Outra leitura

Foi o Smart Shade of Blue quem notou o fenômeno primeiro.

À medida que a Primeira Leitura vai se tornando uma revista cada vez mais direitista, vai se tornando também a principal referência na blogosfera de direita. É típico: menções a ela eram raras quando era uma revista equilibrada, densa e inteligente. Mas à medida que seu nível vai caindo, suas opiniões e posições vão ficando cada vez mais semelhantes às daqueles que até há pouco tempo cultuavam as previsões astrológicas de Olavo de Carvalho.

Sempre gostei da revista. Principalmente nos seus tempos de “República”, quando tentava ser a Economist brasileira, ela representava uma linha de pensamento clara, definida e honesta. Sua atitude diante do governo FHC, por exemplo, era o melhor exemplo disso: era abertamente crítica — como não poderia deixar de ser numa revista capitaneada pelos irmãos Mendonça de Barros, derrotados no processo de disputa política interna do governo — mas não simplesmente deletéria.

Com a saída dos Mendonça de Barros, Reinaldo Azevedo e Rui Nogueira, livres das amarras de escrúpulos, diminuíram a revista que construíram. Não só na linha editorial e política, que no período pré-eleitoral do ano passado partiu para a propaganda política de forma panfletária e torcendo fatos; a própria revista, como produto editorial, decaiu assustadoramente. Incluiu até uma seção chamada “Carpe Diem”, provavelmente para tentar conquistar uma parcela do público “rico e famoso”, como se não existissem outras revistas fazendo isso com mais competência.

De revista marcadamente ideológica, porém inteligente, a Primeira Leitura passou a ser pouco mais que um panfleto. Desceu de um patamar alto para chafurdar na lama tradicionalmente ocupada por jornais de interior, ligados a grupos políticos e mera correia de transmissão de seus interesses, menos que de seus pensamentos. Como comparação, basta pegar um exemplar da antiga República (julho de 2001) em que se dizia que “FHC terá aumentado em cerca de 3,7 milhões o total de desocupados do país desde que assumiu o comando da economia, em 1993” e comparar aos últimos números da Primeira Leitura, que ataca Lula por dizer que “o que conta não são os 2,8 milhões de desempregados, mas os ‘534 mil novos empregos’ criados de janeiro a abril, ‘o maior saldo positivo desde 1992’” (junho de 2004).

Apesar de tudo isso, da torção louca dos fatos em função de seus interesses eleitorais, a linha editorial da revista ainda tem lá seus méritos. Mantém alguns bons articulistas, como os correspondentes Eduardo Simantob e Fernando Eichenberg. A última edição traz uma boa entrevista com o Francis Fukuyama. Também mantém alguns inofensivos. O Caio Blinder, no Manhattan Connection ou na Primeira Leitura, é incapaz de um raciocínio original, e suas matérias costumam se resumir a um apanhado laudatório do que pensa a mídia mais conservadora dos Estados Unidos.

A maioria, no entanto, está tão à direita no espectro político que consegue deturpar de forma tão canhestra a informação a ponto de ser irritante ler seus textos. O Hugo Estenssoro, por exemplo, é o mais acabado retrato da direita neo-conservadora, embora seus constantes rompantes contra o finado comunismo demonstrem que de neo, mesmo, ali há muito pouco. Na edição atualmente nas bancas, ele escreve uma matéria sobre blogs, com erros de julgamento e conclusões extremamente tendenciosas. Em outra, é capaz de escrever mentiras delirantes sobre “a identificação incondicional da esquerda mundial com o fanatismo reacionário e terrorista de Osama bin Laden e o Taleban”.

Ou seja: a revista é cada vez mais a cara do Reinaldo Azevedo e do Rui Nogueira, o que quer dizer uma revista não mais atrelada a uma linha de pensamento, mas especificamente a um segmento de um partido político e plenamente engajada em uma disputa eleitoral. Isso prejudica o próprio conteúdo jornalístico da revista, que ao falar da Reforma Universitária diz que “o MEC fere a autonomia universitária impondo, por exemplo, eleição direta para reitores”. Obviamente a revista acredita que democrático e autônomo é o método em vigor, em que a Universidade vota uma lista tríplice e o MEC escolhe um deles — podendo escolher, claro, o menos votado. Além disso, como precisa caracterizar o governo Lula como autoritário, chama de imposição o que é uma reivindicação da comunidade universitária desde sempre. O conceito de democracia da revista é meio esquisito.

Sem dúvida, a Primeira Leitura ainda é um ídolo um tanto mais civilizado para essa direita que vive repetindo chavões neo-liberais do que o alucinado do Olavo de Carvalho — que, sintomaticamente, passou a escrever para a revista nesses novos tempos. Melhor para essa direita, sempre ignorante, que agora talvez consiga dar um verniz de inteligência e verdade factual às suas diatribes; mas pior, muito pior para a Primeira Leitura, despontando para um gueto do qual dificilmente sairá.

Parabéns à direita acéfala por substituir Olavo de Carvalho e suas alucinações pela Primeira Leitura e suas torções de fatos. E meus pêsames à Primeira Leitura.

Ele era o cão

O jogo foi deprimente, assim como as “inovações tecnológicas” da Globo. Foi uma despedida com pelo menos 5 anos de atraso. Foi indigno do Brasil e do homem que ganhou a copa de 94 auxiliado por mais dez jogadores.

Mas quando Romário levantou a camisa amarela e mostrou, por baixo dela, que “Eu tenho uma filhinha Down que é uma princesinha”, ele redimiu tudo aquilo.

Ainda o racismo

Emerson, desculpe, mas você fez uma confusão dos diabos. A citação da Constituição tem a ver com os poderes que o professor, desconhecendo as leis do país, negou ao presidente. Leia de novo o trecho. Não tem nada de anacronismo.

Quando você diz que “fazer declarações de indignação em relação a fatos do nosso passado histórico é muito fácil, difícil é combater efetivamente o racismo atual”, parece pressupor um antagonismo que não existe. Não é porque falar é mais fácil que isso deve deixar de ser feito.

Agora, é a postura em relação ao passado que define o presente. Essa idéia de compreensão desapaixonada é muito bonita, mas inexistente na prática. O artigo do professor pode ser comparado a outro, em que ele usa a mesma concepção de história e, pior, de sociedade para justificar sua oposição à instituição de cotas para negros. Com os mesmos argumentos que se contradizem e que, acima de tudo, entendem que a nossa sociedade é um paraíso racial porque negros não precisam andar na parte traseira dos ônibus.

Repetindo o que já disse no outro post: a partir do momento em que se reconhece a responsabilidade brasileira, o pedido de desculpas de Lula é um anacronismo tão grande quanto o pedido de desculpas da Igreja Católica aos judeus. E eu, pelo menos, acho que nunca é tarde para pedir perdão.

Além disso, é ingenuidade achar que basta colocar uma pedra no passado para que ele deixe de existir. Você falou que “pedir desculpas é uma maneira de fugir de problemas atuais como o próprio racismo”. Não poderia estar mais equivocado. O mesmo governo que pediu desculpas é o que está tentando estabelecer as cotas para negros e diminuir um pouco o abismo social onde eles estão; enquanto isso, o mesmo sujeito que atacou esse pedido é o que, negando o componente racial no estrato econômico, é contra a instituição de cotas porque isso é “nazismo”.

Seria ingenuidade demais achar que essa concepção deletéria não fornece a base ideológica para a “contra-proposta” sujeito. Lendo os dois artigos do sujeito tive a impressão nítida de que estava lendo algo muito semelhante àqueles inidicadores sociais da época da ditadura.

Quanto à “disputa de indicação de livros”, acho que você não entendeu, também. Eu disse que isso não significa nada, mas que a postura — que deve ser analisada especificamente — era arrogante. E tenho certeza de que ele leu muito mais livros sobre o assunto do que eu — até porque é assim que ele ganha a vida.

O detalhe é que o livro indicado pelo professor é de alguém que co-escreveu com ele um outro livro, “A Paz nas Senzalas”. Não sei na UERJ, mas na minha terra a gente considera isso uma certa desonestidade intelectual.

***

Cláudio, não subestime a África nem a julgue de maneira única. O que você falou vale para a África sub-saariana, e mesmo assim com exceções. O norte, no entanto, chegou a dominar boa parte da Europa.

Se você não sabe, muitos dos escravos na Bahia tinham um nível cultural muito superior aos seus senhores. Sabiam ler, por exemplo.

Racismos e outros tipos de preconceito

Nos últimos dias um artigo do professor José Roberto Pinto de Góes tem feito carreira na blogosfera, como aqui e aqui.

O artigo é um primor de preconceito, tanto racial quanto político. Não é difícil contestar a maioria dos parágrafos do artigo.

Não faz sentido os brasileiros pedirem perdão aos africanos (Lula crê que tem uma delegação nossa para fazê-lo, mas não tem)

Na verdade ele tem e o rapaz precisaria estudar um tiquinho de direito constitucional (e português também. Confira o significado de “mandato”). Um presidente tem delegação para fazer tudo o que está previsto pela Constituição e leis do país, e por analogia e necessidade tudo o que não for proibido por elas. Isso inclui pedir desculpas. E mesmo aqueles que, como parece ser o caso do professor, não votaram ou estão decepcionados com Lula precisam aceitar isso.

O gesto do presidente revela também — como dizer, sem parecer mal-educado? — um certo desconhecimento da história da escravidão moderna. A África nunca foi uma vítima passiva da maldade dos europeus. O comércio de escravos preexistiu à chegada dos portugueses e sempre foi um negócio controlado pelos dirigentes das sociedades africanas, até o fim. E só acabou porque os ingleses, no século XIX, resolveram não mais tolerá-lo. Se devemos (toda a Humanidade) alguma coisa a alguém, é um agradecimento à Inglaterra.

Esse é um dos argumentos que mais me incomodam quando se discute a escravidão no país. É uma diluição das culpas européia e brasileira. O fato de existir escravidão na África, e de o tráfico ser um negócio altamente rentável no continente, não nos exime de nossa própria responsabilidade.

É quase como dizer que se Maria foi estuprada por seu tio, e eu a estupro de novo, eu não tenho culpa.

Um dos erros mais graves dessa avaliação é jogar a maior parte da responsabilidade pelo tráfico negreiro nas costas dos europeus. Porque se houve um momento em que o Brasil alcançou proeminência econômica no cenário internacional foi quando dominamos o tráfico no Atlântico Sul, justamente no momento em que ele alcançou maiores dimensões.

Ao que parece a idéia é de que nós, brasileiros, não devemos desculpas porque também fomos vítimas do tráfico. Mentira. As grandes fortunas formadas graças ao tráfico, os grandes contratos de empreitada que possibilitaram aos traficantes brasileiros o fretamento de navios provam isso.

O recado a ser dado ao professor é simples: nós fomos responsáveis, e não interessa como a escravidão se dava aqui, se o compadrio (fenômeno explicado com graça incomum pela brilhante historiadora Kátia Mattoso em “Ser Escravo no Brasil”) amainava as coisas, se as chances de crescimento social eram maiores que em outros países, se somos ou não descendentes de escravos. Escravizamos milhões de africanos. A responsabilidade é nossa. Se pagamos até hoje um preço altíssimo por isso, paciência.

Quanto a agradecer à Inglaterra, até parece que a velha Albion era movida pelos mais belos ideais em sua cruzada emancipatória. Como se ela não tivesse, como o Brasil e como Portugal, inúmeras grandes fortunas formadas através do tráfico (um bom livro sobre o assunto é Bury the Chains, de Adam Hochschild, lançado recentemente), como se ela mesmo não tivesse sido a única responsável pela escravidão no que seriam os Estados Unidos; e como se o interesse dela em acabar com o tráfico negreiro não fosse, também, reflexo das necessidades de um país industrializado e exportador. Usando métodos, inclusive, muito semelhantes aos que os Estados Unidos usam hoje.

O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão não porque somos visceralmente racistas, como se repete por aí. Mas porque a escravidão era fortemente enraizada e não encontrava legitimidade em bases raciais.

Dizer que a escravidão não encontrava legitimidade em bases raciais é repetir aquele velho argumento de que o problema racial no Brasil é econômico, e não racial. Me recuso a discutir isso. Quando me mostrarem escravos holandeses no Brasil eu volto a discutir o assunto. O sujeito parte de uma base correta — a razão da escravidão era econômica — para fazer uma ilação completamente falsa– raça não desempenhou nenhum papel nisso.

Já a afirmação de que “somos visceralmente racistas, como se repete por aí”, é de uma idiotice atroz. Não se diz amplamente por aí que somos visceralmente racistas. Ao contrário, a afirmação mais comum é a repetição da idéia enganadora de que a escravidão “não encontrava legitimidade em bases raciais”. O professor consegue se contradizer em um parágrafo só.

Além do mais, o gesto não deixa de ser uma espécie de absolvição dos dirigentes africanos dos nossos tempos (Lula declarou que a atual miséria africana não se deve à “incompetência” dos africanos, mas à sangria do tráfico), que mantiveram e mantêm até hoje o povaréu nessa miséria.

Até poderia ser. Mas em sua análise brilhante ele esquece outra coisa: que muito mais que os atuais líderes africanos, os principais responsáveis pela situação da África foram as potências imperialistas européias, que incluem de Portugal à Bélgica e que exploraram o continente durante os últimos séculos. Como disse alguém (e esqueço o nome), apenas transferiram a exploração para o próprio continente africano.

É impossível avaliar corretamente a tragédia causada pelo imperialismo europeu na África. Seus maus governantes e seus problemas que parecem insolúveis são resultado direto da ruptura cultural causada por séculos de exploração.

Claro, isso não é culpa brasileira. Mas o exemplo não vale para desqualificar o pedido de desculpas brasileiro. Nem Lula pedia desculpas por isso.

O presidente Lula devia escolher melhor suas amizades, devia evitar a companhia dos que olham as pessoas e só enxergam fantasias do tipo “raça”, “classe”, “movimento” e tolices assemelhadas. Se os Orixás, ou o Deus dos Cristãos, lhes concedessem essa graça, não insultaria os mortos, pensando homenageá-los, nem ofenderia os vivos, supondo representá-los.

Traduzindo: todo o movimento negro organizado é composto por um bando de idiotas radicais, e aquele operário analfabeto não sabe do que está falando.

Finalmente: ainda que o presidente não tivesse o direito de pedir desculpas em nome do professor — e ele tem –, o professor tampouco teria o direito de achincalhar Lula em nome dos brasileiros. Eu não me senti ofendido. E certamente não conferi ao professor o direito de me prepresentar.

No fim das contas, a impressão que esse parágrafo passa — e aqui fica apenas uma impressão sem base alguma — é que esse artigo é basicamente a extrapolação de briguinhas e picuinhas do meio universitário para uma outra esfera.

P.S. Se o presidente tiver tempo, recomenda-se a leitura do livro “Em Costas Negras” (Cia. das Letras), do historiador Manolo Florentino. É bem escrito, tem método e contém mui interessantes informações acerca do assunto. Recomenda-se também Joaquim Nabuco, é claro.

O mui digníssimo professor da UERJ termina o artigo reforçando o velho preconceito sobre a burrice de Lula. Esse preconceito permeia todo o artigo, porque a todo momento ele — como dizer, sem parecer mal educado? — insinua o despraro de Lula para o exercício de suas funções.

Mas recomendar livros é fácil e eu também posso indicar, com a diferença de que não me sinto mais inteligente por isso (nem precisava: qualquer pessoa que leia esse artigo se sente menos burro): que ele leia “O Trato dos Viventes”, de Luiz Felipe de Alencastro. “A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro”, de Mary C. Karasch, é outro bom livro. E ambos são da mesma editora que ele recomendou.

***

O problema central do artigo é que ele embute, além de um sem número de análises mal feitas e tendenciosas, um preconceito enorme. É demagogia pedir desculpas por um passado remoto? Talvez. Mas se reconhecemos nossa própria responsabilidade da cadeia do tráfico, essa demagogia é tão grande quanto a de João Paulo II ao pedir desculpas pelo tratamento dado pela Igreja Católica aos judeus.

Un hypocrite lecteur

Normalmente este blog não publicaria um comentário marcadamente anti-semita, já que considera o anti-semitismo não apenas um caso terminal de burrice atávica, mas um exemplo cabal de canalhice. Anti-semitas são lixo.

Acontece que o comentário do Pablo Daniel Huber a este post é muito curioso:

Cai na real meu, vc não sabe o que tá falando..
Só vou comentar a questão do Pio XII, o que vc queria que ele fizese? Enfretasse Hitler? E desque quando os judeus se importaram com alguém que está sendo massacrado? Por que o papa, que não tem nada a ver com eles, teria que defendê-los? É só porque quando alguém não defende os judeus é mal falado. Cai na real cara, vai estudar mais sobre história antes de ficar falando bobagem. A igreja nunca foi santa, como por exemplo na Idade Média, mas já melhorou muito. Quanto ao conservadorismo do Papa João Paulo II, ele apenas seguiu os príncipios da igreja, que diga-se de passagem embora eu não siga, mas acho que são corretos…..

Hoje foi um dia longo e eu não estou com a mínima paciência para argumentar. Você vai me perdoar por isso, Pablo. Mas tenho umas perguntas a fazer:

1 – O que eu queria que Pio XII fizesse? É, enfrentar Hitler, o que podia ser feito de maneira sutil. Não seria o primeiro nem o único. Mas longe de mim comparar uma reles autoridade papal aos milhões de pessoas comuns que combateram o sujeito.

2 – Eu vou estudar história, sim; mas você promete que estuda também, além de fazer um pequeno curso na Socila?

3 – Por que o Papa teria que defender os judeus? Você está querendo me dizer que judeus não são filhos de Deus? Que Deus não é o Pai de todos?

4 – A Igreja nunca foi santa? Deus do céu, agora tudo é permitido (atenção: essa é uma citação de Dostoiévski em “Os Irmãos Karamazov”. Se você não conhece, vá estudar um pouco de literatura).

5 – Os princípios da Igreja incluem aceitar racismo e genocídios?

6 – Eu ia falar da sua hipocrisia ao não seguir os princípios da Igreja, embora os considere corretos. Mas não, não vale a pena. Em vez disso, vou à missa amanhã rezar por sua alma. Porque tu vai pro inferno, cabra.

Desculpem o tom desaforado do post, mas tive um dia duro e a minha paciência tem o tamanho inversamente proporcional ao meu sono. Amanhã voltamos à fofura normal deste blog, com toda a doçura que mamãe me deu.

"Meu herói"

Que me perdoem os fãs de Dylan. Que me perdoem os fãs de Lou Reed.

O maior letrista do rock and roll se chama Chuck Berry e, en passant, foi também o sujeito que chegou para todos aqueles meninos brancos tocando guitarra e disse: “Olha, moleque, é assim que se faz.”

Há uns 15 anos, como lembrou o Marcus em um comentário aqui há alguns meses, Little Richard fez um longo discurso — daquele jeito escandaloso que só o velho Penniman tem — dizendo que era o arquiteto do rock and roll e que mesmo assim os ingratos não lhe davam um Grammy. É quase verdade: a importância de Richard é descomunal. Mas o rock só se tornou o que foi por causa de Chuck Berry.

Quem disse que o rock and roll dos anos 50 era apenas sobre garotas e carros certamente nunca ouviu Berry. Suas letras são, em uma palavra, fantásticas. Mas sua importância é desprezada em favor da sua contribuição ao papel da guitarra.

No entanto, se o papel de Berry como instrumentista foi fundamental, sob certos aspectos foi pouco original. Ele basicamente transferiu velhos riffs do blues para o novo ritmo. Foi pioneiro, certo, e pode reivindicar com justiça o título de inventor da guitarra no rock. Mas tecnicamente ele não criou aquele estilo. Recriou, no máximo.

Agora, as suas letras são outra conversa. Elas são única e exclusivamente suas. E são brilhantes.

A letra de Memphis é de uma beleza doce e singular; é provavelmente a minha preferida, desde que, há uns 10, 15 anos, eu passei a prestar atenção à poesia de Chuck Berry:

Long distance information, give me Memphis Tennessee
Help me find the party trying to get in touch with me
She could not leave her number, but I know who placed the call
‘Cause my uncle took the message and he wrote it on the wall

Help me, information, get in touch with my Marie
She’s the only one who’d phone me here from Memphis Tennessee
Her home is on the south side, high up on a ridge
Just a half a mile from the Mississippi Bridge

Help me, information, more than that I cannot add
Only that I miss her and all the fun we had
But we were pulled apart because her mom did not agree
And tore apart our happy home in Memphis Tennessee

Last time I saw Marie she’s waving me good-bye
With hurry home drops on her cheek that trickled from her eye
Marie is only six years old, information please
Try to put me through to her in Memphis Tennessee

Blowin’ in the Wind é linda, mesmo quando trucidada pelo Eduardo Suplicy; mas não tem um décimo da verdade e do sentimento que se percebe nessas linhas de Chuck Berry. E verdade e sentimento não podem obscurecer o fato de que a canção é admiravelmente bem construída do ponto de vista estrutural.

Em vários momentos ele atinge a beleza triste que normalmente associamos aos cantores de blues. Em Back to Memphis, por exemplo, um belo retrato de um fenômeno social dado sob uma ótica bem individual:

I’ve been struggling up here, child, trying to make a living
Everybody wants to take, nobody like giving
I wish I was in Memphis back home there with my Mama
The only clothes I got left that ain’t rags is my pajamas
No brotherly love, no help, no danger
Just a great big town full of cold hearted strangers

I went hungry in New York and Chicago was no better
But today, my dear mother wrote and told me in her letter
Son, come back to Memphis and live here with your Mama
You can walk down Beale Street, honey, wearing your pajamas
You know home folks here, we let do just what you want to
And I born you and raised you right here on the corner

I’m going to leave here in the morning and walk down to the station
I’ve got just enough money to pay my transportation
I’m going back to Memphis, back home with my Mama
If I have to ride that bus barefooted in pajamas
Back home in Memphis, no moaning and groaning
I know everything will be all right in the morning

O que Berry canta aqui é a migração de negros do sul agrícola para o norte industrializado, movimento típico de quase todo o século XX. É algo muito próximo do blues, mas com uma sofisticação poética dificilmente encontrada ali.

Por outro lado Havana Moon, à parte a delicadeza de sua melodia, traz uma história de desencontro e destruição de um sonho; mas conta também uma história de diferença social que talvez Berry só possa cantar por ser negro e conseguir, mesmo de forma sutil, dar de maneira clara e convincente o ponto de vista das classes inferiores:

Havana moon, havana moon
Me all alone with jug of rum
Me stand and wait for boat to come
It’s long the night, it’s quiet the dock
The boat she late since 12 o’clock
Me watch the tide easin’ in
Is low the moon, but high the wind

Havana moon, havana moon
Me all alone, me open the rum
It’s long the wait for boat to come
American girl come back to me
We’ll sail away across the sea
We’ll dock in new york, the buildings high
We’ll find a home up in the sky

Havana moon, havana moon
Me still alone, me sip on the rum
Me wonder where the boat she come
To bring me love, ow! sweet little thing
She rock and roll, she dance and sing
She hold me tight, she touch me lips
Me eyes they close, me heart she flip

Havana moon, havana moon
But still alone, me drinkin’ the rum
Begin to think the boat no come
American girl, she tell a lie
She say till then, she mean goodbye

Havana moon, havana moon
Me lay down alone, was good the rum
Me fall asleep, the boat she come
The girl she look till come the dawn
She weep and cry, return for home
The whistle blow, me open me eyes
Was bright the sun, was blue the sky
Me grab me shoes, me jump and run
Me see the boat head for horizon
Havana moon, is gone the rum
The boat she sail, me love she gone
Havana moon, havana moon

Eu cometi um erro durante alguns anos. Ouvi Berry pela sua guitarra, pela sua voz — ela tem uma ironia e uma sensualidade que todas as versões de suas músicas feitas por gente como os Beatles e os Rolling Stones não conseguem reproduzir –, pela sua música. Era pouco. Eu deveria ter entendido imediatamente a razão pela qual John Lennon, um artista para quem letra e música sempre foram indissociáveis, apresentou Berry em um programa de TV em 1974 chamando-o de “meu herói”. As pessoas devem ouvir Chuck Berry também por suas letras. E reconhecer, de uma vez por todas, que o pai da guitarra do rock foi também o seu primeiro poeta.

Mudando para não mudar

Belo comentário do Roger ao último post. No dia em que ele (que quase — quase, não cheguemos a tanto — faz com que eu me envergonhe de pegar no pé dos goianos) resolver escrever seu próprio blog este aqui fica mais pobre.

Mas eu discordo.

Não sei se fé é sinônimo de imutabilidade, o princípio básico do que disse o Roger. Acho que em primeiro lugar é preciso definir o seu objeto.

Na Igreja, o objeto básico não muda. É a existência de Deus como criador de todos e a possibilidade de salvação através da fé n’Ele. Nisso, sim, o Roger tem razão. Na hora em que deixar de acreditar nisso, a Igreja acaba. Mas esse ponto nunca esteve em discussão, provavelmente por óbvio demais. Esse ponto são os dedos da Igreja. O resto, todo o resto, são os anéis.

Acho que o problema central da idéia do Roger é a crença em uma Igreja monolítica, imutável ao longo dos tempos. É algo que a história sempre desmentiu. Como ele disse, “dependendo do tempo e intensidade das mudanças, talvez, um dia, nada reste do que chamamos de Igreja Católica Apostólica Romana, apenas o nome.” Isso é um erro, na minha opinião. Que vai de encontro à própria idéia fundamental da Igreja.

Porque, em primeiro lugar, é preciso saber a qual Igreja nos referimos. A que acredita na Santíssima Trindade? Essa idéia é posterior à sua constituição: foi estabelecida no Concílio de Nicéia, no século IV. A que acredita na Imaculada Conceição, por sua vez, é quase um bebê: definido em 1854 (pondo fim a uma tradição de indefinição que vem desde o Concílio de Trento) é um dogma tão recente que chega a ser curioso que em pleno XIX, o século do trem e da eletricidade e da crença no progresso como algo intrinsecamente bom, ainda se discutisse isso e se chegasse a definições tão aparentemente desnecessárias.

A idéia de exigir dos cristãos uma unidade de crença é um equívoco porque essa unidade nunca existiu. Por exemplo, até hoje a idéia de que o hímen de Maria não foi para o espaço quando Jesus nasceu (dizem que ele era meio cabeçudo, sabe como é; a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões, sempre presente nessas árduas pelejas teológicas, defende que o Sujeito fez um baita estrago na moça) não é um consenso entre os fiéis, mesmo entre padres.

Uma das coisas que sempre me fascinaram no cristianismo foi o seu diálogo constante com o meio ambiente. Há entre os romanos uma crença mais ou menos vaga numa deusa mãe? Deifiquemos Maria, porque assim vamos estabelecer pontos de contato suficientes com os gentios e facilitar nosso apostolado. E assim o cristianismo se apropriou de uma imensidão de elementos pagãos, tornando-se atual e desejável. Foi justamente essa flexibilidade aliada à necessidade patológica de proselitismo, em oposição à rigidez e auto-suficiência do judaísmo, que fez o cristianismo se multiplicar como os peixes de Jesus e tornou a Igreja Católica uma instituição milenar e, durante a maior parte de sua história, poderosíssima.

É impossível esquecer que o cristianismo surgiu da mudança. E que ao longo dos tempos ele vem mudando continuamente, e enfrentando movimentos cismáticos quando não muda. Dogmas são acrescentados, outros são deixados de lado. Porque é feita de seres humanos, ela está sujeita a todo tipo de interferência política: divergências, retrocessos, evoluções. Por isso é um equívoco falar numa Igreja monolítica; o que sempre houve, dentro dela, foram correntes e tendências dominantes. O conflito entre elas, mais que natural, é que a leva para a frente. Há o movimento de resistência sim, como disse o Roger, mas por baixo dele há o de mudança, e às vezes ele é mais forte.

Foi justamente quando a Igreja se recusou a mudar em questões importantes que foi se enfraquecendo como instituição. Uma postura mais maleável em relação à necessidade histórica personificada em Lutero talvez pudesse ter evitado o maior de seus cismas. Ao mesmo tempo, ela precisa saber quando ser intransigente: se tivesse cedido às dezenas, talvez centenas de pequenas dissensões ela teria perdido, sim, sua unidade. Mas o critério de avaliação não é o da fé: é a possibilidade de alienar um número maior de fiéis ao abraçar idéias minoritárias. Humano, demasiado humano, e o mais político possível.

A própria noção de Deus muda. A idéia de um Deus de perdão, que aceita o seu arrependimento, foi uma mudança decisiva em relação ao Deus de 2 mil anos atrás. É esse o cerne do cristianismo. Por sua vez, essa nova visão influenciou a religião-mãe: a relação judaica com Deus mudou enormemente, em parte pela evolução dos tempos, em parte por uma relação dialética com o cristianismo.

Por isso, falar na impossibilidade de mudanças dentro da Igreja é quase uma heresia. Quer um exemplo? O velho e bom Belzebu, Mefistófeles, Belial, Lúcifer. Se na tradição judaica era apenas um anjo caído, uma analogia à necessidade de aceitar estoicamente os desígnios divinos, no cristianismo ele adquiriu quase o status de um outro deus. Era uma resposta ao dualismo persa. Aos poucos, foi adquirindo vida própria e se tornando um instrumento teológico — cínicos dirão que de dominação — importante. E mesmo isso, à medida que foi se tornando desnecessário, foi caindo em desuso. Hoje as principais correntes da Igreja mal lembram do pobre Satanás — que etimologicamente significa “adversário”. A sorte é que Neil Gaiman e Garth Ennis, assim como todo o pessoal da Vertigo, ainda lembram dele.

No fim das contas, o que fica em mim é a impressão de que a idéia de que no momento em que mudar ela terá sucumbido é muito mais a projeção de uma noção particular de fé do que um fato. Basta olhar para trás, para os tantos e tantos concílios, para as idas e vindas da obra edificada por Pedro — o sujeito que negou conhecer Cristo 3 vezes (parêntesis: alguém consegue imaginar sofisma mais belo e mais eficiente que esse?) — para ver que a Igreja, 1800 anos de Lampedusa, já sabia que as coisas têm que mudar para continuar as mesmas.

Ratz e homens

Até agora não entendi por que estão fazendo tanto auê com o Papa Ratzi, de uma forma que fica parecendo que com ele começa o fim dos tempos.

Bento XVI vai ser um papa de pouca importância na história. Pode-se alegar (como o Ina, em um papo via MSN) que João XXIII foi eleito em circunstâncias semelhantes; mas além da saúde frágil que o deve levar para o caixão de pinho em relativamente pouco tempo, Ratzinger não representa muito mais que a continuidade da linha teológica central de Wojtyla.

Em primeiro lugar, estão dando a Bento XVI uma importância que ele não merece por uma analogia falsa com João Paulo II. Esperam daquele uma atitividade e uma influência semelhantes às de Wojtyla. É como se este tivesse redefinido, de maneira imutável, o papel do Papa no mundo.

Mas basta comparar uma foto dos dois e ver que isso é impossível. Não dá para negar a impressão dissonante que os dois causam: João Paulo lembra um avô saudável e bem sucedido em sua aposentaria confortável enquanto esquia; Bento parece apenas um velho sibarita viciado em morfina criado nas masmorras do Vaticano.

Numa época em que imagem é quase tudo, isso deve ter alguma importância. Seu passado vinculado à Juventude Hitlerista — menos importante do que pode parecer à primeira vista — no máximo é um ponto a favor: é até possível que, em uma necessidade dialética de negar seu passado, Bento se torne um dos papas mais ecumênicos da História, superando inclusive seu predecessor. E mesmo isso é irrelevante: seu eventual ecumenismo vai ser muito mais um resultado de exigências históricas do que uma tentativa de apagar essa mancha em seu passado de sargento Schultz dizendo Ja wohl, Mein Kommandant.

Mas o principal, mesmo, é que a Igreja, no fim das contas, não tem toda essa importância. Ela é contra o uso de preservativos e as pessoas continuam se protegendo com camisinhas; é contra o sexo fora do casamento e não consta que motéis andem vazios; é mais fácil uma pia senhora rezar uma Ave Maria antes de deitar-se languidamente. Essa postura católica está perfeitamente exemplificada na piada publicada pelo Barnabé e republicada pelo Velho do Farol (de volta após longo e tenebroso inverno).

Isso não quer dizer que ela não possa ser melhor do que o que tem sido. Ela tem a obrigação de se adequar aos novos tempos. É por isso que o Alex errou no seu último post sobre a Igreja. Ela é um movimento civil, sim. É composto por pessoas que se organizam em função de idéias comuns; que elas julguem tomar suas decisões a partir de inspirações do Espírito Santo não faz diferença. Além disso, as pessoas sempre mudaram de religião; o cristianismo, aliás, só existe a partir de uma mudança dessas, quando judeus decidiram que era hora de novos ventos, mais adequados a uma situação política naquele momento irreversível, o Império Romano. Ao longo da História houve outras, também; citar Lutero é tão natural que chega a ser redundante. Mas mesmo internamente a história da Igreja Católica é a história da mudança. Foi assim que ela sobreviveu: criando novos dogmas, eliminando outros, adequando-se a novas exigências históricas.

Essas mudanças continuam. A diferença é que hoje elas não têm a importância que tinham na Europa do século XVII. Não voltarão a ter. E é por isso que se está dando atenção demais ao velho Ratz.

Who, the Who?

Um Cara, dizer que McCartney é um chato em um blog de beatlemaníaco é não ter amor à vida… Mas eu mesmo já passei o atestado de óbito de McCartney algumas vezes aqui.

Isso não quer dizer, em primeiro lugar, que o sujeito não seja um gênio absoluto. Ele é. Isso é indiscutível. Em segundo, tampouco implica que ele não seja um baixista formidável. Ele é. Mais que isso, é provavelmente o baixista mais influente da história, e essa é a razão pela qual o coloco como o melhor (deixando de lado gênios como Entwistle e James Jamerson, só para citar alguns). Com boa vontade, poderia colocá-lo também como guitarrista (ele é ótimo), como baterista (ele é bom) ou como tecladista (ele é razoável). O sujeito é um gênio. Ponto final.

Flavio, escolas falam, sim. É para isso que elas existem. E a frase é creditada, quase universalmente, ao Van der Rohen.

Telêmaco, eu nunca consegui gostar muito do John Paul Jones. Acho o baixista mais superestimado do rock. E o Bonzo não entraria na minha banda pela mesma razão do Hendrix: geniais, mas uma banda é um conjunto em que cada peça deve funcionar em função da outra. Eu prefiro um baterista sólido mas discreto como Ringo. A mesma razão pela qual coloco McCartney no baixo: independente de ser genial, ele sabe se controlar. Só consigo lembrar de um exemplo em que McCartney exagerou no baixo: Something, de Harrison.

Se me permite uma opinião, acho que há um equívoco nas guitarras. Harrison e Clapton juntos são redundantes. Ambos são solistas. Enquanto isso, o aspecto provavelmente mais subestimado de Lennon é que ele era um grande guitarrista rítmico. Se alguém quer um exemplo, ouça Clarabella, com os Beatles. em que ele toca apenas harmônica. Falta alguma coisa. A música não tem a coesão sonora típica dos Beatles. E o que falta é justamente a guitarra de Lennon.

Além disso, me perdoe, mas Harrison não é um guitarrista genial, não. É excelente, claro. Melódico e provavelmente o rei do slide. Mas eu consigo pensar em uma dezena de guitarristas infinitamente melhores que ele.

Umberto, eu nunca vi o Rock and Roll Circus. Mas ouvi Yer Blues com Lennon. É Keith Richards no baixo, não é? Aquele baixo é fantástico.

Reginaldo, o meu é com certeza um caso de velhice. Mas há um problema. Eu não vivi os anos 60. Mas durante muito tempo ouvi com atenção boa parte do que foi feito, e é difícil ouvir muita coisa nova sem catar as referências. Que me perdoem os roqueiros, mas a coisa mais vibrante e significativa hoje em dia é um gênero do qual sequer gosto muito: o rap. Quanto ao Roberto de Carvalho… Ele matou a Rita Lee! Você quer matar minha banda também?

O Bia ouviu o Velvet Underground na adolescência e nunca mais foi o mesmo. O Bia só se apaixona uma vez, e é um amor infinito e imortal. Não importa que ele ame uma baranga.

André, bela notícia: o Intelligentsia está de volta. Fora isso, a frase do Lennon tem que ser entendida dentro do contexto: era só um ataque a McCartney (dos mais leves, considerando a letra de How Do ou Sleep?. Quis dizer que o egomaníaco do Paul estava tão alucinado que se achava melhor que Ringo.

No fim das contas, a superbanda de cada um reflete suas preferências. Essa é a graça da coisa.