Vai, vai, vai terminar a brincadeira

Uma das coisas que o progresso vai deixando para trás, infelizmente, é o circo.

Acho que a maior parte dessa meninada que hoje chega aos 8 anos nunca foi a um circo. Não sentiu o cheiro da lona, da serragem. Não olhou vidrada para o picadeiro, não riu com o palhaço nem ficou de boca aberta com os trapezistas.

Não acho que o cinema ou a TV tenham sido os responsáveis por sua morte anunciada. A experiência de ver um leão ao vivo não pode ser substituída por nenhum documentário do Discovery ou do National Geographic. Se fosse, os zoológicos andariam às moscas. O mais provável é que a própria dinâmica das grandes cidades esteja matando o circo.

Se não me engano, o único grande circo brasileiro de classe mundial que ainda resiste é o Bartholo, que anda aí pelo estrangeiro há muito tempo. Alguns menores tentam levar a bandeira, como o Vostok, mas todos eles parecem condenados à extinção. O Tihanny, o melhor a que eu fui, ainda nos anos 70, desistiu e se dedicou ao music hall, outro gênero que desapareceu há muito tempo.

É uma pena, porque a experiência do circo não pode ser substituída por nenhuma outra. Não dá para interagir com o palhaço, não dá para torcer para que o trapezista não se esbagace no chão, não dá para temer pela segurança do domador, nem tentar ver uma nesguinha de bunda das artistas sem ser debaixo da lona.

Hoje o circo parece condenado ao esquecimento. É uma pena. E, para completar o panorama degradante, de dono de circo o Marcos Frota é rebaixado a palhaço.

Preta Gil

O factóide Preta Gil passou e eu continuo esperando uma manifestação dos gordos.

Eu acho a Preta Gil gostosa. Não acho seu rosto exatamente bonito, e sinceramente a acho, por vezes, vulgar. Mas não é porque ela é gorda que deixa de ser gostosa. Pelo contrário. Tem espaço. Tem “em que pegar”. E tem uns peitões fartos que, pelo menos na Antiguidade, eram sinônimo de erotismo.

Mas em tudo isso, o que me impressionou foi a incapacidade dos próprios gordos de contestar a verdade ditada por alguém que uma mulher gorda não pode, simplesmente, ser bonita. Olharam para as fotos dela como quem olha para uma mulher que simplesmente não sabe qual o seu lugar. É como se ela não tivesse o direito de afirmar sua beleza e sua sensualidade, em um mundo em que o bonito são esqueletos aparentes.

É curioso que nós, gordos, não tenhamos aproveitado a oportunidade para, no mínimo, reclamar da hipocrisia generalizada. A Preta não é bonita, bonita é a Giselle Bündchen — mesmo que esta tenha que se entupir de maconha para agüentar a fome atroz que sente. Em vez disso, a gordalhada continua infeliz e alimentando, insanamente, a indústria da dieta. Continua com vergonha de sua beleza, quando ela existe, e exagerando sua feiúra, quando é inevitável. E tudo isso por um modelo que, cá para nós, é praticamente inatingível. São escravos louvando a Casa Grande.

Nada contra a beleza das magras. Pelo contrário. E quem se sente mal gordo tem mais é que emagrecer, mesmo. Mas a beleza não é só uma, não é o modelo que a mídia empurra, o modelo caucasiano, louro, magérrimo e alto. Até onde sei, beleza é múltipla.

Não sei quanto ao John Casablancas, mas eu acho a Preta Gil gostosa. Gorda ou não.

Astaire

Vendo Silk Stockings noite dessas, a versão musical de Ninotchka, para admirar, extasiado, o velho e bom Fred Astaire.

Já disseram que a dança de Gene Kelly era proletária, enquanto a de Astaire era aristocrática. Mas é bem mais que isso. Se em Gene Kelly o talento parece muitas vezes o resultado de muito treino, em Astaire parece algo natural, que flui sem que ele mesmo saiba. Não se concebe o rapaz fazendo outra coisa.

Em The Story of Vernon and Irene Castle, Astaire dança maxixe. E olha, ele dança com mais leveza e mais brilho que qualquer passista de escola de samba.

Meus filhos de Deus, pra variar

Dois posts sobre os canalhas de quem gosto e um tempão sem escrever. Acho que é hora de variar um pouco.

Eu gosto, como já disse, da Irmã Dulce. É um exemplo de altruísmo levado às últimas conseqüências. É uma daquelas pessoas em quem você não consegue encontrar um só defeito e que, se você a encontra pessoalmente, inspira uma sensação de respeito que poucas pessoas conseguem inspirar.

Eu gosto da Marina Silva, pela integridade pessoal, pela doçura e pela leveza que não conseguiram ser destruídas pelas dificuldades que enfrentou em sua vida. Ela é algo que eu jamais conseguiria ser.

Meus filhos da puta, mais uma vez

Plataformista, na verdade a minha admiração pelos “meus filhos da puta” passa longe da questão política. É uma questão de verve pessoal. Ainda que ela, sou obrigado a confessar, em grande parte derive de sua canalhice.

Já fiz campanhas para candidatos de todos os tipos, do PCdoB ao PFL. Já escrevi discursos e comerciais para gente honesta e para gente desonesta. Para bons e maus produtos e serviços também, mas isso não vem ao caso. E uma das coisas que aprendi é que honestidade e honradez não são exclusivos de nenhum partido ou tendência política. Já vi gente decente em partidos de direita e gente que não vale o que a minha gata enterra em partidos de esquerda.

É por isso que há muito tempo passei a avaliar pessoas e políticos por critérios basicamente pessoais. Não me interessam as posições de alguém, desde que sejam defendidas com honestidade intelectual. Me reservo, no entanto, o direito de concordar ou discordar delas. Decência pessoal ajuda, também. Mas quando lembro que adquiri uma antipatia irredutível a Jorge Luís Borges por causa de sua atitude canalha frente à ditadura argentina, acho que posições firmes demais nem sempre são um bom sinal.

No caso de ACM, é preciso separar as duas coisas. Muito do mito de ACM se deve à agressividade com que vai ao ataque, à facilidade como intimida seus adversários (embora não tenha conseguido com Itamar…). Mas na questão política, ele não é muito diferente de seus colegas. Por exemplo, no episódio da violação do painel de votação do planalto ninguém falou de gente como Heloísa Helena, paladina da moralidade enquanto faz acordos pouco éticos com Renan Calheiros. Os exemplos são muitos. ACM pode ser o retrato do diabo, mas é igual a muitos outros.

No fim das contas, o que fica é a constatação de que ACM é um bom administrador. É um sujeito que tem visão estratégica. Salvador hoje não é o caos absoluto graças, em boa parte, às suas intervenções no cenário urbano da cidade. É digno de admiração também o nível de respeito à cultura baiana que se percebe nele. Bem ou mal, bom ou mau, ACM é baiano. O episódio de como a Bahia levou a Ford (o início da investida baiana se deu numa Besta, saindo do aeroporto Dois de Julho, em maio de 1999) depois que ela desistiu do Rio Grande do Sul mostra que o sujeito e seu grupo sabem como fazer as coisas. Anos lidando com incompetentes de todos os tipos me ensinaram a valorizar a competência dos outros.

Enquanto isso, homens dignos e invejáveis como Waldir Pires, sem uma mancha sequer em sua biografia, fazem um governo horroroso. O que é melhor para o povo? Certamente não é credo político. Já acompanhei de perto governos de esquerda e de direita, e a conclusão triste a que cheguei é que, na maioria deles, o povo ganha mais quando simplesmente vende seu voto. Nem que seja por uma dentadura.

Lembro de uma conversa entre a politicamente correta Letícia Sabatella e Popó no “Altas Horas”. Naquela conversa fiada de programa chato de TV, Popó perguntou se ela gostava de boxe. Não. Ele perguntou então algo sobre ela ter, pelo menos, orgulho da luta do Popó como exemplo brasileiro. A resposta da Sabatella: “Não. Tenho pena.”

Popó pode ter origem humilde, mas é um gentleman e fingiu que não ouviu. Minha origem é um pouco menos humilde, mas meu pavio é muito mais curto e minha vaidade veio com defeito de fabricação no item ABS. Na mesma hora, eu teria respondido diferente: “Não sei por quê. Eu sou o melhor do mundo no que faço e você é só uma atrizinha de merda casada com outro atorzinho de merda” (na hora de xingar, nunca é demais xingar a família toda).

Para a Sabatella, como para muita gente, é fácil sair por aí dizendo que é de esquerda, se internar em acampamentos de sem-terras (que, acredite em mim, fede como poucas coisas) e dar uma de Rosa de Luxemburgo dos trópicos. Mas respeito ao povo, mesmo, é outra coisa. E tratá-lo como igual.

Gente como a Sabatella deve achar um absurdo a frase de Figueiredo. É politicamente incorreto dizer que povo fede. Mas quem diz isso certamente nunca pegou um ônibus para o subúrbio às 6 da tarde. Ou nunca viu um sujeito empestear um elevador às 9 da manhã, porque já estava no batente desde as 4. Para mim essa é uma atitude elitista, porque no seu cerne há uma condescendência paternalista típica de quem se acha superior àquilo. É fácil se horrorizar com essa constatação sentadinho numa poltrona confortável, morando em um “bairro bom”. Enquanto isso, o povo, mesmo, não tem nenhum pudor de debochar dos próprios odores.

(E, em último caso, é até uma questão de estética olfativa. Eu realmente prefiro o cheiro de cavalos suados a cheiro de gente suada e cansada. Também gosto de cheiro de curral e de leite sendo tirado. Tem gente que prefere perfumes da Avon, ora.)

Bem, isso tem pouco a ver com a minha admiração, como falei no início. Eu gosto de boas frases. Gosto de inventidade. Gosto da sinceridade de alguns deles, e da inteligência de outros. Esses são valores que independem de política. São universais. É por isso que gosto desses filhos da puta.

Mas, se isso serve de contrapeso, eu também sou um grande fã da Irmã Dulce.

Censura coisa nenhuma

Eu não pretendia falar sobre o caso Gugu, mas quando até Zuenir Ventura, em sua coluna de hoje em O Globo, cai nessa conversa de condenar (ainda que envergonhadamente) a “censura” que teria sido imposta a ele, a coisa complica.

É interessante que sempre que alguém reclama do baixo nível da programação da TV, ou pede mais responsabilidade social dela, as vozes daqueles que a fazem se levantam e gritam que é censura. Essa atitude, em grande parte, é herança das ditaduras que o Brasil viveu no século XX, principalmente a última. É até compreensível. Ninguém gosta. Principalmente porque a censura foi utilizada para coibir manifestações artísticas legítimas, que cometiam o pecado de não serem os adotados pela ordem oficial.

Mesmo nos casos acima, é um tema complexo. De vez em quando tem-se a impressão de que o “pessoal da TV” se acha acima de quaisquer forças de controle da sociedade, como se os seus critérios fossem invariavelmente melhores que os dela.

Mas agora é diferente. O que Gugu fez é crime e tem, lógico, nome: falsidade ideológica. E nunca é demais lembrar que uma TV opera sobre uma concessão do governo, e que portanto pertence ao povo. Pega mal liberar propriedade pública para que pessoas cometam crimes — sem contar aqueles contra o bom gosto, mais antigos. Crime não é questão de gosto, é questão de justiça. E uma medida judicial não é censura, não no sentido utilizado pela TV.

Agora, o pior é que tudo isso não vai contribuir em nada para melhorar o nível das tardes nas TVs brasileiras. O mau gosto vai continuar a imperar, porque a batalha por uma audiência cada vez menor e menos qualificada, do ponto de vista publicitário, pede lances cada vez mais baixos — e às vezes mais desesperados, como bem sabe Gugu Liberato.