Joe, o Fugitivo

Durante anos, em conversas sobre seriados que marcaram a infância dos velhinhos da minha geração — “Túnel do Tempo”, “Viagem ao Fundo do Mar”, “Terra de Gigantes”, “O Incrível Hulk”, “O Homem do Fundo do Mar”, tantos e tantos —, eu sempre acabava perguntando por um de que eu gostava. Se chamava “Joe, o Fugitivo”. Ninguém lembrava.

Certo, era um seriado obscuro até mesmo nos EUA. Não passou de duas temporadas de 13 episódios cada. Mas por alguma razão a Globo do Rio de Janeiro o exibiu a partir de abril de 1975, apenas seis meses depois de ter estreado nos EUA. Mas também aqui ele nao parece ter feito muito sucesso e não ficou muito tempo na grade, ao que parece.

Ainda assim, não me parecia possível que ninguém lembrasse dele. Tanta gente lembrava de coisa pior. Só muitos anos depois entender que o problema não era a memória dos outros. Eles não lembravam porque não podiam. O seriado nunca foi exibido em Aracaju, simples assim.

O processo de implantação das redes nacionais de TV foi demorado. No que diz respeito à Rede Globo, durante todos os anos 70, apenas os telejornais nacionais e, acho, o Fantástico eram exibidos simultaneamente em todas as suas afiliadas e retransmissoras. O resto era um samba do crioulo doido, com fitas quadruplex e latas de filme viajando Brasil afora e sendo exibidos em uma praça de cada vez.

E cada emissora escolhia o que exibir nos horários que não eram ocupados pela programação nacional. Em 79, por exemplo, a TV Aratu, retransmissora da Globo na Bahia, exibia “Daniel Boone” ao meio-dia, o que não acontecia em mais nenhum lugar. (Uma pequena curiosidade: se você procurar internet afora, vai encontrar a informação de que a primeira temporada desse seriado, em preto e branco, só foi exibida uma vez no Brasil. Não é verdade. Ela foi exibida em Salvador no início de 1980 pela TV Aratu, que não costumava respeitar a ordem dos episódios. Na verdade, a Globo também não).

Quando a Globo Rio desistiu de exibir “Joe, o Fugitivo”, simplesmente passou as latas de filme adiante para suas afiliadas. Nos quatro anos seguintes deve ter pulado de cidade em cidade, até chegar a vez de Salvador.

No final dos anos 70 a TV Aratu já tinha sua antena de microondas, mas filmes e seriados eram exibidos de acordo com os seus interesses. E assim, nos fins de manhã do final de 1979, ela resolveu exibir “Joe, o Fugitivo”, provavelmente porque o seriado finalmente estava disponível e ninguém queria aquele bagulho.

A história era uma mistura de “Lassie” e “O Fugitivo”, e o título brasileiro era mais bandeiroso que o original americano, Run Joe Run: um cachorro do exército americano, Joe, é acusado de um ataque que não cometeu e condenado à morte, mas consegue fugir. Uma recompensa é colocada sobre sua cabeça, mas o seu adestrador sabe de sua inocência e vai atrás dele; no entanto, Joe acha que o adestrador quer sacrificá-lo, e foge dele; enquanto isso, vai ajudando as pessoas que pode no caminho,colocando em prática o que aprendeu no exército.

Na segunda temporada o enredo do seriado mudou completamente, provavelmente porque a audiência se mostrou pífia e a criançada, seu público-alvo, cansou do jogo de gato e rato: agora Joe andava ao lado de um jovem mochileiro que vagava país afora, aparentemente sem destino — quer coisa mais anos 70 do que isso? —, e os dois continuavam ajudando as pessoas no caminho.

Ao menos em Salvador, “Joe, o Fugitivo” foi exibido por pouco tempo, entre o fim de 1989 e o começo de 1980. Em mim, pelo menos, o resultado foi uma paixão por pastores alemães que dura até hoje — embora, inexplicavelmente, nenhum dos meus cães se chame Joe.

Lembrei do seriado dia desses porque, de repente, percebi que isso nunca mais vai se repetir.

Desde a primeira metade dos anos 80 as TVs estão totalmente integradas em tempo real. O espaço para a programação local encolheu absurdamente; a programação nacional é igual em todo lugar, a todo tempo. Quem cresceu nos anos 80 e 90 vai ter exatamente as mesmas lembranças e os mesmos referenciais, seja onde for.

Mas até isso é coisa velha, caquética. TVs abertas não importam mais, são um fenômeno do passado, já morto. A meninada que cresce agora vai ter outros referenciais, todos tirados da internet ou do streaming. E isso quer dizer uma infinidade de coisas simultâneas, cada vez mais fragmentadas, mais assíncronas. A ideia de as pessoas encontrarem algo em comum numa coisa que viram há muito, muito tempo em pouco tempo vai ser um delírio, apenas. Não acredito que muita gente sinta falta disso. Mas vai fazer. É mais um elemento de união que se vai, por desimportante que seja. E o mundo não ficará melhor por isso.

Bizz

Muitas, muitas eras atrás o Marcus ficou puto comigo porque falei mal da Bizz. Eu disse que ela era “uma das revistas mais medíocres e provincianas da história do país, onde músicos frustrados escreviam sob pseudônimos resenhas sobre suas próprias bandas, que só eles ouviam, e se deliciavam em anunciar bandas de um buraco qualquer da Inglaterra, que ninguém jamais ouviria.”

Com elegância, o Marcus apontou qualidades na Bizz que eu, claro, não quis mencionar. A principal era o fato de a revista ter sido a mais importante formadora de público roqueiro dos anos 80, a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.

Lembrei da revista dia desses porque achei nos meus arquivos um documentário em vídeo chamado “Bizz – Jornalismo, Causos e Rock and Roll”. Já tinha visto, mas tinha esquecido porque ele é francamente ruim: mal concebido, mal dirigido, mal fotografado, mal editado. Mas oferece ao menos um vislumbre do que foi a revista, porque traz depoimentos em primeira mão de gente que participou de sua trajetória, ainda que em entrevistas mal-conduzidas.

Em retrospecto, a Bizz chegou um pouco atrasada ao cenário, porque havia pelo menos três anos que o rock brasileiro se consolidava no alto das paradas de sucesso. Mas esse atraso era apenas relativo. O Rock in Rio tinha sido, como dizem, um divisor de águas. Durante todo o final de 1984 a Globo tinha exibido, diariamente, o “Minuto do Rock”, num esforço para garantir o seu investimento como patrocinadora do evento, e começando um processo de doutrinação que atraiu muita gente — como eu. Havia um alvoroço generalizado, que se combinava com a expectativa pelo fim da ditadura. O festival coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, foi um sucesso e em 1985 o rock era a trilha sonora do país.

Na época, pululavam nas bancas, especialmente do sudeste, uma infinidade de revistas normalmente malfeitas e sempre sem distribuição nacional adequada. Sem ter conhecido a Pop, revista da Abril que, pelo que deduzo das capas, era uma mistura de revista Bizz e Capricho, as únicas publicações a que o país tinha acesso regular, se não me falha a memória ruim, eram a Roll e a Somtrês.

A Roll era uma revista menor e malfeita, mas dedicada exclusivamente à música. A Somtrês se dividia entre música e aparelhagem de som. De modo geral era uma revista mais sólida, e fez algumas boas reportagens. O problema é que ela era velha, feita para anciãos esnobes que podiam gastar dinheiro; não tinha como público-alvo o jovem urbano roqueiro. Ainda assim, muitos dos críticos que mais tarde chegariam à fama de nicho da Bizz já estavam ali: José Emílio Rondeau, Roberto Muggiati, Maurício Kubrusly, talvez a Ana Maria Bahiana, uns tantos por aí.

A revista que a Abril lançava em agosto de 1985 finalmente mirava esse espaço específico. Com um projeto gráfico inspirado na estética new wave, demorou alguns meses até ela consolidar um formato próprio; em seus primeiros números, trazia seções sobre cinema, instrumentistas, até cifras de músicas, coluna de fofocas e de heavy metal.

O sucesso da revista foi absoluto. Até hoje, muita gente escreve showbiz com dois ZZ, por causa de uma de suas seções. E então é aquilo que o Marcus disse: a revista introduziu a abordagem cultural paulista ao resto do país com uma eficiência maior que a Globo, por exemplo — que, aliás, nunca escondeu o seu carioca way of life. Atenta ao que acontecia lá fora, especialmente na Inglaterra, e tentando atender a vários nichos da cultura jovem urbana, a Bizz inegavelmente aproximava os grotões do mainstream paulista.

Havia um descompasso enorme. Um exemplo bobo: até ler a matéria de capa da edição de estreia, eu não fazia ideia de que Bruce Springsteen fazia tanto sucesso, ou que seus shows duravam quatro horas. Foi o não reconhecimento desses aspectos positivos que irritou o Marcus, e isso é compreensível.

Porque com todos os defeitos, a importância histórica da Bizz é inegável. A época de ouro do rock brasileiro foi o último momento em que a música conseguiu unificar e dar voz a uma geração inteira: depois disso veio o caos, a fragmentação em nichos, isso que a gente vê hoje e que nos surpreende a cada dia, toda vez que descobrimos que um sujeito de quem nunca ouvimos falar, e cuja música é feita inteira no computador, faz shows para dezenas de milhares de pessoas que cantam suas letras inanes do início ao fim. Musicalmente, a sensação que se tem é que chegamos ao apocalipse. O cenário da música brasileira nunca foi tão ruim. Diante de quatro tão tétrico, fica mais fácil achar que a Bizz eternizou em tinta impressa uma época que hoje parece dourada. De maneira às vezes deturpada, muitas vezes canalha, ela foi uma coadjuvante importante nesse processo de uniformização cultural de que, às vezes, tanta gente sente falta, eu inclusive.

Mas importância histórica o nazismo também teve. A Bizz trazia também o que São Paulo tinha de pior: um colonialismo cultural abjeto, uma ignorância profunda acerca do que está além de seus horizontes e que, não por coincidência, é talvez a característica definidora da “crítica de rock”, de Christgau a Lester Bangs. E a canalhice pura e simples, descarada, sem vergonha. E a inconsistência, a falta de um padrão estético claro e honesto, uma glorificação da subjetividade quase absoluta. Um exemplo são dois comentários, separados por alguns anos, que José Emílio Rondeau fez sobre dois discos de McCartney:

Talvez fosse disto que o velho Macca precisava para neutralizar a dormência criativa que o vinha atacando: cabeças diferentes, opiniões externas. Pete Townsend, Phil Collins, Carlos Alomar (guitarrista de Bowie), Eric Stewart (ex-10cc) e zilhões de artistas de primeiro escalão deram sua contribuição ao melhor disco de Paul desde… quando, mesmo? Com Eric Stewart repartindo a parceria em 60% das músicas e Hugh Padgham polindo uma produção ultra-moderna, Paul ressuscitou. Durará? (José Emílio Rondeau, Bizz 16, novembro de 1986, sobre o Press to Play, considerado por muitos o seu pior álbum)

Sete anos depois…

“O Paul McCartney quer virar Gipsy Kings”, disparou um adolescente fã de grunge, depois de ouvir pela primeira vez “Hope of Delivery”, uma das faixas “politizadas” do novo álbum do velho Macca. Talvez o menos ruim do últimos discos lançados por Paul em dez anos, Off the Ground é uma tentativa do ex-Beatle (êta, sombra difícir) de recuperar sua credibilidade artística/musical. Mas o máximo que consegue é ser apenas suportável ou parecido com alguém. Maybe next time… (José Emílio Rondeau, Bizz 93, abril de 1993)

Talvez um exemplo do que ela tinha de melhor e pior seja a seção a que o Marcus se referiu, a Porão, que em toda edição trazia duas bandas gringas e duas brasileiras ainda desconhecidas.

Na verdade, as gringas só eram desconhecidas porque não tínhamos acesso ao que se fazia lá fora. Mas até aí tudo bem, era esse o papel da revista em tempos de Telex. Da grande maioria das brasileiras, no entanto, nunca mais ouviríamos falar — porque aí era o negócio dos amigos, as canalhices a que me referi no texto original.

Eu fui um leitor assíduo da Bizz, já partir do número 1. É uma revista que ajuda a definir os meus anos 80. A última edição que comprei foi a de julho de 1989, quando ela mudou sua logomarca pela primeira vez: trazia Prince na capa e uma entrevista razoável com Paul McCartney. Mas eu já tinha deixado de comprá-la regularmente desde o ano anterior. A Bizz inicialmente me interessava porque me falava de coisas que eu não tinha ouvido, e nisso ela foi um guia cuja importância eu não posso esquecer; mas no fim dos anos 80 eu já tinha ouvido a música que ela cultuava, e não gostava dela.

A partir daí não sei mais nada sobre a revista. O documentário mencionado acima dá um resumo razoável sobre sua trajetória: a revista mudou de nome para Showbizz, decaiu, decaiu mais, deixou de ser publicada, voltou com o nome original. À medida que o rock ia perdendo espaço para outros gêneros, aparentemente ela se dirigia a um nicho cada vez menor e mais desinteressante, ignorando o resto da música que se fazia no mundo lá fora. Enquanto a Bizz olhava para porões em Manchester o país gestava uma revolução. Em Recife o mangue bit tomava forma, o tecnobrega se consolidava em Belém, e durante toda a sua existência a revista ignorou a evolução constante da música baiana, apenas para dar exemplos que conheço razoavelmente.

A internet jogaria a pá de cal sobre a Bizz, escancarando o seu papel de mero mensageiro para a colônia. Mas agora ninguém mais precisava de uma intermediária, a revista não tinha por que continuar existindo.

A geração formada pela Bizz parece trazer, ainda hoje, essas características. Você vai encontrar por aí muitos roqueiros decadentes lamentando o fim do ciclo roqueiro no país; dizendo que quando o sertanejo tomou conta das paradas no início dos anos 90 era resultado da crise estética da era Collor, ou então que o crescimento e enriquecimento da classe C jogou o padrão estético do brasileiro na latrina — como se aquelas bombas dos anos 80 fossem melhores. Mas se alguém olhar com um tico de atenção as paradas musicais dos anos 80, verá — especificamente nas paradas paulistas — a ascensão lenta e constante desse novo sertanejo, modernizado, maleável às influências musicais de seu tempo como qualquer outra. Enquanto o rock se esgotava em seu universo da classe média urbana, o sertanejo crescia oferecendo respostas musicais e líricas a um universo muito maior de brasileiros.

Disso eu sempre soube. Mas acho que faltava reconhecer que tudo isso, ao menos em parte, foi influenciado pela Bizz. Hoje ela pode ser lida neste site, que eu de vez em quando frequento quando bate alguma onda de saudosismo. Depois de velho, passei a gostar da revista de novo.

Saudades daquelas moças d’antanho

Isso foi há mais de cinco anos:

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Eu fiz isso logo depois. Infelizmente, na banca onde fui não havia desses livrinhos, havia mangás e revistinhas de super-heróis, uma infinidade deles. Então esqueci, que cá entre nós qualquer um tem coisas melhores para fazer com seu tempo do que ler “Júlia”, “Sabrina” ou “Bianca”.

Mas ontem fui comprar uma Tex e na mesma prateleira estavam uns três desses livrinhos. Não são mais Júlias, nem Biancas, nem mesmo são da velha, boa e finada Editora Abril.

O que comprei, de uma senhora chamada Lori Foster, se chama “Uma Amante Maravilhosa”, tradução mais apelativa para Treat Her Right. E é publicado pela Harlequin Books. Pelo visto cortaram os intermediários e agora os livros vêm direto da fonte.

A tradução do título já dá uma ideia das mudanças que esses 40 anos trouxeram. Mas não revela nem parte do que há de tenebroso nesses livros.

Agora como então, nomes são importantes. Essas moças se tremem inteiras de desejo por um Zack, Josh, Mick. Fiquei pensando que ninguém escreve romances para moças protagonizados por Genílson ou Vandson, mas vou creditar isso aos 23 anos que se passaram desde sua publicação original e à minha ignorância quanto a esse universo. Não é possível que nos dias de hoje não tenham feito um livro em que o objeto romântico da mocinha seja um pedreiro chamado Roberaldo, alto, forte, magnético, musculoso. Porque é justo esperar que em tempos identitários haja um pouco mais de diversidade.

O estilo é um pouco melhor do que o dos livrinhos antigos; ao menos nesse não há mais aqueles tantos pontos de exclamação. Mas a escritora é ruim, ruim de doer. Nesse ofício havia, deve haver ainda, artesãs competentes; não é o caso de Lori, que aliás tem nome de puta. Para piorar, a coitada ainda é sacaneada pela tradutora, de uma incompetência atroz. Tenho quase certeza de que ela apenas colocou o texto original no Google e corrigiu alguns poucos erros. Além de alguns erros crassos, ela me faz lembrar que o que realmente importa em um tradutor não é tanto o conhecimento da língua a ser traduzida, mas o domínio da língua para a qual se traduz. Por exemplo, ela se refere algumas vezes a beemotes. O problema é que behemoth é expressão comum na gringa, com sua tradição de leitura do Velho Testamento, mas virtualmente desconhecida aqui. Além disso, aqui e ali o protagonista fala: “Danação!”. Tento imaginar que espécie torpe de mulher consegue encharcar suas calcinhas por um homem que fala “Danação!”. Tento, mas não insisto muito porque pode ser que eu consiga. E eu não suportaria trauma tão grande.

O livro é de 2001, publicado aqui em 2014. De lá para cá decorreu quase um quarto de século, e esse espaço de tempo não viu tantas mudanças sociais, a serem refletidas nas páginas escritas por dona Lori. A emancipação sexual feminina é fenômeno bem antigo, já era naqueles anos 80; apenas não tinha chegado às páginas desses romances em um país que ainda tentava sair de uma ditadura e do fim da Censura Federal. E saliência já se fazia nas “Momentos Íntimos”.

Mas há uma diferença brutal:.agora talvez não dê mais para chamar esses livrinhos de “romances”, no sentido menor da palavra.

Porque aqui e agora o valor acariciado pelos personagens não é mais o amor, como era naqueles tempos em que se amarrava cachorro com linguiça e ainda se namorava no portão. Amor um caralho, eu quero é rosetar. O livro já começa com o nosso herói de pau duro — ou assim se imagina, já que ele é despertado no meio de um sonho erótico. Dali até o final tudo parece se resumir à vontade de todo mundo comer todo mundo, ou algo parecido.

É impressionante: os protagonistas do livro atual só pensam em putaria, o tempo todo. Ele olha para ela, sacanagem. Ela olha para ele, safadeza. O pudor que caracterizava os livrinhos dos anos 70 e 80, a ideia do desejo como uma construção psicológica um tiquinho mais complexa, tudo isso desapareceu completamente; e o mundo virou uma grande suruba, e diante disso me sinto um velho conservador e espantado.

Nem tudo são espinhos, no entanto. Dá para ver refletidas, mesmo em um livro tão ruim — ou, mais provavelmente, justamente por ele ser ruim —, algumas boas mudanças na sociedade. Mulheres, pelo visto, são mais plenas, ou ao menos têm como padrão um nível de plenitude e igualdade que não se via antes. Expressões como “galinha”, tão comuns 40, mesmo 30 anos atrás, não parecem mais fazer sentido. Isso é bom.

Mas algumas coisas não mudam, e um desses tabus monolíticos chega a ser curioso.

Algo que os livros dos anos 80 e este têm em comum é que as mulheres não fazem sexo ora, nem lá, nem cá. Elas não botam nada na boca. Tudo bem, é fácil entender a razão quando se pensa em feministas numa passeata dos anos 70 carregando faixas dizendo que “sexo é poder”. Mas estes são os anos 2020, e as moças de verdade postam sugestões do arco da velha em seus tiktoks e instagrams, e as alusões a bocas cheias são mais comuns que foto amorosa com o cônjuge que corneiam em segredo.

À primeira vista, isso parece ser um simples descompasso entre o livro e o seu tempo. Na verdade, é ainda pior. Muito pior.

Numa das cenas mais bizarras deste, ao receber sexo oral do homem que faz suas carnes tremerem, coisa que nunca tinham feito nela, nossa protagonista diz que isso parece pervertido.

Poxa. As moças dos livrinhos dos anos 80 eram virgens e defendiam com unhas e dentes sua honra, mas quando chegava a hora da putaria elas certamente não tinham essas frescuras. Há algum problema muito grave na psique desse mundo anglo-saxão, ou pelo menos na cabeça dessa mulher que escreve essas coisas e das leitoras que compram seus livros, e isso certamente me assusta mais que as mocinhas puras e puerilmente fortes que povoavam os livrinhos de antigamente.

Resta apenas procurar aqui algo que represente ao menos um rosto conhecido, uma ideia mais longeva. E então vem uma pequena surpresa. No fim das contas, essencialmente nada mudou. Independentes ou não, as heroínas deste livro ainda querem um homem forte, protetor, que seja um bom pai, e que na hora do aimeudeus continue tomando as rédeas e mandando na bodega. Talvez seja uma exigência do gênero, porque o único conflito dramático que posso enxergar entre uma moça moderna e um “macho desconstruído” é a possibilidade dele se apaixonar pelo namorado dela. O que sei é que os livrinhos d’outrora, no fim das contas, me parecem melhores. Talvez porque havia uma ingenuidade perdida, uma negação da realidade cotidiana, um resto de pudor. Posso estar sendo injusto e julgando todo um tempo de um gênero a partir de um livro só, mas desconfio que não. Ou talvez eu tenha ficado velho demais, e desconfio que sim. Não sei. O que importa é que, de repente, deu saudade das minhas amigas Júlia, Sabrina e Bianca.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar na tela a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte da Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, às vezes uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, na Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, que eram mais lentas e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.

Keeping Walt in Disney

Fui parar num canal do YouTube que traz um bocado dos filmes que “Disneylândia” — o programa de TV, não o parque — apresentou ao longo desses quase 70 anos.

O Keeping Walt in Disney, já a partir do título, mostra o apego à importância emocional que esses filmes tiveram nas vidas de milhares de crianças, entre as quais nunca tive vergonha de me incluir com saudosismo besta.

Não tem alguns que procuro há tempos, como The Boy Who Talked to Badgers ou A Country Coyote Goes to Hollywood. Mas tem Kit Carson and the Mountain Men; Barry of the Great St. Bernard, Fire on Kelly Mountain; Run, Cougar, Run; tem até filmes dos quais eu só tinha lembranças muito vagas, como Wild Burro of the West. Certamente há outros a que assisti mas do qual não lembro espontaneamente, e filmes dos quais não lembrarei nunca mais.

Ver esses filmes me lembra que houve um tempo em que eu torcia para que “Disneylândia”, em vez de filmes que à medida que eu crescia iam perdendo aos poucos seu interesse, exibisse os desenhos de que eu ouvia falar. As musas ouviram minhas preces e no início dos anos 80 os filmes deram lugar às centenas de desenhos em curta metragem que a Disney fez ao longo de quase 100 anos. Nunca me arrependi tanto de um desejo.

Sempre tive a impressão de que “Disneylândia” fez mais pelo ambientalismo do que esses militantes chatos que vivem dizendo que nós estamos invadindo a casa dos bichos. Vendo a lista de filmes disponíveis, a maior parte deles lidando com crianças e animais, essa impressão aumenta. Mas agora também penso que eles contribuíram muito para a formação de uma geração de pais e mães de pets, de pessoas que pensam que seus bichos são gente, mas que não pegam o cocô de seus cachorros na rua.

Passei os olhos sobre alguns dos títulos disponíveis. Ainda não tive coragem de assistir a nenhum. Procurando a data de estreia do programa, descobri que ele ainda existe e é apresentado pelo Disney+; mas para mim é outro bicho, não pode ser a mesma coisa. Ha um tempo para cada coisa, diz o Eclesiastes; “Disneylândia”, como o “Clube do Mickey”, é o tipo de programa que só se pode ver uma vez, quando se é criança e tudo é novidade e possível.

Mas às vezes é possível entrever esse outro tempo, e quase sempre vale a pena.

Histórias da Gente Brasileira

Andei lendo os dois primeiros volumes de “Histórias da Gente Brasileira”, de Mary del Priore, que tratam da vida cotidiana durante os períodos colonial e imperial. Não me animei a ler os seguintes.

Noves fora, a série parece ser pouco mais que um bom resumo do que já se escreveu sobre a vida privada no Brasil, feito com critério e sensibilidade. A obra e a visão de Gilberto Freyre, dono do que é provavelmente a mais importante bibliografia nesse campo, se destacam entre o cipoal de historiadores, viajantes e escritores, e isso não é ruim — é sempre bom ver o velho reacionário de Apipucos reconhecido num tempo em que se tornou a regra colocar a expressão “democracia racial” em sua boca.

Mas o livro não se anima a fazer disso um trampolim, o início de uma reflexão nova, e esse me parece ser o seu grande problema.

O zeitgeist moderno, como é natural, influencia essa narrativa ao mesmo tempo nova e velha. Por exemplo, ao falar da preferência estética por dedos finos e alvos, por pés pequenos e delicados, Del Priore a define como um aspecto da diferenciação necessária dos pés largos e chatos das negras, implicitamente estabelecendo o racismo como base dessa preferência estética. Isso é verdadeiro, mas não é toda a verdade. Na França do mesmo período osso finos eram valorizados em comparação não com negras exploradas, mas com as camponesas louras de dedos grossos e pele vermelha de sol (e também porque indicariam orifícios estreitos, mas essa é outra conversa que não fica bem em um blog de boa família como este). O que é essencialmente uma questão de classe eventualmente enriquecida pelo racismo é mostrado como apenas uma questão racial, negando, aqui também, a complexidade das relações e valores da sociedade. É o tributo que Del Priore paga ao seu tempo.

Mais incômoda é a constatação de que há poucas ideias novas em “Histórias da Gente Brasileira”. Del Priore essencialmente repete as convenções históricas de seu tempo quando poderia tentar se aventurar sobre o que está por baixo delas, ou tirar conclusões a partir de informações conflitantes. Provavelmente é a isso que o livro se propõe: é cheio de ilustrações que atrapalham a leitura mas devem servir de chamarizes para leitores mais jovens ou menos desasnados. Mesmo dentro desse escopo, no entanto, há defeitos que saltam aos olhos.

O segundo volume, especialmente, realça esses problemas, menos aparentes no que trata sobre a história colonial. Nas páginas sobre sexualidade, especialmente no período imperial, lemos sobre esposas que rezam uma Ave Maria antes de abrir resignadamente as pernas para seus maridos, moçoilas que namoram apenas com olhares e beliscões lusitanos na saída da missa. Diante de narrativa tão rígida, que fazer com as tantas histórias que sabemos que existiram? Dos casamentos apressados em corrida contra a barriga cada vez mais protuberante, das moças mandadas para a corte ou outra província prenunciando a adoção de um primo distante recém-nascido, das pessoas que descobrem um dia serem filhos daquelas que achavam serem suas irmãs?

Não que seja fácil para historiadores abordar essas questões. Escândalos familiares, a vergonha de ter um filho “fresco”, como diziam, são quase sempre devidamente sepultados pelas famílias, não constam em inventários nem testamentos, se tornam segredos de polichinelo que o tempo geralmente se encarrega de esquecer, mais rápido do que esquece de todo o resto. Mas lembrar que a história não é linear e o passado raramente é totalmente passado, reconhecer que a vida íntima do brasileiro tem uma riqueza que extrapola narrativas oficiais e compartimentos temporas, e que nem toda história é registrada, seria um bom ponto de partida para investigar e jogar luzes novas sobre nossa história.

É impossível não lembrar de um dos tantos temas em “A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud”, obra estupenda de Peter Gay, infelizmente fora de catálogo no Brasil e vendida a preços extorsivos nos sebos. Freudiano, Gay lembrava que por baixo do puritanismo e repressão vitorianos as carnes continuavam fervendo, porque da saliência ninguém aguenta abrir mão por muito tempo. Foi assim que Gay conseguiu desvelar uma realidade muito mais rica e mais complexa no período vitoriano e oferecer uma visão renovadora sobre a arte e o comportamento daquele tempo, questionando alguns dos mitos mais persistentes. É o que faz falta aqui.

Assim, é curioso que Del Priore acabe negando à mulher do Brasil imperial o exercício do prazer e do desejo, apesar de em várias partes se referir aos raptos, às fugas no meio da noite, em trechos que parecem tirados de “Sobrados e Mocambos”. É possível supor que a sexualidade, mesmo quando obedecia às regras morais da época, era muitas vezes mais saudável do que a pudicícia historiográfica faz crer. Infelizmente, nos faltam diários e relatos que atestem essa ideia, porque antes das redes sociais e dos reality shows era feio ou ao menos vulgar falar ou registrar os abandonos e desvarios de amor, luxúria e perdição que as paredes caiadas ostentando um Sagrado Coração tanto viram no país d’outrora. É aí que deveria entrar a autora, contextualizando tudo, fazendo as conexões necessárias, até levantando hipóteses. “Histórias da Gente Brasileira” se ressente dessa ausência. Falta lembrar que sim, mulheres gozavam no período imperial.

Além disso, a julgar pelo livro, homossexuais não são gente, pelo menos não gente brasileira. E embora haja alguns livros que tratam do assunto, como o já clássico “Devassos no Paraíso”, o tema não é tratado de maneira clara pela Del Priore. O capítulo destinado a eles tem pouco mais de duas páginas, e mesmo assim se concentra em uns poucos casos pitorescos, que estão muito longe de apresentar um panorama real do seu tempo — o marinheiro que mata o companheiro apaixonado por uma ex-prostituta daria ao menos uma boa fotonovela italiana, mas não é o suficiente para nos fazer entender como se davam as relações interpessoais e com a sociedade. Aqueles que nasceram antes dos anos 80 podem intuir uma parte disso, a partir da observação e extrapolação da sociedade até aqueles tempos, da compreensão de seus preconceitos e subterfúgios encontrados para driblá-los; mas aqueles que nascem agora, em um período de tolerância crescente e inserção social, em algumas décadas não terão mais critérios de julgamento. É claro que é outro daqueles temas difíceis, pela escassez de fontes confiáveis; mas justamente por isso mereceria um esforço maior.

Há outras questões que a leitura suscita. Numa obra que tem o título geral de “Histórias da Gente Brasileira”, é curioso que se dê tão pouca atenção e destaque às diferenças culturais abissais que marcam a geografia do país. Não existe um Brasil único em termos de costumes, nunca existiu. A sociedade das Minas Geraes do século XVIII não era igual à da Vila de Piratininga da mesma época, e bem diferente do que se via às margens do rio Guamá. O Rio de Janeiro de 1850, em seu esplendor imperial, já tinha costumes e perspectivas diversas da Salvador decadente de então. Corte e províncias, capitais e interiores sempre andaram em passos muito distintos, diferença que só há poucas décadas, depois das antenas parabólicas e principalmente da internet, começou a diminuir de maneira significativa e irreversível.

Apesar disso, esta é uma narrativa eminentemente sudestina. O Nordeste está bem presente, graças à importância basilar da obra de Gilberto Freyre na gênese deste livro, mas tem-se a impressão de que o Sul, por exemplo, não faz parte do Brasil. E isso acaba, talvez, dando uma impressão de uniformidade que nunca existiu, e que gente como Evaldo Cabral de Mello costuma deplorar.

Também chama a atenção um dos problemas que parecem afligir a historiografia brasileira desde sempre: a dependência às vezes excessiva dos brasilianistas e seus relatos de viagem, Maria Graham, Saint-Hilaire, uns tantos outros. Talvez não dê para ser diferente, porque esses relatos são às vezes os únicos a cobrir lacunas incontornáveis em um país de gente atavicamente iletrada, que mesmo hoje não costuma registrar o seu cotidiano. Além disso, são indispensáveis porque ao estrangeiro saltam aos olhos aspectos da vida cotidiana que os patrícios muitas vezes não conseguem mais enxergar.

O detalhe é que esses relatos devem ser lidos sempre com certa reserva; Gilberto Freyre dizia que os franceses, especialmente, costumavam ser uns mentirosos safados e sem-vergonha. Mas, principalmente, é preciso lembrar que nenhum olhar é desprovido de preconceitos e de subjetividade. No primeiro volume, sobre o Brasil colonial, isso está bem claro, e Del Priore acerta ao registrar opiniões diferentes: a casa-grande de pau-a-pique, que a um viajante parece apenas primitiva e pobre, a outro pode parecer engenhosa e uma solução ambiental adequada. Comportamentos podem ser julgados de maneiras diferentes, aspectos importantes para uns podem não ser dignos de nota para outros.

Mais que isso: mesmo cumprindo papel importante, nem sempre eles são tão necessários assim. Por exemplo, em determinado momento Del Priore recorre a uma viajante francesa para uma descrição muito sucinta de como aconteciam os casamentos. Talvez essa descrição não fosse tão necessária assim. Era só lembrar da “História da Baratinha”, adaptada por João de Barro em disquinhos infantis coloridos e presente em milhares de lares brasileiros a partir dos anos 1960:

E logo chegou a hora marcada para o casamento.
Numa linda carruagem, forrada de azul turquesa,
Lá se foi a baratinha — era mesmo uma beleza.
Ao seu lado, repimpado, parecendo um general,
Ia garboso o padrinho, o papagaio real.
Mais atrás, em grande fila, e sem carros enfeitados,
Vinham parentes, amigos, e o resto dos convidados.
Só não vinha no cortejo o dr. João Ratão;
Porque como era costume, em tempos que já lá vão,
O noivo e sua madrinha deveriam esperar
A noiva e seu padrinho desde cedo, ao pé do altar.

Às vezes, as conclusões a que Del Priore chega parecem mudar ao longo do livro de acordo com o autor citado. Fica a impressão de que falta uma visão unificadora e mais crítica — ou seja, a intervenção da historiadora. Por exemplo, ao falar do papel do pai na sociedade imperial, Del Priore cita Capistrano de Abreu: “pais soturnos, mulher submissa, filho aterrado”. Mas apenas algumas páginas antes ela citou um certo James Wells, que descreveu crianças mal-educadas e petulantes tratadas com complacência excessiva pelos pais, e uma opinião de Maria Graham muito parecida. Afinal de contas, como eram as relações entre pais e filhos? Se ambos são verdadeiros — e certamente são —, por que não trabalhar a partir da compreensão mais abrangente dessa diversidade e tentar interpretar de maneira mais completa e rica esses aspectos da história, e de como essa diversidade de relações forjou a sociedade em que vivemos? Não é a exposição ou omissão de fatos que nos faz entender a história: é a compreensão do seu conjunto.

Esse é o grande problema desta obra, que obviamente recorre a pouquíssimas fontes primárias: falta a interpretação e criação de um novo conceito a partir do apanhado de informações coletadas no livro, a interferência da historiadora, o cotejamento com a evolução dos tempos e com outros aspectos da vida cotidiana.

É um problema comum em obras de história. Em “SPQR”, um bom livro de Mary Beard sobre Roma, em vários momentos se tem a impressão de que, se ela conhecesse um pouco mais do cotidiano da política como é feita hoje, de suas entranhas e complexidades, poderia lançar um pouco mais de luz sobre o processo que levou à conspiração que matou Júlio César e à queda da República. Às vezes tem-se sensação semelhante aqui.

Isso não é uma condenação do livro. Pelo contrário. “Histórias da Gente Brasileira” é excelente para quem tem expectativas um pouco menores — ou melhor, para quem, diante do que o livro apresenta, não espera um passo adiante. Traz uma excelente curadoria de informações, com boas escolhas de suas fontes. É abrangente, sensível, em muitos momentos apresenta bons insights. Ninguém perde seu tempo lendo este livro.

Mas às vezes tem-se a impressão de que falta deixar claro, para os leitores, que o passado nunca é totalmente passado. E as mudanças nunca obliteram tudo aquilo que sucedem e superam. É por faltar essa compreensão de maneira mais clara que o livro resulta em uma leitura confiável, mas insuficiente. Confirma o que já sabíamos, no máximo adicionando alguns detalhes. Mas não muda nada, não acrescenta nada. E no fim das contas, chama a atenção exatamente para o que não diz.

Ford F-1000

De vez em quando assisto a esse filmete. É de 1979, e lançou a Ford F-1000. Dura pouco mais de 16 minutos e é, essencialmente, um road movie, contando uma história com começo, meio e fim.

Não sei nada sobre ele. Redator, diretor, o ator com cara de Belchior. Não sei sequer qual a agência que o criou, embora isso não seja difícil de achar. O filme tem jeito de ser uma peça criada para convenções da Ford ou apresentações a concessionárias e jornalistas especializados. Não sei. Sei apenas que adoro esse filme, a maneira como conta sua história, a adequação ao seu público-alvo, a inteligência com que ressalta os grandes argumentos de venda da caminhonete.

Sei também que ele é uma grande oportunidade perdida.

Fico imaginando que, com um pouco de ousadia e criatividade, ele se transformaria em um marco. Bastava exibi-lo uma vez nas duas principais redes de TV, a Globo e a Tupi. Ao mesmo tempo, no Fantástico e no Programa Sílvio Santos, criando um evento único, que seria comentado por semanas pelo público, e lembrado até hoje pelos publicitários, como o primeiro sutiã ou o orelhão da Telesp ou o Barate-o-tó da Unimar.

E então ele seria um filme revolucionário. Não apenas em termos de planejamento de mídia, mas mesmo de criação, antecipando em 30 anos toda essa bobajada de storytelling e outras palavras gringas que não consigo aprender.

Mas não foi, porque cada tempo tem o seu modo de fazer as coisas, um barbudinho alemão explicava há uns 150 anos. Pena.