Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar na tela a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte da Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, às vezes uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, na Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, que eram mais lentas e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.

Keeping Walt in Disney

Fui parar num canal do YouTube que traz um bocado dos filmes que “Disneylândia” — o programa de TV, não o parque — apresentou ao longo desses quase 70 anos.

O Keeping Walt in Disney, já a partir do título, mostra o apego à importância emocional que esses filmes tiveram nas vidas de milhares de crianças, entre as quais nunca tive vergonha de me incluir com saudosismo besta.

Não tem alguns que procuro há tempos, como The Boy Who Talked to Badgers ou A Country Coyote Goes to Hollywood. Mas tem Kit Carson and the Mountain Men; Barry of the Great St. Bernard, Fire on Kelly Mountain; Run, Cougar, Run; tem até filmes dos quais eu só tinha lembranças muito vagas, como Wild Burro of the West. Certamente há outros a que assisti mas do qual não lembro espontaneamente, e filmes dos quais não lembrarei nunca mais.

Ver esses filmes me lembra que houve um tempo em que eu torcia para que “Disneylândia”, em vez de filmes que à medida que eu crescia iam perdendo aos poucos seu interesse, exibisse os desenhos de que eu ouvia falar. As musas ouviram minhas preces e no início dos anos 80 os filmes deram lugar às centenas de desenhos em curta metragem que a Disney fez ao longo de quase 100 anos. Nunca me arrependi tanto de um desejo.

Sempre tive a impressão de que “Disneylândia” fez mais pelo ambientalismo do que esses militantes chatos que vivem dizendo que nós estamos invadindo a casa dos bichos. Vendo a lista de filmes disponíveis, a maior parte deles lidando com crianças e animais, essa impressão aumenta. Mas agora também penso que eles contribuíram muito para a formação de uma geração de pais e mães de pets, de pessoas que pensam que seus bichos são gente, mas que não pegam o cocô de seus cachorros na rua.

Passei os olhos sobre alguns dos títulos disponíveis. Ainda não tive coragem de assistir a nenhum. Procurando a data de estreia do programa, descobri que ele ainda existe e é apresentado pelo Disney+; mas para mim é outro bicho, não pode ser a mesma coisa. Ha um tempo para cada coisa, diz o Eclesiastes; “Disneylândia”, como o “Clube do Mickey”, é o tipo de programa que só se pode ver uma vez, quando se é criança e tudo é novidade e possível.

Mas às vezes é possível entrever esse outro tempo, e quase sempre vale a pena.

Histórias da Gente Brasileira

Andei lendo os dois primeiros volumes de “Histórias da Gente Brasileira”, de Mary del Priore, que tratam da vida cotidiana durante os períodos colonial e imperial. Não me animei a ler os seguintes.

Noves fora, a série parece ser pouco mais que um bom resumo do que já se escreveu sobre a vida privada no Brasil, feito com critério e sensibilidade. A obra e a visão de Gilberto Freyre, dono do que é provavelmente a mais importante bibliografia nesse campo, se destacam entre o cipoal de historiadores, viajantes e escritores, e isso não é ruim — é sempre bom ver o velho reacionário de Apipucos reconhecido num tempo em que se tornou a regra colocar a expressão “democracia racial” em sua boca.

Mas o livro não se anima a fazer disso um trampolim, o início de uma reflexão nova, e esse me parece ser o seu grande problema.

O zeitgeist moderno, como é natural, influencia essa narrativa ao mesmo tempo nova e velha. Por exemplo, ao falar da preferência estética por dedos finos e alvos, por pés pequenos e delicados, Del Priore a define como um aspecto da diferenciação necessária dos pés largos e chatos das negras, implicitamente estabelecendo o racismo como base dessa preferência estética. Isso é verdadeiro, mas não é toda a verdade. Na França do mesmo período osso finos eram valorizados em comparação não com negras exploradas, mas com as camponesas louras de dedos grossos e pele vermelha de sol (e também porque indicariam orifícios estreitos, mas essa é outra conversa que não fica bem em um blog de boa família como este). O que é essencialmente uma questão de classe eventualmente enriquecida pelo racismo é mostrado como apenas uma questão racial, negando, aqui também, a complexidade das relações e valores da sociedade. É o tributo que Del Priore paga ao seu tempo.

Mais incômoda é a constatação de que há poucas ideias novas em “Histórias da Gente Brasileira”. Del Priore essencialmente repete as convenções históricas de seu tempo quando poderia tentar se aventurar sobre o que está por baixo delas, ou tirar conclusões a partir de informações conflitantes. Provavelmente é a isso que o livro se propõe: é cheio de ilustrações que atrapalham a leitura mas devem servir de chamarizes para leitores mais jovens ou menos desasnados. Mesmo dentro desse escopo, no entanto, há defeitos que saltam aos olhos.

O segundo volume, especialmente, realça esses problemas, menos aparentes no que trata sobre a história colonial. Nas páginas sobre sexualidade, especialmente no período imperial, lemos sobre esposas que rezam uma Ave Maria antes de abrir resignadamente as pernas para seus maridos, moçoilas que namoram apenas com olhares e beliscões lusitanos na saída da missa. Diante de narrativa tão rígida, que fazer com as tantas histórias que sabemos que existiram? Dos casamentos apressados em corrida contra a barriga cada vez mais protuberante, das moças mandadas para a corte ou outra província prenunciando a adoção de um primo distante recém-nascido, das pessoas que descobrem um dia serem filhos daquelas que achavam serem suas irmãs?

Não que seja fácil para historiadores abordar essas questões. Escândalos familiares, a vergonha de ter um filho “fresco”, como diziam, são quase sempre devidamente sepultados pelas famílias, não constam em inventários nem testamentos, se tornam segredos de polichinelo que o tempo geralmente se encarrega de esquecer, mais rápido do que esquece de todo o resto. Mas lembrar que a história não é linear e o passado raramente é totalmente passado, reconhecer que a vida íntima do brasileiro tem uma riqueza que extrapola narrativas oficiais e compartimentos temporas, e que nem toda história é registrada, seria um bom ponto de partida para investigar e jogar luzes novas sobre nossa história.

É impossível não lembrar de um dos tantos temas em “A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud”, obra estupenda de Peter Gay, infelizmente fora de catálogo no Brasil e vendida a preços extorsivos nos sebos. Freudiano, Gay lembrava que por baixo do puritanismo e repressão vitorianos as carnes continuavam fervendo, porque da saliência ninguém aguenta abrir mão por muito tempo. Foi assim que Gay conseguiu desvelar uma realidade muito mais rica e mais complexa no período vitoriano e oferecer uma visão renovadora sobre a arte e o comportamento daquele tempo, questionando alguns dos mitos mais persistentes. É o que faz falta aqui.

Assim, é curioso que Del Priore acabe negando à mulher do Brasil imperial o exercício do prazer e do desejo, apesar de em várias partes se referir aos raptos, às fugas no meio da noite, em trechos que parecem tirados de “Sobrados e Mocambos”. É possível supor que a sexualidade, mesmo quando obedecia às regras morais da época, era muitas vezes mais saudável do que a pudicícia historiográfica faz crer. Infelizmente, nos faltam diários e relatos que atestem essa ideia, porque antes das redes sociais e dos reality shows era feio ou ao menos vulgar falar ou registrar os abandonos e desvarios de amor, luxúria e perdição que as paredes caiadas ostentando um Sagrado Coração tanto viram no país d’outrora. É aí que deveria entrar a autora, contextualizando tudo, fazendo as conexões necessárias, até levantando hipóteses. “Histórias da Gente Brasileira” se ressente dessa ausência. Falta lembrar que sim, mulheres gozavam no período imperial.

Além disso, a julgar pelo livro, homossexuais não são gente, pelo menos não gente brasileira. E embora haja alguns livros que tratam do assunto, como o já clássico “Devassos no Paraíso”, o tema não é tratado de maneira clara pela Del Priore. O capítulo destinado a eles tem pouco mais de duas páginas, e mesmo assim se concentra em uns poucos casos pitorescos, que estão muito longe de apresentar um panorama real do seu tempo — o marinheiro que mata o companheiro apaixonado por uma ex-prostituta daria ao menos uma boa fotonovela italiana, mas não é o suficiente para nos fazer entender como se davam as relações interpessoais e com a sociedade. Aqueles que nasceram antes dos anos 80 podem intuir uma parte disso, a partir da observação e extrapolação da sociedade até aqueles tempos, da compreensão de seus preconceitos e subterfúgios encontrados para driblá-los; mas aqueles que nascem agora, em um período de tolerância crescente e inserção social, em algumas décadas não terão mais critérios de julgamento. É claro que é outro daqueles temas difíceis, pela escassez de fontes confiáveis; mas justamente por isso mereceria um esforço maior.

Há outras questões que a leitura suscita. Numa obra que tem o título geral de “Histórias da Gente Brasileira”, é curioso que se dê tão pouca atenção e destaque às diferenças culturais abissais que marcam a geografia do país. Não existe um Brasil único em termos de costumes, nunca existiu. A sociedade das Minas Geraes do século XVIII não era igual à da Vila de Piratininga da mesma época, e bem diferente do que se via às margens do rio Guamá. O Rio de Janeiro de 1850, em seu esplendor imperial, já tinha costumes e perspectivas diversas da Salvador decadente de então. Corte e províncias, capitais e interiores sempre andaram em passos muito distintos, diferença que só há poucas décadas, depois das antenas parabólicas e principalmente da internet, começou a diminuir de maneira significativa e irreversível.

Apesar disso, esta é uma narrativa eminentemente sudestina. O Nordeste está bem presente, graças à importância basilar da obra de Gilberto Freyre na gênese deste livro, mas tem-se a impressão de que o Sul, por exemplo, não faz parte do Brasil. E isso acaba, talvez, dando uma impressão de uniformidade que nunca existiu, e que gente como Evaldo Cabral de Mello costuma deplorar.

Também chama a atenção um dos problemas que parecem afligir a historiografia brasileira desde sempre: a dependência às vezes excessiva dos brasilianistas e seus relatos de viagem, Maria Graham, Saint-Hilaire, uns tantos outros. Talvez não dê para ser diferente, porque esses relatos são às vezes os únicos a cobrir lacunas incontornáveis em um país de gente atavicamente iletrada, que mesmo hoje não costuma registrar o seu cotidiano. Além disso, são indispensáveis porque ao estrangeiro saltam aos olhos aspectos da vida cotidiana que os patrícios muitas vezes não conseguem mais enxergar.

O detalhe é que esses relatos devem ser lidos sempre com certa reserva; Gilberto Freyre dizia que os franceses, especialmente, costumavam ser uns mentirosos safados e sem-vergonha. Mas, principalmente, é preciso lembrar que nenhum olhar é desprovido de preconceitos e de subjetividade. No primeiro volume, sobre o Brasil colonial, isso está bem claro, e Del Priore acerta ao registrar opiniões diferentes: a casa-grande de pau-a-pique, que a um viajante parece apenas primitiva e pobre, a outro pode parecer engenhosa e uma solução ambiental adequada. Comportamentos podem ser julgados de maneiras diferentes, aspectos importantes para uns podem não ser dignos de nota para outros.

Mais que isso: mesmo cumprindo papel importante, nem sempre eles são tão necessários assim. Por exemplo, em determinado momento Del Priore recorre a uma viajante francesa para uma descrição muito sucinta de como aconteciam os casamentos. Talvez essa descrição não fosse tão necessária assim. Era só lembrar da “História da Baratinha”, adaptada por João de Barro em disquinhos infantis coloridos e presente em milhares de lares brasileiros a partir dos anos 1960:

E logo chegou a hora marcada para o casamento.
Numa linda carruagem, forrada de azul turquesa,
Lá se foi a baratinha — era mesmo uma beleza.
Ao seu lado, repimpado, parecendo um general,
Ia garboso o padrinho, o papagaio real.
Mais atrás, em grande fila, e sem carros enfeitados,
Vinham parentes, amigos, e o resto dos convidados.
Só não vinha no cortejo o dr. João Ratão;
Porque como era costume, em tempos que já lá vão,
O noivo e sua madrinha deveriam esperar
A noiva e seu padrinho desde cedo, ao pé do altar.

Às vezes, as conclusões a que Del Priore chega parecem mudar ao longo do livro de acordo com o autor citado. Fica a impressão de que falta uma visão unificadora e mais crítica — ou seja, a intervenção da historiadora. Por exemplo, ao falar do papel do pai na sociedade imperial, Del Priore cita Capistrano de Abreu: “pais soturnos, mulher submissa, filho aterrado”. Mas apenas algumas páginas antes ela citou um certo James Wells, que descreveu crianças mal-educadas e petulantes tratadas com complacência excessiva pelos pais, e uma opinião de Maria Graham muito parecida. Afinal de contas, como eram as relações entre pais e filhos? Se ambos são verdadeiros — e certamente são —, por que não trabalhar a partir da compreensão mais abrangente dessa diversidade e tentar interpretar de maneira mais completa e rica esses aspectos da história, e de como essa diversidade de relações forjou a sociedade em que vivemos? Não é a exposição ou omissão de fatos que nos faz entender a história: é a compreensão do seu conjunto.

Esse é o grande problema desta obra, que obviamente recorre a pouquíssimas fontes primárias: falta a interpretação e criação de um novo conceito a partir do apanhado de informações coletadas no livro, a interferência da historiadora, o cotejamento com a evolução dos tempos e com outros aspectos da vida cotidiana.

É um problema comum em obras de história. Em “SPQR”, um bom livro de Mary Beard sobre Roma, em vários momentos se tem a impressão de que, se ela conhecesse um pouco mais do cotidiano da política como é feita hoje, de suas entranhas e complexidades, poderia lançar um pouco mais de luz sobre o processo que levou à conspiração que matou Júlio César e à queda da República. Às vezes tem-se sensação semelhante aqui.

Isso não é uma condenação do livro. Pelo contrário. “Histórias da Gente Brasileira” é excelente para quem tem expectativas um pouco menores — ou melhor, para quem, diante do que o livro apresenta, não espera um passo adiante. Traz uma excelente curadoria de informações, com boas escolhas de suas fontes. É abrangente, sensível, em muitos momentos apresenta bons insights. Ninguém perde seu tempo lendo este livro.

Mas às vezes tem-se a impressão de que falta deixar claro, para os leitores, que o passado nunca é totalmente passado. E as mudanças nunca obliteram tudo aquilo que sucedem e superam. É por faltar essa compreensão de maneira mais clara que o livro resulta em uma leitura confiável, mas insuficiente. Confirma o que já sabíamos, no máximo adicionando alguns detalhes. Mas não muda nada, não acrescenta nada. E no fim das contas, chama a atenção exatamente para o que não diz.

Ford F-1000

De vez em quando assisto a esse filmete. É de 1979, e lançou a Ford F-1000. Dura pouco mais de 16 minutos e é, essencialmente, um road movie, contando uma história com começo, meio e fim.

Não sei nada sobre ele. Redator, diretor, o ator com cara de Belchior. Não sei sequer qual a agência que o criou, embora isso não seja difícil de achar. O filme tem jeito de ser uma peça criada para convenções da Ford ou apresentações a concessionárias e jornalistas especializados. Não sei. Sei apenas que adoro esse filme, a maneira como conta sua história, a adequação ao seu público-alvo, a inteligência com que ressalta os grandes argumentos de venda da caminhonete.

Sei também que ele é uma grande oportunidade perdida.

Fico imaginando que, com um pouco de ousadia e criatividade, ele se transformaria em um marco. Bastava exibi-lo uma vez nas duas principais redes de TV, a Globo e a Tupi. Ao mesmo tempo, no Fantástico e no Programa Sílvio Santos, criando um evento único, que seria comentado por semanas pelo público, e lembrado até hoje pelos publicitários, como o primeiro sutiã ou o orelhão da Telesp ou o Barate-o-tó da Unimar.

E então ele seria um filme revolucionário. Não apenas em termos de planejamento de mídia, mas mesmo de criação, antecipando em 30 anos toda essa bobajada de storytelling e outras palavras gringas que não consigo aprender.

Mas não foi, porque cada tempo tem o seu modo de fazer as coisas, um barbudinho alemão explicava há uns 150 anos. Pena.

O último baile de Carnaval

Foi há seis anos. Domingo ou segunda ou terça de Carnaval, e pela minha janela entrava o som de uma banda de baile tocando no Cotinguiba Esporte Clube.

O Cotinguiba foi clube chique, umas três vidas atrás. À beira do rio Sergipe, tinha uma grande equipe de remo, do qual meu avô, vagabundo emérito, fez parte. Era onde a elite da cidade se reunia — elite feia, provinciana, malvestida, cujo consolo e orgulho era saber que tinha gente pior por aí, nas casinhas geminadas do Bairro Industrial ou nas choupanas de palha dos pescadores da praia Formosa, logo adiante.

Mas nos anos 50 construíram o Iate Clube, e o Cotinguiba iniciou a sua decadência. De clube da elite sergipana passou a ser o segundo; verdade, aguentou mais tempo que os outros — primeiro fechou o Vasco Esporte Clube, o clube da periferia; depois foi a vez da Associação Atlética, o clube da juventude e de bailes, matinês e vesperais que também se foram aos poucos, como as folhinhas de um calendário do Sagrado Coração. Mas não podia vencer totalmente o tempo, e se ainda existe é porque oferece uma piscina e uma quadra esportiva a gente menos esnobe, e aluga seus salões para eventos e convenções de políticos.

O remo, que ainda tentou um ressurgimento nos anos 80, desapareceu para sempre, levado pelo esgoto que agora polui o rio Sergipe. O futebol, depois de uma agonia lenta e humilhante, sumiu por aí sem que ninguém perguntasse por onde andava.

O Cotinguiba é já há muito tempo o clube da periferia, mesmo localizado no primeiro bairro da zona sul.

Exatamente 30 anos antes eu tinha passado um Carnaval ali. É algo que até a mim surpreende, porque sempre achei que Carnaval é um negócio tão ruim que as pessoas têm que encher a cara para suportar — ainda mais Carnavais como o de Aracaju, que acontecia nos clubes: os mais pobres no Vasco, os mais ricos no Iate. Mas adolescentes andam em bando e existem para aplacar uma fome inextinguível, e rezava a lenda que no Carnaval as moças lhe tratavam melhor, e o Cotinguiba tinha muitas moças, muitas moças.

O Cotinguiba estava lotado, absolutamente lotado. Estava assim também porque era melhor que o Carnaval do Iate Clube. Era animado, desbragado, as moças eram mais dadas e alegres e suadas e dançavam com os braços levantados salão afora, e confete e serpentina e cerveja jogada para cima, e não existe razão para sofrer um carnaval que não seja essa, única e exclusiva.

Entrei com a carteirinha de alguém. E basicamente, o que lembro é que terminei aquela noite pendurado no capô traseiro de um Maverick a uns 100 por hora.

É outra coisa que o tempo deixou para trás. Até os anos 80, o carnaval de Aracaju era marcado por uns poucos eventos: o Baile dos Artistas, em que os homens machos do sexo masculino podiam soltar a franga trancada no armário a sete chaves durante o resto do ano, ao lado das bichas e viados e travestis; o desfile das escolas de samba na Av. Barão de Maruim, arremedo miserável de corsos mais dignos em outras paragens; e o desfile dos calhambeques logo em seguida: as pessoas compravam carros velhos, como Galaxies e Dodge Darts (imagino que antes as pessoas usassem Dauphines, Vemaguettes, Gordinis e Aero Wyllis, mas nos anos 80 eles já quase não existiam mais), pintavam e modificavam os carros e desfilavam logo após as escolas de samba. Depois, boa parte ia para a praia dar cavalos de pau. Era carnaval de rico, claro, mas também de agregados que acham bonito idiotas destruindo automóveis; como dizia o velho Valois Galvão, tem gente para tudo no mundo e ainda sobra um para comer merda. Naquele ano fui um deles.

Ia quase amanhecendo quando o pessoal que estava comigo decidiu acompanhar um amigo deles que tinha um desses calhambeques, um Maverick pintado de preto com desenhos de chamas em suas laterais. Não lembro se tinha todos os vidros, mas com certeza não tinha o para-brisa traseiro. Eles entraram no carro. Eu não ia — achava aquilo uma estupidez e para mim a noite já tinha acabado; mas decidi no último instante ir também. O carro já estava saindo quando me joguei em cima dele.

O Maverick a 100 por hora em plena Av. Beira Mar e eu ali pendurado, pensando que se eu me soltasse ia morrer e aí ia para casa chorando. Eu não tinha muita alternativa. Foram alguns momentos de pânico, mas alguém deve ter me ajudado a subir, acho. Aparentemente, eu não morri naquele dia — e se fosse para morrer num Carnaval, que fosse como Vadinho, no meio da folia, e não uma morte indigna como essa.

Decidi que aquele era o primeiro e último carnaval que eu passava no Cotinguiba, mesmo que ele tivesse tantas moças dadas e alegres, e certamente a última vez que eu chegaria perto de um desses calhambeques, que sempre achei idiotas. Cumpri o que prometi a mim mesmo.

Mas o tempo passa, as lembranças adquirem novas cores. Os bailes dos clubes foram morrendo mais rápido que um frevo de Dodô e Osmar, começando pelos mais chiques, como o do Iate. Nos anos seguintes o carnaval de Aracaju se dividiria em dois. O dos ricos aconteceria em Salvador, enquanto o Clube do Povo atraía aqueles sem algibeiras nem sorte para a praça Fausto Cardoso, no centro, para levar porrada.

Em 2017, no entanto, nada disso existia mais. Resistia, no entanto, o baile do Cotinguiba.

Devia ser umas duas da manhã quando a banda finalmente parou de tocar. Por uma curiosidade mórbida, fui até a varanda ver as pessoas saindo. E então este bloco de pedra que chamam de meu coração ficou um pouquinho apertado.

Da quadra do Cotinguiba saíam menos que quinze pessoas, provavelmente uma família só, no máximo duas. Se despediam alegres, tinham se divertido — mas eram menos de quinze almas, homens, mulheres, crianças. O Cotinguiba Esporte Clube, outrora chamado de o “tubarão da praia”, o lugar onde gente metida a besta ia se pavonear diante de gente metida a besta, comemorava seus 110 anos com uma banda tocando com galhardia para uma ou duas famílias que não tinham nada melhor para fazer na folia de Momo, sem que um Martin Scorsese registrasse isso em um filme que poderia se chamar The Last Ball.

Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

A vida dura de quem lê portais de notícias

Argumentos identitários me cansam profundamente há muito tempo, pela miopia, pela estreiteza, pela degeneração no que Mark Lilla chama de “pseudopolítica de autoestima e de autodefinição” e pelo que Antônio Risério chama de colonialismo cultural. Ainda mais porque são eles que dão cada vez mais o tom do que passa por debate político nos portais de notícias, tornando a discussão rasa e sempre em busca de notoriedade rápida.

Mas uma dessas tais polêmicas me chamou a atenção dia desses. Leandro Narloch, citando um artigo do Risério, convocava o movimento negro a se inspirar nas sinhás negras que existiram ao longo da história, deixar de se ver como vítimas e acreditar no seu potencial, confiar no capitalismo e na sandice de que cor de pele não faz diferença neste país, o que importa é o mérito. Só és pobre porque queres, como diria qualquer coach ou pastor enquanto embolsa o dinheiro da sempre renovada legião de otários.

Um texto do Narloch não traz, nunca, nada de novo, e muito pouco que se aproveite. Ele basicamente retira de textos mais consequentes algum elemento que possa causar polêmica e indignação e o torce o bastante para que se adeque à sua visão de mundo. Não passa de opinião de terceira, tendenciosa, e só reflete a pobreza do debate público. Basicamente, é isca para atrair a atenção de gente que pensa diferente dele e justificar o seu salário.

Mas ele alcança alguma notoriedade por uma razão simples: porque em vários aspectos seus contestadores não são muito melhores que ele, e para eles compensa engolir essa isca.

O moralismo puritano que parece definir boa parte desse identitarismo exige que o debate histórico seja definido, antes de mais nada, pelos valores éticos que se defende. Por isso, para alguns desses debatedores, é mais fácil fazer polêmica com o Narloch porque, no fundo, ele existe para isso. É raso como cacimba em quinto ano de seca, de uma mediocridade profunda porque sempre reduz um elemento complexo a uma ou duas palavras de ordem. Para esses debatedores de portal e de posts de Facebook e até de blogs mixurucas como este, é um inimigo adequado e fácil, embora raramente o resultado da contra-argumentação seja ao menos razoável, porque costumeiramente apela para a defesa dos seus valores e um senso de indignação moral que deveria ter pouco lugar nesse tipo de conversa.

O artigo do Narloch comenta um livro do Antônio Risério que fala das “sinhás pretas”, mulheres negras que enriqueceram no período da escravidão e, em maior ou menor medida, dentro das brechas e oportunidades que o sistema oferecia, se adequaram a ele em posição privilegiada.

Até aí nada demais, porque isso é história e serve como contribuição à compreensão do nosso processo evolutivo e da complexidade na formação das relações de classe e etnias no país; não é problema dele se os movimentos identitários enxergam essas evidências como heresia agressiva ao seu discurso totalizante. Seu problema é outro: Narloch usa esse exemplo para dizer que o movimento negro deve mudar seus pontos de vista, temeridade que o conceito deturpado de lugar de fala não permitiria nem a gente mais bem-intencionada. Ele pinça os dados que lhe interessam para promover um negacionismo militante, que repercute facilmente entre a militância e desperta ódios imediatos.

Mas há um ponto curioso, que merece um parêntese:

Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que assina a apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante, para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas de seu destino. Protagonizaram ações — ações dentro dos costumes da época, como a de comprar e alugar escravos.

Desconte a última frase, que é apenas a canalhice intelectual do Narloch e o arremesso da isca. Isso me lembrou a confusão em torno daquele tal musical da Beyoncé que a Lilia Schwarcz elogiou com ressalvas, e que lhe custou uma série de ataques hidrófobos de militantes e um pedido de desculpas indevido e humilhante. A obra da Beyoncé, pelo que posso julgar a partir unicamente das descrições que li, era uma fantasia hollywoodiana, tão falsa quanto uma nota de 2,5 kwanzas, que parecia pregar justamente algo parecido. Poderia ser considerado nocivo, não fosse a autoria. Entretanto, tudo é relativo nesse mundo novo.

Mas não é disso que este post trata. O artigo do Narloch foi contestado por Itamar Vieira Junior, que o acusa de “relativizar o horror da escravidão”.

É muito ruim quando um dado histórico é apontado como uma tentativa de minimizar a tragédia da escravidão. Porque reflete uma tentativa de construir uma narrativa falsa que atende apenas a determinados interesses, coisa de um Narloch invertido. O pior é que a argumentação do Vieira Junior é ruim demais, e deliberadamente falsa, repleta de inverdades.

“Havia escravidão na África antes da chegada dos colonizadores, como houve em Roma e na Grécia Antiga”, diz Vieira Junior. Isso é só meia verdade. O que havia na África não tinha paralelo em Roma ou na Grécia. Independente da escala a que se chegou, a formação de um mercado secular, consolidado e em grande escala de escravos era um segmento importante na África. Tentando explicar  de maneira tosca e quase desrespeitosa, é como se o mundo greco-romano se servisse da escravidão para uso doméstico. O mercado africano era de exportação.

Pode ser impressão minha ou mesmo má vontade, mas esse tipo de argumento parece uma tentativa de dar status melhor e mais “humano” à escravidão intra-africana. Ele quase está dizendo “ah, mas não era só eu”. Não que para o escravo fizesse diferença entre ser escravizado por perder uma guerra ou por ser o elo fraco em um sistema comercial sofisticado, mas negar a dimensão do havia na África é negar a história.

Mas não é isso o mais grave.

Mais adiante ele afirma que o tráfico só foi possível graças ao “Estado capitalista colonial”. Isso é mentira. E não apenas porque no século XV, quando o tráfico ultramarino deu seus primeiros passos, não existia “Estado capitalista colonial”. Na verdade o desenvolvimento colonial do Brasil, baseado na agricultura extensiva e uso intensivo de mão de obra barata, só foi possível porque havia, antes, a oferta regular e abundante de escravos africanos. Certo, o Estado colonial europeu foi fundamental para consolidar ainda mais esse mercado, possibilitando uma demanda sem precedentes que destruiu estruturais sociais, dizimou a população masculina da África e da qual o continente jamais se recuperaria. Mas não foi ele quem criou esse mercado.

Escravidão é negócio, sempre foi negócio, e por mais aterrorizante que seja ver seres humanos descritos como “peças”, era algo que se sobrepunha a valores morais mesmo na época. Para os colonizadores portugueses no Brasil seria mais barato e desejável escravizar índios, como foi tentado com sucesso insuficiente. Trazer escravos da África requeria alto investimento inicial, tinha alta taxa de depreciação, perdas de material que poderiam pôr a perder todo o dinheiro gasto. Mas entre os índios brasileiros não havia estrutura de compra e venda de pessoas semelhante ao que existia na África, além de uma série de desvantagens óbvias. Assim, escravos africanos no Brasil eram mais viáveis, sujeitos a menos perdas e fugas. O investimento era mais alto, mas a relação custo/benefício era tão infinitamente melhor que a escravidão no Brasil se espalhou como metástase por todas as camadas da sociedade, dando lugar a uma rede tão complexa que, embora obviamente incapaz de minimizar o horror da escravidão, inviabiliza as visões moralistas e simplistas dos identitários de hoje.

O mais curioso é que o Vieira Junior usa essas distorções para embasar um argumento realmente válido:

A consciência histórica sobre os processos que nos trouxeram até aqui não é apenas uma retórica vitimista dos “escravizados, humilhados, exterminados”. É um passo para superação das estruturas que nos foram legadas por esse passado aviltante. Esse caminho só será possível promovendo uma discussão honesta e comprometida com os valores que elegemos como fundamentais para superar a chaga da escravidão e do racismo.

Eu gostaria de assinar embaixo. Mas também gostaria de lembrar que a chave aqui, que não foi usada, é a expressão “discussão honesta”. Não teremos uma discussão honesta se acusarmos informações que iluminam falhas em nossa argumentação de “ultraje, quiçá um crime”.

O mais grave, no entanto, é que a partir daí o texto do Vieira Junior degringola para o que há de pior nessas discussões. Ele não quer mais ver opiniões ofensivas como a do Narloch e pede que o conselho editorial da Folha de S. Paulo seja “uma ‘grade de proteção’ a favor dos valores humanos fundamentais” — ou seja, que calem o Narloch, porque liberdade de expressão só deve existir para nós. “Como disse Thiago Amparo ‘a corda do pluralismo esticou a tal ponto que’, se não fizermos nada, ela ‘nos enforcará’”, ele continua, antes de terminar com uma pergunta tão ou mais canalha que as iscas do Narloch: “Será que ele sugeriu que nos reconciliemos com a escravidão?”, o que ele sabe que não é verdade.

Eu vou parar de ler esses portais, juro que vou. Alguém tem um portal de fofocas de TV para me indicar?