Sobre a liberdade de escolha

O Bia e o Idelber estão discutindo as qualidades ou defeitos do novo panorama musical e tecnológico. O Bia se queixa do excesso de informação. O Idelber gosta disso.

A razão, na opinião deste blog, está com o Idelber; o Bia ainda não se convenceu de que é um velhote saudosista e conservador, incomodado com o fato de que os objetos a que se apegou ao longo de três décadas estão desaparecendo porque surgiu uma nova forma de distribuição de conteúdo, muito mais eficiente.

Esse — as vantagens e desvantagens de novos canais de distribuição — parece ser o principal ponto discutido por eles.

A resistência ao novo que se encontra no Bia é relativamente comum, e se manifesta às vezes como pura implicância. Em pleno início do século XXI pessoas ainda reclamavam que a qualidade dos graves em CD era inferior à dos LPs (o que podia não ser mentira nos primeiros tempos do CD nos anos 1980, mas dificilmente verdadeiro hoje). Agora elas reclamam da dispersão de atenção causada pelo MP3, do fato de tudo ser superficial. Muita música disponível.

Isso é bobagem. Não é porque posso achar facilmente a discografia completa de Richard Clayderman que vou passar a ouvi-lo tocar Pour Elise; mas o mesmo mecanismo que o torna disponível faz com que se possa achar, por exemplo, gravações importantes da deusa. Eu, por exemplo, não tenho e não pretendo ter um iPod. Não ouço música na rua. Não consigo escrever ouvindo música. Para gente como eu, o fato de haver tanta oferta não aumenta, necessariamente, a minha demanda. Mas aumenta a chance de achar o que eu quero ouvir.

O Bia esquece outra coisa: que a verdadeira comparação a ser feita, nesse caso, não é com os antigos LPs ou mesmo com os CDs. É com o rádio. Ali, também, se ouvia muito, de muita coisa. Nem por isso as pessoas deixavam de prestar atenção ao que realmente gostavam — roqueiros narigudos como o Bia ouvindo Lou Reed, ou mineiros trotsquistas barbudinhos como o Idelber ouvindo sei lá quem (talvez entrevistas do Telê Santana em cassete, sei lá…).

A questão da possibilidade de escolha é importante, claro. Nos anos 80, era virtualmente impossível achar muito do que se queria ouvir. Ficava-se restrito ao que as gravadoras queriam ou podiam oferecer. Hoje, com alguns cliques e palavras-chave pode-se encontrar o que quiser. Para beatlemaníacos como eu, que se sentiam iluminados por terem o único Decca Tapes da cidade e orgulhosos pelo fato de ele correr de mão em mão para ser gravado em fita cassete, a possibilidade de ouvir o que quiserem é algo fantástico. É revolucionário.

O LP foi inventado em 1948, como lembra o Idelber, mas foi só a partir dos anos 60 que passou a ter relevância. Foi inventado para suprir as deficiências que os formatos anteriores tinham: discos de longa duração poderiam acondicionar peças maiores, principalmente eruditas.

No que diz respeito à música pop, no entanto, o LP era pouco mais que um suporte ao que realmente importava: os compactos. Até o rock se afirmar como música “madura” (se é que isso não é uma contradição em termos), LPs eram normalmente coletâneas de compactos. Era para eles que se dirigia a capacidade criativa do artista e os maiores esforços de relações públicas das gravadoras. Por isso a música pop se organizou em torno de canções com no máximo três minutos.

O produto não podia ser mais simples: sete polegadas, 45 rpm, uma canção, às vezes duas. Sem capa ilustrada. Sem nada além da música. As pessoas não compravam o compacto porque a capa era bonita ou porque achavam estar conseguindo uma melhor relação custo/benefício. Compravam porque aquela música era boa.

Foi a geração dos anos 60 que deu ao LP uma dimensão, digamos, mais respeitável. Artistas como os Beatles, que ao gastar uma soma espantosa na capa do Sgt. Pepper’s (que custou mais que toda a gravação do seu primeiro álbum) deram um valor intelectual até então inexistente ao LP (valor que, a propósito, nunca seguiram ao pé da letra. Com exceção do lado B do Abbey Road, os Beatles nunca fizeram nada realmente conceitual. Aliás, nem mesmo o Sgt. Pepper’s. Aliás aliás, eles só compunham para álbuns sob pressão, quando precisavam completar um disco por imposição da gravadora. Sua luta verdadeira era sempre para compor o próximo compacto, e a maioria das canções que completavam o LP eram consideradas, por eles, apenas fillers).

A coisa piorou, e muito, a partir dos anos 80. O casamento entre música e vídeo promovido pela MTV praticamente destruiu o valor intrínseco da música. Lixo, muito lixo musical foi empurrado goela da sociedade abaixo por ter, como trunfos, um bom diretor e um bom relações públicas. Para usar como exemplo o rei dos videoclipes, o comunista Michael Jackson, é sintomático que as pessoas lembrem mais de Thriller, uma canção medíocre, do que de Billie Jean, bastante superior. Apenas porque o seu videoclipe era melhor — ou mais impactante.

Mas as novas facilidades de distribuição não são a questão verdadeiramente fundamental, na minha opinião, no que diz respeito ao produto cultural.

A ascensão do MP3 e das redes peer to peer, finalmente, libertam a música de tudo o que é acessório. Dos artistas gráficos, dos diretores de vídeo, do poder de marketing das gravadoras. A canção pop passa a ser importante por si mesma. As pessoas deixam de comprar um disco influenciados por sua capa ou porque, de doze canções, há três de que gostam e que os forçam a levar, de contrapeso, nove canções ruins. Em vez disso, ouvem a música pelo seu valor real, livre de boa parte de outras condicionantes. Não foi à toa que o pessoal do Metallica, em sua diatribe ludita contra o a troca de arquivos, disse que lojas como a iTunes “matam o formato do LP”. Como se formatos fossem mais importantes que a música (no caso deles, talvez tenham razão. Mas mesmo eles acabam de se render à realidade).

O MP3 e o P2P trouxeram liberdade de escolha às pessoas. Mais do que nunca, elas podem ouvir apenas o que é bom. Agora podem voltar a realmente ouvir música, e a escolher o que lhes parece bom, sem que o mercado lhe imponho de maneira tão ostensiva gostos e padrões. Essa liberdade é insubstituível, e não tem preço. E se para conquistá-la é preciso jogar fora os velhos vinis e CDs sem personalidade, que se jogue. Que façam como os bobões que queimaram discos dos Beatles quando Lennon disse que eram mais famosos que Jesus Cristo. Os verdadeiros fãs de música agradecem.

Uma coisa para fazer antes de morrer

O Ina pediu, há uns tempos, que a gente enumerasse dez coisas que precisa fazer antes de morrer.

Eu pensei, pensei, e achei melhor ficar calado. Porque via o Ina sonhando coisas bonitas como se perder na Igreja da Sagrada Família em Barcelona e, poeta que é, cair de amor e ser erguido por ele. Em contraste, essas coisas apenas tornariam mais feia a minha lista.

Eu não sonho em cair de amor, porque sou só um paraíba e sempre sonhei, mesmo, foi em cair de língua. Para uns não há diferença, mas em verdade ela existe, e nela está contido o verdadeiro segredo da vida. Por isso pensei muito, e fiz uma lista dizendo o que eu realmente gostaria de fazer antes de morrer, e vi que ela nem de longe se pareceria com a belezura do Ina. Melhor não publicá-la, então, porque ficaria mais ou menos assim: 1) Comer a Isabel Fillardis; 2) Comer a Nicole Kidman; 3) Comer a Catherine Zeta Jones; e por aí seguia, lista ainda por cima tão volúvel que às vezes mudava um ou outro item, uma mulher injustamente esquecida e que parecia fazer melhores promessas que outra incluída — embora a lista fosse essencialmente constante em seu objeto. Em sua defesa eu poderia apenas dizer que ela mostraria interessante unicidade de motivos, uma força de vontade adamantina, ou mesmo um despojamento quase franciscano em relação ao que é acessório na vida. Poderia dizer que sou um sujeito bastante centrado.

Melhor não publicá-la, então, que ela apenas iria revelar a minha monomania e minha absurda falta de criatividade no que refere às coisas realmente importantes da vida. Ainda pensei em fingir e falsificar um ou outro desejo, em colocar uma ou outra bobagenzinha como comer em um tal restaurante de Florença, ou ver o sol se pôr em um cudemundo qualquer do Pacífico, mas além de nada disso ser verdade, todos iriam perceber imediatamente que eu mentia. Comer em um restaurante de Florença, na verdade, só se fosse a Monica Belluci — ou mesmo a Sophia Loren, para satisfazer um capricho mórbido, quase necrófilo.

Mas a idéia ficou na minha cabeça, e se não tenho lá tantos sonhos ou pequenos projetos acessórios de vida, percebi que há uma coisa de que eu realmente gostaria, que traria alguma luz para o meu coração aparentemente de pedra.

E decidi que o que quero mesmo fazer antes de morrer é ser um velho chato.

Chegar à velhice, para alguém com os meus hábitos de sono e alimentação, minhas preguiças e meus impulsos, já é uma vantagem. Uma grande conquista, tão mais desejável quanto mais improvável se mostra. E dentro dessa perspectiva a artrite, os ossos quebradiços, a aversão ao frio e o amor às meias e casaquinhos de lã, o medo pânico da pneumonia e da falência renal se afiguram como quase uma vitória. Por ela valeria a pena até adquirir aquele cheiro inconfundível de velho, de antigüidade que ninguém quer.

Mas não basta ser velho, que depois que a Peste Negra se foi ficou fácil chegar a uma idade de ancião. Bom mesmo é ser um velho chato. E eu seria um velho realmente chato, daqueles que reclamam de tudo, que peidam diante do genro e beliscam os netos, que mostram a eles doces que jamais darão, que furam a bola dos meninos que jogam na rua, que atrapalham namoros na praça, que dizem esquecer as coisas para que os tratem com absoluto monopólio de atenção.

Não furaria a bola dos meninos porque já não podia jogar, tampouco reclamaria do namoro dos jovens que não têm motel porque a impotência geraria em mim a inveja e a sensação de que tudo é indecente. Eu faria isso apenas pelo prazer de ser chato, ars gratia artis, um velho ranheta cheio de bile que sente um prazer genuíno em tentar fazer do mundo um lugar, se não mais desagradável, pelo menos um pouco pior. Finalmente, encheria o saco dos netos porque, afinal de contas, eles teriam que aprender que o mundo pode ser um lugar muito mau.

E quando eu andasse na rua, encurvado, reclamando do tempo que passou rápido quando não devia e que parou de passar quando devia se apressar, reclamando da morte que não vem; quando as pessoas rissem de mim e dissessem que virei um velho chato porque não como mais ninguém, eu riria baixinho, aquela risada banguela e nasal de velho chato, e me sentiria finalmente realizado, e poderia morrer em paz. Apenas pediria, como última concessão do tempo que teria se mostrado tão generoso, que me levasse antes que eu perdesse a noção de que estava sendo chato, porque aí a brincadeira perderia a graça, e a velhice duramente conquistada ao longo dos anos em que sofri e fiz sofrer teria perdido o sentido.

Saudades da Varig

Dandan diz:
Tu viajaria de fokker 100? Tô na dúvida aqui se compro pra minha mãe de fokker, pq tá mais barato.

Rafael diz:
Viajaria.

Rafael diz:
Mas com um certo receio. 😉

Dandan diz:
hehehe… antes dos acidentes eu viajei 2 vezes… hehehe

Dandan diz:
o da gol é 20 reais mais caro e não dá milhas… o que vc faria?

Rafael diz:
Viajaria pela Gol.

Dandan diz:
e parece até um “aviso”… eu já tentei comprar a passagem de mamãe umas 3 vezes e o site da gol dá problema… aí eu resolvi olhar a tam e vi esse…

Rafael diz:
É pra levar logo a sua mãe.

Rafael diz:
O Senhor vai chamando e a TAM vai levando.;)

Dandan diz:
ehehehhe

Dandan diz:
tô no site da gol já… de novo.

Dandan diz:
e antes falei com minha irmã aeromoça e ela disse que viajaria de fokker sim hahahah

Rafael diz:
Diziam que o avião se chamava Fokker 99 – os 99 que morreram naquele acidente da TAM.

Rafael diz:
Com a sua mãe, faz 100.:)

Dandan diz:
hehehehe

Dandan diz:
o site da gol não funciona, cara! hehehehe

Dandan diz:
Vou esperar pra comprar amanhã… hehehe

Rafael diz:
Compre pela TAM.

Rafael diz:
Sua mãe não é crente?

Dandan diz:
afff… tás me botando medo

Dandan diz:
é! hehehe

Rafael diz:
Ela reza e o avião não cai.:)

Dandan diz:
e ela ia até gostar… pq a tam tem lanchinho… hahahah

Rafael diz:
Bem, compra na TAM e manda ela rezar.

Dandan diz:
hehehehe

Rafael diz:
Sério.

Rafael diz:
Deus atende.

Rafael diz:
A não ser que ela realmente não tenha pecados.

Rafael diz:
Aí Deus leva ela.:)

Dandan diz:
hahahaha

Rafael diz:
Ela e o resto do avião. 😉

Rafael diz:
Sério, Dani.

Rafael diz:
Tudo bem que a TAM não tem comissário de bordo, tem papa-defunto, mas há quanto tempo um avião da TAM não cai?

Dandan diz:
é… tem dois vôos fokker 100 por dia, recife rio…

Rafael diz:
Pois é.

Rafael diz:
Ruim é se a porra do avião resolver cair justamente com sua mãe dentro.

Dandan diz:
hahahaha

Rafael diz:
Como quem diz “Olha, tem muito tempo que um Fokker 100 não cai, tá na hora”. 🙂

Dandan diz:
hehe vou ligar pra ela

Rafael diz:
Isso.

Rafael diz:
Bota a véia no Fokker 100 e ela que se vire com as rezas dela. 😉

Dandan diz:
ela disse que prefere o lanche da GOL hahahahhaha

Dandan diz:
mas se eu não conseguir comprar gol, que compre fokker 100 mesmo, pq se o avião cair, ela vai pro céu feliz hehehehe

Quando o rock realmente fez a diferença

A Barracuda acaba de lançar um livro fascinante: “Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado”, do jornalista inglês Matthew Collin.

O livro conta a história da rádio B92, de Belgrado, Sérvia, que durante a guerra dos Bálcãs representou um oásis de oposição e de sanidade. Ou melhor, conta a história da região em seus piores momentos: a desintegração da Iugoslávia, a guerra civil que destruiu as repúblicas separadas e desonrou o próprio conceito de barbárie, e o crescimento do crime organizado — tudo isso sob a perspectiva da B92.

Rádio que misturava um jornalismo ousado e crítico com música de vanguarda — o que havia de melhor na Europa da época — e com um humor de alta qualidade pela sua ferocidade, falta de limites e inteligência, a B92 era principalmente a obra de um desses raros rebeldes com causa: Veran Matic. A história de “Rádio Guerrilha” é, principalmente, a história de Matic e idealistas como ele, que tiveram a coragem de antepor, a um criminoso genocida como Slobodan Milosevic, a voz da rebeldia e da resistência.

A B92 de Matic só foi possível pelo caráter mais aberto do regime iugoslavo. Porque a crítica política era tolerada, mas principalmente pela abertura cultural singular do país, orgulhoso de sua posição superior aos demais países do Leste Europeu. Porque seus integrantes conseguiam juntar às evidentes conquistas sociais do regime de democracia populares as qualidades do capitalismo europeu.

Por isso, curiosamente, a B92 já nasceu anacrônica. Seus integrantes foram formados na oposição ao regime socialista, uma oposição de caráter principalmente econômico e cultural. Faziam oposição a algo sólido, perfeitamente identificável. Sabiam a que se opunham, e — curiosamente graças às eventuais qualidades desse regime — sabiam como se opor. No entanto, aquele era um momento que já havia passado, embora ninguém tivesse percebido isso. O que se gestava, naquele momento, era a tragédia de uma das guerras mais cruéis dos últimos tempos. Algo que ninguém podia esperar, e que se caracteriza, principalmente, pela confusão de valores e pela irracionalidade.

Paradoxalmente, foi justamente esse anacronismo, essa qualidade ética e clareza de conceitos na forma de fazer oposição, que fez da B92 um instrumento fundamental durante a crise de desintegração da Iugoslávia. Foi o que lhe deu a perspectiva necessária para enfrentar a escalada do nacionalismo e do terror na Sérvia e nas outras repúblicas balcânicas.

O resultado é uma história fantástica de coragem. A B92 representou, durante cerca de dez anos, a voz da razão em uma região caótica. A B92 soube ser séria sem perder, em nenhum momento, o bom humor, e é isso que faz da sua história algo muito interessante de ser contado.

O autor, Matthew Collin, correspondente de publicações como The Face, tem defeitos, claro. Sua prosa, em alguns poucos momentos, é excessivamente pop. Política não é exatamente a sua área de especialização, ao que parece, e às vezes essa deficiência leva a conclusões e análises talvez simplistas. Nada disso, no entanto, tira os muitos méritos do livro. Acima de tudo, “Rádio Guerrilha” é uma reportagem rigorosa e bem escrita sobre um momento fascinante da história recente, sob o ponto de vista da cultura pop. A decadência do socialismo no Leste Europeu, a ascensão do crime organizado para ocupar o vácuo criado por um capitalismo incipiente, as circunstâncias e a bestialidade que levam à guerra civil. Mas, principalmente, o livro relata o horror de viver essa guerra, e sua influência deletéria sobre toda uma geração e a sua relação com a sua própria identidade.

Talvez esteja aí sua grande qualidade: contar uma história complexa de forma simples, tendo por eixo elementos de fácil compreensão como a música pop e o humor. E Collin nunca perde de vista a dimensão humana de uma tragédia de proporções épicas.

“Rádio Guerrilha – Rock e Resistência em Belgrado” mostra que a música popular, quando aliada a uma ação política séria, pode realmente fazer diferença. Longe da rebeldia de butique, a B92 foi a prova de que conceitos que pareciam anacrônicos ao rock and roll, como rebeldia e contestação, podem assumir uma dimensão heróica e, finalmente, verdadeira.

Mais informações sobre o livro podem ser encontradas aqui.

Renata Maneschy

O post de ontem foi uma egotrip maior do que parece.

Do outro lado do diálogo estava uma moça chamada Renata Maneschy — Tata para os íntimos.

E um elogio da Tata — ou melhor, a concordância com um auto-elogio — conta muito. Não apenas porque ela é uma das mulheres mais inteligentes que conheço, ou porque nossas conversas num boteco qualquer de Copacabana (mesmo quando estouro e fico puto, né, Tata?) ou no MSN dariam um livro mais engraçado que qualquer coisa que o Monty Python poderia conceber. Mas porque, acima disso, acima da inteligência e do raciocínio rápido, acima da capacidade de sintetizar em poucas palavras pensamentos ao mesmo tempo cruéis, afiados e engraçadíssimos, a Tata tem um talento descomunal.

Por tudo isso, por ser seu amigo e por ter uma admiração quase sem limites, eu sou suspeito para falar da Tata.

Sou suspeito, mas não sou desonesto, como disse alguém que admiro sobre outro grande talento gráfico.

No site do Prêmio Esso, um dos mais importantes do jornalismo brasileiro, um livro com os melhores momentos do prêmio está sendo anunciado. E entre os destaques está ela, a Renata Maneschy, a moça que atualmente é a diagramadora do Segundo Caderno e do Prosa & Verso d’O Globo. Aspirantes a escritor fariam um bom negócio puxando seu saco. E ainda tinham direito a boa conversa, se conseguissem suportar a sua crueldade.

Lendo a lista dos destaques do Prêmio, uma coisa me chamou a atenção, algo que eu não sabia. E eu achava que sabia o suficiente. Sabia, por exemplo, dos quatro prêmios Esso que a Tata deixa jogados na casa dela; sabia até dos prêmios internacionais que ela tem.

Mas não sabia que, ao lado da Dorrit Harazim, uma grande jornalista, a Tata é a mulher com mais Prêmios Esso no Brasil.

Isso não é para todo mundo. Não, mesmo.

Por isso a egotrip de ontem. Os elogios de algumas pessoas contam muito. O da Tata é um deles.

A bunda da mulher de John Lennon

Na livraria, aparece um livro chamado “Como John Lennon Pode Mudar Sua Vida”.

Não li sequer a orelha, mas tudo indica que seja um livro de auto-ajuda. E a síndrome da auto-ajuda tem chegado a absurdos quase inimagináveis. Talvez porque a arte de escrever algo do tipo exige a observância estrita de algumas regras.

Por exemplo, não se pode ser muito original. É preciso dizer algo com que o leitor não apenas concorde, mas em que já tenha pensado antes. Auto-ajuda, no fundo, é apenas uma forma de bajulação do leitor, ainda que injustificada. É um elogio à mediocridade. O talento do escritor de auto-ajuda é o talento do redator, de alguém capaz de dizer o que já foi dito de maneira convincente.

E então chegamos a John Lennon.

Ao ver o livro fiquei imaginando o que, exatamente, John Lennon teria a me oferecer. Conheço razoavelmente sua vida, como os leitores provavelmente sabem. Um amigo, por sinal, filmou o sujeito esvaindo-se na noite de 8 de dezembro de 1980. Era produtor da MCA, passava por perto, ouviu os tiros e correu para lá. Não que isso aumente ou diminua meu conhecimento biográfico sobre o finado, mas demonstra, de certa forma, o meu interesse no assunto. Ou talvez nem isso: vai ver contei apenas para me vangloriar de conhecer uma testemunha do crime. Freud explica. Ou Adler.

O fato é que conheço razoavelmente a vida do sujeito, do número 251 da Menlove Avenue ao quinto andar — ou melhor, à calçada — do Dakota Building.

E talvez por isso me sinta autorizado a dizer que qualquer livro que pretenda ensinar a viver a partir do exemplo de John Winston Ono Lennon é uma fraude.

Afinal, o que se pode aprender com a vida de Lennon? A se viciar em heroína? A ser um pai abominável, tragédia agravada pelo fato de ter feito um trabalho melhor com o segundo filho, só porque este teve uma mãe mais exigente? A ser uma pessoa insegura, agressiva e assustada, alguém que compensava sua personalidade detestável com um carisma impressionante?

Eu não quero aprender a viver assim. O mais grave, no entanto, ainda não foi dito.

Na contracapa de Two Virgins, primeiro disco da dupla, Lennon e Yoko Ono aparecem nus, de costas. E a verdade trágica então se revela, uma verdade feia, triste: a bunda dele é mais bonita que a dela. Não que alguma das duas preste para alguma coisa, mas a bunda dela é mais feia que a dele.

Então é isso que Lennon tem a me ensinar? A casar com uma mulher com uma bunda mais feia que a minha? É a isso que chamam ensinar? Porque um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua é indigno desse nome, indigno como o pipoqueiro que oferece o primeiro cigarro de maconha ao garotinho da terceira série. Um homem tem o direito de casar com seios grandes ou pequenos, rijos ou flácidos; mas nunca, mas jamais poderá casar com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua. Esse não é um homem, não merece o direito de coçar o saco. Esse não é um homem.

Em verdade, não importa quão feia ou bela seja a bunda dela. Não. Este não é um conceito absoluto, porque toda bunda — quase toda — tem seus atrativos, suas graças. O que importa é apenas que ela seja mais bonita que a dele. O contrário é um crime contra bilhões de anos de evolução da espécie. É um crime contra as gerações que virão. Um casamento desse tipo só pode ser celebrado em um beco escuro na zona do cais do porto por um bêbado inconsciente e possuído por Belial — não, por uma legião de demônios, dos piores e mais malvados e mais cruéis que possa haver.

Aos homens que se casam com mulheres cujas bundas são mais feias que as suas já é reservado um justo castigo, o de não saberem em sua plenitude o que é encostar-se à bunda dela sob o chuveiro, com a mão ensaboada sob a dobra do seio; mas esse ainda não é castigo suficiente.

Um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua melhor faria se dormisse com cabras; e deveria ser justamente apedrejado por homens que depositariam suas vestes aos pés de Saulo de Tarso — e talvez tenha sido esse o crime de Santo Estêvão, casar com uma gentia cuja bunda era mais feia que a sua; e o crime de Madalena seria ter uma bunda mais feia que aquele com quem deitou em adultério, e a Bíblia teria escondido tudo isso porque é um livro de bondade e de perdão, paz na Terra às mulheres de bunda mais feia que a dos seus maridos.

(Mas no caso de Madalena o verdadeiro culpado é aquele que a cobiçou, pois não está em seu direito ao desejar a mulher do próximo quando a bunda dela é mais feia que a sua.)

Talvez eu exagere, mas tenho a impressão, sempre tive, de que Lennon tinha absoluta consciência do crime tenebroso cometido, e por isso cantava “Imagine que não há posses”; porque se não tivesse casado com uma mulher cuja bunda era mais feia que a sua, Lennon saberia que ela — a bunda, não a mulher — é sua propriedade única e absoluta, a ser guardada zelosamente com cerca elétrica e cães de fila. Mas Lennon não sabia de nada disso, não poderia, e tinha que se contentar em ser um sonhador. A falta que faz uma mulher cuja bunda é mais bonita que a sua.

Não, John Lennon não tem nada a me ensinar, o livro se me afigura inútil. A única coisa que Lennon poderia me ensinar seria a compor obras-primas, mas um livro não pode me ensinar a ter talento. E sobre o que é realmente importante, a capacidade de adorar a verdade calipígia, ah, sobre isso aquele rapazinho de Liverpool não tem nada a me dizer.

Os abacaxis de Neópolis

Um velho post sobre Neópolis continua insultando neopolitanos, como este sujeito chamado Jean Monteiro:

Caro Rafael Galvão, Você deve ter algum problema, alem do de escrever mal, talvez esteja na hora de pedir algumas lições de português para algum matuto ribeirinho, sei que é perda de tempo meu, falar com pseudo-intelectuais iguais a Você, caras que acham que o mundo gira em torno de si próprio, são incapazes de observar algo importante durante sua inútil vida, imagine numa hora, antes de escrever sobre algo, um conselho, se informe,para não escrever baboseiras. Veja por exemplo, a força da fruticultura irrigada com tecnologia de ponta(israelense) presente aqui em Neópolis, talvez o platô tenha passado despercebido a seu “olhar de lince” , o comércio local que emprega mais que a tal fábrica de juta, a qual Você se refere, a rizicultura irrigada responsável pela permanência do homem no campo, a instalação de uma unidade produtora de arroz(uma das maiores da América latina), e quanto ao Rio, caro Rafael acho que você deve ter visto uma lagoa qualquer não o Velho Chico, que continua lindo esbanjando vida. Nada contra o Rio de Janeiro , mas aqui p´ra nós, me dá uma inveja quando vejo no telejornal um tiroteio com moradores voltando pela contra mão, coisa que não acontece por aqui na matuta Neópolis, é, isso ai é um paraíso, mas pensando bem, vou continuar sendo matuto, morando aqui em Neópolis, que por sinal, não sente a sua falta.

Quanto a escrever mal, eu não posso fazer nada. Cachorro velho não aprende truque novo. Talvez, no máximo, melhore um pouco se olhar com atenção o estilo sem pontos do Jean Monteiro.

Mas ele menciona o Platô de Neópolis e uma unidade produtora de arroz. Ele não diz em seu comentário, mas a tal unidade, construída pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, é realmente grande. Tão grande que a produção local jamais deu conta de atender às suas possibilidades, e está abandonada há cerca de três anos.

O caso do Platô de Neópolis é mais grave.

Iniciado pelo governador João Alves Filho (aquele que está construindo uma ponte ligando o nada ao lugar nenhum) no início dos anos 90, o Platô de Neópolis foi anunciado com um grande projeto de fruticultura irrigada em escala industrial.

Para isso, João Alves desapropriou dezenas de pequenos sítios que tradicionalmente produziam cocos, e também algumas poucas grandes propriedades.

O projeto era ambicioso. Segundo as promessas, ali seriam criados 12 mil empregos diretos, sem contar os milhares de empregos indiretos gerados pelo cinturão de indústrias que se instalariam na região para processar as frutas. Seria construído até um aeroporto em Neópolis, para facilitar o escoamento da produção gigantesca que então se previa, levando as frutas para a Europa e para os Estados Unidos.

E então veio a realidade.

O Platô de Neópolis foi criado apesar de vários pareceres técnicos em contrário. A região estava longe de ser indicada para um projeto de fruticultura irrigada, pelos seus altos índices de pluviosidade e por ser uma das terras mais pobres em nutrientes do Estado, além de sofer fácil salinização. É preciso muita incompetência para se investir nesse tipo de irrigação em um lugar onde, ora bolas, chove.

João Alves não terminou o Platô. Ele só seria terminado no governo seguinte, de Albano Franco. O que João Alves deixou, em 1994, foram apenas terrenos vazios, entregues ao mato, sem utilidade.

As terras do Platô foram entregues a ricos e a grupos econômicos poderosos, entre os quais Matias Machline, o falecido dono da Sharp, e o também falecido Banco Econômico. Somente a família Franco, do ex-governador Albano, tem cinco unidades de produção no Platô. Foi feita, em suma, uma reforma agrária ao contrário, tirando terras dos pobres para dar aos ricos.

O resultado foi um dos maiores fracassos econômicos da história de Sergipe.

Os cítricos, uma das estrelas do projeto em um Estado que se orgulha de ser um dos maiores produtores de laranja do país, não se adaptaram à região. Hoje, o Platô de Neópolis produz basicamente coco de má qualidade, exportado para o sul do Brasil, um pouco de acerola e abacaxi. Dos 12 mil empregos diretos prometidos, o Platô gerou, em seu melhor momento, apenas 872 empregos, volume que apenas decaiu desde então. Quanto aos empregos indiretos, esses simplesmente não apareceram, assim como as tais indústrias, que nunca se instalaram na região.

Pior: o Platô de Neópolis é hoje responsável por um dos maiores e mais indiscriminados usos de agrotóxicos no Estado. E isso está criando problemas sérios. Os trabalhadores mergulham as mudas de abacaxi nos tonéis de agrotóxicos sem nenhuma proteção, o que está, literamente, matando gente.

Esse fracasso teve custos altíssimos, mesmo com o governador aplicando um calote memorável. João Alves pagou a indenização devida a apenas 5 proprietários, e hoje o Estado tem, com os outros, uma dívida de 80 milhões de reais em precatórios.

Incluindo essa dívida com os antigos proprietários, a aventura irresponsável e incompetente do Platô de Neópolis custou aos cofres públicos 200 milhões de reais.

Há quem afirme que, hoje, o Platô produz menos do que a área produziria se ainda estivesse nas mãos de seus donos originais. E é o caso de perguntar quais os méritos que o Jean Monteiro enxerga no projeto. Não parece haver nenhum — mas pelo menos 200 milhões de deméritos. Em qualquer país civilizado, um governante responsável por tamanho desperdício de dinheiro público estaria preso. No entanto, ele hoje é candidato ao seu quarto mandato, com as mesmas promessas mirabolantes, provavelmente porque sabe que contará com um Jean Monteiro para ver competência em seus fracassos.

Mesmo em Neópolis, muita gente gosta de abacaxi.

O Superman voltou

Quem ainda não assistiu a Superman Returns, vá assistir. Corra. Pegue a próxima sessão.

Desde a primeira cena, Superman Returns deixa claro que o seu principal referencial não são os quadrinhos. Ele não tem compromisso com aquela lógica, e sim com o universo criado pelos dois primeiros filmes com Christopher Reeve, dirigidos por Richard Donner. Essa genealogia está presente em toda a estrutura de Superman Returns, mas principalmente nas constantes referências ao seu antecessor. Jonathan Kent, por exemplo, continua morto. Tudo ali indica que ele é uma continuação, que faz parte do mundo próprio criado pelos filmes anteriores, com seus defeitos e qualidades. Frases inteiras são retiradas do filme inicial. Aqui e ali aparecem referências a momentos vividos mais de um quarto de século atrás.

Talvez essa seja a decisão mais acertada do filme: não renegar seu passado cinematográfico, e se inserir no universo criado por Richard Donner. Há referências aos quadrinhos, claro — o pulso eletromagnético remete a “O Cavaleiro das Trevas”, uma foto é homenagem à capa da Action Comics onde o Superman fez a sua estréia —, mas as principais são aos filmes de 1978 e 1980.

O início de Superman Returns é brilhante ao conseguir criar a atmosfera necessária para o filme. Pela música, uma das melhores que John Williams já escreveu e que, aos seus primeiros acordes, é capaz de trazer arrepios. Pela participação póstuma de Marlon Brando, cuja voz inconfundível dá humanidade a um filme que fala de um semi-deus. E pelo ritmo, perfeito, mais propriamente uma conquista da tecnologia do que do talento do diretor: já se vão longe os tempos em que o personagem era filmado contra um filme em exibição, e em que os cortes eram feitos em moviola.

A primeira aparição do Superman no filme é apoteótica. Como no primeiro filme, o Homem de Aço entra em ação para salvar Lois Lane de um acidente aéreo. Mas 30 anos de desenvolvimento em efeitos especiais fazem uma grande diferença, extremamente bem-vinda em um filme de super-herói. Além disso, já nessa cena Superman Returns traz um elemento essencial ao personagem, por mais que as pessoas esqueçam disso: humor. O mesmo humor que sempre fez parte da relação entre Lois e Clark e que foi bem aproveitado nos filmes anteriores. É o humor que alivia as dimensões sobre-humanas do personagem e que lhe garante alguma sobrevida.

Uma das decisões mais acertadas diz respeito à escolha de Brandon Routh. Ele não esconde que imita descaradamente Christopher Reeve (a quem o filme é dedicado), inclusive nos trejeitos. E o resultado é, para os mais velhos, uma transição indolor; para os mais novos, um Superman bastante adequado aos novos tempos. Falta a Routh, claro, o talento de Reeve; mas da maneira como o filme é construído essa é uma falha menor, e quase imperceptível.

Algumas participações especiais abrilhantam o filme. Como Frank Langella — um ator excepcional — no papel de Perry White, e a Peta Wilson num papel pequeno. Basta ouvir a voz da Peta (que fazia a Nikita no seriado de TV) para que uma pessoa normal pense besteira imediatamente.

O filme tem defeitos, claro. Brandon Routh e Kate Bosworth parecem jovens demais para seus papéis, mas isso se explica pela necessidade de permanência da série. O novo arranjo da música de John Williams a enfraqueceu — é no que dá quando se tenta reinventar a roda.

Por outro lado, um bocado de críticas foram feitas ao plano mirabolante de Lex Luthor. No entanto, é essa provavelmente a maior concessão aos quadrinhos feita pelo filme — e mesmo assim por seguir à risca a linha do filme de 1978. O plano de Luthor é uma versão atualizada do que a sua versão de 1978 empreendeu. E é isso que faz dele algo adequado. Esse Lex Luthor pertence a outros tempos, é um tipo de vilão que, em vez de preocupado em destruir o mundo, quer mesmo é ganhar muito dinheiro de forma muito rápida. Talvez um “super” seja suficiente em um filme só, não é necessário outro. Nesse caso, a humanidade e a mesquinhez de Lex Luthor são adequadas. E Kevin Spacey faz um bom trabalho, à altura do original de Gene Hackman — inclusive nas perucas.

O principal problema do filme, na verdade, é a absoluta unidimensionalidade do Superman. Ele não existe como pessoa, e isso empobrece a obra. Mesmo diante de dramas claros — sua volta e a impossibilidade momentânea de retomada do relacionamento com Lois Lane, além de outra mais importante perto do final —, seu personagem não tem absolutamente nenhuma profundidade emocional. É o que, à primeira, faz Brandon Routh parecer melhor Clark Kent que Superman; o Superman é etéreo, irreal. Ao mesmo tempo, o próprio Clark Kent é mal aproveitado, o que faz alguém se perguntar para que, afinal, o Superman precisa dele.

Mas mesmo com defeitos, Superman Returns é um belo filme de super-herói.