Buddy Guy

Buddy Guy é o último bluesman. O último grande contemporâneo vivo de Muddy Waters, Howlin’ Wolf, John Lee Hooker, Willie Dixon, entre tantos outros artistas que fizeram parte do plantel da Chess Records, a gravadora que está para o blues de Chicago como a Verve e a Blue Note estão para o jazz e a Motown e a Stax para o soul.

Buddy Guy é também o meu primeiro bluesman; não o primeiro a ser ouvido, mas o primeiro de que lembro ter notícia ao ler sobre um show que ele veio fazer com Junior Wells no Brasil, no Maksoud Plaza, acho que em 1985.

Foi sobre ele um perfil que li há alguns dias, publicado pela New Yorker há alguns anos. A matéria se pergunta por que ele não teve o mesmo nível de reconhecimento que seus colegas tiveram, por que sempre foi visto como menor que os outros. E faz a conclusão óbvia, quase ditada pelo zeitgeist: o racismo atrapalhou a carreira de Buddy Guy.

Pronto. Temos aí a panaceia universal para todos os problemas enfrentados por qualquer artista que não tenha tido o que alguém acha que ele deveria ter.

Acontece que Buddy Guy é o último bluesman, mas há um detalhe importante que precisa ser levado em conta: ele era grande em um tempo em que gigantes caminhavam na Terra.

A mim Guy sempre soou, isoladamente, como um artista forte, porque era um músico excepcional em um gênero pelo qual sou apaixonado. Dentro do contexto em que estava inserido, no entanto, ele se torna menor. É um grande cantor e excelente guitarrista. O blues dele é correto. Está completamente dentro dos padrões da média, instalado com conforto em sua parte superior.

Mas se me perdoam a heresia, Buddy Guy quase soa branco para mim. Talvez seja o seu timbre de voz mais agudo, talvez sejam os arranjos; talvez seja a adequação a um modelo já estabelecido de sonoridade (rapaz, como ele gostava de metais…). O fato é que o blues que ele fazia nos anos 70 poderia muito bem ser feito pelo Led Zeppelin ou pelos Stones. E há uma convenção básica, criada e reforçada pela legião de artistas e fãs de blues, que há de ser respeitada ainda que aquele imbecil da Fundação Palmares murche as orelhas e zurre que é “racismo reverso”: branco não consegue cantar isso comme il faut.

Em nenhum momento Buddy Guy consegue transmitir a sensação de invenção que nos alumbra em Muddy Waters, ou o perigo inerente à voz de Howlin’ Wolf, ou a sensualidade das composições de Dixon, ou a verdade primitiva e quase animal de Hooker. É isso que falta a ele: aquela grandeza singular sentida imediatamente quando ouvimos algo realmente novo e genuinamente grande.

No entanto, para algumas pessoas é mais fácil apelar para o racismo, por mais absurdo e sem sentido que isso possa parecer.

Falta explicar por que só Buddy Guy foi vítima desse aspecto do racismo, escolhido a dedo entre tantos outros, e dentro de um ambiente exclusivamente negro. Por que não Dixon, cujo baixo parecia o vaivém de quadris e de cujas composições escorria uma safadeza lúbrica como o suor oleoso nas ruas da Bahia, atemorizando os moços brancos diante dos negros e suas “picas enormes e sacos que são granadas”, como cantaria depois o bardo brasileiro? Por que não Howlin’ Wolf, com aquela voz, aquele jeito de andar, aquele tamanho, negão imponente e ameaçador que qualquer um teria medo de encontrar em uma viela escura numa noite de lua minguante?

Guy deu a sorte de sobreviver a todos eles. Sempre esteve em seu lugar justo. Era grande e ocupou um lugar ao sol enquanto milhares de músicos aspirantes tiveram que se contentar em tocar em bares, às vezes um ou outro compacto gravado para fazer valer o seu sonho. Todos os dias, milhares de garotos pegam suas guitarras e tentam aprender algum riff seu, eventualmente tentam até cantar como ele. Buddy Guy conquistou isso porque alcançou o que a maior parte dos seus companheiros maiores não tiveram: longevidade. Foi vivendo mais que ele pôde se tornar um gigante de verdade, o último deles — porque agora a média de estatura é maixa, muito mais baixa, e Guy conquistou o direito de parecer maior do que realmente é.

E os últimos gigantes são sempre criaturas solitárias, e se tornam maiores que a vida, e por estarem sozinhos o seu fim se torna ainda mais épico. E o tempo o tornou maior ainda, porque quem fica é quem conta a história, e essa história a gente muda de acordo com os ventos de cada tempo.

A fome

Gilson arregala os olhos:

— Mas até cachorro?

— Ué, eu não teria problema nenhum. Eu não como porco?

— Mas, poxa, você não tem a ligação emocional que se tem com um cachorro. Você comeria o Fidel?

E eu lanço um olhar extremamente triste para o meu cachorro, ao meu lado.

— Depende da fome, Preto… Depende da fome…