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Foi antes mesmo da pandemia que seu Antônio fechou a Panificadora São Carlos, na esquina da Augusto Maynard com a Vila Cristina. A padaria estava lá havia pouco mais de 40 anos, seu Antônio já tinha passado dos 85, estava na hora de descansar. Era lá que, quando eu ia tomar uma ou duas cervejas sozinho num começo de noite, eventualmente me serviam em copo de extrato de tomate.

Mais um pedaço do São José se foi naquele dia.

De uns tempos para cá a São Carlos parecia ser um dos últimos resquícios de um bairro que já representou talvez o melhor microcosmo da cidade, a mistura que condensou em uns tantos quarteirões a cidadezinha nova, acanhada e pretensiosa que Aracaju foi um dia. Alguns anos atrás, com os clientes tradicionais afastados pela infinidade de clínicas que se instalam nas redondezas como moscas e reconstroem as casas antigas, grandes e pequenas, reuniam-se ali alguns dos últimos bêbados do bairro para um happy hour que, também ele, já tinha se tornado tradicional. Entre eles o senhor que envergava sempre uma camisa do Fluminense, ganhasse ou perdesse; e aquela senhora, tão mirrada e pequena, que não parecia ser capaz de parir os tantos filhos que tinha, e que não abria mão de suas muitas cervejas no fim do expediente; e a moça que a acompanhava valentemente em cada copo, mas que pouco antes da padaria fechar caiu da escada e ficou paraplégica, ainda antes da padaria fechar.

Todos eles servem como lembrete de que o São José foi um dos bairros mais democráticos que já se viu nesta cidade. Ali morava Constâncio Vieira, industrial e engarrafador da Coca-Cola, na Augusto Maynard que ainda hoje é velha elegante, mesmo que dilapidada. Moravam também as lavadeiras da vila na rua General Chaves, as tantas e tantas famílias que se equilibravam entre a pobreza franca e a classe média baixa na Zaqueu Brandão. Morava Veiga na casa mais imponente da Stanley Silveira, com seu muro de estética singular decorado com peças de um finado Dodge Dart, assim como velhos comunistas como o Major Teles, velhos boêmios como Bisuca, e jogadores de futebol como Henágio, que chegou a vestir a camisa 10 do Flamengo nos anos 80.

Morava por ali Célia, moça com problemas mentais — “Lígia, peste!”, ela gritava para a vizinha circunspecta enquanto enfiava o dedo nas partes pudendas e cheirava —; eu a via quando passava férias em Aracaju e ela era grande e gorda e parecia a Madame Min, mas depois de muitos anos eu a vi uma vez e ela era tão pequenininha, tão mirradinha, e em vez de admitir que era o fato de eu ser muito criança que a fazia parecer maior do que era, decidi acreditar que Célia foi minguando, encolhendo, até desaparecer numa tarde de outono.

Célia era vizinha, pulando uma casa, do Amarelinho. Era no Amarelinho que, 45 anos atrás, seu Hunaldo roubava na conta e Perereco batia pontos todos os finais de tarde.

Era um homem magro, alto, com um nariz enorme cravejado e sempre vermelho, um andar meio trôpego e um sorriso triste no rosto. Era elegante, sempre bem vestido dentro do que achava ser elegância — o que significava que lembrava vagamente um bicheiro daqueles anos 70, com sapatos e calça brancos e camisas estampadas de seda e mangas compridas. Todo dia, religiosamente, por volta das cinco da tarde ele sentava diante de uma mesa do Amarelinho, O Globo a tiracolo. Os meninos ficavam por perto, sabiam que ele iria pedir para comprar cigarros, sempre Carlton, e os deixaria ficar com o troco, imediatamente transformado em balas e doces. De lambuja eu ainda podia ler a página de quadrinhos — então gigantesca, uma página inteira — do jornal, antes que ele ficasse completamente bêbado e fosse embora aos tropeços, tentando afastar sem sucesso os fantasmas que deviam lhe perseguir havia 40 anos.

O que os meninos não sabiam era que Perereco era veterano da II Guerra. Segundo dona Lígia, ele tinha voltado da Itália “descalibrado”. Parece ter sido um rapaz promissor, inteligente, mas a guerra tinha deixado traumas que ele só conseguia afogar na cachaça. Bom soldado, Perereco se esforçava aplicadamente nesse exercício, e mesmo hoje não serei eu a condená-lo, eu que nem sempre me furto a tentar também afogar fantasmas muito menos assustadores

Essas lembranças, em grande parte, são tudo o que resta do fastígio do São José. Porque já faz uns muitos anos que o bairro vem desaparecendo, perdendo sua identidade. Dia desses foi a vez da casa que meu tio se arrependia de não ter comprado, casa bonita com paredes de vidro amarelado. Resistiu solitária tempo demais, até, mas finalmente desapareceu para dar lugar a um estacionamento de alguma clínica, mais um, atendendo às tantas mazelas de um povo cada vez mais velho e mais doente e mais hipocondríaco.

Talvez o São José, no fundo, nunca tenha sabido muito bem qual o seu lugar no mundo. Não era chique como a Rua da Frente, nem como seria depois a 13 de Julho — enquanto o São José vivia seu auge, se é que teve um, a 13 ainda era uma coleção de casinhas de pescador com telhados de palha. Tampouco foi homogeneamente pobre como o bairro Industrial, mesmo o Grageru ou o Luzia; mas estava na zona sul da cidade ribeirinha que já espichava os olhos em direção à praia, pertinho da Rua da Frente, e era como o irmão remediado, mas mais velho e por isso merecedor de ainda algum respeito. A Augusto Maynard ainda é a rua mais charmosa da cidade, mas eu contei dia desses e com exceção dos seus dois únicos edifícios, há apenas 12 famílias morando nela. O resto é loja, é bar, é clínica, é petshop, é até Associação dos Renais de Sergipe. Apareceu agora uma delicatessen, não sei quanto tempo vai durar.

Na região em volta do Atheneu, aparentemente ocupada a partir dos anos 50, permanecem ainda casas belas que cristalizam um momento de um novo tempo estético na cidade., mas que já ficou para trás há muitas décadas. É de se imaginar que tenham pertencido aos filhos dos ricos da Rua da Frente, mas agora também elas estão desaparecendo. Uma a uma, vão dando lugar a clínicas e lojas de aspecto funcional, a lógica burra da funcionalidade. Parte grande delas já está desocupada, vítimas imóveis de inventários que se arrastam por ódio entre irmãos ou porque nenhum deles precisa de dinheiro, e mais cedo ou mais tarde serão demolidas, ou então descaracterizadas até ultrapassarem o limite da infâmia.

Essas casas sao lembranças de que em algum tempo o São José tentou se modernizar e se dar ares de chique. O Caga-em-Pé, se alguém perguntar, hoje é parte da 13 de Julho, bairro esnobe que finge que o grande esgoto que corre à sua frente ainda é um rio, e faz questão de não lembrar dos dias em que passava pouco de um grande charco baldio.

Seus limites se diluíram, e agora fica difícil sem recorrer aos arquivos da Prefeitura saber o que é São José, o que é Grageru, Salgado Filho e 13 de Julho. Seu único limite óbvio é a Barão de Maruim — mas esse limite só existe, se é que existe, na letra fria das ordenações urbanas e na memória de uns poucos aracajuanos, porque é cada vez mais difícil dizer o que é centro e o que é São José.

Mas o São José persiste. Senhoras nonagenárias ainda lembram de fulano ou cicrano, alguém pode lhe contar ainda o horror do crime da rua Campos. Senhoras septuagenárias ainda conseguem reconhecer as poucas, cada vez menos casas de sua infância. Mas dia desses foi dona Laís que morreu, e mais um pedaço da memória do bairro se foi com ela.

Se acabou também o Caldo Verde, o antigo bar de seu Nelson na esquina da praça Tobias Barreto com a Itabaianinha; seu Nelson morreu e outro velhinho assumiu o boteco, um dos dois únicos pés sujos autênticos do bairro, rivalizando com o Bico Doce. Noite dessas, faz uns anos já, um senhor relembrava os velhos tempos, o dia em que seu pai recebeu em casa o então candidato a presidente Paulo Maluf. O pai fora deputado, sei lá qual, a família viu dias de riqueza maior que aqueles que ele parecia viver, mas os tempos pareciam não ter sido bons para eles: naquela noite ele estava limitado a contar vantagens de um tempo passado a velhos como ele, também alijados do poder do estado, mas senhores ainda de suas memórias. O velhinho fechou o bar na pandemia, e agora o lugar vende açaí. Nada simboliza mais a decadência de um lugar decente do que vender açaí.

O São José viu também desaparecem tantos de seus velhos malucos de rua, dos quais sempre teve boa cota. Talvez seja um dos sinais mais tristes da decadência de um bairro; feliz da cidade que sabe quem eles são, porque conservam ainda uma humanidade e uma proximidade o crescimento sempre destrói.

Anos atrás, circulavam pelo bairro pessoas como Capone, sempre maltrapilho e xingando e ameaçando os meninos que o chamavam por esse nome. Os meninos diziam que ele tinha sido um menino muito inteligente que endoideceu de tanto estudar, e não podia haver desculpa melhor para eles gazearem as aulas no Atheneu ou no Patrocínio de São José. Capone, claro, não era seu nome. Dona Sinhá Galvão nunca foi de prestar respeito a quem não o merecia nem de negar o que é seu direito; e quando Capone chegava à sua porta pedindo comida, ela o chamava de seu Humberto. A casa de dona Sinhá hoje é um estacionamento de uma clínica, e com ela desapareceram as mangueiras que davam as melhores e maiores mangas-rosa que alguém poderia experimentar em toda uma existência.

Kikicacau morava perto do Carro Quebrado, moço com problemas de fala mas amor incomparável ao pés femininos. Com pena do rapaz, umas tantas moças deixavam que ele pegasse neles; e Kikicacau ficava lá, sempre arrumado, apenas segurando-os como quem segura um passarinho, beatífico, em paz — normalmente, normalmente; mas às vezes seu olhar se tornava brilhante demais e sua respiração um pouco mais acelerada, e então as moças puxavam o pé grosseiramente, e se o desespero de ver seu sonho escapar de suas mãos o fizesse tentar agarrar-se a ele às vezes lhe davam um chute, e sua tristeza expulsava a lubricidade dos seus olhos.

Felizmente não é por falta de malucos que o São José definha, porque malucos esta cidade ainda produz à mancheia. Rogério hoje vaga pelas ruas do bairro, recitando sempre sua interminável litania de bons votos para quem se deixa ouvir o que ele tem a dizer. Dentes em péssimo estado, ultimamente segurando sempre uma bandeira do Brasil, diz que já foi perigoso, um homem mau metido com coisa ruim, mas hoje seu único problema é “o vício”. Rogério é guardador de carros. Seu estado mental se deteriora a cada dia, como o São José. Andou uns tempos preso, violação de condicional, e quando voltou outro sujeito tinha ocupado o seu ponto; magnânimo, o usurpador lhe disse que ele podia ficar num ponto mais afastado, e nos dias que se seguiram Rogério estava revoltado, como é que se faz isso com um cidadão, como é que se tira o seu trabalho?, ele me perguntava. E eu não tinha o que responder.

Pelos arredores da praça Tobias Barreto circula Fábio. Fábio é esquizofrênico, e grita consigo mesmo, dá socos na própria cabeça, xinga aqueles que passam. Um amigo meu é “estuprador”. Outra amiga, “prostituta”. Eu dei sorte, sou só “o mais fodido” — “…E o mais fodido é você! O mais fodido é você!” Fábio xinga, assusta, mas não agride ninguém. Parece ser dos poucos a não ter medo do meu cachorro, que não gosta quando ele se aproxima. E se a lua não míngua Fábio é um rapaz civilizado, e diz que o pastor alemão é Deus na Terra, e lembra com carinho que foi um pastor que o prendeu uma vez porque ele tinha pulado o muro de uma casa para dormir. Suas diatribes misturam sexo e religião, e ele tantas vezes é Deus condenando fornicadores e ladrões e assassinos — e talvez, quem sabe, também os mais fodidos. Fábio acende fogueiras nos pés das árvores e toma banho completamente nu no lago da praça, sob o olhar indiferente da estátua de Tobias Barreto, mas a água suja nunca consegue limpar seus demônios.

Conta a lenda que Fábio era trabalhador de uma grande estatal, mas a noiva o traiu e ele endoideceu, e a gente sabe que o amor transformado em dor é tão pior que o que se transforma em ódio, e é tão melhor contar isso do que falar de esquizofrenia. De vez em quando a sua família surge do nada, e o leva para fazer prova de vida no INSS. Dizem que sua pensão é muito alta. Fábio, pelo visto, mesmo louco ainda sustenta a família, que não cuida dele.

Escrevo tudo isso porque a senhora mirrada e pequena que tomava suas cervejas na padaria de seu Antônio e ia para casa deixando o xixi correr pelas calças morreu há alguns dias.

No lugar da padaria, já há alguns meses, funciona um bar muito frequentado — não por ela, obviamente, que uma senhora tem que se dar ao respeito. O bar é sucesso absoluto de terça a domingo, sempre cheio de gente, cheio de luz, cheio de barulho. Fui tomar uma cerveja lá dia desses. Não me serviram em copo de extrato de tomate. Não, não, este não é mais um lugar para cavalheiros como eu.

Joe, o Fugitivo

Durante anos, em conversas sobre seriados que marcaram a infância dos velhinhos da minha geração — “Túnel do Tempo”, “Viagem ao Fundo do Mar”, “Terra de Gigantes”, “O Incrível Hulk”, “O Homem do Fundo do Mar”, tantos e tantos —, eu sempre acabava perguntando por um de que eu gostava. Se chamava “Joe, o Fugitivo”. Ninguém lembrava.

Certo, era um seriado obscuro até mesmo nos EUA. Não passou de duas temporadas de 13 episódios cada. Mas por alguma razão a Globo do Rio de Janeiro o exibiu a partir de abril de 1975, apenas seis meses depois de ter estreado nos EUA. Mas também aqui ele nao parece ter feito muito sucesso e não ficou muito tempo na grade, ao que parece.

Ainda assim, não me parecia possível que ninguém lembrasse dele. Tanta gente lembrava de coisa pior. Só muitos anos depois entender que o problema não era a memória dos outros. Eles não lembravam porque não podiam. O seriado nunca foi exibido em Aracaju, simples assim.

O processo de implantação das redes nacionais de TV foi demorado. No que diz respeito à Rede Globo, durante todos os anos 70, apenas os telejornais nacionais e, acho, o Fantástico eram exibidos simultaneamente em todas as suas afiliadas e retransmissoras. O resto era um samba do crioulo doido, com fitas quadruplex e latas de filme viajando Brasil afora e sendo exibidos em uma praça de cada vez.

E cada emissora escolhia o que exibir nos horários que não eram ocupados pela programação nacional. Em 79, por exemplo, a TV Aratu, retransmissora da Globo na Bahia, exibia “Daniel Boone” ao meio-dia, o que não acontecia em mais nenhum lugar. (Uma pequena curiosidade: se você procurar internet afora, vai encontrar a informação de que a primeira temporada desse seriado, em preto e branco, só foi exibida uma vez no Brasil. Não é verdade. Ela foi exibida em Salvador no início de 1980 pela TV Aratu, que não costumava respeitar a ordem dos episódios. Na verdade, a Globo também não).

Quando a Globo Rio desistiu de exibir “Joe, o Fugitivo”, simplesmente passou as latas de filme adiante para suas afiliadas. Nos quatro anos seguintes deve ter pulado de cidade em cidade, até chegar a vez de Salvador.

No final dos anos 70 a TV Aratu já tinha sua antena de microondas, mas filmes e seriados eram exibidos de acordo com os seus interesses. E assim, nos fins de manhã do final de 1979, ela resolveu exibir “Joe, o Fugitivo”, provavelmente porque o seriado finalmente estava disponível e ninguém queria aquele bagulho.

A história era uma mistura de “Lassie” e “O Fugitivo”, e o título brasileiro era mais bandeiroso que o original americano, Run Joe Run: um cachorro do exército americano, Joe, é acusado de um ataque que não cometeu e condenado à morte, mas consegue fugir. Uma recompensa é colocada sobre sua cabeça, mas o seu adestrador sabe de sua inocência e vai atrás dele; no entanto, Joe acha que o adestrador quer sacrificá-lo, e foge dele; enquanto isso, vai ajudando as pessoas que pode no caminho,colocando em prática o que aprendeu no exército.

Na segunda temporada o enredo do seriado mudou completamente, provavelmente porque a audiência se mostrou pífia e a criançada, seu público-alvo, cansou do jogo de gato e rato: agora Joe andava ao lado de um jovem mochileiro que vagava país afora, aparentemente sem destino — quer coisa mais anos 70 do que isso? —, e os dois continuavam ajudando as pessoas no caminho.

Ao menos em Salvador, “Joe, o Fugitivo” foi exibido por pouco tempo, entre o fim de 1989 e o começo de 1980. Em mim, pelo menos, o resultado foi uma paixão por pastores alemães que dura até hoje — embora, inexplicavelmente, nenhum dos meus cães se chame Joe.

Lembrei do seriado dia desses porque, de repente, percebi que isso nunca mais vai se repetir.

Desde a primeira metade dos anos 80 as TVs estão totalmente integradas em tempo real. O espaço para a programação local encolheu absurdamente; a programação nacional é igual em todo lugar, a todo tempo. Quem cresceu nos anos 80 e 90 vai ter exatamente as mesmas lembranças e os mesmos referenciais, seja onde for.

Mas até isso é coisa velha, caquética. TVs abertas não importam mais, são um fenômeno do passado, já morto. A meninada que cresce agora vai ter outros referenciais, todos tirados da internet ou do streaming. E isso quer dizer uma infinidade de coisas simultâneas, cada vez mais fragmentadas, mais assíncronas. A ideia de as pessoas encontrarem algo em comum numa coisa que viram há muito, muito tempo em pouco tempo vai ser um delírio, apenas. Não acredito que muita gente sinta falta disso. Mas vai fazer. É mais um elemento de união que se vai, por desimportante que seja. E o mundo não ficará melhor por isso.

Bizz

Muitas, muitas eras atrás o Marcus ficou puto comigo porque falei mal da Bizz. Eu disse que ela era “uma das revistas mais medíocres e provincianas da história do país, onde músicos frustrados escreviam sob pseudônimos resenhas sobre suas próprias bandas, que só eles ouviam, e se deliciavam em anunciar bandas de um buraco qualquer da Inglaterra, que ninguém jamais ouviria.”

Com elegância, o Marcus apontou qualidades na Bizz que eu, claro, não quis mencionar. A principal era o fato de a revista ter sido a mais importante formadora de público roqueiro dos anos 80, a triste geração de que o Marcus e eu fazemos parte.

Lembrei da revista dia desses porque achei nos meus arquivos um documentário em vídeo chamado “Bizz – Jornalismo, Causos e Rock and Roll”. Já tinha visto, mas tinha esquecido porque ele é francamente ruim: mal concebido, mal dirigido, mal fotografado, mal editado. Mas oferece ao menos um vislumbre do que foi a revista, porque traz depoimentos em primeira mão de gente que participou de sua trajetória, ainda que em entrevistas mal-conduzidas.

Em retrospecto, a Bizz chegou um pouco atrasada ao cenário, porque havia pelo menos três anos que o rock brasileiro se consolidava no alto das paradas de sucesso. Mas esse atraso era apenas relativo. O Rock in Rio tinha sido, como dizem, um divisor de águas. Durante todo o final de 1984 a Globo tinha exibido, diariamente, o “Minuto do Rock”, num esforço para garantir o seu investimento como patrocinadora do evento, e começando um processo de doutrinação que atraiu muita gente — como eu. Havia um alvoroço generalizado, que se combinava com a expectativa pelo fim da ditadura. O festival coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, foi um sucesso e em 1985 o rock era a trilha sonora do país.

Na época, pululavam nas bancas, especialmente do sudeste, uma infinidade de revistas normalmente malfeitas e sempre sem distribuição nacional adequada. Sem ter conhecido a Pop, revista da Abril que, pelo que deduzo das capas, era uma mistura de revista Bizz e Capricho, as únicas publicações a que o país tinha acesso regular, se não me falha a memória ruim, eram a Roll e a Somtrês.

A Roll era uma revista menor e malfeita, mas dedicada exclusivamente à música. A Somtrês se dividia entre música e aparelhagem de som. De modo geral era uma revista mais sólida, e fez algumas boas reportagens. O problema é que ela era velha, feita para anciãos esnobes que podiam gastar dinheiro; não tinha como público-alvo o jovem urbano roqueiro. Ainda assim, muitos dos críticos que mais tarde chegariam à fama de nicho da Bizz já estavam ali: José Emílio Rondeau, Roberto Muggiati, Maurício Kubrusly, talvez a Ana Maria Bahiana, uns tantos por aí.

A revista que a Abril lançava em agosto de 1985 finalmente mirava esse espaço específico. Com um projeto gráfico inspirado na estética new wave, demorou alguns meses até ela consolidar um formato próprio; em seus primeiros números, trazia seções sobre cinema, instrumentistas, até cifras de músicas, coluna de fofocas e de heavy metal.

O sucesso da revista foi absoluto. Até hoje, muita gente escreve showbiz com dois ZZ, por causa de uma de suas seções. E então é aquilo que o Marcus disse: a revista introduziu a abordagem cultural paulista ao resto do país com uma eficiência maior que a Globo, por exemplo — que, aliás, nunca escondeu o seu carioca way of life. Atenta ao que acontecia lá fora, especialmente na Inglaterra, e tentando atender a vários nichos da cultura jovem urbana, a Bizz inegavelmente aproximava os grotões do mainstream paulista.

Havia um descompasso enorme. Um exemplo bobo: até ler a matéria de capa da edição de estreia, eu não fazia ideia de que Bruce Springsteen fazia tanto sucesso, ou que seus shows duravam quatro horas. Foi o não reconhecimento desses aspectos positivos que irritou o Marcus, e isso é compreensível.

Porque com todos os defeitos, a importância histórica da Bizz é inegável. A época de ouro do rock brasileiro foi o último momento em que a música conseguiu unificar e dar voz a uma geração inteira: depois disso veio o caos, a fragmentação em nichos, isso que a gente vê hoje e que nos surpreende a cada dia, toda vez que descobrimos que um sujeito de quem nunca ouvimos falar, e cuja música é feita inteira no computador, faz shows para dezenas de milhares de pessoas que cantam suas letras inanes do início ao fim. Musicalmente, a sensação que se tem é que chegamos ao apocalipse. O cenário da música brasileira nunca foi tão ruim. Diante de quatro tão tétrico, fica mais fácil achar que a Bizz eternizou em tinta impressa uma época que hoje parece dourada. De maneira às vezes deturpada, muitas vezes canalha, ela foi uma coadjuvante importante nesse processo de uniformização cultural de que, às vezes, tanta gente sente falta, eu inclusive.

Mas importância histórica o nazismo também teve. A Bizz trazia também o que São Paulo tinha de pior: um colonialismo cultural abjeto, uma ignorância profunda acerca do que está além de seus horizontes e que, não por coincidência, é talvez a característica definidora da “crítica de rock”, de Christgau a Lester Bangs. E a canalhice pura e simples, descarada, sem vergonha. E a inconsistência, a falta de um padrão estético claro e honesto, uma glorificação da subjetividade quase absoluta. Um exemplo são dois comentários, separados por alguns anos, que José Emílio Rondeau fez sobre dois discos de McCartney:

Talvez fosse disto que o velho Macca precisava para neutralizar a dormência criativa que o vinha atacando: cabeças diferentes, opiniões externas. Pete Townsend, Phil Collins, Carlos Alomar (guitarrista de Bowie), Eric Stewart (ex-10cc) e zilhões de artistas de primeiro escalão deram sua contribuição ao melhor disco de Paul desde… quando, mesmo? Com Eric Stewart repartindo a parceria em 60% das músicas e Hugh Padgham polindo uma produção ultra-moderna, Paul ressuscitou. Durará? (José Emílio Rondeau, Bizz 16, novembro de 1986, sobre o Press to Play, considerado por muitos o seu pior álbum)

Sete anos depois…

“O Paul McCartney quer virar Gipsy Kings”, disparou um adolescente fã de grunge, depois de ouvir pela primeira vez “Hope of Delivery”, uma das faixas “politizadas” do novo álbum do velho Macca. Talvez o menos ruim do últimos discos lançados por Paul em dez anos, Off the Ground é uma tentativa do ex-Beatle (êta, sombra difícir) de recuperar sua credibilidade artística/musical. Mas o máximo que consegue é ser apenas suportável ou parecido com alguém. Maybe next time… (José Emílio Rondeau, Bizz 93, abril de 1993)

Talvez um exemplo do que ela tinha de melhor e pior seja a seção a que o Marcus se referiu, a Porão, que em toda edição trazia duas bandas gringas e duas brasileiras ainda desconhecidas.

Na verdade, as gringas só eram desconhecidas porque não tínhamos acesso ao que se fazia lá fora. Mas até aí tudo bem, era esse o papel da revista em tempos de Telex. Da grande maioria das brasileiras, no entanto, nunca mais ouviríamos falar — porque aí era o negócio dos amigos, as canalhices a que me referi no texto original.

Eu fui um leitor assíduo da Bizz, já partir do número 1. É uma revista que ajuda a definir os meus anos 80. A última edição que comprei foi a de julho de 1989, quando ela mudou sua logomarca pela primeira vez: trazia Prince na capa e uma entrevista razoável com Paul McCartney. Mas eu já tinha deixado de comprá-la regularmente desde o ano anterior. A Bizz inicialmente me interessava porque me falava de coisas que eu não tinha ouvido, e nisso ela foi um guia cuja importância eu não posso esquecer; mas no fim dos anos 80 eu já tinha ouvido a música que ela cultuava, e não gostava dela.

A partir daí não sei mais nada sobre a revista. O documentário mencionado acima dá um resumo razoável sobre sua trajetória: a revista mudou de nome para Showbizz, decaiu, decaiu mais, deixou de ser publicada, voltou com o nome original. À medida que o rock ia perdendo espaço para outros gêneros, aparentemente ela se dirigia a um nicho cada vez menor e mais desinteressante, ignorando o resto da música que se fazia no mundo lá fora. Enquanto a Bizz olhava para porões em Manchester o país gestava uma revolução. Em Recife o mangue bit tomava forma, o tecnobrega se consolidava em Belém, e durante toda a sua existência a revista ignorou a evolução constante da música baiana, apenas para dar exemplos que conheço razoavelmente.

A internet jogaria a pá de cal sobre a Bizz, escancarando o seu papel de mero mensageiro para a colônia. Mas agora ninguém mais precisava de uma intermediária, a revista não tinha por que continuar existindo.

A geração formada pela Bizz parece trazer, ainda hoje, essas características. Você vai encontrar por aí muitos roqueiros decadentes lamentando o fim do ciclo roqueiro no país; dizendo que quando o sertanejo tomou conta das paradas no início dos anos 90 era resultado da crise estética da era Collor, ou então que o crescimento e enriquecimento da classe C jogou o padrão estético do brasileiro na latrina — como se aquelas bombas dos anos 80 fossem melhores. Mas se alguém olhar com um tico de atenção as paradas musicais dos anos 80, verá — especificamente nas paradas paulistas — a ascensão lenta e constante desse novo sertanejo, modernizado, maleável às influências musicais de seu tempo como qualquer outra. Enquanto o rock se esgotava em seu universo da classe média urbana, o sertanejo crescia oferecendo respostas musicais e líricas a um universo muito maior de brasileiros.

Disso eu sempre soube. Mas acho que faltava reconhecer que tudo isso, ao menos em parte, foi influenciado pela Bizz. Hoje ela pode ser lida neste site, que eu de vez em quando frequento quando bate alguma onda de saudosismo. Depois de velho, passei a gostar da revista de novo.

Saudades daquelas moças d’antanho

Isso foi há mais de cinco anos:

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Eu fiz isso logo depois. Infelizmente, na banca onde fui não havia desses livrinhos, havia mangás e revistinhas de super-heróis, uma infinidade deles. Então esqueci, que cá entre nós qualquer um tem coisas melhores para fazer com seu tempo do que ler “Júlia”, “Sabrina” ou “Bianca”.

Mas ontem fui comprar uma Tex e na mesma prateleira estavam uns três desses livrinhos. Não são mais Júlias, nem Biancas, nem mesmo são da velha, boa e finada Editora Abril.

O que comprei, de uma senhora chamada Lori Foster, se chama “Uma Amante Maravilhosa”, tradução mais apelativa para Treat Her Right. E é publicado pela Harlequin Books. Pelo visto cortaram os intermediários e agora os livros vêm direto da fonte.

A tradução do título já dá uma ideia das mudanças que esses 40 anos trouxeram. Mas não revela nem parte do que há de tenebroso nesses livros.

Agora como então, nomes são importantes. Essas moças se tremem inteiras de desejo por um Zack, Josh, Mick. Fiquei pensando que ninguém escreve romances para moças protagonizados por Genílson ou Vandson, mas vou creditar isso aos 23 anos que se passaram desde sua publicação original e à minha ignorância quanto a esse universo. Não é possível que nos dias de hoje não tenham feito um livro em que o objeto romântico da mocinha seja um pedreiro chamado Roberaldo, alto, forte, magnético, musculoso. Porque é justo esperar que em tempos identitários haja um pouco mais de diversidade.

O estilo é um pouco melhor do que o dos livrinhos antigos; ao menos nesse não há mais aqueles tantos pontos de exclamação. Mas a escritora é ruim, ruim de doer. Nesse ofício havia, deve haver ainda, artesãs competentes; não é o caso de Lori, que aliás tem nome de puta. Para piorar, a coitada ainda é sacaneada pela tradutora, de uma incompetência atroz. Tenho quase certeza de que ela apenas colocou o texto original no Google e corrigiu alguns poucos erros. Além de alguns erros crassos, ela me faz lembrar que o que realmente importa em um tradutor não é tanto o conhecimento da língua a ser traduzida, mas o domínio da língua para a qual se traduz. Por exemplo, ela se refere algumas vezes a beemotes. O problema é que behemoth é expressão comum na gringa, com sua tradição de leitura do Velho Testamento, mas virtualmente desconhecida aqui. Além disso, aqui e ali o protagonista fala: “Danação!”. Tento imaginar que espécie torpe de mulher consegue encharcar suas calcinhas por um homem que fala “Danação!”. Tento, mas não insisto muito porque pode ser que eu consiga. E eu não suportaria trauma tão grande.

O livro é de 2001, publicado aqui em 2014. De lá para cá decorreu quase um quarto de século, e esse espaço de tempo não viu tantas mudanças sociais, a serem refletidas nas páginas escritas por dona Lori. A emancipação sexual feminina é fenômeno bem antigo, já era naqueles anos 80; apenas não tinha chegado às páginas desses romances em um país que ainda tentava sair de uma ditadura e do fim da Censura Federal. E saliência já se fazia nas “Momentos Íntimos”.

Mas há uma diferença brutal:.agora talvez não dê mais para chamar esses livrinhos de “romances”, no sentido menor da palavra.

Porque aqui e agora o valor acariciado pelos personagens não é mais o amor, como era naqueles tempos em que se amarrava cachorro com linguiça e ainda se namorava no portão. Amor um caralho, eu quero é rosetar. O livro já começa com o nosso herói de pau duro — ou assim se imagina, já que ele é despertado no meio de um sonho erótico. Dali até o final tudo parece se resumir à vontade de todo mundo comer todo mundo, ou algo parecido.

É impressionante: os protagonistas do livro atual só pensam em putaria, o tempo todo. Ele olha para ela, sacanagem. Ela olha para ele, safadeza. O pudor que caracterizava os livrinhos dos anos 70 e 80, a ideia do desejo como uma construção psicológica um tiquinho mais complexa, tudo isso desapareceu completamente; e o mundo virou uma grande suruba, e diante disso me sinto um velho conservador e espantado.

Nem tudo são espinhos, no entanto. Dá para ver refletidas, mesmo em um livro tão ruim — ou, mais provavelmente, justamente por ele ser ruim —, algumas boas mudanças na sociedade. Mulheres, pelo visto, são mais plenas, ou ao menos têm como padrão um nível de plenitude e igualdade que não se via antes. Expressões como “galinha”, tão comuns 40, mesmo 30 anos atrás, não parecem mais fazer sentido. Isso é bom.

Mas algumas coisas não mudam, e um desses tabus monolíticos chega a ser curioso.

Algo que os livros dos anos 80 e este têm em comum é que as mulheres não fazem sexo ora, nem lá, nem cá. Elas não botam nada na boca. Tudo bem, é fácil entender a razão quando se pensa em feministas numa passeata dos anos 70 carregando faixas dizendo que “sexo é poder”. Mas estes são os anos 2020, e as moças de verdade postam sugestões do arco da velha em seus tiktoks e instagrams, e as alusões a bocas cheias são mais comuns que foto amorosa com o cônjuge que corneiam em segredo.

À primeira vista, isso parece ser um simples descompasso entre o livro e o seu tempo. Na verdade, é ainda pior. Muito pior.

Numa das cenas mais bizarras deste, ao receber sexo oral do homem que faz suas carnes tremerem, coisa que nunca tinham feito nela, nossa protagonista diz que isso parece pervertido.

Poxa. As moças dos livrinhos dos anos 80 eram virgens e defendiam com unhas e dentes sua honra, mas quando chegava a hora da putaria elas certamente não tinham essas frescuras. Há algum problema muito grave na psique desse mundo anglo-saxão, ou pelo menos na cabeça dessa mulher que escreve essas coisas e das leitoras que compram seus livros, e isso certamente me assusta mais que as mocinhas puras e puerilmente fortes que povoavam os livrinhos de antigamente.

Resta apenas procurar aqui algo que represente ao menos um rosto conhecido, uma ideia mais longeva. E então vem uma pequena surpresa. No fim das contas, essencialmente nada mudou. Independentes ou não, as heroínas deste livro ainda querem um homem forte, protetor, que seja um bom pai, e que na hora do aimeudeus continue tomando as rédeas e mandando na bodega. Talvez seja uma exigência do gênero, porque o único conflito dramático que posso enxergar entre uma moça moderna e um “macho desconstruído” é a possibilidade dele se apaixonar pelo namorado dela. O que sei é que os livrinhos d’outrora, no fim das contas, me parecem melhores. Talvez porque havia uma ingenuidade perdida, uma negação da realidade cotidiana, um resto de pudor. Posso estar sendo injusto e julgando todo um tempo de um gênero a partir de um livro só, mas desconfio que não. Ou talvez eu tenha ficado velho demais, e desconfio que sim. Não sei. O que importa é que, de repente, deu saudade das minhas amigas Júlia, Sabrina e Bianca.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar na tela a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte da Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, às vezes uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, na Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, que eram mais lentas e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.

Keeping Walt in Disney

Fui parar num canal do YouTube que traz um bocado dos filmes que “Disneylândia” — o programa de TV, não o parque — apresentou ao longo desses quase 70 anos.

O Keeping Walt in Disney, já a partir do título, mostra o apego à importância emocional que esses filmes tiveram nas vidas de milhares de crianças, entre as quais nunca tive vergonha de me incluir com saudosismo besta.

Não tem alguns que procuro há tempos, como The Boy Who Talked to Badgers ou A Country Coyote Goes to Hollywood. Mas tem Kit Carson and the Mountain Men; Barry of the Great St. Bernard, Fire on Kelly Mountain; Run, Cougar, Run; tem até filmes dos quais eu só tinha lembranças muito vagas, como Wild Burro of the West. Certamente há outros a que assisti mas do qual não lembro espontaneamente, e filmes dos quais não lembrarei nunca mais.

Ver esses filmes me lembra que houve um tempo em que eu torcia para que “Disneylândia”, em vez de filmes que à medida que eu crescia iam perdendo aos poucos seu interesse, exibisse os desenhos de que eu ouvia falar. As musas ouviram minhas preces e no início dos anos 80 os filmes deram lugar às centenas de desenhos em curta metragem que a Disney fez ao longo de quase 100 anos. Nunca me arrependi tanto de um desejo.

Sempre tive a impressão de que “Disneylândia” fez mais pelo ambientalismo do que esses militantes chatos que vivem dizendo que nós estamos invadindo a casa dos bichos. Vendo a lista de filmes disponíveis, a maior parte deles lidando com crianças e animais, essa impressão aumenta. Mas agora também penso que eles contribuíram muito para a formação de uma geração de pais e mães de pets, de pessoas que pensam que seus bichos são gente, mas que não pegam o cocô de seus cachorros na rua.

Passei os olhos sobre alguns dos títulos disponíveis. Ainda não tive coragem de assistir a nenhum. Procurando a data de estreia do programa, descobri que ele ainda existe e é apresentado pelo Disney+; mas para mim é outro bicho, não pode ser a mesma coisa. Ha um tempo para cada coisa, diz o Eclesiastes; “Disneylândia”, como o “Clube do Mickey”, é o tipo de programa que só se pode ver uma vez, quando se é criança e tudo é novidade e possível.

Mas às vezes é possível entrever esse outro tempo, e quase sempre vale a pena.