Crônica de um triste Natal alheio

É a segunda vez que a Lurdinha deixa o mesmo comentário neste blog:

Imbecil, cretino, estou procurando uma maneira rápida e prática para me suicidar e tu me aparece com essa filosofia de barraquinha? Vai te catar, ou melhor vá se….

A Lurdinha se irritou comigo porque eu não sou o CVV. Da primeira vez não falei nada, apenas deixei o comentário pastar ali, no limbo da moderação. Por não gostar da recomendação que me foi dada, sim, mas também por medo: vai que a louca se mata e o comentário me traz complicações. De confusão eu ando correndo, como sempre corri em minha covardia.

Mas dois comentários iguais são demais para uma pessoa boa como eu.

Ao contrário do que se poderia esperar de mim, não vou dizer que a Lurdinha tinha mais era que se matar logo e poupar o mundo de outras bobajadas como esse comentário. Também não vou fazer o contrário, aquele discurso de que não, não faça isso, alguém neste mundo espera por você, a vida vale a pena; porque eu admito, Lurdinha, que nem sempre vale, nem mesmo quando a alma não é pequena — o que, cá entre nós, não parece ser seu caso. Eu continuo achando que melhor que se matar é dar um jeito no filho da puta que está fazendo da sua vida um inferno, mas cada um vive (e morre) como quer.

Não vou dar conselhos, tampouco. Sim, eu conheço várias formas de morrer rapidamente, mas não me engano: a Lurdinha também sabe, e se deixa um comentário aqui não é porque quer se matar, mas porque quer chamar a minha atenção. E isso ela já tem.

Não sei qual é a sua história, Lurdinha, aquilo que te faz namorar a idéia de acabar com tudo isto, não sei por que você quereria morrer. Sei apenas que você estava tão ansiosa para receber um comentário ou um post que já há semanas procura um jeito rápido de se matar, deixando comentários neste blog e talvez voltando de vez em quando para ver se foi notada.

Eu que tenho a mente suja e romântica, se me permite o paradoxo, gostaria de imaginar que você realmente quer morrer; e quer porque um grande amor se acabou, deixando feridas profundas que parecem jamais cicatrizar. Gostaria de ver alguém amar outra pessoa de maneira tão intensa, tão desesperada, que sem ela a vida não faz sentido, e que é melhor morrer do que continuar a viver pensando naquilo que jamais voltará a ter.

Mas essas mortes por amor não existem mais, para desgosto meu, das funerárias e das escritoras de romances baratos. Este é um mundo em que grandes emoções sem esperança não se resolvem mais em uma poça de sangue, mas no divã de um psico-terapeuta; são sempre privadas, e quando se tornam públicas são apenas arremedos sem graça e grosseiros como os comentários que você deixou. Foi isso que restou a nós, românticos desgraçados do século XXI: mortes fuleiras anunciadas em blogs ruins.

Sinceramente, não acho que nada disso valha a pena. Acho inclusive que você poderia fazer coisa melhor em seus últimos momentos — que se alongam fastidiosamente, ao que parece — do que anunciar aqui repetidas vezes que quer morrer de maneira rápida. Nem este blog é lá grandes coisas, nem o meu comentário é bom o suficiente, nem a vida que você diz querer abandonar significa muito. E o máximo a que este blog que não gosta de filosofia se permite é isso mesmo, filosofia de barraquinha, frases fáceis que exigem pouco pensar.

Anunciar sua morte aqui é desgraçar um evento importante, talvez o mais importante de sua vida. Não faça isso. No seu lugar, Lurdinha, da próxima vez eu tentaria mandar um cartão postal para o PostSecret. E por não ousar desejar um próspero Ano Novo, me despeço esperando que você tenha, pelo menos, tido um feliz Natal.

Republicado em 19 de setembro de 2010

As alegrias que o Google me dá (XXXII)

penes piqueno
E ainda assim maior que o seu domínio da última quenga do Lácio.

não confio em ninguem
Também pudera. Você digita isso de boa fé no Google, certo de que vai achar alguém com quem possa abrir o coração e se queixar desse mundo injusto, canalha, cheio de traidores. Aí o Google faz uma puta sacanagem com você e te traz para cá, onde um desocupado resolve rir da sua cara. Você está certo, não confie mesmo em ninguém.

quem foi hefestion namorado de alexandre o grande
Essa eu sei: Heféstion foi o namorado de Alexandre Magno. Respondido?

apartamentos do condominio alto da cachorrinha no cabula vi
Olha, longe de mim debochar de alguém pelo lugar onde estabeleceu o seu lar. Cada um mora onde pode. Mas puta que pariu, Alto da Cachorrinha já é sacanagem.

uma relação sexual que desgraçou a vida de uma mulher
Este blog não responde a perguntas feitas por ex-namoradas. Chega. Vai embora. Me esquece.

vestibular em faculdades particulares com a media de pontos para se aprovado
Você se enganou, amigo. Provavelmente você queria saber a média salarial.

resumo do filme hotel ruanda em ní­vel de oitava serie
Tipo assim: tem esses neguinhos irados uns com os outros, e começam a se matar. Aí vem um sujeito que trabalha em um hotel e tenta ajudar. Não consegue e os neguinhos continuam a se matar. Irado, velho.

quem sou eu rafael gosto muito do flamengo
Deixa de ser assim. Não coloque palavras na minha boca. Eu não gosto do Flamengo. Eu torço por ele, e vou torcer para sempre, porque é algo que não dá para evitar, está no sangue — vermelho nas artérias e quase preto nas veias. Mas daí a gostar são outros quinhentos. Deixei de gostar quando vi Nélio jogar. E Piá. E Maurinho.

homens bundudos
Por que tanta gente insiste em não se ater ao essencial? Por que tanta gente procura o supérfluo, quando poderia estar atrás — literalmente, inclusive — do que realmente interessa? Bunda de homem não presta para nada, camarada. Bunda de mulher, não, é amortecedor; mas bunda de homem é um resquício inútil da época em que nos balançávamos nas árvores. Depois esse povo fica aí, reclamando de pau pequeno.

fotos de homens nus fazendo sexo com animais enfiando o penes no animal
O horror. O horror. Conrad deve ter visto uma cena dessas no Congo e tirou daí a inspiração para a frase.

como fazer uma vernissage
Primeiro arranje um artista chato, daqueles que pintam quadros de que ninguém gosta e que precisam oferecer uma boca livre para vender alguma coisa. Arranje patrocínio de alguém para pagar uns salgadinhos. Quanto pior o pintor, melhores devem ser os salgadinhos. Arranje música ambiente sem personalidade, de preferência fusion ou free jazz. E bote um monte de manés comentando as telas e explicando o sentimento do artista quando pintou aquilo, fingindo que entendem alguma coisa e que não estão pagando um mico federal.

flamengo ja foi rebaixado
Este blog não é recomendado para corintianos em busca de consolo vão e fútil. O Flamengo nunca foi rebaixado. Ao contrário de uns timecos por aí.

seios grandes fazendo sexo
Ah, você entendeu a essência das coisas. Entendeu que são eles os verdadeiros agentes da saliência. Não são “mulheres de seios grandes fazendo sexo”. São eles, os peitões, a essência das coisas, a razão pela qual vale a pena ter olhos, mãos, boca, dentes e língua. Amigo, eu tenho orgulho de você.

explique o q fazer quando um cliente levantar o tom de voz e quere partir para agressao com vc
Seguindo as orientações do Manual Galvão de Relações Comerciais, enfie a mão na cara dele. Pense bem: vocë já fez merda, tenha certeza. Já perdeu o cliente. Vai ouvir desaforo para quê? Dê um chute no saco do rapaz e pelo menos saia com a sua hombridade intacta.

como deixar o volume do penis maior na calça
Propaganda enganosa é crime previsto pelo Código do Consumidor, art. 67.

cu nosso de traveco de cada dia
É isso que andam ensinando nos seminários hoje em dia. É a modernidade da igreja. Mas essa é a versão brasileira. A bostoniana se refere ao “menininho nosso de cada dia”.

maria bethania é lesbica?
É da sua conta? Por outro lado, você é cego?

como fazer uma prosa?
Faz assim, ó: senta numa varanda com um amigo. Mineiro, de preferência. Fala qualquer merda. Ele vai responder. Fazer uma prosa se assememelha muito a viadagem, mas para você vai dar no mesmo.

primeira aparição no século et de varginha
O curioso aqui não é o fato de nego acreditar em ETs invadindo a Terra e chupando o sangue das cabras. É acreditar que ETs invadem a terra, chupam o sangue das cabras e, desgraçados, não morrem nunca.

a barra está dentro da água e a outra está fora e o ângulo
Pois é. E o ângulo? Nós não vamos dormir hoje, eu e você, enquanto ficamos olhando para o teto remoendo essa pergunta irrespondível: e o ângulo?

fotos de zoofilia com camelos
Quando eu parei de rir fiquei pensando: como tem gente alta nesse mundo. Que coisa.

quero encontra o site de ropas baratas que vende no boleto bancario para todo o brasil
As sacoleiras estão chegando a este blog. E querem em 30, 60 e 90 dias, sem juros, no cheque pré.

ilha dos deuses librianos e virginianos[hoteis] sem ser em cidades[grates] ilha de verdade
Grates é uma ilha de verdade que fica no Egeu e está no roteiro de todos os cruzeiros que passam por Kusadassi. Ficou famosa por ter uma comunidade hippie gay de librianos e virginianos (virginianos, não virgens; faço questão de evitar o mal-entendido).

simpatia da vagina
Eu não entendo muito dessas coisas de saliência; mas juro que nunca vi uma vagina antipática. Elas têm uma coisa que atrai, que seduz, sei lá.

tudo sobre a vida pessoal de doni
E eu que sei? Mas ele acabou de lançar o seu primeiro livro, Meias Vermelhas. Causou mal entendido, o Alex pensou que era um catálogo da Victoria’s Secret, mas é um livro muito bom.

o carnaval mistificação de massa segundo marx
Esse é um dos pontos em que historiadores marxistas divergem. Uma corrente defende que isso era apenas implicância de Marx, por despeito.

Deixa que eu te conto a história.

Foi no carnaval de 1873. Naquela época Fernando Vanucci já narrava o desfile das escolas de samba. Marx veio para a Corte participar do I Congresso do Partido Proto-Comunista Republicano Abolicionista do Brasil. Depois das discussões de praxe, onde se debateu principalmente a necessidade da abolição da escravatura para que o capitalismo avançasse e o PPCRAB pudesse fazer a revolução, seus cicerones o levaram para o programa de 11 em cada 10 turistas no Rio: o Sambódromo. Um dos militantes do PPCRAB era um rapaz chamado Filemon Guinle, que se dizia burguês consciente revoltado com o fato de ter dinheiro em uma sociedade desigual, mas que no fundo era abolicionista apenas para fazer sucesso junto às neguinhas deliciosas e semi-nuas que vendiam aluá nas ruas do Rio. Filemon tinha acesso às coisas boas da vida, e Marx foi levado para o camarote da Brahma.

Todo turista no Rio junta um monte de cariocas em torno, principalmente se for alemão. Marx chamou a atenção de todo tipo de gente. E foi graças a esse processo de aproximação que Marx conheceu uma neguinha que puta que pariu. Puta que pariu. A mulher era mais gostosa que a Globeleza. Sambava e nada balançava. Sabe aquelas gotinhas de suor que escorrem pela pele? Ela as tinha na medida certa.

O barbudão ficou louco. Jogou toda a sua retórica naquele mulherão. Se Feuerbach ouvisse aquilo ficaria aliviado por ter sido tão bem tratado. Marx chegou no ouvido da negona e lascou: “Neguinha do Brasil, unamo-nos! Nada tens a perder além da vossa virgindade!”

Marx era alemão e meio ingênuo nessas coisas, sabe como é. A negona olhou para ele e riu de sua inocência, mas o alemão até que era bonitão, com uma barba grisalha sexy. E alemães pagavam em marcos, moeda forte. Com aquele alemão babaca a negona ia pagar a conta de gás durante uns cinco anos.

Saíram dali direto para uma estalagem ali pertinho, que mais tarde seria destruída para dar lugar à Presidente Vargas; a Niemeyer ainda não existia. Por incrível que pareça, não existia nem o Niemeyer. Marx, alemão ingênuo, foi apalpando a moça durante todo o caminho, no tílburi, mas mantinha certo pudor, se restringia aos peitos. Caía de boca nos peitos da negona, estava que não cabia em si — literalmente; não é figura brega de linguagem.

Quando chegaram na estalagem, perto do Itamaraty, Marx se enfiou embaixo do chafariz. Foi quando ela tirou a roupa; e então Marx viu que o que ela carregava entre as pernas: uma coisa imensa. Seu humor mudou imediatamente.

“Como foi mesmo que você disse se chamar, ó lumpen do Brasil?”

“Eu não disse, você não perguntou. Meu nome é Valdomiro, muito prazer.”

“Onde você arranjou esses peitos?”

“Ah, é um menino novo, você precisa ver. Se chama Ivo Pitanguy.”

“Olha, Valdomiro…”

“Me chama de Val, amor.”

” Olha, Val, acho que houve um mal entendido, sabe? Eu não sou daqui, sabe?”

“Ah, meu querido, agora é tarde.”

Que caia o pano da decência sobre o resto do diálogo. O que se sabe é que, de volta a Londres e mal conseguindo sentar, Marx olhou para sua Jenny, pegou a Laura no colo e disse: “Minhas queridas, esse negócio de carnaval é mistificação pura”.

(Epílogo: Marx voltou para o Brasil cinco anos depois, para o II Congresso do PPCRA do B. Outra neguinha se aproximou dele. Mas ele não caiu nessa de novo. E disse com aquela dureza alemã: “A História se repete como farsa”.)

Das misérias de um doppelgänger

Nota em uma coluna social de um jornal de Aracaju, no início da semana:

Rafael Galvão
Estava no show do Chiclete com Banana de olhos nas lolitas de plantão.

À parte a poesia talvez inesperada, isso já aconteceu antes. Tem um outro Rafael Galvão por estas plagas, usuário de colunas sociais.

Eu já sabia disso, há alguns anos. A primeira vez que vi pensei que era sacanagem de alguém, nota plantada como uma pegadinha. Depois vieram mais. Em quase todas elas o sujeito era visto nessas micaretas da vida, bêbado, sempre correndo atrás de menininhas — sem sucesso, pelo tom das notas. Me acostumei ao fato de haver um homônimo por aí.

Agora vejo de novo. Eu não saio em colunas sociais, por não ser notícia, por não ter dinheiro, por não ter poder e, portanto, não ser importante. Mas as poucas pessoas que me conhecem, quando vêem essas notas, pensam que é a mim que se referem. Esquecem as implausibilidades — o fato de eu estar sendo citado, para começar, mas principalmente o fato de estar num show de axé music. As pessoas deviam saber que eu não gosto de shows, não gosto de empurrões, não gosto de pessoas suadas perto de mim, não gosto que pisem no meu pé. As pessoas deviam saber que a minha Bahia é a de Caymmi, não é a de Ivete Sangalo. Mas o que está em letra de forma deve ser verdade, e assim as pessoas acham que eu estaria mesmo em um antro desses.

E então vem a vergonha.

Eu não ligo em saber que existe outra pessoa por aí com o mesmo nome que eu. Mesmo sabendo que forçosamente é mais novo, até porque quando nasci Rafael não era nome da moda, não ainda, e que posso reivindicar uma certa primazia no uso do nome. Não ligo porque embora meu ego seja do tamanho que é, não posso querer que o mundo entenda isso.

Mas é uma vergonha indizível ser abordado por conhecidos que me olham com sorriso escarninho e dizem: “No show do Chiclete, hein?” Admito que passei estas quase 4 décadas fazendo o possível para manchar minha própria reputação, mas há limites que nunca ultrapassei. Esse é um deles.

Talvez coubesse, em um mundo ideal, um processo por danos morais.

Post redundante sobre a decadência da Veja

Falar mal da Veja está se tornando mais redundante do que comentar a decadência e a chatice de Jô Soares. Mas não cansa.

A edição desta semana traz chamada de capa para uma entrevista com Rosane Collor, que se ergueu da tumba do olvido. A entrevista passa a impressão um tanto forte demais de não ser mais que uma tentativa de tirar algum dinheiro do ex-marido — ex-mulheres de políticos com trajetórias duvidosas sabem que têm em sua memória um bom capital de giro. Nada novo nisso; incompreensível é a razão por que a maior revista nacional em circulação se rebaixou a esse ponto, já que se o presidente do impeachment não é notícia há muito tempo, menos ainda sua ex-mulher, de triste memória em sua passagem pela LBA. A entrevista sequer diz algo novo, com exceção da confirmação das sessões de macumba a que o presidente ia. A revista, esquecendo o que ela mesma noticiava há 16 anos, até aceita sem perguntas a versão de Rosane sobre seu suposto caso extra-conjugal.

A entrevista de Rosane Collor é apenas um sintoma da decadência da revista. Mas não é o mais importante. O buraco é bem mais embaixo.

Em 100 anos de regime republicano, as Forças Armadas foram os fiadores da elite brasileira. Graças a essa simbiose, a estabilidade institucional brasileira foi inviabilizada por uma longa seqüência de golpes e contra-golpes, respostas a ameaças externas a essa elite, como a Intentona Comunista, ou internas, como as lutas de setores diferentes.

Com a Nova República isso mudou. Desgastados pelos 20 anos de ditadura militar, os militares foram postos em escanteio pela primeira vez na história — e até com certo exagero, mas isso é assunto para outro post. A elite brasileira, então, ficou sem os seus cães de guarda.

Sobrou a ela a mídia. Última trincheira legítima em um regime democrático — e última trincheira possível quando não se está no poder –, durante o final da década de 80 e boa parte da de 90 ela foi ocupada de maneira quase equilibrada, embora já combativa. A conjuntura permitia: era época de hegemonia clara do pensamento liberal, o que permitia ainda um certo nível de elegância.

Mas os tempos continuaram a mudar. Por mais que essa mídia tente negar, houve uma mudança importante de modelo administrativo nos últimos anos, a partir do início do governo Lula. E por mais que a Neo-UDN queira a paternidade da bonança que o Brasil vem atravessando, e se recuse a admitir que a mudança de enfoque — da estabilidade a qualquer custo para a ênfase na distribuição de renda, ainda que eventualmente tímida; e da quase exclusividade das obras de interesse imediato da tal elite para programas estruturantes como o ProUni e o Luz Para Todos (eleitoralmente tão importante para a reeleição de Lula quanto o Bolsa Família, embora o PSDB tente evitar a armadilha que seria discutir isso) — está fazendo diferença na vida de milhões de brasileiros, o fato é que aquela elite representada pela Veja perdeu poder e espaço; e isso dói, principalmente no bolso.

Dentro desse contexto a Veja não tem alternativa que não arregaçar as mangas. Partir para a briga, assumir sua posição e defender o seu lado. Da posição arrogantemente olímpica que ocupou nos seus primeiros 20 anos, ela se viu obrigada a descer para a lama do combate político, do tipo mais rasteiro. Nada que seja estranho ao jornalismo, mas que era convenientemente disfarçada pela tranquilidade da sua posição. Hoje a Veja, como outros meios de comunicação, é obrigada a desempenhar dentro de suas condições o papel que antigamente era exercido pelos tanques e pelas estrelas dos generais. Em vez de fuzis, reacionários obscurantistas e hidrofóbicos como Reinaldo Azevedo; no lugar de Urutus, matérias porcas como aquela sobre Che Guevara assinada por Diogo Schelp e ridicularizada por um jornalista da New Yorker. Ou o achincalhe e calúnia puros, como a infame matéria, em 2005, sobre os dólares de Cuba para o PT: apenas difamação, sem nenhuma fonte, sem sequer uma testemunha.

Isso se refletiu, por exemplo, na mudança mais perceptível de orientação editorial, a proliferação de colunas assinadas. De uma revista em que praticamente ninguém assinava matérias, ela passou a ser um repositório de opiniões — a grande maioria impressionantemente ruim, o que caracteriza, antes de mais nada, a necessidade de assumir um lado e intervir no debate político. (Na edição desta semana salva-se o bom artigo do Gustavo Ioschpe.)

Na Veja de 1979 seria impensável uma coluna como a do Diogo Mainardi, histérica e de baixo nível (esta semana ele faz muxoxo e apela para o “mas – eu – tenho – mais – leitores – que – você” porque um jornalista disse que o acha um merda, opinião compartilhada por mais gente). Dos tempos em que reinava absoluta como a grande revista semanal brasileira, hoje ela se depara com um mercado que apenas encolhe em tempos de internet e com concorrência à sua altura, como a Época lembrada pelo Pedro Dória.

De revista razoavelmente respeitada, a Veja se transformou em um panfleto. Pior, em um panfleto ruim — a edição desta semana não tem praticamente nada que preste, mesmo o que passa ao largo da política. Talvez seja isso o que acontece com revistas importantes quando perdem a própria dignidade.

A Sky tratando a todos como idiotas

A Sky me manda um e-mail dizendo mais ou menos o que já diz em um comercial que veicula insistentemente: que devo me engajar na sua luta pela liberdade na TV, agora que um projeto de lei circula no Congresso obrigando a programação das TVs por assinatura a conter 50% de material produzido no Brasil.

Segundo a Sky, isso é um crime. É uma agressão ao meu direito de escolha. Eu, que hoje escolho a minha programação, vou perder esse sagrado direito.

Não sei o que pensar do projeto de lei, que não li e que a princípio não me parece tão ruim assim. Talvez 50% seja excessivo; mas se a programação dos canais por assinatura perder 50% do material feito lá fora, seriados ruins e programas idiotas tipo Oprah e outros tantos — ou o que parece mais lógico, uns tantos canais estranhos que tumultuam a programação da Sky –, eu vou sair no lucro.

Por outro lado, sei exatamente o que pensar dessa campanha da Sky.

E o que penso é o seguinte: deixem de tentar me tratar como idiota.

Porque tentar me cooptar para a sua briga dizendo que hoje escolho a minha programação é dizer, na minha cara, que sou um debilóide. Que sou um retardado que engole qualquer besteira que a Sky quiser dizer para mim. Que aceito, sem questionar nada, o seu cinismo e a sua má-fé.

Eu não escolho a programação da minha TV. Sou obrigado a escolher apenas entre pacotes caros e outros ainda mais caros. Não posso escolher apenas os canais a que quero assistir. Não posso dispensar bobagens como Fashion TV e um canal idiota sobre carros, e outro ainda mais idiota sobre golfe: vem tudo em pacotes fechados, que aumentam excessivamente o preço e sobre os quais não tenho direito a opinar. Se eu quiser assistir à HBO tenho que levar de quebra dezenas de canais nada interessantes, que dizem mais respeito a preferências de segmentos de mercado externos do que às minhas. A Sky, essa que agora luta pela “minha liberdade”, não apenas me obriga a comprar também o lixo que produz como, ainda por cima, me faz pagar pelos programas que oferece a americanos e ingleses. Ela pode chamar a isso “liberdade de escolha”; eu chamo de canalhice.

Eu sei disso e em troca de alguns canais aceito essas condições, mesmo sabendo que elas não são exatamente justas. Mas isso não dá direito à Sky a me dizer, com a maior desfaçatez do mundo, que está lutando pela minha liberdade. Ela não está, está lutando é pelos seus interesses. Algo até justo, mas que deveria ser assumido como tal, e não com uma mentira cínica e, acima de tudo, burra.

Por causa desse argumento, mesmo sem ler o projeto de lei que assusta tanto o bolso da Sky que a faz tomar medidas desesperadas e mal pensadas como essa, eu estou seriamente inclinado a defendê-lo. Porque ele pode até ser errado, mas não está tentando me tratar como um idiota.

Um livro que o vento vai levar

Nunca li “…E O Vento Levou”, de Margaret Mitchell, embora tenha visto o filme algumas vezes. Tampouco li as seqüências — ou melhor, seqüelas: “Scarlett”, segundo todos os relatos uma espécie de posfácio da Guerra Civil escrito por Barbara Cartland, e agora Rhett Butler’s People, de um sujeito chamado Donald McCraig.

A resenha da obra pelo New York Times começa com uma pequena comparação entre versões do mesmo fato dadas nos dois livros. No original, ficamos sabendo que Rhett Butler foi preso por matar um negro que havia insultado uma mulher branca. “O que mais poderia um cavalheiro sulista fazer?”, ele pergunta depois a Scarlett O’Hara. Mas em Rhett Butler’s People nos deparamos com uma versão sutilmente diferente: ele mata o negro a pedido do próprio sujeito, que implora que Rhett atire nele antes que a turba invada a prisão e o linche. O que era originalmente um ato de vingança e opressão de classe e de raça passa a ser um gesto de misericórdia.

Só por isso o novo livro é lixo e merece ser evitado por qualquer pessoa com juízo.

“Um típico cavalheiro sulista” é a melhor definição para Rhett Butler, segundo todos que leram o livro. Como eu só vi o filme, só posso usar uma de suas últimas frases, em que ele anuncia que vai abandonar Scarlett em busca de um mundo mais parecido com aquele que os canhões de Sherman tinham destruído: “I want peace. I want to see if somewhere there isn’t something left in life of charm and grace“.

Tirando a poesia fácil da frase (fácil, mas brilhante em se tratando de cinema), na prática isso quer dizer um sujeito com possíveis ligações com a Ku Klux Klan; que “densonrou” uma moça em Charleston; que talvez tenha um filho ilegítimo em New Orleans; e que supostamente roubou o lendário tesouro Confederado.

O filme de David O. Selznick já tinha suavizado Butler em relação ao livro de Mitchell; cinema é entretenimento de massa e deve respeitar suscetibilidades maiores, ainda mais em 1939. Mas ainda assim respeitava seu contexto histórico; omitia, apenas. “Rhett Butler’s People“, no entanto, se esforça em passar creolina, ácido muriático e esmeril na reputação de Butler. Adoça o cavalheiro sulista para que ele fique mais palatável ao mundo atual.

Fazer isso com um personagem é destruir tudo o que ele tem: a sua verossimilhança. O Rhett Butler de McCraig não tem nada a ver com o cavalheiro do século XIX. O que fazia de Butler um personagem literário interessante — e certamente um dos melhores da história do cinema — era justamente o seu anti-heroísmo, o fato de ser completo em suas qualidades e defeitos. Rhett Butler era de verdade.

Matar um negro que havia insultado uma moça branca era uma prova de cavalheirismo no contexto do livro e do filme, porque é algo real, que aconteceu centenas de vezes no tempo e no espaço retratados por Margaret Mitchell; tentar alterar esse passado em função de sensibilidades modernas, de novos padrões éticos, é um crime. Não é porque hoje algo é intolerável que se tem o direito de negar a sua existência. É mais ou menos como fazer um western em que brancos não matam índios, porque hoje isso é feio.

De qualquer forma, nada disso é importante. O livro de McCraig parece ser apenas mais um livro que tenta explorar os últimos veios de um filão esgotado. Está pronto a ser ignorado por quem quer que, como eu, veja em “…E o Vento Levou” uma das dez maiores obras primas cinematográficas, o exemplo perfeito das possibilidades dramáticas do cinema e do modo hollywoodiano de produção. Destruir esse personagem é como fazer de Scarlett O’Hara uma pobre moça desamparada, é derrotar mais uma vez o exército de Jackson. E por isso, se “Rhett Butler’s People” vai ter sucesso ou não, se vai virar filme ou minissérie ou não, frankly, my dear, I don’t give a damn.