Por que o Brasil não vai ganhar a Copa

Há uns dois anos, falando sobre minhas Copas do Mundo, eu disse que quando a Copa de 2006 estivesse mais próxima eu dava meu palpite. Agora cumpro a promessa.

Eu não acho que o Brasil vá ganhar a Copa.

Paradoxalmente, este ano o Brasil tem, disparado, o melhor time; esta é a melhor seleção que enviamos em muito tempo. Todas as outras tiveram defeitos graves: a de 70 não tinha defesa, à de 82 faltava um bom centro-avante, as de 86 e 90 eram uma mistura indigesta de velhos e jogadores de segunda, em 1994 não havia um meio de campo, a de 98 era um time sem coesão e a de 2002 era o time de Tinga e Léo Costa.

Mas agora o time é brilhante: os Ronaldos, Kaká, Adriano, um meio de campo que pode ser excelente se tirarem Emerson e colocarem Juninho Pernambucano, uma defesa confiável. Temos até um substituto à altura (na minha opinião, muito melhor) para Cafu, e poderemos ver uma lateral direita com brilho, o que não acontece desde Jorginho.

Por outro lado as outras equipes, apesar do oba-oba de sempre da imprensa esportiva, não estão à altura da Seleção Brasileira. Falem o que quiserem das seleções européias, elas são sempre inferiores aos seus campeonatos nacionais, por causa da nossa quinta coluna. Basta ver os times que enfrentaram para se classificar. A única seleção respeitável, de verdade, é a Inglaterra: só pode ser deboche falar do imenso progresso da Itália, quando ela se classificou graças a uma Letônia ou Estônia, sei lá. Que se fale da força européia e se faça julgamentos a partir da Eurocopa: a verdade é que quando seus adversários são os sul-americanos, a história é outra.

Quanto a esses, só a Argentina deve ser levada em consideração, e no momento ela é bem inferior ao Brasil. Quanto aos africanos, bem… Minha teoria sobre o futebol brasileiro é freyreana: somos os melhores porque combinamos o negro e o branco. Os africanos, tadinhos, só têm o negro — e então é aquela coisa de jogar ofensivamente, bonito, correr sem parar e levar cacete de uma equipe mais densa nas oitavas-de-final. Eles são a Colômbia de lá — time em que, para meu orgulho, nunca acreditei.

O problema é que essa festa não é nossa.

Se a Copa fosse em pontos corridos — em 20 jogos, digamos — ninguém conseguiria tirá-la do Brasil. Mas Copas do Mundo são bichos caprichosos. São sete jogos, e pode-se perder apenas um dos três primeiros. Numa Copa, tudo pode acontecer; é essa a maravilha do esporte.

A Copa da Alemanha foi montada para fazer a festa européia. O Brasil teve três chances seguidas, recentemente; agora é a vez deles. Basta ver como foram montados os grupos. Não é para o Brasil ganhar.

Obviamente, nada disso é definitivo. O Brasil pode ganhar essa Copa, e é bobagem negar que é o favorito por muitas léguas de distância. Se eu fosse apostar meu dinheiro, apostaria na Seleção Brasileira: quando se diz que tudo pode acontecer, isso também vale a nosso favor. Mas é essa sensação danada de que essa festa não foi montada para a gente que me faz ter pouca fé no hexacampeonato. Se formos campeões, será contra a tal conspiração do universo de que fala Paulo Coelho.

Mas em julho, claro, eu vou mudar de opinião. Eu, que não vejo mais futebol para não correr o risco de assistir ao jogo fatídico em que o Flamengo finalmente será rebaixado, vou sentar diante da TV e, depois das primeiras vitórias, nada me tirará a certeza de o hexa virá. Vou ver todos os jogos em casa, porque sempre que vi fora nós perdemos. Nas quartas-de-final, vou tomar duas garrafas de beaujolais, porque foi assim que ajudei o Brasil a vencer a Holanda em 94. Se houver pênaltis, eu não vou assistir, porque assisti em 86 e deu no que deu. E vou acreditar piamente que a taça do mundo é nossa, que com brasileiro não há quem possa, porque somos 185 milhões em ação.

Superman

Ano passado falaram tanto de Batman Begins, um filme medíocre beneficiado pela comparação com os filmes anteriores do Homem Morcego; no ano anterior foi a vez de “Homem Aranha 2”, muito melhor.

Nos dois casos, enquanto teciam loas hiperbólicas aos novos filmes, as pessoas esqueceram do que talvez seja o melhor filme de super-herói já feito: Superman.

Para começar, Superman é o filme que deu origem a tudo isso. Já tinha havido tentativas anteriores de transferir o mundo dos quadrinhos para as telas de TV ou do cinema. Mas foi Superman quem criou e definiu o gênero como ele é hoje. Só foi possível, claro, porque antes veio Star Wars; mas pertence, definitivamente, a outra linhagem.

Com Superman, um nicho pseudo-literário criado no século XX — as histórias em quadrinhos de super-herói — finalmente teve um tratamento à altura. O resultado foi um sucesso estrondoso, a consolidação de um gênero cinematográfico e a paixão instantânea por um super-herói que há muito tempo já dava sinais de esgotamento.

O que faz de Superman um filme melhor que praticamente todos os outros que o seguiram é, principalmente, o equilíbrio entre a narrativa dramática e as cenas de ação. Um dos méritos de “Homem-Aranha 2” é a velocidade, a ação constante, o corre-corre. Em Superman há um universo mais amplo. Uma das principais diferenças entre a DC e a Marvel, respectivamente criadoras do Superman e do Homem-Aranha, sempre foi a ênfase desta na vida pessoal de seus heróis. Foi a grande revolução introduzida por Stan Lee. Mas, curiosamente, se em “Homem-Aranha” essa razão é diminuída, no máximo mantida, em Superman o enfoque é aumentado consideravelmente. É algo que jamais se repetiria novamente: o filme é superior aos quadrinhos que lhe deram origem.

Por exemplo, não dá para comparar o elemento romântico de “Homem-Aranha”, Batman Begins e Superman. A vampirinha Kirsten Dunst poderia ser qualquer coisa, menos Mary Jane Watson; Katie Holmes quase faz Bruce Wayne ir para a cadeia por abuso de incapacitado mental. Mas em Superman, na cena em que ele leva Lois Lane literalmente aos céus, há um momento único de lirismo neste tipo de filme.

Em “Homem-Aranha”, em nenhum momento a história de amor entre Peter Parker e Mary Jane convence. É um elemento acessório no filme. Mary Jane poderia ser uma vaquinha malhada e não faria a menor diferença. Mas a história de amor entre Clark Kent e Lois Lane, florescente em Superman e concretizado e perdido em Superman II, é verdadeira e envolvente. É por Lois Lane que Superman faz um mundo voltar atrás. Se isso não é amor, eu não sei o que é.

Mas se nenhum desses argumentos convence, resta um, talvez o mais forte deles: Christopher Reeve. Tobey McGuire é um bom Homem-Aranha, Christian Bale não faz feio como o Batman. Mas Reeve é o modelo a ser seguido, porque mais que atender ao que esperamos de alguém interpretando um super-herói que já conhecemos, como faz McGuire, Christopher Reeve superou essas expectativas. Nos ofereceu algo melhor que o original, e isso é muito, muito raro. Eu, como milhões de crianças nos dois últimos anos da década de 70, queria ser Christopher Reeve.

Quase 30 anos depois, é surpreendente ver como Superman envelheceu bem. Seus efeitos especiais não fazem má figura, o senso de humor (outra vantagem em relação aos quadrinhos) lhe dá uma leveza que o deixou à superfície durante esse tempo. A nova versão que estréia esse ano, por tudo isso, tem um destino inglório pela frente. Estréia depois que Frank Miller destruiu para sempre o Superman ao lhe chamar de escoteiro e cachorrinho do presidente — como um Joseph Nye Welch destroçando Joseph McCarthy diante das câmeras, ao lhe perguntar se não lhe restara nenhuma decência. Ao contrário de Batman Begins, que venceu fácil quatro pequenas tragédias, a nova versão do Superman terá a seu favor apenas a boa verba de marketing de sempre. Porque vai ter que enfrentar o filme definitivo sobre o primeiro super-herói, um filme que se sustenta por seus próprios méritos, e Brandon Routh vai empreender a missão impossível de nos fazer esquecer que Christopher Reeve é o verdadeiro Superman.

Prestação de contas

Há tantas coisas de que, se não me arrependo, certamente não faria de novo: ficar pendurado no capô de um Maverick a 100 por hora em um carnaval, mandar gente demais à merda, mergulhar de lugares altos demais, caminhar sozinho de madrugada pela Saúde, não ter dito “não” mais vezes, estar ao lado de uma amiga prestes a jogar um coquetel molotov na polícia, ser grosso com umas pessoas e não ser com outras, viajar de Aracaju a Petrópolis com 500 cruzados — equivalentes a 20 coca-colas –, namorar quem não devia, não namorar quem devia, pegar um táxi no aeroporto de Veneza, dormir ao relento na entrada de Aracaju com a bunda para baixo por medo dos travestis que rondavam o lugar, montar uma égua chucra e ser jogado, humilhado, a alguns metros de distância, ser expulso de bares por comportamento impróprio, entrar no fosso dos jacarés, acordar sem saber onde estava, explicar a uma militante da UJS o trotskismo na visão do PCdoB em um ônibus cheio de professores paulistas trotskistas da Apeoesp, não ter feito a campanha de 1998, fazer um strip-tease coletivo no Cine Palace durante um filme dos Trapalhões, sair correndo do bar porque o sujeito que estava com aquela moça tinha um revólver na mão, vandalizar todo o condomínio com requintes pirotécnicos, mandar o sujeito que me assaltou tomar no olho do cu; e no entanto, à medida que o tempo vai passando e o corpo não quer mais que um sofá confortável com suco de mangaba e uma ruga fica cada vez mais tempo entre as sobrancelhas, isso é tudo o que sobra, porque de todo o resto eu esqueci, as coisas de que me arrependo e as que faria de novo, as coisas que deveria ter feito e fiz, e nenhuma delas me faz sorrir, hoje.

Mais uns comentários sobre o show dos Stones (e do U2)

O show do U2 ajudou a colocar o dos Stones em outra perspectiva.

Lennon dizia que os Beatles eram uma pequena grande banda. Queria dizer que mesmo no auge da fama, da influência e da bajulação eles ainda eram apenas quatro rapazes que se juntavam para fazer grande música.

Os Stones não são uma pequena grande banda. Há muito tempo, na verdade. São uma empresa, mas são também deuses que de vez em quando aparecem diante de seus fãs.

O show dos Stones não foi um show de rock. Foi um momento de veneração. Ali estavam devotos em êxtase diante de seus deuses. A distância dos Stones em relação ao seu público é um indício disso. Mas é assim que tem que ser.

Nunca fui fã do U2 e, desde o Achtung Baby, eu sequer me dou ao trabalho de ouvi-los. Mas eles fizeram um grande show. Para começar, ainda são uma banda de verdade — como o selinho de Bono em Adam Clayton mostra. Ainda diz respeito a fazer música. Os Stones transcenderam tudo isso há muito tempo.

Não dá para comparar e um outro. Mas no Morumbi houve um show de rock de verdade, com público de verdade, de uma pequena grande banda.

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Ver Adam Clayton com cabelos grisalhos me lembra que o U2 é uma banda com 25 anos de estrada e que os anos 80 foram há 20 anos. Mau.

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O segundo melhor momento do show: Bono vem com aquela ladainha demagógica e terceiro-mundista de sempre. One world, etc. As bandeiras se sucedem no videowall. “Mérrico!”, anuncia ele. Aplausos meia-boca. “Tchile!” Aplausos meia-boca. “Arrentina!” E então uma vaia completa, monumental, para a surpresa do mundo preto e branco de Bono.

Mostramos aos gringos. Agora eles sabem que o buraco do Cone Sul é mais embaixo, ali embaixo das fronteiras do Rio Grande. Nós somos pobres, mas somos limpinhos.

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Certo, The Edge é um bom guitarrista. Mas por que o sujeito se recusa a tocar duas canções com a mesma guitarra? Gibsons Les Paul e Explorer, Riockenbackers 12 e 6 cordas, Fenders Strato e Telecaster; até uma Epiphone Casino o sujeito arranjou. Foi um desfile de virtualmente todas as guitarras decentes deste planeta. Sem razão nenhuma: todas soavam exatamente iguais.

Enquanto isso, Keith Richards (que parece ter praticamente abandonado a sua Telecaster) trocou pouquíssimas vezes de guitarras. E todas com o seu som, porque a canção exigia. É a diferença entre deuses e meros mortais.

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Nos Stones a música é toda feita no palco. Estão ali o naipe de metais, o tecladista, o baixista, os backing vocals, elementos estranhos à banda mas necessários para o show.

No U2 há algo falso. Quem afinal toca aqueles sintetizadores que se ouve ao fundo?

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Mas a verdadeira estrela do show foi a Katilce. Ela começou mal, rebolando em excesso e parecendo a Gretchen fazendo o Van Damme passar vergonha. Mas não demorou a se adequar ao papel. E foi perfeita, a moça. Desempenhou o seu papel de fã corretamente.

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Não li a matéria, só a chamada: alguém disse que os Stones eram “o que Lennon queria que os Beatles fossem”. Idiotice maior só a do sujeito que, no site d’ O Globo, chamou Ron Wood de baixista dos Stones. Na verdade, Lennon não levava os Stones muito a sério: sempre disse que eles copiavam tudo o que os Beatles faziam, com seis meses de atraso; e no começo dos anos 70 já ridicularizava os requebros de Jagger, e sempre lembrava que os Stones precisaram de uma música de Lennon & McCartney para finalmente fazer sucesso. Além disso ele sempre soube que a imagem de meninos maus dos Stones, criada por um antigo assistente de Brian Epstein, era tão falsa quanto a de bons meninos dos Beatles.

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Logo no começo do show do U2 eu percebi que algo havia mudado. Que já não se acendiam isqueiros como nos bons anos 60. Que se acendiam displays de celular. Perto do final, com a nova “cerimônia da luzinha de celular”, eu vi que não tinha sido o primeiro a perceber isso. Algo mudou, mesmo. É mais útil, certamente, que acender um isqueiro; mas, convenhamos, é um pouco menos lírico.

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O U2 inventou o videowall em portunhol.

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Quando Bono Vox coloca aquele quepe de SS, ou seja lá o que for, parece um exilado do Village People. O resultado é ainda pior que a bunda seca meneante de Mick Jagger.

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Essa é uma pergunta: no trechinho de Norwegian Wood que tocou, Bono misturou a melodia da canção a outra. O resultado não foi dos piores. Eu não consegui lembrar da melodia, embora tenha ficado com a impressão de ser algo dos anos 60. Alguém sabe qual foi?

Por que a cidade da Bahia não tem igual

Foi a Cipy quem me mandou esse poema de Miguezim da Princesa.

Fala sobre o caso do padre Pinto, que soltou a franga e virou notícia nacional há algumas semanas. E é fantástico.

Padre Pinto, a sensação da Bahia
Disse Octavio Mangabeira,
Coberto de ironia:
Pense num só absurdo,
Hipótese que não se cria,
E vai achar numa esquina
Da Cidade da Bahia.
A Bahia tem dendê,
Xinxim e acarajé,
Carnaval todos os dias,
Samba-de-roda e axé,
Tem padre que reza missa
Com trajes de candomblé.
Eu, quando vi Padre Pinto
Sair na televisão,
Me lembrei de um ditado:
Quer pegar papai, zoião!
O santo baixou no homem,
Foi a maior confusão.
Ele revirava os olhos
Com um jeito desbundado.
Dona Terezinha disse:
– Esse padre tá pegado.
Luiz Mott comentou:
– Olha o novo associado!
O caboco Chupa-peito
Quis baixar, ele não quis.
– Sou bezerro desmamado –
Blasfemou o infeliz.
– Eu quero é botar um piercing
Bem na ponta do nariz.
– Eu quero beijar Caetano –
Disse o padre no altar.
– Nesse clima da Bahia,
Eu só penso em rosetar.
Pode baixar, Pomba-Gira,
Que hoje eu viro o borná!
O arcebispo retou,
Tirou Pinto da Lapinha,
Mandou pra Itaparica
Pra ver se entrava na linha.
Pinto disse: – Hoje eu depeno
O sobrecu da galinha.
Voltou para Salvador,
Fez uma manifestação,
Chamou ACM Neto
Pra ele lhe dar uma mão.
Grampinho só não foi com medo
De perder a eleição.
Padre Pinto tá virado,
Recorreu da decisão
Tomada pelo arcebispo
De lhe afastar da missão
E vai ser avaliado
Pela sua Congregação.
Para Pinto só o Papa
Pode tirar sua batina.
Que mal faz sua veia artística
Com passos de bailarina?
Abaixo a hipocrisia
Em nome da fé divina.
Abram as portas da Igreja
E deixem o padre dançar.
A dança alegra o espírito,
Como o ato de rezar
Pousa a paz no fundo d’alma,
Raio do Céu a iluminar.
O povo quer Padre Pinto
Para fazer o sermão,
Mostrar que em solo baiano
Preconceito não há não:
De acarajé se faz hóstia,
Pois é tudo o mesmo pão.
Viva o homem que assume
Sua real condição
Padre Pinto se assumiu
Pôs o armário no chão
E já virou na Bahia
A sensação do Verão.

Dois ou três comentários sobre o show dos Stones

Visto pela TV, é claro.

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Alguém bem que podia fazer a caridade de avisar a Jagger que, quando ele rebola aquela sua bunda seca, o resultado não é bonito.

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É impressão minha ou o único que ainda se diverte ali é Ron Wood?

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Os velhinhos destruíram Get Off Of My Cloud. Destruíram. Pareciam uma banda cover de segunda que tinha aprendido a canção alguns momentos antes. A princípio pensei que é nisso que dá tocar a mesma canção por 40 anos; mas aí lembrei de Satisfaction. E eles tocaram melhor canções difíceis de serem tocadas ao vivo, como You Can’t Always Get What You Want. Não tem explicação.

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É um prazer ver Bobby Keys ainda tocando. Eu jurava que aquele Stone honorário (o outro é Chuck Leavell, o tecladista) já tinha batido as botas. Os anos 70 não acabaram.

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Eu não deixo de ficar espantado cada vez que vejo Keith Richards. Agora eu já sei por que a heroína não o matou. Ele já estava morto. Keith Richards é uma múmia, sempre foi, a gente é que não percebeu. Só não entendo por que o pessoal do combate às drogas não o utiliza em uma campanha. Até já imaginei o cartaz a ser pregado nas escolas. Uma foto dele, e o título: “A heroína mata. E quando não mata, deixa você assim.”

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Conclusão lógica vendo o estado de Mick Jagger e o de Keith Richards: cocaína faz bem. Heroína não faz bem.

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O único sorriso dado por Charlie Watts foi no final de Satisfaction. Como quem diz: “Oba, esta merda já está acabando.”

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A moça ao meu lado:

— Essa Luciana Gimenez é uma valente, pra deitar com esse cacareco.

— Que nada. Valente é quem dá pruns pés-rapados sem um puto no bolso. Como eu.

A verdade dói.

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Mas a verdade é que os maus velhinhos dão um show de verdade, e uma aula de profissionalismo. Mick Jagger tem o direito adquirido de enrolar durante um show, mas isso é algo que nem parece passar por sua cabeça.

É basicamente o show de sempre: as músicas novas são via de regra ruins, as antigas são invariavelmente boas. Os backing vocals eram fracos. Jagger e Richards parecem evitar até mesmo olhar um para o outro. A impressão que se tem — a julgar por depoimentos de quem foi aos shows dos dois e por DVDs e transmissões ao vivo — é a de que um show da nova turnê de McCartney é mais interessante. Mas os Stones ainda são os Stones. Se bem que, olhando para o rosto mumificado de Richards, a cara de aidético chapadão de Ron Wood e a expressão de Charlie “eu – tive – hepatite – e – agora – vivo – cansado” Watts, não serão por muito tempo.

Isabela, Kieslowski, Caã e um pequeno crime

O By Isabela tem um pedido a fazer sobre os filmes de Kieslowski.

Aproveitem e conheçam o blog da moça, cujos posts sobre o sertão sergipano são uma das boas coisas sobre Sergipe nesta internet sem porteira.

Um dos outros posts levanta algumas semelhanças entre o pintor sergipano Caã e Van Gogh.

Caã é filho da maior lenda das artes plásticas sergipanas, J. Inácio, uma das figuras mais fantásticas que eu já conheci. É sobrinho também de padre Pedro, outra figura fantástica e que tinha de angelical o que J. Inácio tem de dionisíaco. En passant, eu acho Caã, apesar da influência nítida do pai, um pintor muito mais completo.

O post da Isabela me lembra que há um quadro do Caã que faz parte dos meus sonhos de consumo. Como o quadro tem dono, e o dono não pretende vender, porque infelizmente vê nele a mesma beleza que eu vejo, este post é também um aviso ao Cauê para não dar vacilo e não me deixar mais entrar na sua casa, porque se eu tiver uma chance eu roubo.

Manifesto em Defesa das Baratas ou A Barata é Nossa Amiga

Todos os seres vivos são iguais perante o Criador. Todos temos o direito de viver, e isso inclui até astrólogos de Maria e pseudo-feministas de caixas de comentários.

É em estrita observância a esses direitos universais, e ao reconhecimento de uma nova moral ecológica, que anunciamos aqui a fundação da ARPAB – Associação Rafaeliana de Proteção às Baratas.

As baratas estão neste planeta desde milhões de anos antes de nós. Estarão aqui depois que o último homem der seu último suspiro em meio a uma nuvem radioativa. Este é o seu mundo, um mundo em que somos apenas hóspedes temporários. Nós não temos, em nossa nova consciência ecológica, o direito de usurpá-lo de suas donas legítimas.

Devemos, antes de qualquer coisa, reconhecer sua superioridade absoluta em relação a nós. Quantos milhões de baratas são mortas todos os dias? Matam-se mais baratas em um dia do que rinocerontes em toda a História. E no entanto elas sobrevivem graças à sua tenacidade, enquanto nós, seres conscientes, agora lutamos para preservar os rinocerontes.

Devemos declarar guerra às baratas porque elas trazem doenças? Hipocrisia desses humanos inconseqüentes. Acaso não trouxemos nós tantas doenças ao Novo Mundo, acaso não extinguimos populações inteiras de silvícolas bonitinhos, e tantas índias ecologicamente conscientes não deixaram de dar de mamar a cachorrinhos inocentes? E não pensamos em nos suicidar coletivamente como lemingues para expiar um pecado que todos nós carregamos em nossas almas. Em verdade, em verdade a culpa é nossa, que em vez de nos adaptarmos à convivência pacífica nos dedicamos a combatê-las com ódio irracional.

Como podemos erguer nossas vozes que se pretendem civilizadas em defesa do tratamento ético dos animais, enquanto tratamos nossas irmãs blatáricas de maneira vil e covarde? Baratas têm sentimentos como as chinchilas, têm instintos como as focas, querem viver como a Susan Hayward. E no entanto as assassinamos aos milhões todos os dias, e não fosse a sua superioridade biológica acabaríamos responsáveis por um grande desastre ambiental, interrompendo a cadeia alimentar.

Mas desastre ambiental não é o ponto fundamental, aqui, porque esse é um conceito antropocêntrico e precisamos abdicar dessa arrogância deletéria, essa coisa de nos acharmos os reis da Criação e da cocada preta. O que realmente importa é o respeito à mãe Gaia, é a consciência telúrica de um equilíbrio cósmico. Há que se respeitar o direito das baratas à vida. É inconcebível que não sintamos a dor da pobre baratinha atingida à traição por um jato de Baygon, que nosso coração não se confranja enquanto ela, como um monge tibetano em chamas, corre sem direção em agonia e dor inimagináveis, chamando pela mamãe barata antes de morrer com as perninhas tremelicantes para cima. Que monstro é capaz de cometer tamanha iniqüidade sem derramar uma lágrima furtiva pelo trágico destino de nossa irmã? Como esses assassinos conseguem dormir à noite com a mancha do genocídio em suas mãos?

Uma barata tem o mesmo direito à vida que um leão, que uma vaca, que o Afanásio Jazadji.

A ARPAB vai se dedicar a campanhas educativas pela tolerância entre homens e baratas; à defesa da ilegalidade de drogas pesadas como Detefon, SBP e Rodox; à censura e banimento de filmes depreciativos e preconceituosos como Men in Black. Vamos fazer o Viva Rio abraçar o rio Maracanã e os tantos terrenos baldios espalhados pela cidade.

A ARPAB se dedicará também a reformar o nosso vocabulário. Nossos antecessores, tão íntegros e inteligentes como nós, mostraram que isso é possível, e agora anão é verticalmente prejudicado e puta é trabalhadora do sexo; vamos estender agora tal maravilha ao mundo das baratas — e vamos além, porque se anões continuam pequenos e putas continuam batendo calçada apesar dos nomes que lhes damos, nunca mais se ouvirá a expressão “sangue de barata”. Pois como podem associar covardia às baratas, esses animais valorosos que todos os dias se arriscam em incursões à casa de seus inimigos, e desafiando a morte e o perigo comem de sua comida? Baratas são sinônimo de coragem, e nossa ação em defesa do politicamente correto restabelecerá a verdade universal.

Aplaudamos, portanto, a chegada da nova consciência da Era de Aquário. Reconheçamos, finalmente, que a partir do momento em que julgamos errado criar chinchilas por suas peles, também se torna errado matar uma pobre barata que tem filhos para criar e um importante papel a cumprir na natureza. Nós, humanos, não somos melhores ou superiores a qualquer animal. É fundamental deixarmos de lado a hipocrisia e a conveniência, e adotarmos uma postura moral digna e, principalmente, coerente.

Um viva às baratas que merecem o nosso amor.

Ecologia e hipocrisia

Dia desses, assistindo a um programa sobre criação comercial de chinchilas na TV Senai, apareceu uma senhora de uma dessas ONGs dizendo que suas objeções à atividade, cujo fim é a produção de peles, eram morais. Acrescentou que era diferente da criação de gado, à qual implicitamente aferia um nihil obstat.

E aí eu me confundi. Venho tentando desde então, mas ainda não consegui ver a diferença moral entre matar uma vaca ou matar uma chinchila. Ambos são seres vivos e nenhum deles gostaria de morrer.

É compreensível e louvável que protestem contra o assassinato de filhotes de foca ou baleias. É perfeitamente justificável a consciência da necessidade de respeito ao equilíbrio ecológico e à vida selvagem; nem tanto pelos animais ou plantas, mas pela sobrevivência humana. Mas quando se trata de criação comercial, uma atividade iniciada e controlada pelo homem, há mesmo alguma diferença entre vacas, chinchilas e jacarés? Eu não consigo ver nenhuma, além do fato de que chinchilas são bichinhos fofinhos e vacas têm olhares bovinos e babam — o que, numa interpretação freudiana bem liberal, fornece a justificativa para a condescendência desses ecologistas: elas lhes lembram suas imagens no espelho e portanto é OK matar as pobrezinhas. Uma espécie de masoquismo projetado.

Se criamos bichos para o matadouro, que diferença faz se vamos aproveitar sua carne ou sua pele? Garanto que para o bicho diante do cutelo não faz nenhuma diferença. Parece sensato afirmar que a esses limites morais são justificados pela necessidade humana. Mas ninguém, por exemplo, precisa comer carne. Ela fornece proteína? Soja também. Entupa-se de soja, portanto. Carne de soja. Leite de soja. Queijo de soja. Os Rolling Stones bebem leite de soja, por que não os mortais comuns? De fato, as pessoas podem passar suas vidas inteiras comendo apenas soja. Não há necessidade objetiva de carne, assim como não há de casacos de pele.

Mas coerência não é atributo desses ecologistas radicais, baseados em distorções pseudo-humanistas que acabam adquirindo os contornos de uma religião neo-pagã e materialista.

Para eles é eticamente aceitável matar uma vaca, mas não uma chinchila. Esse pessoal, com sua moral fácil e hipócrita de classe média urbana, não percebe sequer que o manejo de uma vaca é muito mais cruel e desumano que o de uma chinchila.

Imaginai-vos, dileta leitora, tendo vossas mamas apertadas duas vezes por dia. E não vos alegrai pensando que é o toque macio ou a mordida apaixonada do vosso amante: são as mãos ásperas e rudes de um vaqueiro desempenhando sem delicadeza uma tarefa automática. Isso, claro, se tiverdes a sorte de ser escolhida para a produção de leite tipo C; porque se quiserem tirar leite A de vossos úberes, ah, minha nega, então enfiarão vossas tetas em uns aspiradores implacáveis sem nenhum sentimento. E, por favor, não deixeis que eu vos fale de inseminação artificial. É pior, mil vezes pior que a posição humilhante que assumis diante de vosso ginecologista. Voltai ao carinho de vosso amante, e hoje à noite, aninhada em seus braços, não deixeis que um calafrio percorra vosso corpo ao lembrar-vos do pobre canal vaginal da vaca diante do aplicador comprido com o sêmem do touro; nem do reto, mais pobre ainda, diante do muito longo braço do tratador, que guiará o aplicador até o útero da vaca e, caso necessário, desobstruirá seus intestinos. Esquecei tudo isso e tomai um leitinho.

É graças a esse relativismo moral que eu só confio em ecologistas vegetarianos. Por enquanto. Porque quando descobrirem que o príncipe Charles tem razão e as plantas têm sentimentos, eu só vou confiar em ecologistas mortos de fome.

E por tudo isso um dos meus sonhos é comprar um casaco de peles, mesmo achando-os terrivelmente cafonas, apenas para desfilar diante desses ativistas que ficam jogando tinta nos outros. Estaria, claro, devidamente acompanhado de uns quatro guarda-costas de excelente porte e péssima índole, apenas para vê-los dando um cacete nos idiotas quando emporcalhassem meu casaco. Se esse tipo de ativismo é a nova religião, está mais do que na hora de lhes dar um mártir.