetória da banda.

Seja como for, qualquer coisa que Peter Jackson soltar vai colocar em evidência o trabalho porco realizado pelo diretor de Let it Be, Michael Lindsay-Hogg. Quer dizer então que ele tinha tudo isso à disposição, mas tudo o que conseguiu foi aquela hora e meia de chatice depressiva?

Eu e milhares de fãs falamos mal de Let it Be há décadas. Mas ver essas cenas tão antagônicas ao material lançado em 1970, em vez de confirmar minha opinião, me fez pensar que talvez eu estivesse um pouco errado ao sempre ter condenado o trabalho do pobre rapaz, porque embora a maneira como editou o filme seja imperdoável em sua incapacidade de construir uma narrativa melhor, ele acabou sendo criticado por algo de que, afinal, tem um pouco menos de culpa do que se acredita.

Imagine-se na pele de Michael Lindsay-Hogg nos primeiros dias de 1969. Você não tem nem a experiência nem o talento necessários para fazer um documentário do porte de um Let it Be; até agora, tudo o que você fez foram uns clipezinhos para a TV, e depois disso não voltaria a fazer nada digno de nota. Você é a pessoa errada na hora errada.

Durante as gravações, você se vê envolvido em toda a crise que estava levando a maior banda do mundo ao final. Acompanha as tensões, talvez seja forçado a tomar lado inúmeras vezes. Quando as gravações chegam ao fim, já faz tempo que você perdeu a objetividade necessária para avaliar corretamente o que tinha acontecido naquele mês trágico.

O material que você tem à disposição é enorme, mas foi colhido sem um roteiro prévio para lhe guiar, e principalmente sem uma ideia clara de como construir um filme a partir daí. Tem de tudo: discussões, brincadeiras, a presença lúgubre de Yoko Ono em um número excessivo de cenas. Você não sabe como organizar tudo isso e construir o drama necessário a uma narrativa. Também tem música, muita música, mas você não entende o que deve e não deve ser aproveitado, e por isso vai se concentrar no que lhe pediram: um documentário com as músicas de um disco que talvez saia um dia. Vendo o tamanho do buraco em que se meteu, você está tentando fazer algo com aquilo quando chega a notícia de que Paul anunciou o fim da banda.

Você devolve a pergunta a Lênin: que fazer?

O que a gente pode perceber vendo o material de Peter Jackson é que, em primeiro lugar, Lindsay-Hogg cometeu o erro grave de dar ao baixo astral visível em Twickenham a aparência de normalidade, e isso é indesculpável. A verdade é que a maior parte do mal estar da banda se devia ao fato de estar em um lugar estranho, desconfortável, gelado, que não fazia nada para mitigar uma crise que não parava de crescer. Não era um reflexo do cotidiano real. Mas há outro aspecto: ele deve ter percebido que, se tivesse feito um documentário que enfatizasse os momentos alegres das sessões, seria universalmente ridicularizado e acusado de falsear a história. Linday-Hogg fez um filme póstumo, e por isso o condenou.

Tudo isso me leva a pensar que há a possibilidade de Jackson construir uma narrativa tão falsa quanto a do Let it Be, uma imagem em negativo do filme original: onde aquele era apenas baixo astral, tensão e brigas, este pode vir a ser exclusivamente alegria, descontração e harmonia. É muito simples fazer isso: basta cortar todas as cenas de tensão, basta esquecer que eles quebraram o pau a ponto de George deixar a banda, ou não explicar por que George chamou Billy Preston para aquelas sessões, não mostrar por que decidiram se apresentar no telhado da Apple em vez de um anfiteatro romano.

Se isso acontecer, este filme será um epitáfio menor do que poderia ser. Uma narrativa equilibrada, que desse aos bons e maus momentos seu peso real dentro daquele mês, e mostrasse as contradições e a variedade de sentimentos conflitantes seria melhor. Não é possível entender o Let it Be sem ter em mente que, mesmo quando estavam se divertindo, a crise estava lá; e mesmo quando brigavam, uma ligação mais forte que o normal ligava aqueles quatro sujeitos. É essa complexidade que deve ser mostrada no filme.

Eu torço para que o filme de Peter Jackson dê a Paul e a Ringo a paz que, no outono da vida, eles parecem precisar. Jackson pode vir a redimi-los, finalmente. The Beatles: Get Back pode ser o final da longa e sinuosa estrada. É o bastante.