It was twenty years ago today

Uma vizinha está ouvindo rádio. Deve ser a empregada, porque ninguém escuta rádio por aqui. Com exceção de programas noticiosos, rádio — ainda mais a uma altura dessas — é coisa que só se ouve no carro ou na cozinha.

Por alguma razão resolveram fazer um especial dos anos 80. Já ouvi New Edition (Is this the eeeend?), Berlin (Take my breath awaaaay), Culture Club (Mistake #3), Stevie Wonder (I Just Called to Say I Love You) Chris DeBurgh (The Lady in Red) e uma canção que assolou o Brasil em 1986, Yes, cujo cantor era um picareta brasileiro que fingia ser gringo, adotou o nome de Tim Moore e enrolou boa parte do Brasil; o Bia lembra dele bebendo caipirinha no camarim, antes de um show em Americana, enquanto resmungava: “Merda de cidade…”

A música de 20 anos passados interrompeu o Caruso que eu estava ouvindo. Não só por tocar mais alto, mas porque é um aviso de que estou ficando velho; lembro de quando essas músicas eram tocadas durante a programação normal, e não no que parece ser uma espécie de “Especial Para Caquéticos”. Essas notas musicais, boa parte das quais detestadas por mim já na época, me lembram também que quando cada geração chega à maturidade costuma usar a mídia para contar uma visão edulcorada de como os seus velhos tempos eram bons. Assim os anos 50 deram American Grafitti no início dos 70 e tudo o que se seguiu depois — Grease, Happy Days, e um revival completo nos anos 80. Era a visão tipicamente americana de um passado pretensamente dourado que o resto do mundo foi obrigado a engolir. Mais apropriadamente, era a saudade da classe média branca americana dos bons tempos de Eisenhower.

Antigamente demorava-se cerca de 15 anos (ou 3 gerações de consumidores) para que uma geração fosse entupida de lembranças cor-de-rosa, e muitas vezes falsas, de outra. Mas os órfãos dos anos 80 começaram cedo, porque ultimamente a juventude tem chegado chegado mais cedo ao poder. O primeiro sinal de recaída de que me lembro foi um filme com o John Cusack, Grosse Pointe Blank. Agora aqui e ali pipocam referências. Boa parte da revista Flashback, que conta com os textos brilhantes do Ina, é composta disso, de lembranças de uma década que, sabe Deus como, conseguiu definir uma identidade própria a partir de retalhos de décadas passadas.

Tudo isso me lembra quão ruins foram os anos 80.

Que ninguém me entenda mal. Não é que não goste deles. Tenho boas lembranças daqueles tempos, no fim das contas: foi nessa década que passei a adolescência e, como diz o Roger Ebert, a adolescência é o período mais miserável na vida de uma pessoa, embora depois nos lembremos dela com saudade. Com o tempo, as pessoas transformam experiências terríveis como andar a pé, fazer sacanagem na cama dos pais da namorada ou rodar a cidade atrás de mulher em boas lembranças, de um tempo que já passou.

Mas que os anos 80 foram uma droga, foram.

***

Há algo de muito errado na ordem cósmica quando os dois maiores ícones de uma geração são Madonna e Michael Jackson. Este a gente já sabe no que deu, mas não vamos ser injustos creditando sua degradação aos últimos tempos: ele nos avisou do que vinha pela frente. Nos anos 80 o sujeito usava uma jaqueta de couro vermelho e uma luvinha branca e brilhosa na mão, com o cabelo eternamente solto e molhado por uma tonelada de gel; algum ingênuo esperava que ele melhorasse?

Quanto a Madonna, cada vez que vejo as roupas que ela usava fico com duas sensações: a de reconhecimento, de ter feito parte daquela era, e a certeza de que aqueles são os trapos que usaria uma mulher sexualmente reprimida que pirou o cabeção e resolveu nos dar a sua versão ensandecida de uma puta. Isso pode ter lá seu significado social e histórico; aquele crucifixo sexualizado pode até ser uma ofensa aos puritanos americanos. Mas além de dizer pouco a brasileiros que há séculos se despedem de suas virgindades encostados no muro da igreja, tudo aquilo era absolutamente brega. Era como se quatro estilistas cafonas acumulassem, sobre a lourinha da voz esganiçada, os seus conceitos lisérgicos de mau gosto.

Um consolo é que as roupas da Madonna podem ter sido imitadas pelas adolescentes de miolo mole nos EUA da época, como a gente costuma ver nos filmes, mas aqui no Brasil éramos mais comportados. Isso não quer dizer, no entanto, que tivéssemos bom gosto. Ah, não. Os anos 80 foram a década do rosa-choque e do verde-limão, provavelmente as cores mais medonhas já criadas — tanto que a Mãe Natureza, que tem lá sua carga de bizarrices, não ousou criá-las –, e que, como se sua própria feiúra não fosse suficiente, normalmente eram usadas ao mesmo tempo. Foram a época dos jeans verdes, de estampas berrantes que chamavam de new wave e que vilipendiavam a memória do finado Godard, das ombreiras, e mais tarde das saias balonê. Os anos 80 foram uma década de confusão e mau gosto.

Mas as coisas sempre podem piorar, e pioravam. Talvez nada disso fosse pior que os blazers com mangas dobradas copiados de Miami Vice, ou as barbas por fazer inspiradas no Mickey Rourke de “9 1/2 Semanas de Amor” (provavelmente a maior fraude erótica de todos os tempos). Como dizia uma antiga música de McCartney, no one left alive in 1985. Nos anos 80, era in ter cara de traficante cubano vagabundo da Jecolândia.

E os cabelos. Os cabelos. Mulheres com cortes que lembravam poodles epilépticos; homens com cabelos curtos mas compridos atrás, moda lançada a nós botocudos pelo Evandro Mesquita. As jubas piolhentas e embaraçadas dos hippies, em comparação, pareciam muito melhores; pelo menos exprimiam uma atitude. Não que aquele corte oitentista não tivesse nenhuma; o problema era saber qual.

Deus do céu, como é que alguém pode ter saudade daquilo?

***

Fãs dos anos 80 costumam lembrar de bandas como Smiths e U2 para mostrar que aquela, afinal, não foi a década perdida.

Duas bandas.

Acho que consigo lembrar de mais: Poison, Mötley Crue, Menudo, A-ha, Mr. Mister, Dominó, Tremendo, Dr. Silvana, Olivia Newton-John, Toto.

Chega. Bastam esses para lembrar que foi preciso que o grunge aparecesse para que a música pop fosse resgatada de um longo e tenebroso inverno.

Mas o que se poderia esperar de uma década que começou com um maluco dando cinco tiros em John Lennon?

***

Os anos 70 foram a década em que surgiram cineastas como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Os anos 80 foram a década de John Hughes.

(Deixa-se aqui de lado a estética publicitária no cinema patrocinada pelos irmãos Ridley e Tony Scott e outros; isso é terrível demais para ser abordado assim, sem aviso.)

Alguns dos maiores sucessos da época foram dirigidos ou escritos por Hughes. “A Garota de Rosa Shocking”, “Gatinhas e Gatões” e “Curtindo a Vida Adoidado” são alguns dos filmes aos quais a gente recorre quando quer lembrar do que foram aqueles anos miseráveis.

(The Breakfast Club, talvez o filme mais “cabeça” dessa fornada, tinha originalmente duas horas e meia de duração. O estúdio, achando que ia ser um fracasso, cortou 50 minutos. O resultado é o único filme do Hughes que poderia ser bom, mas que parece episódico demais; essa é a explicação que encontro para rever o filme e achá-lo ruim.)

Não é que eu não goste desses filmes. Todos eles têm a capacidade de me lembrar uma época que vivi e que já passou há muito tempo. Queira ou não, eu estava presente aos anos 80.

Mas o fato de gostar de Some Kind of Wonderful, por exemplo, não faz com que ele se transforme miraculosamente em bom cinema. O melhor que se pode dizer desses filmes é que eles retratavam a juventude da época. Certo, e “Barrados no Baile” retrataria a juventude dos anos 90 nos mesmos termos. Além disso, é bom lembrar que “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca” também retratam o amor. O problema é que “Sabrina” et al não são exatamente um soneto de Shakespeare, e juventude por juventude é melhor dar uma olhada no que Nicholas Ray andou fazendo 30 anos antes. Um antropólogo que tentasse compreender a juventude dos anos 90 a partir de “Barrados no Baile” concluiria que éramos todos todos estudantes lindos e ricos; se fizer o mesmo com os filmes de John Hughes vai ter a certeza de que éramos um bando de alienados fúteis com algum problema no juízo.

(E então lembro da diva dos anos 80: Molly Ringwald. A garota de rosa-choque. Diva adequadíssima à época: insípida, insossa, inodora. Nunca entendi por que investiram nela em vez de em delícias como Kelly Preston, cuja cena nua em “A Primeira Noite de Jonathan” é a única coisa que presta em um filme bobo. De qualquer forma, hoje ninguém ouve falar em Molly Ringwald. Tudo o que sei da ruiva é que mal começaram os anos 90 e a tonta cometeu duas grandes bobagens: dispensou os papéis principais de “Uma Linda Mulher” e de “Ghost”. As atrizes que fizeram esses filmes todo mundo sabe onde estão. Mas duvido que alguém saiba onde anda Molly Ringwald. Sumiu, coitada, como os anos 80 deveriam ter sumido.)

As pessoas podem até ter saudades dos anos 80. Acho que eu tenho, também. Mas isso deve ser uma versão degenerada da síndrome de Estocolmo. Talvez os anos 80 tenham sido tão ruins que as pessoas se acostumaram. Ou, o que é mais provável, do que as pessoas têm saudades é de um tempo em que eram melhores do que o que se tornaram. E nesse caso, não é dos anos 80 do que têm saudades. Elas têm saudades é de si mesmas.

A última noite de Evariste Galois

Eu nunca tinha ouvido falar em Evariste Galois até ontem.

Nada de espantar, considerando-se que o meu conhecimento matemático restringe-se à certeza de que 2+2=5. Mas ontem, enquanto me contavam sua história, perdi alguns minutos imaginando a vida aventurosa do rapaz, vida que as pessoas associam a qualquer tipo de pessoa, menos a um matemático. Porque paixões não combinam com números, é o que diz a sabedoria popular.

Foi assim que me contaram a história, e é assim que eu a conto agora.

Evariste Galois foi um matemático francês brilhante, fundamental para a teoria dos grupos e estudado ainda hoje, quase dois séculos depois de sua morte.

Ele foi morto aos 20 anos de idade pelo marido da amante, o melhor atirador da França. Parece que, depois de agüentar a maneira meio esquisita de sua mulher se divertir, ele cansou dos amantes dela, infelizmente quando era a vez de Galois. Essas coisas acontecem, são dessas eventualidades a que as pessoas costumam estar sujeitas quando suas paixões são maiores que elas mesmas. O marido tantas vezes traído o desafiou a um duelo e Galois, homem honrado em um tempo em que a honra valia alguma coisa, não soube simplesmente dizer não.

Galois sabia que não tinha chance. Sabia que ia morrer, e que sua vida seria curta e que ele não teria chance de completar sua teoria. E decidiu passar sua última noite colocando no papel aquilo que vinha desenvolvendo. Essa pressa, essa necessidade de eternizar uma vida que iria acabar dali a algumas horas, é uma das coisas que fazem a história de Evariste Galois soberba.

Mas tem mais. Enquanto escrevia febrilmente, ele deixava escapar o que realmente estava ocupando sua cabeça naquela noite, misturando sua revolta às fórmulas frias:

“Raiz quadrada do seno pela tangente eu vou morrer por causa daquela vagabunda. Dez xis elevado à quinta potência eu vou morrer por causa daquela cadela.”

No dia seguinte, o marido deu-lhe um tiro na barriga e Evariste Galois morreu.

Na verdade, uma busca rápida pela internet mostra que a história não é exatamente essa, que embora a vida de Evariste Galois tenha sido mesmo agitada os fatos são narrados de uma maneira levemente inventiva. Mas o amigo que me contou a história já disse, e eu concordo: não interessa contar a história verdadeira, porque ela não chega aos pés da lenda que se criou. Quando a lenda é mais bela que a verdade, que se publique a lenda.

A Era do Rádio

Eu não ouço rádio. Para falar a verdade, não ouvia sequer quando trabalhava em uma.

Isso não impede que eu ache que não existe outra mídia mágica como ele. Com exceção dos livros, nenhuma faz com que você exercite a imaginação como o rádio. Ainda hoje é possível ouvir, por exemplo, dramatizações de casos policiais.

Depois de acossado pela TV o rádio decaiu asssutadoramente e foi forçado a se reinventar. E ao contrário do qeu diziam muitas das previsões pessimistas, ele conseguiu sobreviver.

Mas muito mais interessantes foram os tempos de ouro. Era simples: era o meio para o qual convergiam todos os talentos. O rádio basileiro, por exemplo, tinha de tudo; e foi a base do que mais tarde viria a ser a TV brasileira.

O Radio Lovers oferece para download uma série de antigos programas de rádio americanos. Faltam alguns dos mais populares, como o Lone Ranger e outros. Mas ainda assim, é um belo acervo. E serve para que se possa ter uma idéia da qualidade da programação da era em que o rádio era rei.

Um novo original de Lennon & McCartney

Uma coisa me incomoda quando as pessoas falam sobre Beatles: aqueles que dizem que Lennon e McCartney pioraram como compositores partir do fim da banda.

É uma mentira soez, diria Lennon. Qualquer pessoa pode perceber isso fazendo um experimento simples.

Pegue um ano, qualquer ano. 1970, por exemplo. Escolha 5 músicas do disco de McCartney daquele ano, 5 do disco de Lennon, 2 de George Harrison e dê qualquer coisa para Ringo cantar. Em termos de composição, o disco vai estar à altura de qualquer disco dos Beatles.

A minha seleção seria esta:

  1. God
  2. Mother
  3. Working Class Hero
  4. Well Well Well
  5. Love
  6. Every Night
  7. Maybe I’m Amazed
  8. That Would Be Something
  9. Junk
  10. Momma Miss America
  11. My Sweet Lord
  12. All Things Must Pass
  13. Fool to Cry

(Ainda sobrava um compacto com Instant Karma e What is Life.)

1971 seria ainda melhor:

  1. Imagine
  2. Gimme Some Truth
  3. Oh My Love
  4. Jealous Guy
  5. It’s so Hard
  6. Uncle Albert/Admiral Halsey
  7. The Back Seat of My Car
  8. Smile Away
  9. Three Legs
  10. Eat at Home
  11. Apple Scruffs
  12. Beware of Darkness
  13. Wine, Women, and Loud Happy Songs

(E, de novo, outro grande compacto com Another Day e How?.)

A lista pode seguir indefinidamente; em alguns anos pode-se colocar mais canções de McCartney, em outros mais de Lennon. 1973, por exemplo, seria um ano dominado por McCartney, porque o seu Band on the Run é infinitamente superior ao Mind Games de Lennon. O que acontece, e a minha impressão é a de que isso é o que confunde o pessoal, é que mesmo assim o disco vai soar diferente, mesmo inferior, aos discos dos Beatles.

Em primeiro lugar, depois do fim da banda eles passaram a ter a responsabilidade de encher álbuns inteiros. É lógico que canções que anteriormente seriam vetadas pelos outros membros ou que simplesmente não suportariam a concorrência entravam em seus discos solo, baixando o nível geral. Em um disco dos Beatles Lennon e McCartney tinham que brigar para colocar, digamos, 6 músicas em um disco. Nos anos solo, precisavam se virar para completar um álbum. E mesmo assim é impressionante que tenham conseguido fazer álbuns antológicos como o John Lennon/Plastic Ono Band e Venus and Mars. Sem contar o All Things Must Pass, o álbum triplo de George Harrison.

Ou seja: o que fazia a força dos Beatles é que o material mais fraco, com raras exceções, não passava pelo funil porque tinha mais gente querendo espaço e oferecendo canções de alto nível.

Nos discos solo faltava também a colaboração de cada um. Por exemplo, uma dica aqui, outra ali, uma palavra que se troca ou um acorde que se acrescenta, e tudo muda. Boa parte das composições de Lennon e McCartney são assim, composições de um deles com contribuições às vezes decisivas do outro, mesmo quando menores.

Vai faltar ainda o insight dos músicos. Deve ser fácil demais, para um Lennon ou um McCartney, dizer a um músico de estúdio: “eu quero assim.” Uma canção de Lennon no disco de Lennon é uma canção de Lennon, e isso é óbvio. Mas uma canção de Lennon num disco dos Beatles é uma canção de Lennon, McCartney, Harrison e Starr. Todos eles davam seu toque pessoal às músicas, e é isso, principalmente, que falta nos discos solo dos sujeitos. Numa banda, cada um pode dar a contribuição do jeito que quiser. Foi um dos motivos do fim dos Beatles, a necessidade de cada membro de fazer música do jeito que queria, não do jeito da banda.

O único problema é que, por acaso, aquela banda era muito boa.

Qual é a música

Respondendo ao Golb:

Quantos gigabytes usados com música?
Menos de 700 MB com certeza. Sempre que chega esse número eu gravo um CD e tiro do computador. Tenho algumas dezenas deles.

Último CD que comprei:
Faz tempo, porque como se sabe eu faço parte de uma conspiração mundial que ronda as redes P2P com o único intuito de desgraçar a vida dos artistas. Foram Please Please Me & More e With The Beatles & More, dois piratas japoneses dos Beatles que achei por sorte e por uma ninharia no Terminal do Tietê.

Música tocando no momento:
Mean Mr. Mustard, Beatles, uma versão pirata que o Donizetti me mandou.

5 músicas que tenho escutado ultimamente:
Fase clássica, que não é bem a minha praia, porque achei as gravações de Caruso e umas sinfonias de Beethoven disponíveis para download na BBC, e o que é melhor: gratuitas.

5 pessoas para quem passo a batuta
Ah, não vou fazer isso não. 🙂

O dia em que roubei um poema para mim

Mestre Rafael pergunta,
se temos medo do fato
de a vida virar defunta.
Essa coisa de morrer,
não tem como socorrer:
é um defeito que é nato.

Nasceu, tá pronto pra viagem.
É questão de dia e hora;
é regressiva a contagem.
Pode ser lá no futuro,
depois de homem maduro,
pode ser aqui e agora.

Nascemos e nos enreda.
Não carece de ter medo
de algo que é tiro e queda.
Por isso, tô preparado,
o contrato afiançado:
na hora agá, me escafedo.

Mas dois desejos carrego,
com os quais durmo agarrado.
Ao corpo peço, e não nego,
com o máximo vigor:
agüenta um pouco de dor,
mas não padece entrevado.

O meu segundo pedido,
depois do qual eu me aquieto,
dou o pleito por cumprido:
criar bem os meus filhotes,
e, o mais precioso dos dotes,
beijar meu último neto.

Por ser pouco o que assesto,
dou como certo que a vida
atenderá sem protesto
a petição que revelo.
Pouco mais que um caramelo,
é quase nada a pedida.

Então, planejar a vida
é necessário, por vezes.
Espichar minha medida,
com sutil aditamento:
o meu último rebento
mal completou oito meses.

***

Normalmente, textos escritos por outra pessoa são copiados aqui entre aspas. Esse poema do Roman, no entanto, é publicado sem elas, porque eu gostaria que fosse meu e a partir de agora, sempre que alguém me perguntar o que é isso, eu vou dizer com modéstia fingida que fui eu quem escrevi, mas que é isso, não é nada de especial, é só o meu jeito de dar à indesejada das gentes, tema tão chato e tão batido, um lirismo que quase a faz desejável, e então vou encerrar o assunto com um sorriso encabulado e repleto de modéstia pia.

Não vou dizer que, embora impressionado com o lirismo simples do poema, ele não foi exatamente uma surpresa. Nem que é algo que o Roman já vem fazendo no Blog-dos-Ventos há bastante tempo, porque se eu disser isso vão descobrir que eu sou apenas um sujeito com uma baita inveja do poema e que tomei ele para mim.

Quando fantasmas aparecem

Ontem, quarta-feira, estava caminhando no centro da cidade quando ouvi uma voz me chamando:

— Ra-Ra-Rafael!!

Me viro e vejo João que não encontrava há tantos meses, um amigo de muitos anos, dos tempos de jornal e rádio, um sorriso grande mas meio assustado no rosto:

— Rafael, me disseram que você tinha morrido.

Parei, olhando para ele. Enquanto ria, lembrando da coincidência de ter postado algo sobre o assunto ontem mesmo, disse que ainda bem que não tinham me avisado.

— Eu chorei tanto quando me disseram. A gente rezou muito na Ação Solidária Santo Antônio por você. E agora eu te vejo e tomo um susto — mas pelo menos é um susto bom.

E mesmo assim eu ainda não sabia o que tinha acontecido. Agradecido pelo carinho, mas também com um certo pudor que me impedia de perguntar quem tinha sido o desgraçado a espalhar essa notícia, até onde sei muitíssimo exagerado.

— Como foi que eu morri?

Em um acidente de carro, foi a resposta. Aí entendi o que tinha acontecido. Ano passado, um rapaz chamado Rafael morreu em um acidente. Eu não o conhecia, mas conheço de vista o seu pai — e lembro de admirar a sua força e a capacidade de seguir em frente durante a campanha do ano passado. Lembrei também que alguém tinha aportado neste blog procurando mais informações sobre o assunto, e até fiz um post sobre isso antes de saber quem era ele e de, de forma muito indireta, nossos caminhos se cruzarem de maneira estranha. Não deram sobrenomes, e aí o João achou que o falecido era eu.

O que não nos mata nos torna mais fortes. Mas até agora eu não tenho certeza de que ainda estou vivo.

Um bandido chamado Lampião

Lampião e seu bando chegaram à fazenda de Z. no interior de Sergipe. Pediram abrigo, dinheiro, as coisas que sempre pediam. Ou exigiam.

Z. se recusou ou não tinha o suficiente, não sei, e os cangaceiros fizeram a festa. Não gostaram de algo que C., mulher de Z., falou, ou o jeito como olhou — porque quando se estava diante dos cangaceiros todo respeito era pouco. Lampião então pegou uma palmatória e lhe deu seis “bolos” na mão.

“E agora?”, perguntou Lampião.

“É só isso?”, perguntou C., tentando controlar a raiva.

Lampião lhe deu mais seis bolos.

B., o filho mais novo do casal, acordado com a barulheira, estava perto da parede. Naquela época se dormia com camisolões. Um dos cangaceiros arremessou um punhal — espadins finos, com lâminas de cerca de 40 centímetros de comprimento — contra ele. O menino ficou pregado à parede pelo camisolão.

Lampião foi embora. Z. vendeu a fazenda por uma ninharia e se mudou dali.

***

Não há nada mais equivocado que tentar justificar o ciclo do cangaço a partir das condições sociais da época, e usá-las para evitar chamar Lampião pelo que ele era, bandido. Elas explicam, claro; mas não justificam nem amenizam o seu caráter criminal.

É como justificar o fenômeno no tráfico no Rio de Janeiro. Com uma diferença: as tais “condições sociais” são muito mais graves no morro, porque a desigualdade social é mais gritante, e o favelado é confrontado todos os dias com imagens de um consumismo desenfreado. No entanto, ninguém pensa em chamar um Elias Maluco de herói. Se em outros tempos, em que os traficantes tinham maiores ligações com a comunidade, essa lenda ainda persistiu durante um tempo, hoje ela já provou simplesmente não existir.

Aqueles que transformam Lampião em uma espécie de robin hood da caatinga provavelmente esquecem a história. Porque essa versão romântica esbarra no fato de que ele, tantas vezes, serviu apenas de jagunço para coronéis da região. É contradita pelo fato de que eles aterrorizavam pequenos sitiantes e vilas inteiras, tomando dinheiro de todos, mas poupando proprietários de terra que lhe dessem abrigo — os coiteiros.

Lampião era apenas um coronel sem terras. Seu comportamento era o mesmo, com a diferença que ele precisava ser ainda mais truculento por não ter nenhum estamento que lhe garantisse, diretamente, o poder que exigia.

Não interessa a miséria ou o que fez Lampião ou Antônio Silvino cangaceiros, porque a mesma miséria atingia um bocado de gente. O que interessa é que durante os anos em que assolaram o sertão nordestino sua atuação foi a de bandidos, de assassinos, ladrões e opressores.

Essa mitologia romântica a respeito de Lampião parece ter se consolidado a partir dos anos 70. Era época de ditadura, e aparentemente os movimentos de resistência resolveram tomar como aliados qualquer coisa que representasse combate ao Estado. Entre outros, isso desagüou no Comando Vermelho, o que deve ter posto de cabeça para baixo toda a crença pseudo-leninista na idéia de que o povo armado fará a revolução; pelo menos aqui, o povo armado sobe o morro e vende cocaína, que dá mais dinheiro.

Comparar cangaceiros a terroristas palestinos é apenas falsificação da realidade. Concorde-se ou não com seus métodos, os palestinos estão lutando por algo maior que eles. Lampião e seu bando lutavam apenas por si próprios. Para que houvesse alguma razão em não chamar Lampião de bandido seria preciso que alguém mostrasse algo de significativo que ele tenha feito para contestar o status quo social, e não usar a força para garantir o seu quinhão.

Mas com exceção de eventuais rompantes de generosidade, a generosidade do senhor feudal, eu não conheço nada parecido.

O dia em que a música morreu

Se você não conhece a gravação original de Don McLean, conhece certamente a versão de Madonna para American Pie. Fez um certo sucesso ali pelo começo dos anos 2000. É uma canção do início dos anos 70, que celebra de maneira nostálgica e meio obscura os anos 50, aquela época em que os Estados Unidos se achavam perfeitos, a adolescência tinha acabado de ser inventada e o rock and roll dava os primeiros passos, e que para mim são, também, a época em que negros andavam na parte de trás dos ônibus. A versão de Madonna pega apenas uns pedaços da letras e inclui uns teclados sampleados de Hot as Sun, de Paul McCartney. A música faz referência ao dia 3 de fevereiro de 1959, quando um avião carregando três roqueiros se espatifou em Iowa.

Os roqueiros eram Big Bopper, Richie Valens e Buddy Holly, como sabe todo mundo que assistiu ao filme “La Bamba”.

Mas esqueçam tudo aquilo que viram ali: a importância de Richie Valens é, principalmente, histórica. É um nota digna na história da ascensão dos latinos na cultura de massas americana, mas não muito mais que isso. Musicalmente ele era algo próximo de nada, mais um roqueiro medíocre entre tantos outros, e com exceção da idéia genial de gravar La Bamba, dono de uma discogafia absolutamente medíocre que talvez possa ser desculpada por sua pouca idade — 17 anos –, mas que provavelmente não iria a lugar nenhum. Era o que os americanos chamam de “one hit wonder“, com a vantagem de ter acertado na mosca um nicho de mercado importante.

Big Bopper, por sua vez, era uma piada. Chantilly Lace, seu grande sucesso, é engraçadinha, e só. Não tivesse morrido com a cara na neve num buraco qualquer de Iowa (um amigo que morou lá fala das semanas seguidas sem tomar banho, porque a água tem o hábito singular de congelar nos canos a 40 graus negativos), é bem provável que dali a uns dois anos ele tivesse se tornado vendedor de automóveis. Algo assim. Seguros, talvez. Essas coisas pareciam combinar com ele.

Na época, a morte realmente importante foi a de Buddy Holly.

Sua importância para o rock and roll é enorme. Foi quem popularizou o formato que seria o padrão para as bandas de rock: duas guitarras, um baixo e uma bateria. A diferença que duas guitarras fazem é impressionante. Keith Richards já disse que é impossível fazer um cover dos Rolling Stones com apenas uma, e se alguém quer saber a importância da guitarra de Lennon para os Beatles, basta ouvir Clarabella, do Live at BBC, e vai-se perceber a falta que ela faz. En passant, Lennon era um grande guitarrista rítmico. Além disso, como se ninguém soubesse, os Beatles criaram seu nome a partir do nome da banda de Holly, The Crickets.

Holly ocupou um espaço bem definido. Era mais “aceitável” que Elvis — o rapaz usava óculos; ninguém usava óculos no showbiz antes dele –, mas acima de tudo era um grande compositor. Ele partiu de suas origens texanas e recriou o country, de uma maneira mais ou menos paralela à de Chuck Berry recriando o blues para uma platéia dançante. Nada pode subestimar sua importância no desenvolvimento da música que viria a ser a base de toda a música popular mundial.

Mas as pessoas se esquecem que quando morreu a carreira de Holly estava indo pelo mesmo caminho de tantos outros: o mainstream pop. Pelo amor de Deus, ele estava gravando Paul Anka, e bobagens românticas como True Love Ways. Não importa se a música era boa: o que importa é que rock and roll é basicamente atitude que nos faz esquecer que tudo aquilo deriva do que há de mais manjado na música mundial, o blues de 12 compassos. Não seria absurdo imaginar que, ao longo dos anos 60, Holly tivesse se tornado uma espécie de Paul Anka menos canastrão.

Depois desse ano, a música pop passou por tempos sombrios. Elvis resolveu dar um golpe de marketing e foi servir o exército na Alemanha; voltou cantando coisas como Bossa Nova Baby e, quase como uma premonição, Viva Las Vegas. Fats Domino atingiu o esgotamento criativo. Jerry Lee Lewis via sua carreira se esvair só porque ele tinha dado uns amassos sua prima de 13 anos (mas ele tinha casado, pelo menos). Chuck Berry se envolveu num caso de prostituição com uma menor de idade. Little Richard, na primeira de suas crises existenciais periódicas, já tinha sumido da cena havia alguns anos (é sua uma das frases mais engraçadas do folclore do rock: “O rock and roll é mau, porque lhe faz tomar drogas, e as drogas transformam você em homossexual”). Eddie Cochran morreu em um acidente de carro em Londres. Gene Vincent, o mais subestimado de todos os “pais do rock”, decaía física e musicalmente. Não tinha sobrado ninguém.

Aquela foi a época do twist, de Chubby Checker, e de sobreviventes mela-calcinhas como os Drifters.

Seria preciso que, com Kennedy morto e os americanos precisando desesperadamente de alguém para amar, uns garotos meio mal educados de Liverpool aparecessem por lá cantando I Want to Hold Your Hand. Juntando-se ao que acontecia, naquele momento, na costa oeste americana, eles transformariam a música pop de uma maneira que a tornaria irreconhecível.

A música morreu, mas ressuscitou 5 anos depois.