Jackson Barreto

Um bobo chamado Rafael Maynard tem tido seus comentários neste blog sistematicamente apagados. Não por serem comentários idiotas, que não cabe a mim julgar isso; mas porque ele insiste em fazer propaganda anti-Lula em posts que não falam de política. Eu falo de peitos bonitos e o sujeito vem com raiva anti-Lula; disso eu não gosto. Este blog não tem problemas com opiniões divergentes, e às vezes até mesmo entra em discussões, principalmente nas caixas de comentários; mas tem um certo senso de pertinência, de que há lugar para todo e qualquer assunto ser discutido.

Mas o seu comentário ao post sobre Paris (que definitivamente não tem anda a ver com política), esculhambando o deputado federal Jackson Barreto, por ter apresentado um projeto de emenda constitucional que possibilitaria uma segunda reeleição para Lula, me irritou:

tenho observado que ele em seu Quarto mandato(12 Anos) de Deputado Federal nunca apresentou e muito menos aprovou algum projeto de lei em beneficio do Brasil ou até mesmo da terra que o elegeu ( Sergipe). (…) Sugestão para os sergipanos: pesquisem quais foram os projetos relevantes para o Brasil e Sergipe de Jackson Barreto. Vocês vão se decepcionar: NENHUM !!!! Jackson Barreto é do tipo IMPRODUTIVO !!!

Ele assina “Rafael Maynard, 22 anos”, como se a pouca idade desculpasse sua ignorância e sua estupidez. Ele mesmo poderia seguir sua recomendação, e com mais propriedade. Antes de falar bobagens, devia pesquisar um pouco. Ele não sabe quem é Jackson Barreto.

Mas eu sei. Não somente porque vivo nesta terra, e já esqueci mais sobre política sergipana do que o Rafael Maynard possa vir a saber em toda a sua vida, mas porque Jackson é meu amigo.

Se o bobo do Rafael Maynard soubesse quem é Jackson Barreto, saberia também que foi o segundo deputado federal mais votado em Sergipe nas eleições de 2008 — inclusive com o meu voto. Que foi reeleito justamente por causa de sua atuação como deputado federal. Não acompanho a carreira parlamentar de Jackson, mas não custaria nada a pessoas como o Rafael Maynard dar uma olhada no site da Câmara dos Deputados para ver se, afinal de contas, Jackson tem ou não algum tipo de atuação parlamentar. Em vez disso, sua ignorância e sua burrice o fazem soltar ataques bobos

Se se informasse mais um pouquinho, esse bobo saberia que Aracaju tem uns poucos prefeitos inesquecíveis em sua história de pouco mais de 150 anos, e Jackson está entre os primeiros da lista.

Eleito duas vezes, em 1985 e 1992, Jackson foi o responsável por uma mudança significativa e fundamental na história de Aracaju. Foi Jackson quem, prefeito em uma cidade em que tradicionalmente se governava para uma pequena elite de comerciantes e agropecuaristas, levou pela primeira vez o poder público à periferia, invertendo pela primeira vez as prioridades em um Estado que tradicionalmente era dominado pela oligarquia da cana e que governava em função dos seus interesses. Se Aracaju é hoje considerada a capital brasileira com melhor qualidade de vida pelo Ministério da Saúde, isso deve em boa parte aos caminhos abertos por Jackson.

Por isso a minha irritação. Já há muito tempo cansei da ignorância dessa pequena racinha de direitistas que cospem estupidez e elitismo descontroladamente. Rafael Maynard faz parte daquela direita imbecil que não sabe do que fala, que só entende do ódio a Lula. Um ódio que diz respeito à concepção de país capitaneada pelo sujeito que, a despeito das pretensões elitistas de gente como o Rafael, está contruindo um país melhor.

O fato de ser amigo e eleitor de Jackson, e de reconhecer a sua importância histórica na evolução política do Estado em que moro, não impede que eu discorde de alguns de seus atos. Ao contrário dele, não acho que Lula deva procurar um terceiro mandato. Não por ser “inconstitucional”, algo que uma emenda à constituição não pode, por definição, ser. Mas porque acho que, mesmo com os riscos a que o projeto de país que defendemos ser posto por água abaixo numa eventual derrota, há certos valores cívicos e institucionais que devemos deixar de herança, para que este continue se tornando um país melhor. Mesmo sabendo que com uma eventual volta do PSDB/DEM muitas das conquistas que o Brasil teve nos últimos 6 anos iriam por água abaixo, que o país que estamos construindo sofreria um retrocesso grave, que veríamos novamente aquele projeto entreguista voltar a prejudicar o país, eu ainda acredito que somos melhores do que eles.

Mas ao mesmo tempo me impressiona o pavor que essa pequena corja sente em relação ao povo.

Esses mesmos macacos de auditório que hoje gritam contra um eventual terceiro mandato de Lula aplaudiram a emenda da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Só por isso eles, não deveriam ter o mínimo lastro moral para falar contra uma emenda constitucional. Aquilo — empurrar uma reeleição goela abaixo de todo um povo com movimentos de bastidores, compra de votos de uns tantos deputados e comprometimento de todo um governo, tudo isso ao largo da vontade popular — é que merece ser chamado de golpe.

Golpistas são eles.

A principal diferença entre o projeto de emenda de Jackson Barreto e o modo neo-udenista de fazer as coisas é que a reeleição de Fernando Henrique Cardoso foi comprada a um preço muito alto de corrupção, movimento típico de uma elite que sempre governou longe do povo. Enquanto isso, o que Jackson propõe é um plebiscito. Nada mais do que ouvir o povo brasileiro sobre a sua vontade: se eles querem permitir que Lula continue sendo presidente, porque entendem que este foi, apesar de tantos incidentes, apesar de tantas falhas, o melhor governo já realizado por um presidente brasileiro. É isso que assusta pessoas como o Rafael Maynard: a idéia de o povo sepulte de uma vez por todas a noção que eles porventura ainda possam ter a respeito da qualidade do projeto de país que eles patrocinaram.

Twitter

A Aline perguntou se eu iria para o Twitter.

Eu adoraria. Mas não vou.

Não é uma questão de dilema existencial como o que o Hermenauta atravessa. O Twitter fez o Hermê se tornar o Hamlet da blogoseira brasileira, dividido entre o desejo do novo e a compreensão da realidade. No meu caso, é em primeiro lugar uma questão de falta crônica de tempo, mesmo.

Mais precisamente, faltam dois tipos de tempo. Jorge Semprún dizia que, mais que o tempo objetivo, é preciso tempo interior para escrever algo. Eu nunca acreditei em quem se diz ocupado demais para fazer certas coisas, mas sei o que é falta desse tempo interior de que o sujeito fala. Quem já passou pela experiência tenebrosa de abrir um livro e não conseguir entender as frases escritas ali porque a cabeça teima em não voltar de outro lugar sabe exatamente o que é isso.

Talvez seja por essa razão que olho para o Twitter como quem contempla uma brincadeira de criança que nunca viu antes. Pode parecer coisa de velho que não consegue compreender direito o progresso, e talvez seja, mas vejo o Twitter como algo para quem passa o dia inteiro ligado na internet e que tem esse tempo disponível. Gente que consegue encontrar sites e notícias interessantes para compartilhar. Que tem algo a dizer. Que consegue fazer sentido da rede social que se cria ali.

Não é o meu caso. Eu sinceramente não tenho tanto a dizer. Indo um pouquinho além, acho também que a imensa maioria das pessoas que usam o Twitter tampouco têm; mas isso não interessa, porque não cabe a mim ou a ninguém dizer o que as pessoas devem fazer com seu tempo.

Além disso, a internet não me interessa tanto assim. De certa forma, nunca interessou: eu nunca consegui ver graça no Orkut; nunca consegui me mover no Facebook. Um pouco disso, certo, é só cansaço; quantas bobaginhas anunciadas como revoluções eu já vi passar apenas nos últimos dois ou três anos: del.icio.us, Digg, Tumblr — e as pessoas voam de um para o outro como mariposas encantadas por uma luz mais forte, uma luz que mais cedo ou mais tarde se apagará e será substituída por outra. Há também as “verdadeiras”: em quase 15 anos de internet, eu já devo ter assistido — às vezes de camarote — a várias dessas revoluções: homepages, IRC, MSN, blogs. É revolução demais para uma vida só — principalmente para um baiano que, por índole e por talento, gosta de ver essas novidades deitado numa rede e achando graça da ligeireza das pessoas. Ninguém precisa de tanta revolução.

Não que o Twitter seja igual a essas novas novidades que citei agora. Também não digo que não é: mas certamente acho que existe um grande exagero em tudo isso — e é aí que entra o tal cansaço de que falei antes, a impressão de que se eu ficar paradinho a moda vai mudar e eu não vou ter perdido muita coisa. Um exemplo foi a importância que deram a um sujeito que narrou seu resgate do avião em que estava, e que tinha acabado de amerissar no Hudson, como uma revolução jornalística: e aquilo não era nada, porque não era relevante, não fez diferença. É só a neurose da informação de última hora, a ditadura vazia do “real time“. Não acho que alguém precise realmente disso.

Que me desculpem todos aqueles que gostam do Twitter, mas não vejo sentido em tanta informação. Por dever de ofício, leio alguns jornais por dia; por prazer, leio alguns blogs. Por graça, tento escrever um blog; por tristeza, namoro as lombadas dos livros que comprei e que não tive tempo para ler. O Twitter iria estragar essa rotina simples. Tudo isso é mais informação do que consigo processar.

Finalmente, há uma outra razão: eu gosto deste blog. Anda ruinzinho que dói, esparso como nunca, mas eu gosto dele. São quase 6 anos e alguns milhares de loucos que por alguma razão ainda gostam de ler isto aqui. O Twitter acabaria com ele. Se houve um tempo em que havia novos posts todos os dias, às vezes mais do que um, hoje se consigo colocar um ou dois por semana eu me dou por feliz. Com o Twitter, não teria nem isso. E quando este blog morrer não vai ser porque eu o canibalizei. Pelo menos isso eu devo a ele.

De qualquer forma, a esperança de tempos mais tranqüilos permanece, e já reservei o meu lote ali. Um dia, se ele ainda existir daqui a algum tempo, eu entro no Twitter. Mas vai demorar. Eu sou só um baiano preguiçoso.

Uma pequena defesa de Londres

Bruno, foi com atenção que li o seu texto sobre Londres. Li com tanta atenção que resolvi fazer, aqui, uma defesa da sua cidade. Acho que você cometeu alguns equívocos — que vou creditar ao seu amor por ela, à sua extrema boa vontade para com um lugar onde você viveu, e à sua justa indignação com a declaração de amor de um paraíba pela cidade pela qual se apaixonou há tantos anos e de que nunca mais esqueceu.

Londres é uma boa cidade, e eu gosto muito dela, e não tenho nenhuma intenção de diminuí-la. Por isso me permito aqui, com a sua licença e compreensão, tentar lhe sugerir elementos para uma defesa menos apaixonada. Começo citando um trecho do seu post:

Enquanto os gárgolas de Notre Dame te fazem gozar de pau mole, a resoluta Abbey resplandece em verdes campos, costurada majestosamente pelo Tâmisa, turvo e raivoso.

Na verdade, não é bem Notre Dame que me chama a atenção em Paris; o que me faz virar o pescoço são as damas que andam por suas ruas. Mas acho que você acertou ao evitar tocar nesse assunto: seria bobagem tentar comparar as francesas, com sua elegância e seu talhe esbelto, às inglesas — que pobre gente feia aqueles ingleses, não é?

Eu, no entanto, teria preferido falar de uma das pequenas delícias de Londres que você deixou passar: o costume de deitar e comer nos parques, como o Green ou o Hyde. Acho que os ingleses fazem isso porque, ao contrário dos parisienses, não têm uma cidade bonita pela qual flanar, mas cada um se vira com o que tem — e que povo melhor para suportar as adversidades do que o inglês? Vamos então deitar nos parques, olhar as flores em volta e esquecer que além de suas grades está uma cidadezinha feia, mas simpática.

E você, querido Rafael, fala de Balzac du Paris como se minha cidade não tivesse meu Shakespeare e minha Woolf of London.

Sabe, Bruno, acho que aqui você fez uma má escolha. Eu não teria utilizado esses dois porque não acho que sirvam de contraponto: se você reparar direitinho, vai ver que nenhum deles parece se interessar por Londres. O que eles percebiam era que, digamos assim, não era interessante falar daquela cidade, e se voltaram para a investigação do indivíduo porque não tinham motivos para falar de Londres. Não há deles nenhuma declaração de amor à capital inglesa, nenhuma vontade de passear por seus becos e suas ruelas, nenhuma percepção da cidade como criatura e criadora de um povo, como Balzac percebe em Paris. Sim, eles também eram gênios — e por serem gênios sabiam que Londres não valia a pena.

Shakespeare, especialmente, ambientou suas peças mais famosas — “Romeu e Julieta” e “Hamlet”, mais precisamente — em Verona e na Dinamarca, porque Londres não era um bom lugar (sem falar nas outras, claro: “Os Dois Cavalheiros de Verona”, “O Mercador de Veneza”, “Otelo”, “Tempestade”). Isso é compreensível. Londres não lhe parecia adequada, especialmente, para uma grande história de amor: “O, swear not by the moon, the inconstant moon that monthly changes in her cycled orb, lest that thy love prove likewise variable” — como colocar uma cena tão bela em Londres, se o diabo do fog não deixa desgraçado nenhum ver a lua? Como Romeu poderia jurar o seu amor a sua Julieta e, em troca, receber tão doce admoestação diante de um céu obtusamente nublado?

Sabe, eventualmente Balzac colocava seus personagens em outras cidades que não Paris: corsos vingativos, medíocres de Angoulême, provincianos de Besançon — sempre para chegar à conclusão de que a sua era a melhor cidade do mundo. É essa a diferença. O maior escritor francês cantou a sua capital; o maior escritor inglês foi procurar outros ares.

Então eu falaria de outras coisas. Falaria de Jack, o Estripador, por exemplo. Falaria da polícia que mata brasileiros no metrô. Ou lembraria de Drácula, de Mr. Hyde, de Frankenstein — Londres é um cenário perfeito para esse tipo de história.

A beleza de Paris é tão efemera que se esvai no momento em que se respira o ar da cidade por mais de dois dias

Não. A beleza de Paris não é efêmera. Apenas parece assim se comparada ao edifícios pesados de tijolinhos amarronzados que fazem Londres. O que você chamou de efêmero na arquitetura de Paris é na verdade uma elegância fluida, haussmaniana, que a torna extemporânea.

Por isso, em vez de comparar dois estilos — um voltado para a beleza, outro para a funcionalidade — eu falaria da forma como Londres se apega pouco ao passado, como os belos prédios modernos se misturam a predinhos atarracados cor de cocô. Londres parece tanto com São Paulo em alguns aspectos. Principalmente na feiúra tão absoluta que a gente pode até confundir com beleza. Não é por outra razão que o mesmo sujeito que compôs o hino de São Paulo compôs “London, London”. Caetano compreende essas duas cidades irmãs. Londres não tem motivos para preservar sua arquitetura horrorosa, e seria essa qualidade que eu exploraria.

Se o Arc de Triomphe é belíssimo, a Trafalgar Square é mais. Se o grande Louvre, que de fato é foda e merece até uma história do Mini Viking, sou mais o British Museum e o Tate Modern

Dispenso o Tate Modern porque acho arte moderna uma grande fraude, mas eu também acho que o British é melhor que o Louvre. O problema é que o que está em torno do Louvre é melhor que o que está em torno do British. Quanto a Trafalgar Square, além de uma questão de gosto, sua única qualidade mesmo é que dali você consegue ver a sua bela “Abbey” — ao contrário do Arco de Napoleão, que embeleza a Champs Elysées com a sua visão.

Enquanto você regojiza nos cabarés, seu pseudoboêmio, lágrimas escorrem dos meus olhos ao pensar no meu Globe Theater of old.

Ah, Bruno, meus tempos de boemia se foram com meus verdes anos. Mas confesso que, entre um cabaré e um teatro, é no cabaré que meus devaneios recaem primeiro. Infelizmente, não é esse o caso. O problema aqui está no fato de que, quando uma cidade precisa recorrer a um teatro demolido há séculos para encontrar uma razão que justifique a sua existência, ela tem problemas sérios. Como você pode preferir um teatro inexistente a um cabaré que ainda hoje pode lhe oferecer o paraíso?

No seu lugar eu perguntaria: para que cabarés se você tem as criptas londrinas de St. Pancras? Para que cabarés com moças de pernas belas rodopiando se você tem a circunspecção inglesa? Para que cabarés com moças de pernas belas rodopiando com seios arfantes se você tem a fleuma britânica?  Para que cabarés com moças de pernas belas rodopiando com seios arfantes e bocas úmidas entreabertas se você tem a elegância de um terno bem cortado em Saville Row?

Se você, querido Rafael, adora os cafés blasés – tem palavra mais parisiense que ‘blasé’? – e fica, com sua cigarrilha e chafé, lendo Le Monde e conversando com uma magrela de boina e poodle preto no colo, eu vou pro Starbucks em Camden Town e com meu Soy Venti Latte me divirto com os punks e lindos degenerados, performers de rua e meu povo de All-Star no pé.

Blasé é uma palavra francesa como snob é uma palavra inglesa — e talvez seja o smog londrino dos tempos do Globe Theater que não te deixe perceber a beleza parisiense. Mas acho que entendi o que você quis dizer com seus punks degenerados. O problema é que esse foi outro equívoco, porque pelo visto você não conhece os imigrantes que dançam street music no Boulevard Rochechouart nas tardes de sábado, ou as multidões de esquisitinhos que se aglomeram na porta do Elysée Montmartre, ou ainda os patinadores em frente ao Palais Royal.

O problema dessa linha de defesa é que malucos há em todas as cidades. Então, para defender Londres diante da injusta comparação com os cafés parisienses, eu falaria dos pubs, do ambiente alegre, da alegria que é sentar com os amigos (saudades de você e do Sven, Carol) e beber cerveja, tendo a única preocupação de sair de lá antes que os ingleses encham a lata e comecem a dar porrada nos estrangeiros. Lembraria que apesar disso um pub inglês é um bom lugar para se estar, principalmente se lá fora estiver caindo aquela chuvinha típica de Londres.

E, embora eu esteja aqui tentando te ajudar na defesa dessa cidade agradabilíssima que é Londres, eu preciso repetir o que já disseram o Idelber, o Wilson e a Lolla: citar a Starbucks como vantagem londrina é se ajoelhar no chão e pedir perdão pelas bobagens que acabou dizer. Em vez disso, nós poderíamos defender Londres dizendo que café não presta, que bom mesmo é chá, e melhor ainda é o chá das cinco. Mas pobre de uma cidade que não pode ter orgulho do seu café.

Bem, acho que posso ficar por aqui. Espero ter contribuído um pouco para melhorar a imagem dessa cidade maravilhosa de que ambos gostamos tanto.

Paris

Ah, Bruno, você nunca vai entender Paris, e eu choro por ti, meu amigo.

Não pense que não entendo por que você prefere Londres. Entendo que você ame a vida da cidade, o dinamismo, a simpatia e a gentileza das pessoas, a capacidade estóica de comer a pior comida do mundo e ainda assim sorrir, mesmo com os dentes feios dos ingleses. Entendo tudo isso, e até admiro a cidade. Eu gosto de Londres. Gosto muito, quase tanto quanto de Aracaju, quase tanto quanto do Rio.

Mas em troca você não entende que Paris está além e acima da vida. Paris é infinita. E é maior que o amor do poeta, porque também é imortal.

Sous le ciel de ParisVocê nunca pensou nas razões pelas quais Paris é chamada a Cidade Luz? Não é só por causa de uns filósofos de tantos séculos atrás, que filósofos, aliás, Londres também teve e em quantidade bem razoável. Paris é a Cidade Luz porque representa, mais que qualquer outra cidade no mundo, um ideal de vida.

Você não entende que a diferença entre Paris e Londres seja a diferença que havia entre Apolo e Hermes, a diferença entre a beleza e a funcionalidade. Você gosta de Londres pelo que ela lhe oferece; Paris é Paris pelo que é.

É isso. Londres não seria nada sem os londrinos. Paris é Paris apesar dos parisienses.

Por isso eu choro por ti, meu amigo. Choro porque você nunca vai saber o que é simplesmente andar pelas ruas de Paris sem se preocupar com o seu destino, andar apenas pelo prazer de estar ali, porque vale a pena passear pelas ruelas do Marais. É por isso que aqueles que se dedicam a esse pequeno prazer até ganharam um nome também único, flâneur. O reconhecimento de um valor que pode existir por si só, que dispensa um destino e uma razão, é uma das coisas que fazem Paris ser Paris. E isso só é possível pela sua beleza, por detalhes simples como a certeza talvez até arrogante de ser a mais bela cidade do mundo.

Talvez o erro de todos aqueles que, mistificados pelas trevas da incompreensão, dizem preferir Londres a Paris seja uma certa incapacidade momentânea de perceber o que Pasolini dizia no final do seu Decameron: para que realizar algo, se é tão mais belo imaginar?

Deixe-me dar como exemplo a mania inglesa por flores. Se pode haver uma explicação para os jardins de Londres, tão obviamente mais bonitos que os de Paris, é essa: os ingleses precisam embelezar sua cidade; os parisienses já têm uma obra pronta. E por terem mais, quando se preocupam com flores, em vez de plantá-las eles as pintam — e Paris é Paris porque teve um pintor míope como eu pintando ninféias do jeito que as via. É essa a beleza da aventura humana: a capacidade de reimaginar o mundo além do que ele é. É isso que Paris representa. Londres está ocupada em corrigir um trabalho de um mau artista; acima disso, Paris se dá ao luxo de reinventar a vida ainda mais bela.

Sabe, Bruno, Paris não é e nunca vai ser uma questão de gosto. O Museu Britânico é melhor que o Louvre, na minha modesta opinião — mas eu confesso preferir estar do lado de fora do Louvre, tentando acertar com cuspe a cabeça de um dos sujeitos a bordo de um bateau mouche, a estar dentro do Museu Britânico.

Paris é Paris porque teve um Balzac reinventando-a de maneira monumental, porque teve um Dumas lhe dando um ar etéreo de heroísmo idealista e de juventude, porque teve um Zola e uns irmãos Goncourt falando coisas que a pudicícia vitoriana jamais deixaria alguém falar em público. Paris não é Paris porque tenha amado mais ou vivido mais, mas porque soube cantar esse amor e fazer dele a sua razão de ser.

Paris tem a Marguerite Gautier. Londres tem Elizabeth Bennet. E aqui está a diferença entre elas, que não se resume ao artigo definido diante do nome daquela: cá embaixo uma moça que viveu como quis e mesmo assim se deixou morrer de amor; e daqui a muitos anos, agonizando diante do fim de tudo, eu olharia para trás e certamente gostaria de ter vivido com ela. Em Londres, não. Em Londres, it simply is not proper, dear. E como amar assim, Bruno? Como amar se preocupando com essas coisas pequenas e mesquinhas do dia? Paris é Paris porque ali, num café qualquer de Montmartre, você pode dizer à mulher que ama que esse amor é incondicional, e para sempre.

Talvez você me diga que isso é bobagem, que a vida não é assim, que essas coisas que eu chamo de medíocres fazem parte dela. E então eu lhe responderei que é justamente por isso que Paris é Paris: porque ela se permite, e permite a nós, alçar vôos acima disso, dessa realidade boba que nem sempre é sinônimo de felicidade. Paris nos permite ser maiores que nós mesmos.

Paris é Paris porque enquanto os poetas ingleses choram que abril é o mais cruel dos meses — o tempo, sempre o tempo –, os franceses debocham de seus leitores hipócritas e enquanto olham cobiçosos para uma mulher madura dizem preferir os frutos do outono à flores banais da primavera.

Em Paris, até Belleville tem charme e tem espírito — e não é o charme caro de Regent Street, mas um tipo especial que empresta suas graças até aos marroquinos e senegaleses que falam alto.

Não tenho certeza de que, alinhavando essas poucas razões pelas quais prefiro Paris, eu tenha conseguido te fazer entender. Mas talvez possa lhe explicar tudo isso mostrando que Paris não é Paris apenas porque teve Modigliani em seus cafés. Paris é Paris porque teve Jeanne Hébuterne se jogando do quinto andar um dia depois da morte dele, sabendo-se incapaz de viver sem o grande amor da sua vida.

Paris é Paris, Bruno, porque por mais que tente, você não pode imaginar Humphrey Bogart dilacerando sua alma e olhando pela última vez para Ingrid Bergman enquanto diz: “Nós sempre teremos Tottenham Court.” Não, não. Paris é a cidade que lhe dá a certeza de olhar para a mulher amada ao seu lado, ela com frio e implorando para parar em um café, e então, mesmo sem saber o que vai ser do futuro, você e ela ainda terão a certeza de que sempre terão Paris. E nada, absolutamente nada poderá arrancar isso de você.

Café

Muitos anos atrás o Bombordo, um antigo site de esquerda, publicou um texto em que se falava do medo que a Starbucks, então acabando de anunciar sua vinda ao Brasil, viesse a destruir a tradição brasileira do cafezinho.

Eu achei graça, na época, porque me parecia um tanto óbvio que, por melhor que fosse a Starbucks (eu não a conhecia na época), era virtualmente impossível que ela fizesse algum estrago em um país com uma cultura de cafezinho tão forte — e cafezinho vendido a alguns centavos em qualquer bar de esquina. Eu duvidava que ela, por exemplo, tivesse capacidade de enfrentar os vendedores que levam garrafas térmicas em carrinhos de rolimã pelas ruas de Salvador. É preciso comer muito vatapá para conseguir vencer as melhores tradições baianas, e a Starbucks não parecia ter estômago para isso.

Lembrei disso depois que vi o post do Morróida sobre a cafeteria. Eu gostaria de assinar embaixo. A Starbucks é uma droga.

Eu até entendo as razões pelas quais a Starbucks fez tanto sucesso. Não é difícil admitir que ela oferece um café melhor que o comum nos Estados Unidos — aquela coisa esquisita, parecida com a água que se obtém ao lavar um coador recém-usado. Também faz algum sentido em Londres, onde o café é tão ruim que você quase acredita que aquilo que a Starbucks lhe oferece é realmente algo decente. Mas em Paris ou Roma, onde se toma o melhor café do mundo, ela só faz sentido para turistas com os pés em chamas que precisam sentar num lugar para descansar um pouco, talvez tirar um cochilo, usar o banheiro unissex e olhar o pessoal acessando a internet de lá. Nisso ela é excelente: oferece um espaço social que poucos lugares nessas cidades podem ou querem oferecer. Traduzindo: a Starbucks vale apenas porque você pode se enfiar lá de graça por horas.

Eu tenho certeza de que é por isso, pelo reconhecimento de que seu café não vale nada, que eles insistem tanto naquele negócio de comércio justo, de estar ajudando os pobres cafeicultores de, sei lá, um grotão qualquer da Etiópia. Agregam valores sociais para mascarar o que deve ser uma experiência individual, critérios externos e um ambiente acessível para esconder a verdade: seu café é tão ruim que a gente só toma para dar esmola a lavradores colombianos.

Falo do expresso, apenas. Não posso falar dos outros, porque expresso é a única coisa que já tomei ali. Eu me recuso a sequer experimentar aquelas bebidas esquisitas que, segundo boatos, em algum momento levam café como um (e apenas um) de seus ingredientes. Essas bebidas são uma ofensa a quem gosta de café.

Eu, por exemplo, gosto. Até pouco tempo atrás, tomava cerca de um litro por dia, provavelmente mais — e às vezes muito mais. É por isso que me sinto autorizado a dizer que café bom, mesmo, é aquele feito em casa, coado em coador de pano mantido sempre úmido.

Café é algo tão absurdamente bom que está ligado a momentos bobos e inesquecíveis na vida. Como uma xícara na casa de minha bisavó, num dia de chuva há quase 25 anos; um em Paris, numa ruela perto de Notre Dame, pouco mais de 10 anos atrás. E o café que minha avó fazia — sua empregada dizia que era preciso fazer curso para fazer um café que a agradasse.

Esse é o melhor café que se pode tomar: bem feito, forte na medida certa, e sem pretensões, sem nomes complicados feitos para que você esqueça que aquilo é pouco mais que uma grande fraude.

O segundo melhor é aquele que a gente toma no boteco na esquina, de preferência em pé e demorando um pouco até dominar a arte de usar aqueles açucareiros.

(Eu, pessoalmente, dispenso as cafeteiras italianas que o Allan ensinou a usar. Ou melhor: tentou. Culpa minha por não conseguir aprender, ou ter o gosto ainda arraigado em coisas excessivamente simples, excessivamente velhas.)

Infelizmente esses cafés estão se tornando cada vez mais raros, desbancados por uma febre que veio da Itália, o expresso. É até um substituto aceitável ao bom café — em Aracaju, o melhor expresso é o da livraria Escariz, mas nos últimos dias ele tem saído ruim. Há expressos bons e expressos ruins; mas eles sempre me passarão a impressão de que são aleatórios, de que a máquina italiana tenta substituir, nem sempre com sucesso, o talento e a boa mão de alguém que sabe fazer um bom café. E um bom café é algo que não se pode substituir.

A avó de um amigo meu, por exemplo, moía o café no pilão, com mel. Contei isso a outro amigo, que resolveu fazer a mesma experiência em sua máquina caseira de expresso — máquinas demoníacas das quais o incauto deve manter prudente distância. O mel entupiu e quebrou a máquina. E eu não consigo encontrar exemplo melhor de tudo o que disse aqui.

Robin Hood

Fiquei sabendo por acaso que estão fazendo uma nova versão de “Robin Hood”, agora com Russell Crowe no papel de Robin.

Sou de um tempo anterior a videogames, em que livros, televisão e brincadeiras na rua constituíam a base da nossa educação real. Ler e reler as aventuras de Robin Hood eram parte disso. Mesmo sem ser um exemplo clássico, Robin Hood é, ainda que residualmente, um dos poucos exemplos do espírito medieval que se encontra nos romances de cavalaria. Nós já não líamos Amadis de Gaula, que isso ficava para um certo Alonso Quijano; mas ainda líamos e víamos Robin Hood. Não sei se esse pessoal mais novo ainda gosta da lenda. Acho improvável. Devem preferir algo menos rico como Jaspion ou Transformers, mas mais atual e inserido no novo zeitgeist.

É por isso que sempre que surge uma nova adaptação cinematográfica, aqueles que conhecem a lenda ficam esperando mais uma pequena tragédia — ou pelo menos eu fico. (O fato de o novo filme ser dirigido por Ridley Scott, diretor de longa trajetória medíocre e apenas três excelentes acidentes de percurso, Alien, Blade Runner e “Os Duelistas”, não ajuda a elevar as expectativas.)

Minhas expectativas não foram frustradas pela versão de Kevin Costner no início dos anos 90, que incluiu um Morgan Freeman num papel de sarraceno apenas para colocar um negro na história; nem pelo seriado atualmente exibido pela BBC de Londres (no Brasil pelo Hallmark) que coloca no bando uma mulher — a Idade Média, como se sabe, foi uma época de florescimento do feminismo — hindu, reflexo da Inglaterra multicultural destes tempos, além de um Robin Hood excessivamente imaturo e absolutamente implausível para conquistar a confiança de um bando de marginais. Desconto aqui as situações dramáticas irritantes, mas necessárias à duração da série — embora a transformação do xerife de Nottingham em um vilão louco de filme de super-herói seja um pouco demais para os meus gostos já velhos.

Na verdade ainda não vi nenhuma adaptação de Robin Hood melhor que a de Michael Curtiz, estrelada por Errol Flynn e seguramente um dos 100 melhores filmes da história do cinema (além de um dos primeiros em cores). Assim como não há “Os Três Mosqueteiros” melhor que o dirigido por George Sidney em 1948, com Gene Kelly, Van Heflin e Lana Turner. Acontece que os padrões estéticos atuais fazem um mal danado a histórias clássicas como essas. Dia desses assisti a um tal de “A Vingança do Mosqueteiro”, adaptação bisonha da obra de Alexandre Dumas, que quase deu vontade de vomitar. Não é apenas o desrespeito à história. É a mania de deixar tudo espetacularizado demais, rápido demais.

Um pouco disso, eu sei, é má vontade minha. Robin Hood é uma lenda que variou ao longo de séculos — na verdade, por ser uma lenda, permite a princípio toda e qualquer modificação. Se os produtores hoje resolvem que vão colocar heróis vestindo roupas de couro à la rockstar em vez de o “bom pano verde de Lincoln”, como os originais, é uma concessão boba que se pode aceitar em nome da passagem dos tempos e dos gostos de massas cada vez mais ignorantes. Mas a maioria dessas versões cometem também um erro grave, porque dizem respeito ao espírito da lenda de Robin Hood.

Assim como a lenda do rei Arthur — cá entre nós, pouco mais que um chefe tribal corno que acreditava em um charlatão chamado Merlin—, Robin Hood — cá entre nós, pouco mais que um ladrão — é um dos mitos fundadores da Inglaterra. Issso é algo que aqueles que costumam cantar a superioridade cultural inglesa deviam sempre levar em conta, quando reclamam dos nossos: os mitos fundadores da grande Inglaterr são um corno e um ladrão).

Robin Hood reflete bem o caráter do povo inglês. Se algum Robin jamais existiu, provavelmente não era mais que um ladrão com boas relações com a vizinhança, uma espécie de Escadinha; coube ao povo idealizá-lo e romantizá-lo como uma válvula de escape, um retrato de suas aspirações, e uma ferramenta de definição de sua própria identidade. Daí a subversão e a rebeldia presentes em sua lenda, a resistência à opressão que se tornou sua marca registrada — e que Walter Scott cristalizou bem em “Ivanhoé”. E daí, principalmente, o humor.

O riso sempre foi fundamental na lenda de Robin Hood. Mistificação e engano são provavelmente as suas maiores armas, mais que sua habilidade no arco e flecha ou as façanhas do Frei Tuck ou de João Pequeno. Não é porque roubava que Robin Hood se tornou herói, porque ladrões sempre houve muitos por aquelas bandas. Mas de acordo com a imagem que o povo criou, ele não perdia uma chance sequer de ridicularizar o xerife de Nottingham ou o bispo de Hereford, símbolos das duas grandes instituições de seu tempo, a Igreja e algo que se assemelha ao Estado. Não era à toa que o seu bando foi cantado ao longo dos séculos como “Robin Hood and his merry men”. A irreverência e o deboche que fazem parte do espírito inglês encontraram em Robin Hood o seu refúgio perfeito — enquanto a seriedade e superioridade moral da Távola Redonda atendiam a outra necessidade desse processo de formação cultural. Em vários dos episódios da lenda, Robin Hood leva a pior: alguém lhe prega uma peça, um João Pequeno lhe enche de porrada, e essa falibilidade do personagem lhe enriquece profundamente.

No entanto, parece que só há Robins tristes por aí. Kevin Costner, com sua cara de Gary Cooper de segunda, certamente não tem aquele ar flamboyant de um Errol Flynn. Mas Russell Crowe deve ser ainda pior. Diretor e ator fizeram juntos “Gladiador” — e algo me diz que eu posso esperar um Robin Hood feroz e macho, incontáveis cenas de sangue, algumas batalhas grandiosas e violentas e cenografia megalomaníaca.

É por isso que, até hoje, a versão de Michael Curtiz continua insuperada. Os filmes recentes sobre Robin Hood não trazem nada disso, perdem sua essência ao tentar atualizar algo que não pode ser atualizado; ou, talvez, em uma tentativa de acrescentar alguma novidade a algo que não pode e não deve ser atualizado. É difícil imaginar um Kevin Costner, com sua cara de Gary Cooper, pregando uma peça no xerife de Nottingham. E Russell Crowe está mais para Gladiador do que para um ladrão boa praça como Robin Hood.

É ruim ficar velho e ter lembranças de tempos melhores.

A República Morumbi-Leblon

A melhor foto da semana foi publicada pela revista Época.

Un grupo de manifestantes paulistas, alguns deles usando um quipá, reutiliza o verso de um banner — a piada está pronta, mas eu não vou usar — da última campanha de Alckmin para protestar contra a visita de Ahmadinejad. De quebra, misturam alhos com bugalhos e dão também o seu recado ao presidente venezuelano Hugo Chávez.

House, MD

De vez em quando vejo “House”, seriado exibido pela Universal.

House, para quem não assiste à TV a cabo, é uma espécie de “ER” com um personagem central grosso e malvado. É um médico pretensamente genial, aparentemente capaz de diagnósticos brilhantes enquanto faz algo totalmente diverso da atividade médica, geralmente no final de cada episódio. Por exemplo, alguém fala sobre a barriga do Ronaldinho e ele descobre a cura para a Aids, coisas assim.

As pessoas assistem a House e se empolgam com os termos técnicos que ele usa. “Faça um HDGDSF agora!” “Faça uma rinostomia, uma histerectomia e uma tomografia!” — desculpe se os termos são confusos ou inexistentes: o que sei de medicina se resume às palavras “Novalgina” e, agora que tem genérico para tudo, “Dipirona”. Mas se não entendo nada de medicina, tenho certeza de que a maioria das pessoas que vêem aquele seriado também não entendem que diabo é aquilo. Elas assistem assim mesmo, como assistiam ao mais chato dos seriados, “ER”. Assim como eu, essas pessoas não sabem dizer o que há de verdade ali, não sabem quantas daquelas doenças com nomes esquisitos e sintomas idem são reais ou não. Nesse aspecto, os tantos fãs de House que existem por aí agem igualzinho aos seguidores de Jim Jones. Não importa o que o sujeito diz: é verdade, tem que ser verdade.

Talvez seja por isso que elas não conseguem perceber que House não é tudo isso que dizem dele.

Primeiro: House é um pé-frio. É provavelmente o maior pé-frio que eu já vi. É garantido. Você está com uma dor de cabeça, ou uma virose, ou uma indisposição qualquer — digamos que você está constipado — e tem a falta de sorte de cair nas suas mãos: é o seu fim, e eu choro por você e aviso à sua família para comprar o caixão e alugar um espaço na capela e contratar as carpideiras. Porque o seu destino é negro: em pouco tempo você vai desenvolver uma porção de sintomas que no mundo normal são incomuns e vai acabar com uma doença de nome impronunciável, algo como Síndrome de Hathaway-Nguyen-Hodges, ou Doença de Bangor-Sminörezk. Você vai começar a sangrar, ter convusões, seu xixi vai ficar verde, você vai ficar com a cara da Linda Blair em “O Exorcista”. Como um Walt Disney da morbidez, ele poderia dizer ao olhar o cadáver mutilado e irreconhecível de um dos seus pacientes: “E tudo isso começou com uma simples dor de cabeça”.

Se House não é pé-frio, é o maior olho gordo que eu já vi. Pior que o sujeito que matou uma vaca do meu avô só de olhar para ela. O sujeito vai para as mãos de House e então começa a definhar, a definhar e quando vê já está na UTI.

Se algum dia eu ficar doente, por favor não me levem para House. Eu gosto da vida.

House é uma grande, uma enorme fraude. Sejamos francos: o que há de genial em fazer um bocado de exames computadorizados para descobrir o que o sujeito não tem? House corta um pedaço do cérebro de um sujeito e fica feliz: “Ele não tem o Mal de Robson-Clark!” Arranca dois terços do intestino de uma moça, e “Que bom, ela não tem a Doença de Lescaut-Donnerville!” A gente tem que admitir que mais cedo ou mais tarde House vai chegar a um resultado, provavelmente quando não restarem mais alternativas nem maneiras de tirar pedaços do corpo de alguém.

A única dúvida é saber se vai sobrar também algo do paciente.

Se alguém conseguir me explicar o que há de genial nisso, eu agradeço. Até porque duvido que House fosse capaz de descobrir que um sujeito tem esquistossomose apenas apalpando a sua barriga. Não gosto muito de médicos, acho uma classe canalha, mas vamos ser justos: os médicos aqui do Nordeste, acostumados a tratar gente que padece de uma fome atávica e secular, são muito melhores que o doutor capenga.

Aainda assim as pessoas assistem ao seriado, e compram seus DVDs nas Americanas, e não é só aqui. É triste que House faça mais sucesso que Francisco Cuoco em “Obrigado Doutor”, mas não estamos sozinhos: na França, House se tornou sinônimo de sedutor. Em Paris, um romance policial de Hugh Laurie, o ator que faz o papel do médico escroto, foi lançado com estardalhaço. As mulheres suspiram por ele.

No entanto suspiram à toa, porque House é gay.

House não gosta de mulheres, trata-as com arrogância, desprezo, até as raias do inconcebível. No mundo real House já teria levado tanto tapa que até hoje estaria procurando onde foi parar o seu nariz.

Tem uma mulher lá, uma doutora que parece ser a chefe de House no hospital e que segundo ele tem uma bunda de respeito. A mulher é louca para dar para o sujeito — mas ele não come. Incapaz de dar amor, ou coisa mais básica, ele dá apenas o seu sarcasmo. Cada um dá o que tem. Uma das doutorazinhas quis dar para ele — mas ele não comeu. É um padrão que se repete em excesso.

É uma coisa lógica: se House é assim genial, se todo mundo acha ele brilhante, em um hospital cheio de médicas gostosinhas e enfermeiras bonitinhas, se fosse homem macho do sexo masculino já tinha passado o rodo. “Vamos discutir o linfoma de Kotler lá em casa”, e as moças o seguiriam com um sorriso beatífico. Mas ele prefere soltar piadas agressivas, humilhar as moças sem razão. Tem uma doutora lá com cara de russa que é linda e promíscua — mas, imagine, ele não come. Ah, por favor.

A homossexualidade de House é tão evidente. Olha o caso daquela doutora, a sua chefe. O sujeito vive fazendo alusões à sua bunda. Mas não são um elogio, não são um galanteio, não são sequer a frustração de um desejo. São apenas agressão, são sem sentido, não têm aquela coisa verdadeira e sentida de peão de obra que olha uma moça feia e sem graça — mas com os atributos mínimos toleráveis, dois peitos e uma bunda — e diz com olhos apertados “Você é a nora que mamãe pediu a Deus”. Não. House diria que ela é burra — e isso é triste, porque qualquer homem neste mundo sabe que não existe mulher burra, pelo menos não enquanto ele ainda não comeu.

Misoginia tem limites, mas a de House é tão grande que deveria soar o sinal de alarme em qualquer mulher com o mínimo de senso. Isso não acontece, entretanto. Cheguei à conclusão de que o seriado trabalha com um sentimento que as mulheres não admitem em público porque têm vergonha e que Nelson Rodrigues, em uma das frases mais profundas e mais mal interpretadas da história da literatura brasileira, resumiu ao dizer que “toda mulher gosta de apanhar, só as neuróticas reagem”. É por isso que elas não percebem o que é óbvio, gritantemente óbvio: House é apaixonado por Wilson, o oncologista bonzinho e recalcado que o trata com excessiva condescendência e delicadeza (o que mostra, desde logo, quem é que tem ascendência na relação) e que é interpretado por aquele moço que fez o rapaz sensível em “Sociedade dos Poetas Mortos”.

Wilson é tão obviamente gay que é impressionante que as pessoas não comentem isso. É também é o grande amor da vida de House. E retribui esse amor em igual medida. Mas talvez para evitar que as milhares de mulheres que suspiram pelo sujeito (e erroneamente o chamam de cafajeste, quando ele é um homem que apenas reprime os seus desejos e transforma essa repressão em agressividade) desistam do seriado, tentam passar a imagem de um médico heterossexual que no entanto se recusa a comer alguém. House prefere passar seu tempo livre assistindo a shows de destruição de caminhões, o que, definitivamente, é coisa de quem quer afetar uma masculinidade inexistente. Em um episódio Wilson não quis assistir o tal show com ele — e então House se transformou em uma bicha vingativa e maldosa, e perseguiu os outros amigos de Wilson. O moço é possessivo.

Eu tenho uma sugestão para o seriado. Deveriam fazer House assumir sua paixão por Wilson. Ele se tornaria uma pessoa melhor. Trataria as pessoas com mais civilidade, porque falta de sexo deixa as pessoas nervosas e irritadas. Se isso acontecesse, House deixaria de ser um apenas médico com algum acordo com os donos do hospital onde trabalha e que rouba o Estado pedindo exames e mais exames; e o mundo seria mais feliz.