Chatô

Trechos do livro “Morte no Estuário”, de Hunald de Alencar, romance publicado em 1995 que conta com personagens reais e se passa na Aracaju dos tempos do golpe de 1964.

Chatô me chega da Gazeta, babando seu continental sem filtro, bebe do meu rum e diz: Alencarzinho foi preso e todo o pessoal do MEB. Fala e fala o quanto pode. A Gazeta vigiada. Seu Orlando está uma fera. Já levaram o Zé Rosa. Mais de trinta. Mais de quarenta, peça outro bacardi. Tem nego já sendo transportado para a Bahia, me dá um cigarro aí. Estou chateando, não? Pois se estiver, estou. Mas a culpa não é minha. Província udenista pra caralho! Obrigado, mano velho. Vou voltar lá pro jornal. Vou escrever o que não deixam publicar. Cuidado, poetinha. E se vai Chatô, noticioso e assustado, pois o que não pode sair nas páginas da Gazeta, aqui vem e é notícia. Some na noite, alto, os ombros meio curvos de tanto se debruçar catando na máquina cada letra mais exata por onde possa passar um rastro que seja do que seja proibido. Naquela noite, Chatô foi, ele mesmo, sua própria notícia.

(Pág. 67)

Sempre fumei muito pouco. Chatô fumava os dele e os meus. (…) Confiava na inteligência de Chatô, catando letras na velha Remington, papel jornal, espaço três, fita apagada, mesmo assim aflorando idéias naquela cabeça sobre os ombros curvos, a cada dia Chatô me parecendo mais alto. Parei no armazém do seu Vade. Deixei fiado mais uma média e uma carteira de cigarro — uma não, duas que hoje eu ia explorar a inteligência de Chatô.

(Pág 83)

Lá no jornal, seu temperamento [de Orlando Dantas] era uma mistura de pai e patrão a cobrar a disciplina, nem mesmo admitindo que um colega chamasse o outro pelo apelido:

— Chatô! Que Chatô, Ivan [Valença]! Carlos Alberto é o seu nome!

(Pág. 87)

Quanto tempo o tempo tem

Deixa eu tentar explicar o que tem sido esse último mês.

Sexta, dia 22, eu finalmente consegui arranjar tempo para fazer um anúncio urgente que tinha sido pedido (com insistência desgradável para um baiano como eu) desde o dia anterior.

Eu parei num balcão, pedi uma caneta emprestada à atendente, rabisquei o anúncio no verso de um panfleto, peguei o número em um celular, liguei do outro e ditei o coitado.

Crianças, não tentem fazer isso em casa. Essas coisas fazem um mal danado à saúde.

Espírito natalino pelos olhos da cara

Eu saindo da loja de brinquedos e a jovem senhora entrando, puxada pelo filho de seus cinco anos. E ela comenta com a amiga:

— Ai, meu Deus, isso vai sair o olho da minha cara…

E eu, vendo renas de narizes vermelhos e barbas brancas por todo lugar, consigo controlar a minha língua, essa língua malcriada, e não falei o que me veio imediatamente à mente, essa mente que é uma pocilga:

— Não reclame, minha senhora. Pior se fosse o olho do seu…

Ah, deixa para lá. Feliz Natal a todos.

Ramon

Sábado, dois de dezembro de 2006. Um sujeito se aproxima de mim, no Porto da Barra, e me pede um cigarro. Aquele que estou fumando é o último do último maço, e ele então pede um a minha mãe, ao meu lado.

Ele tem o cabelo pintado de louro, mas a água oxigenada foi passada já há algum tempo, e o louro está ficando escuro, quase ruivo. É um sujeito esquisito, os dentes em péssimo estado, e parece ter bebido e fumado tudo o que podia durante a longa noite de sexta-feira, e talvez um pouco mais. Não parece ter 20 anos, mas aparências enganam, quase sempre.

Ela olha para mim, já esquecida do que é ser baiana, e eu digo para dar o cigarro. Não se nega um cigarro, nem mesmo a um sujeito esquisito como aquele, nem mesmo a gente que parece estar sempre pedindo. Devemos todos seguir um código de ética rígido e cavalheiresco, e colaborar com os enfisemas uns dos outros.

— Valeu, coroa.

Ele acabou de fazer uma inimiga, pela insolência. Mas não liga, talvez nem perceba isso, e desaparece em meio à multidão que começa a se formar na praia.

Depois de um hippie que passou alguns bons minutos sentado diante de nós tentando nos vender uma mandala de arame, contando estar em Salvador apenas o tempo suficiente para conseguir dinheiro para voltar a Morro de São Paulo — mandala que, pela graça e suavidade com que o hippie conta suas histórias, até merecia ser comprada –, o sujeito do cabelo oxigenado e dos dentes estragados volta.

— Bróder, me arranje outro cigarro, a segunda.

— Porra, meu irmão, de novo?

— Que é isso, rei, você é bróder… É o último.

Eu acabo dando; tanta cara de pau merece ser premiada.

— Você mora aqui no Porto?

E assim, na sua mente ainda turva, toda e qualquer dúvida sobre eu ser um turista como a lourinha muito branca que desde ontem está numa cadeira ao lado com o filho que ainda mama, mas que hoje traz umas tranças mal-feitas provavelmente feitas no Pelourinho (se ela me perguntasse eu poderia recomendar uma moça, a Isabel, que faz tranças e tererês muito melhores, mas é lá no Alto do Coqueirinho) se esvanece. Por causa de um cigarro, porque.

Curioso é que na Bahia as pessoas não costumam ser tão tolas; já me perguntaram no Rio se eu falava português, e eu não tenho absolutamente nenhuma, nenhuma cara de gringo. Na cidade da Bahia elas simplesmente sabem, assim como os taxistas baianos no aeroporto nunca me perguntam se quero um táxi quando saio para fumar, ao contrário do que acontece no Galeão. Mas o sujeito parece que bebeu e fumou e cheirou o que podia, é o que eu acho, e então ele tem perdão.

É esse um segredo do baiano, tentar aplicar descaradamente em alguém para ver se cola; o outro segredo é o de simplesmente reclamar, tá achando que eu sou trouxa?; é como um código. Um turista se assustaria, ou simplesmente diria que não tem; o baiano tem menos paciência e reclama do descaramento, um descaramento que também costuma ser seu. Deixa ele achar que eu também sou baiano.

— Não, mais pra lá — e aponto para o norte.

— No Farol?

— Não, mais pra lá.

— Rio Vermelho?

— Não, mais pra lá — penso em parar a brincadeira em Lauro de Freitas, é longe o suficiente, mas ele não pergunta mais:

— Mas já morou aqui?

— Fui criado neste canto da praia.

— Massa, bróder.

Sorriso protocolar como resposta.

— Meu nome é Ramon. E o seu?

— Rafael.

— Valeu mesmo, rei. Qualquer coisa eu tô sempre por aqui. Precisando…

— Valeu.

E então ele vai aproveitar a sua praia enquanto o sol brilha, que hoje é sábado e só Deus sabe o que a noite fará dele. Mas não sei quem precisa mais de quem; pelo menos de cigarros eu sei que é ele.

Dali a pouco Ramon está brincando de bola com uns meninos por ali, provavelmente conhecidos naquele mesmo instante. Se faz amigos com muita facilidade no Porto da Barra. E o mais engraçado é que ele brinca como criança, talvez ainda mais desajeitado que elas, e suas pernas estão sempre apontando caminhos diferentes. Eu tiro algumas fotos. Fico com o sujeito na cabeça. Ramon é o baiano típico, mas é também atípico, e é isso o que me intriga nele. Ao mesmo tempo, sei que é por causa de pessoas como ele que aquele pessoal que ainda mora na Barra, inconformado com a decadência estrondosa e inevitável do bairro que há trinta anos parecia o Leblon mas hoje mal chega a Copacabana, evita ir para a melhor praia do mundo bem à sua frente para se enfiar nos confins de Guarajuba ou ainda além. A Barra é uma praia para ser freqüentada apenas durante os dias de semana, se você tem boa vontade.

Mas isso não é da minha conta. O Ramon pode não saber, mas eu sou turista. E tenho mais em que pensar. Nesse exato momento, minha filha está mergulhando do quebra-mar do Porto da Barra, como eu mergulhava quando tinha exatamente a sua idade, e eu tenho que tirar fotos. Penso apenas que o pobre do Simba não tinha máquina fotográfica na Pedra do Rei, e eu tenho mais sorte; e talvez também porque em vez de Scar eu tenho o Ramon por perto.

Republicado em 19 de julho de 2010

Historinhas edificantes como elas deviam ser contadas (I)

E os escribas e fariseus trouxeram a Ele uma mulher apanhada em adultério; e quando a puseram entre a multidão, disseram a Ele, Mestre, esta mulher foi apanhada em pleno adultério. Moisés nos ordenou na Lei que tais mulheres devem ser apedrejadas; mas o que dizes Vós?

Assim falaram eles tentando-o, para que pudessem acusá-lo. Mas Jesus se abaixou, e com o dedo escreveu no chão [como se não os ouvisse].

Então, quando eles continuaram a lhe perguntar, Ele se levantou, e disse a eles, Aquele que entre vós não estiver em pecado, que atire a primeira pedra.

E novamente Ele se abaixou, e escreveu no chão.

E aqueles que ouviram, condenados pela [sua própria] consciência, saíram um por um, começando pelos mais velhos, até o último: e Jesus foi deixado sozinho, com a mulher parada entre a multidão.

Quando Jesus se levantou, e não viu ninguém além da mulher, disse a ela, Mulher, onde estão aqueles que vos acusavam? Ninguém vos condenou?

Ela disse, Ninguém, Senhor. E Jesus disse a ela, Nem eu vos condeno; vai, e não tornai a pecar.

Mas em verdade, em verdade vos digo: e Schlomo, que era ateu e não tinha pecados porque pecado é especificamente um conceito de transgressão do código moral definido por uma religião, voltou até onde Jesus e a vagabunda estavam, e pegou uma pedra deste tamanho, e tacou nos cornos da vagabunda, e a vagabunda estrebuchou no chão, e morreu, e Jesus saiu murmurando “ateu filho da puta…”.

Republicado em 21 de julho de 2010

Por que estou orgulhoso hoje

Poucas vezes fiquei tão orgulhoso de um comentário deixado neste blog.

O Neil Ferreira é um dos meus ídolos. É, na minha opinião, talvez o maior redator publicitário que este país já viu. O Neil criou campanhas memoráveis, daquelas que as pessoas ainda lembram, mesmo sem saber que foi ele. O baixinho da Kaiser, por exemplo. Ler um anúncio seu é uma aula para qualquer redator, mas é principalmente uma prova de que uma atividade primária como é a propaganda pode dar ao mundo textos de altíssima qualidade.

Por tudo isso, eu tinha escrito, há algum tempo, que sentia falta de uma “Síndrome de Neil Ferreira” na publicidade atual (ia escrever moderna, mas podia parecer deboche). Falta de redatores que tenham prazer em escrever e gostem de um texto leve, sedutor, convincente; que traduzam com talento e graça um bom raciocínio de marketing. Que criem grandes campanhas, e não apenas anunciozinhos bonitinhos, quando muito. Eu sinto falta de campanhas brilhantes e, principalmente, memoráveis. O que provavelmente quer dizer que sinto falta de redatores que tenham orgulho em saber que a peça que criou está sendo elogiada por gente que ele não conhece.

Semana passada o Neil Ferreira deixou um comentário no blog que transcrevo aqui:

Um amigo leu seu comentário a meu respeito e deu seu endereço. Agradeço. Gosto de ler e de escrever quando tenho o que dizer. Sou fascinado pelas palavras. Sou um feliz free lance que conquistou o direito de escolher os clientes. Não trabalho com quem não sinta prazer de trabalhar comigo. Trabalho é como uma refeição, precisa ter “sustença”, mas precisa também dar prazer a quem o faz e a quem paga por ele. Assim está quase garantido o prazer do público alvo. Pelo que tenho visto na tv, não acho que os publicitários sintam-se felizes com o que estão fazendo. Não quero estar na pele de quem escreveu “Beba Fanta e fique bamboosha”. Nem de quem escreveu “Kuat sem nhé nhé nhé”. Mas como estamos no país que deu 60% de votos para o lulla, talvez eles estejam certos e eu errado. Sinceramente, neil ferreira

É bom saber que um ídolo seu leu o que você escreveu. E fico ainda mais orgulhoso por uma coincidência. Já faz algum tempo que penso em escrever um post sobre essas campanhas de refrigerantes — bamboocha, schrubbles, nhé nhé. São de uma estupidez alarmante. Escritos (ou traduzidos) por gente que não pensa. Eu não tomo mais Fanta porque tenho medo de ficar como eles dizem: bembrocha. São uma prova de que o mercado publicitário passa por uma fase de decadência horrorosa — uma fase que, aoi que tudo indica, está longe de passar.

E nessas horas eu viro tiete, mesmo. Fico até com vergonha de dizer que eu fui um dos 60% de brasileiros que votaram em Lula, e que devo ter ajudado a conseguir alguns milhares de votos em Sergipe para o sujeito.

Agora é esperar o Paul McCartney deixar um comentário aqui, e então eu fecho o blog, porque não haverá mais para onde ir.

Uma pessoa, um hospital e outra pessoa

E assim foi que acabei indo parar na urgência do hospital no domingo à noite.

No consultório, depois de confirmar o meu diagnóstico, o médico dá umas orientações gerais. Diz para eu reduzir o peso, mudar a dieta, fazer exercício, reduzir o stress. E aí já é pedir demais. Eu posso refazer tudo na minha vida. Posso perder peso e posso passar a fazer exercício, desses que se faz em academia. Mas stress, não. Não depende de mim. E a essa altura, eu já aprendi que sem stress eu não existo. Sem stress eu fico baiano. Aviso a ele que isso não será possível, que troco dois exercícios por um stress. Ele não discute, sabe que não vai adiantar. Insiste nos outros pontos, e eu concordo. Promessas feitas quando você está morrendo de dor não valem nada, mesmo.

Mas eu não penso nisso na hora. Minha cabeça está ocupada com outra coisa. Pela primeira vez na vida, eu vou tomar soro.

Em quase quatro décadas de vida, eu nunca tinha tomado soro. A não ser para acompanhar alguém, nunca tinha dormido em hospital. As vezes em que fui para um, tudo se resolvia com alguma costura, uma puxada nos ossos quebrados, receita de anti-histamínicos quando tive dengue.

Mas soro, não. Nunca.

Soro, na lembrança de infância que insistiu em permanecer neste velho, é como se fosse a condecoração por uma batalha vencida com muito sacrifício. É um evento especial. Alguém, pela minha lógica infantil, deveria estar muito doente para tomar soro. Soro seria um acontecimento raro na vida de uma pessoa, um momento especial, quase épico.

Por isso chego na enfermaria alegre, quase leve. Vejo as camas vazias e pergunto se todo mundo que estava ali já morr — eu tenho que interromper porque na cama à direita da entrada está uma senhora deitada com cara de aimeudeus; uma senhora mais velha se senta à sua cabeceira. Vai que ela está para morrer, mesmo; eu jamais me perdoaria por essa gafe. Eu posso ser um puto, mas respeito futuros defuntos.

Uma cama é separada de todas as outras por divisórias, e não por biombos retráteis. É para lá que me encaminho, feliz, enquanto pergunto à enfermeira se posso deitar nela.

Ela hesita:

— Olha, aquela cama é para os pacientes que precisam ficar em isolamento…

Dou meia-volta imediatamente.

— É, vou ficar por aqui, mesmo.

Deito na cama e espero. Ela não é exatamente confortável. Peço um travesseiro à enfermeira. Faço o meu melhor sorriso — aquele que diz “olha como eu sou bonzinho e eu quero uma coisa e sei que você vai fazer para mim porque se sentiria muito mal me se me decepcionasse”. Sempre dá certo.

— A gente não tem travesseiro na enfermaria…

Quase sempre.

— Mas posso te conseguir um cobertor.

Certo, vamos declarar isso um empate.

Ela traz o cobertor e me ajuda a tirar o plástico. Eu estou tão contente que esqueço mesmo de fazer o que sempre faço em clínicas e hospitais: olhar os peitos da enfermeira para avaliar o material. Enfermeiras são sexies. Elas cuidam da gente. Enfermeiras são o contrário de policiais; aquelas seduzem pela autoridade que representam; estas, por uma delicadeza presumida — que, para ser sincero, eu raramente vejo em enfermeiras cansadas do seu plantão. (Esse julgamento sobre autoridade vale para policiais militares, apenas. Guardas municipais não são sexies. Elas usam cacetetes. Podem ter idéias esquisitas. PMs são mais confiáveis.)

Depois que meu corpo é massacrado por agulhas, às quais resisto com o sorriso beatífico de quem vai tomar soro pela primeira vez na vida, a enfermeira finalmente injeta o tubo na minha mão.

Pronto. Ali estou eu, deitado na cama de hospital, tendo um cobertor por travesseiro, olhando para a embalagem de soro pendurada ao meu lado. É quando lembro que um momento histórico como esse deve ser imortalizado em foto. Peço para pegarem a máquina, mas então lembro que deixei a mochila em casa. Vou ter que me virar com o celular.

A moça que foi comigo tira algumas fotos minhas deitado na cama, mas não é suficiente. Eu quero os detalhes. E ali fico eu, me contorcendo para pegar um ângulo decente. O soro. A agulha envolta por esparadrapo. É disso que vou lembrar.

Imagino que a senhora da cama próxima — aquela da cara de aimeudeus — não se sinta à vontade com essa alegria intra-hospitalar.

Um sujeito entra na enfermaria. Deve ter por volta dos 30 anos. Anda rápido, sua muito, ofega, traz um braço dobrado nas costas. Imagino que tenha quebrado o braço, por isso a posição estranha. Volto a olhar para a senhora ao meu lado. Um homem que provavelmente é seu marido está sentado ao pé da cama agora, de cabeça baixa. Pela posição dele eu julgaria que a mulher está mesmo batendo as botas, mas agora ela está sentada, e a cara agora é de ex-sofredora. Melhor assim.

Uma amiga cirurgiã entra na enfermaria. Me vê e se surpreende. Imagino que ela pense que estou tomando glicose, então vou logo avisando o que é. Apertamos as mãos; em outra situação eu daria o beijinho de praxe, mas ali não parece ser um ambiente adequado para isso. Aperto de mão. Prefiro nem elogiar o seu novo corte de cabelo. Não parece adequado, não ali. Ela checa o soro e o remédio que está dentro dele, está tudo bem.

O rapaz que passou pouco enfermaria adentro sai e vai para o quarto de isolamento. O mesmo braço dobrado atrás das costas, o mesmo suor abundante, o mesmo ofegar.

Mas agora ele grita de dor.

São gritos fortes — mas contidos, sufocados, guturais. Assustam mais que gritos normais porque são o contrário do exagero. São o sintoma de muita dor que ele tenta, em vão controlar.

Ele também se debate. Da tapas na parede, ou na cama. Eu não sei, porque não olho. Apenas ouço, e não consigo evitar. O soro está acabando e eu já estou sentado na cama. A moça que está comigo olha para o quarto onde o homem de 30 anos se contorce e grita e se debate de dor, e comenta baixinho: “Deve ser cálculo renal…”

Eu não tenho coragem de olhar. Não quero saber. Espero impaciente a enfermeira. Ela demora e digo que vou tirar o soro sozinho, se não vierem logo. Eu quero ir embora dali, só isso. Não tem mais graça.

Uma enfermeira vem e tira a agulha. Eu saio andando rápido — tão rápido que esqueço a chave do carro na cama. A enfermeira me avisa e me entrega. É bom que ela tenha visto, porque se eu notasse lá fora eu não voltaria para pegar, pediria a alguém, até iria andando para casa.

Quando eu encontrar a minha amiga eu vou perguntar como ela agüenta aquilo. Não me refiro a cirurgias, ou a ossos quebrados, ou a cortes que precisam ser suturados. Me refiro aos gritos de dor abafados e aos tapas na cama. Mas não não sei por quê, eu já sei a resposta: “A gente se acostuma.” Talvez.

Na sala de espera onde vou pegar a minha carteira do plano de saúde a mulher do homem lá dentro gritando de dor está sentada, esperando. Traz a filha sobre suas pernas, ela deve estar aprendendo a ficar em pé. A mulher do homem lá dentro gritando de dor fala, entre irritada e preocupada: “Ele sabe que não pode fumar…” A moça que está comigo brinca rapidinho com a menina, e ela sorri, um sorriso bonito de bebê, alheio a tudo, que não sabe que o seu pai está lá dentro, gritando de dor.