Para o mano Caetano

Tem coisas que a gente não espera ver nunca na vida, Caetano.

Não me refiro à sua agressão gratuita ao presidente Lula, porque já cheguei à conclusão de que quando você não tem o que dizer, diz alguma coisa assim mesmo, uma besteira qualquer, para ver se as pessoas não esquecem de você.

Mas eu não esperava que a própria dona Canô viesse lhe dar um esporro público. E não esperava ver a elegância com que o homem que você chamou de grosseiro e cafona reagiu diante disso, e com um gesto simples, um telefonema de nada, colocou as coisas em seu devido lugar e mostrou quem é grosseiro e quem é realmente elegante.

Eu não consigo lembrar de alguma ocasião na política brasileira em que um presidente tão atacado do ponto de vista pessoal — não por você, que cá entre nós suas opiniões políticas não são lá muito dignas de crédito ou atenção, mas por uma imprensa especializada em mentira e em se aproveitar de declarações infelizes de bobos alegres — tenha sido capaz de um gesto de tanta classe, e ao mesmo tempo tão simples.

É isso que você chama de cafonice, Caetano? Um homem que, mesmo agredido, consola a mãe do agressor? É isso que você chama de cafonice e grosseria?

O mais engraçado em tudo isso é que para você o Lula é analfabeto, mas o casca-grossa, o grosseiro e ignorante em toda essa história foi você. Agrediu um homem desnecessariamente, e em vez de conseguir a polêmica que queria apenas deu a ele a oportunidade de ser magnânimo e generoso. Você disse que o Lula não sabe falar; mas me parece que enquanto da boca do presidente saíram palavras de conforto e acima de tudo elegantes, da sua — um intelectual reconhecido por muita gente, um senhor artista e cantor autor de livros publicados e filmes exibidos — saíram apenas bobagens repetidas, ditas com ódio injustificado: grosseiro, cafona, não sabe falar.

Onde você é grosseria e agressividade, o Lula foi elegância e delicadeza; e considerando que você perdeu uma grande oportunidade de ficar calado, ou de apenas declinar sua intenção de voto em Marina Silva, eu chego à conclusão de que você não é proveito, é pura fama. Sinto lhe informar algo que você já deve saber: nessa, Lula comeu o seu coração. Trincou, mordeu, mastigou, engoliu, mascou, moeu, triurou, deglutiu, comeu seu coraçãozinho de galinha num xinxim.

Eu não estou dizendo que seja muito fácil para você estar na posição em que está. Um de seus amigos, Gilberto Gil, foi ministro do presidente que você chama de analfabeto, e realizou um grande trabalho à frente da cultura brasileira. Sua mãe, uma tradição baiana de 102 anos, diz que gosta do presidente Lula e se sentiu incomodada com as suas palavras; e como coração de mãe é infinito tentou desculpar você chegando à essência da verdade: “Caetano é só um cantor”. Você ganha muito dinheiro apelando para leis de incentivo fiscal, as mesmas que enriqueceram a produtora de cinema de sua mulher. Poucos, como você, conseguiram aproveitar tão bem a onda de crescimento do país e o impulso que o governo Lula deu à cultura nacional. Por isso sou o primeiro a admitir que, sim, para você deve ser difícil adotar uma posição extremamente preconceituosa e elitista enquanto a realidade que lhe cerca lhe desmente a cada dia.

Você, eu sei, é fã de Fernando Henrique Cardoso. Quando o excelentíssimo senhor acadêmico era presidente, ele respondia às críticas de Chico Buarque ao modelo de país que implantava dizendo preferir você; e talvez seja esse incômodo diante da democracia e da convivência com um ponto de vista diferente que acabam aproximando vocês dois. Como duas comadres de maus bofes e mal amadas, vocês parecem fofocar entre si, conversinhas miúdas que não levam a nada

Fernando Henrique é aquele político brasileiro que faz filhos nas empregadas de casa e não os assume. O homem que o senhor venera e considera modelo para o país é o sujeito que esperava dona Ruth dormir para se esgueirar até o quarto da empregada, velho sátiro babão que se aproveitava de sua condição social; já o cafona grosseiro é aquele que ligou para sua mãe e disse umas duas palavrinhas de conforto, sabendo que ela ficou incomodada com as suas declarações bobas — bobas até para o padrão baixo que você tem seguido nos últimos anos; esse papo seu tá qualquer coisa, você já tá pra lá de Marrakesh.

Falei em dona Ruth e me lembrei que ela era uma muher admirável; talvez seja coincidência, mas as últimas notícias que vêm do excelentíssimo senhor sociólogo me dão a impressão de que com a morte de dona Ruth aquele senhor idoso perdeu o seu referencial moral; e não me refiro apenas às notícias de escapadelas senhoriais (que apenas me sugerem que ele sempre foi assim, escondido debaixo da capa da hipocrisia), mas ao teor de suas declarações, à sua disposição de se expor ao ridículo.

Caetano, acho que o seu problema é muito simples: você não consegue entender o novo. De certa maneira é triste ver que um sujeito a quem a cultura brasileira deve tanto, a quem a música pode olhar e dizer “eu sou filha ou neta dele”, tenha escolhido passar sua velhice dando sinais prematuros de caduquice. O tempo passou na janela e só Caetano não viu. Alguma coisa está fora da ordem, Caetano. E essa coisa é você.

Modinha para FHC…

… ou “É nisso que dá ter um pé na cozinha“.

Tava jogando sinuca,
Uma nega maluca lhe apareceu,
Vinha com um filho no colo,
E dizia pro povo que o filho era seu.

Não senhor,
Toma que o filho é seu,
Não senhor,
Guarde o que Deus lhe deu.

Há tanta gente no mundo,
Mas seu azar é profundo,
Veja você, meu irmão,
A bomba estourou na sua mão,
Tudo acontece com ele,
Ele que nem é do amor…
Até parece castigo,
Ou então influência da cor.

Pequena introdução à discografia de John Lennon

Já fiz uma pequena discografia de McCartney — que um dia reescrevo, melhorando e aprofundando; agora é a vez de Lennon.

Não é segredo para ninguém que considero McCartney um músico mais capaz. E apesar de altamente irregular, alternando bons e maus momentos, sempre achei que tem uma discografia mais consistente que a de Lennon. As personas públicas dos dois interferem de maneira excessiva na percepção de seus talentos como músicos: e isso beneficia Lennon enquanto prejudica McCartney — talvez até mais do que os seus piores álbuns.

Mas independente de qualquer coisa, John Lennon foi uma das personalidades que ajudaram a definir a história a partir de 1970. Como artista, de um ponto de vista geral, mas principalmente como músico, Lennon deixou uma marca indelével na história da cultura pop.

Essa imagem, infelizmente, costuma ser dissociada de sua música. Para milhões de pessoas, John Lennon é Imagine; e essa é apenas uma das suas tantas canções, uma de que, a propósito, ele não gostava particularmente. Ela foi fundamental na definição da imagem de John Lennon, mas ao mesmo tempo tornou essa imagem, além de unidimensional, falsa. Porque Lennon era muito mais que isso.

Abaixo segue uma pequena análise, disco a disco, deixando-se de lado bisonhices como Two Virgins e os discos ao vivo.

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Bastardos Inglórios

“Bastardos Inglórios” é um filme cheio de defeitos. Há falhas gritantes no roteiro, como o fato de Hans Landa deixar Shosanna fugir, ou, mais tarde, estrangular uma personagem quando isso não seria lógico nem recomendável dentro dos seus planos, que conheceremos logo a seguir.

Há também uma série de cenas desnecessárias — a chacina dentro da taverna, por exemplo, só se explica a partir da necessidade de Tarantino encaixar uma de suas marcas registradas, a carnificina generalizada — ou excessivamente longas. O filme, que dura pouco mais de duas horas e meia, poderia perder essa meia hora adicional em seu próprio benefício, e deixaria de se arrastar em sua metade. Mas o diretor, nesses momentos, parece ter idéias demais sem dispor da habilidade necessária para realizá-las.

O caráter referencial, pastiche — na melhor acepção da palavra — de gêneros cinematográficos em “Bastardos Inglórios” está claro já nos créditos de abertura, onde se misturam tipologias e cores diferentes. Essa é a personificação gráfica do cinema de Tarantino: um grande caldeirão em que gêneros diversos se misturam e se reciclam, reutilizadas com alguma classe e um estilo bem próprio.

As cenas iniciais, tomando suas referências do grande western spaghetti italiano, dão o tom do filme. Mas Tarantino não é sujeito de ficar restrito a um gênero apenas. A partir daí vários gêneros servem de referência, mas um em especial: o grande cinema de guerra dos anos 50/60, no estilo “resta-um” de “Os Doze Condenados” e “Fugindo do Inferno. “A Grande Ilusão” de Renoir, também, quando menos no reconhecimento, através da linguagem, do caráter transacional de qualquer guerra. As referências no entanto não se limitam ao cinema: vão até Chuck Berry (Nadine, em LaLousianne), Yvette Mimieux, e tantas outras espalhadas pelo filme. É sempre um jogo interessante tentar descobrir onde estão todas as referências citadas por Tarantino em seus filmes.

Taratino apresenta uma série de personagens dos quais nos lembraremos por muito tempo. Mélanie Laurent — a mais bela atriz com um perfil feio que o cinema já revelou –, Eli Roth e Diane Kruger desempenham seus papéis de maneira correta, mas sem brilho; Mike Myers e Rod Taylor fazem aparições surpreendentes e perfeitamente esquecíveis. Caricatura de uma mistura de Don Corleone, John Wayne e o americano tabaréu médio, além de um nome que homenageia o bom e velho Aldo Ray, Brad Pitt é mais um tipo que um personagem, resvalando conscientemente na caricatura.

É o ator austríaco Christoph Waltz, desconhecido até agora, que rouba o filme em um desempenho inesquecível — seu Hans Landa é uma metáfora curiosamente acurada do que representou o nazismo. Waltz está brilhante: seu personagem consegue transmitir a loucura e o sadismo inerentes ao regime. A partir do momento em que Tarantino resolve inverter os papéis de nazistas e judeus, se permite também criar um vilão mais rico e mais atraente que o nazista tradicional — embora como seja costume nos seus filmes, essa riqueza nunca seja completa: Tarantino é um criador de tipos, não de personagens.

Até aí, o filme seria mais um — um Tarantino normal, cheio de referências, bombástico e histriônico, quase caricatural; personagens improváveis (uma judia francesa namorando um negro? Então tá) e diálogos em que pequenas teorias pop acéfalas (desta vez sbre a diferença entre um rato e um esquilo) ganham força extra por serem expressadas em diálogos extremamente bem escritos; e de um modo geral a mise en scène substituindo o que deveria ser a força do roteiro.

Mas “Bastardos Inglórios” não é só mais um filme de Tarantino, é também o melhor filme de 2009, um ano particularmente inglório para o cinema, e o melhor do diretor desde Pulp Fiction.

Em “Bastardos Inglórios” Tarantino dá um passo à frente no seu estilo de fazer cinema. Pela primeira vez, o uso de referências cinematográficas que define o seu estilo se transforma verdadeiramente em metalinguagem. O resultado é uma das maiores declarações de amor ao cinema desde “Cinema Paradiso”. Ao fazer o que filmes não costumam fazer por timidez — afinal de contas, por que tanto pudor em matar Hitler, se são obras de ficção? –, Tarantino encontra um dos mais fantásticos ovos de Colombo do cinema em toda a sua história.

O que Tarantino diz ao espectador é que é apenas no cinema que a realidade pode ser transformada. No cinema os judeus perseguidos por Hitler passam de vítimas a bons predadores (o adjetivo é necessário porque na Palestina esse caráter predatório está evidente há muito tempo, mas essa é outra conversa). E se isso pode acontecer, a história também pode ser recriada.

Triste mundo, este que ri dos verdadeiros heróis

A notícia está correndo o mundo: o chinês Sun Meng ficou preso do lado de fora de um edifício enquanto fugia do marido de sua amante, completamente nu e assustado. Por causa desse pequeno incidente, agora o pobre rapaz se diz envergonhado, seus vizinhos não falam mais com ele, sua família lhe voltou as costas.

E o mundo, esse mundo ingrato e injusto que não tem dó nem comiseração, está rindo de Sun Meng.

Assim o mundo moderno dá uma mostra triste da inversão de valores que o progresso nos trouxe. Porque isso não é coisa de que se ria. Pelo contrário: deveríamos todos aplaudir o verdadeiro herói que é esse valoroso chinesinho Sun Meng.

Por que ele está envergonhado eu não sei. Há momentos em que a dignidade e a hombridade exigem apenas a fuga imediata, o auto-sacrifício ainda que seja sobre o ar-condicionado de um edifício.

Até mesmo em um mundo como este nosso, tão distante dos grandes valores de Amadis de Gaula, ainda há coisas que um cavalheiro não faz, coisas que estão abaixo de sua dignidade e de sua honra. Entre elas estão tabus muito simples: não se pega uma mulher bêbada, e não se briga com o marido de sua namorada.

Sun Meng deveria se envergonhar se partisse para o tapa com o senhor marido traído, porque uma coisa dessas é tão feia que Dante sequer imaginou um círculo para tamanho pecado no seu inferno.

É mostra de extrema falta de educação enfrentar um marido que acabou de pegar a mulher em flagrante delito de saliência ilícita. Não é de bom tom confrontar um homem estupefato e descontrolado ao ver sua mulher contorcendo-se na cama com você.

Um homem capaz de bater no marido de sua namorada é capaz de qualquer coisa, é capaz de chutar a barriga de uma freira, e não há limites que o impeçam de rastejar na mais pútrida lama da vergonha humana.

(A Socila, claro, nunca ensinou isso a suas alunas — e por isso definhou até a insignificância absoluta.)

A um cavalheiro nessas horas só resta a fuga. É a única coisa digna e decente a fazer. Há algo de sublime e elevado no desprendimento com que Sun Meng se deixou humilhar, em nome da salvaguarda de sua vida e do que restava da dignidade de um marido incauto.

Ninguém tem o direito de rir de Sun Meng porque ninguém tem o direito de rir de um homem que sacrificou a si próprio em nome de um antigo conceito de honra.

Mas é ainda mais triste ver que as pessoas riem também dos dotes — ou melhor, da sua falta — de Sun Meng, expostos cruelmente às intempéries do tempo e da internet.

Sun Meng se justifica diante de seus predicados mirrados com a desculpa clássica, “estava muito frio naquele dia”. É tão desnecessário, isso. Porque ele não precisa se justificar, depois de feito tão heróico, tão honroso e tão nobre. Sun Meng é um herói e a prova de que a decência ainda existe neste mundo. E por isso os tantos que derivam a este blog em busca de remédios milagrosos para as mazelas do pinto pequeno, a grande chaga que destrói a alma e a auto-estima de centenas de leitores eventuais deste blog, deveriam se espelhar na sua grande aventura.

Vergonha devia ter era o marido da namorada de Sun Meng, que levou um antológico par de cornos de uma titica dessas.

George Harrison

Um comentário antigo do Luiz a um post sobre Michael Jackson me chamou a atenção: ele não concorda totalmente com o que eu disse sobre George Harrison aqui. O Bruno também é um dos fãs de George Harrison.

Então vamos lá.

Quando George Harrison morreu, em 29 de novembro de 2001, nasceu um santo. De repente, George conquistou tudo o que não conseguiu durante sua vida: reconhecimento absoluto como guitarrista, louvor como compositor, consolidação do papel de parte fundamental dos Beatles. Como eu já disse aqui, em alguns momentos se podia ter a impressão de que Lennon e McCartney eram apenas coadjuvantes de um gênio absoluto.

A morte faz isso com algumas pessoas. Cria um mito injusto e exagerado que não sobrevive a uma simples recapitulação dos fatos.

Harrison era um excelente guitarrista, e ninguém diz o contrário. Esforçado, diligente, capaz de repetir o mesmo solo indefinidamente — algo que Jimmy Page, por exemplo, não consegue. Mas ele viveu numa era em que guitarristas excepcionais tomavam conta do cenário pop: Jimi Hendrix, Eric Clapton, Page, Jeff Beck. Harrison não estava à altura deles. Nunca esteve. Aliás, se alguém esquece, alguns dos melhores riffs dos Beatles não são sequer de sua autoria (os de I Feel Fine e Day Tripper, por exemplo, são de Lennon).

Isso não quer dizer que Harrison era dispensável. Sem ele, os Beatles dificilmente seriam a mesma banda. Ao contrário dos Stones, que sobreviveram à saída de Brian Jones com mudanças apenas sutis em seu som, os Beatles perderiam muito de sua própria identidade se Harrison sumisse — nesse caso, seria mais acertado compará-lo a Ron Wood. Os Beatles não seriam uma banda melhor por ter um guitarrista superior como Hendrix — e esse é um dos aspectos mais interessantes do grupo, o fato de que sua importância e permanência não dependia de super-instrumentistas, mas sim da interação única entre eles. Harrison era, sim, fundamental. Mas não única, ou mesmo principalmente, por seus méritos como guitarrista.

Tampouco pelos seus méritos como compositor. Ninguém discute que a primeira grande canção de Harrison tenha sido While My Guitar Gently Weeps — e eu desconfio que sua importância venha principalmente do solo antológico de Eric Clapton. Seus dois outros clássicos são Something e Here Comes the Sun. Essas três canções são de 1968 e 1969; até lá — ou seja, durante praticamente toda a existência dos Beatles –, Harrison não tinha sido capaz de compor nenhum grande clássico, ao contrário dos seus colegas. McCartney e Lennon estavam certos no seu julgamento sobre Harrison: como compositor, ele simplesmente não estava no mesmo nível que eles.

Apesar da colaboração importantíssima de George Harrison e Ringo Starr, os Beatles tinham um núcleo duro bem claro, e esse era composto por Lennon e McCartney. (John Lennon: “Os Beatles eram Paul e eu.”) A relação entre os dois era especial, e todos sabiam disso. Além disso, eram os principais compositores e, digamos assim, os diretores musicais. Mas quando Harrison morreu — e cito especificamente a cobertura d’O Globo — ele foi chamado, literalmente, de “a alma dos Beatles”.

Pelo amor de Deus. Harrison não era suficientemente respeitado sequer pelos seus colegas. Quando Lennon saiu, McCartney e Allen Klein (que morreu há alguns meses) imploraram para que ele não contasse a ninguém, porque a banda acabaria e eles deixariam de renegociar um contrato importante. Quando McCartney passou a perna em Lennon e avisou ao mundo que tinha saído também, a banda acabou. Mas quando Harrison saiu da banda, em meio às gravações do que viria a ser o Let it Be, Lennon simplesmente comentou que poderiam chamar Eric Clapton para o seu lugar. Era uma brincadeira nervosa no meio de um turbilhão, mas com enorme fundo de verdade. Mais tarde, as opiniões de Lennon sobre Harrison não seriam das mais elogiosas — basta ver o que ele diz a respeito do ex-amigo em sua última entrevista à Playboy.

Seu papel na dissolução da banda é também subestimado. Normalmente, as análises mais primárias oscilam entre a culpa de Lennon e a de McCartney. O processo, claro, foi mais complexo, e envolvia uma série de outros elementos. Mas a atitude de George Harrison costuma ser subestimada em excesso.

Seu descontentamento era ainda mais consistente que o de Lennon. Ainda que inconscientemente, Harrison sabotou todas as tentativas de união de grupo em sua fase final — era uma das principais vozes de oposição a McCartney, às vezes mais vocal do que o próprio Lennon. Eu não teria medo em afirmar que ele queria sair da banda muito mais do que Lennon, sempre bastante explícito em relação a isso. E tenho uma idéia do por quê. Lá fora, George Harrison era “O Venerável Beatle George Harrison”, merecedor de um respeito e uma deferência que ele jamais conseguiria dentro da banda e que infelizmente se devia, em grande parte, às qualidades de Lennon e McCartney. Lennon achava que os Beatles o limitavam, e em certo aspecto estava certo, embora essas limitações também o protegessem de micos federais. Harrison não percebia que, ao contrário, era o que mais se beneficiava do fato de ser um beatle: além do seu próprio grande talento, era também caudatário da genialidade absurda dos outros.

Ele tampouco conseguiu avaliar corretamente o seu papel dentro da dinâmica da banda. Em 1992, numa entrevista a uma rádio inglesa, disse que McCartney o tinha destruído como guitarrista. Se isso foi tudo o que ele conseguiu após 15 anos de convivência com um dos mais talentosos músicos da história da música pop, o problema é com ele, e é grave. A relação entre Lennon e McCartney apenas fez com eles dessem o melhor de si, misturando competição e colaboração em doses semelhantes — mas competir com esses dois, e especialmente com McCartney, fez com que Harrison achasse que era um eterno injustiçado e que isso o prejudicou.

O ego de Harrison, definitivamente, o atrapalhou. Não era maior que os de Lennon e McCartney, mas durante algum tempo, pelo menos, foi maior que o seu próprio talento. Em algum momento, Harrison achou que era capaz de sustentar uma carreira solo brilhante e consistente, mesmo quando tomava decisões equivocadas como a Dark Horse Tour, alienando seus fãs ao forçá-los a ouvir horas de música indiana. Quando saiu dos Beatles, resolveu mostrar para o mundo que o peso da entidade Lennon/McCartney estava sufocando um grande talento e lançou um álbum triplo, o excelente All Things Must Pass.

Mais que um álbum, era uma egotrip. Porque embora brilhante, All Things Must Pass poderia ter sido um álbum duplo excepcional, e certamente um disco simples absolutamente perfeito — tão bom ou melhor quanto o John Lennon/Plastic Ono Band. Há gordura demais em All Things Must Pass, um número excessivo de faixas desnecessárias, e essa gordura pode ser creditada a nada mais, nada menos que um ego inchado e sem noção de suas limitações. Em última análise, e independente de sua qualidade, All Things Must Pass é George Harrison gritando “Eu sou tão bom quanto John e Paul!”.

(E é aí que mora a diferença entre Harrison e Lennon. Quando Lennon dizia que os Beatles o limitavam, se referia ao fato de não encontrar na banda um canal para um disco como o Plastic Ono Band e canções como Cold Turkey. Aquilo, realmente, não tinha “cara de Beatles” — como também, por outro lado, bobagens como o Two Virgins; a competição entre ele e McCartney o protegia disso, além de garantir aos dois que suas piores canções continuassem inéditas. Isso não se aplica à obra de Harrison. Todas as suas canções solo poderiam, sem problemas, ser gravadas pelos Beatles. Afinal, eles gravaram Love You To e The Inner Light, não gravaram?)

Noves fora, a carreira solo de Harrison foi medíocre, superior apenas à de Ringo — o que não quer dizer absolutamente nada. Se as de McCartney e de Lennon têm altos e baixos, a de Harrison foi uma trajetória descendente — do brilhante All Things Must Pass ao deprimente Gone Troppo, de 1982. Não foi à toa que, em seus últimos 20 anos de vida, ele lançou apenas dois álbuns solo — sem contar os dois discos do Travelling Wilburys, a excelente banda à la Sgt. Pepper’s que formou com Bob Dylan, Roy Orbison, Jeff Lynne e Tom Petty.

Não é insensato arrsicar a opinião de que Harrison simplesmente não tinha mais o que dizer — por isso preferia se dedicar a aperfeiçoar os jardins de Friar Park, sua mansão que aparece na capa do All Things Must Pass, e a produzir filmes brilhantes como “A Vida de Brian”, do Monty Phyton.

E embora seja algo menos importante, uma das coisas que me impressionam são as referências constantes ao santo espiritualizado e superior ao mundo material que ele era. Porque definitivamente Harrison não era isso — ou, para ser mais exato, era muito mais complexo que isso. Sua generosidade e humanidade imensas são legendárias; mas elas também ajudam a ofuscar o outro lado de uma personalidade fascinantemente complexa. Sua sensação de inferioridade diante de Lennon e McCartney — mais velhos e mais talentosos — era compensada, por exemplo, em sua relação com Eric Clapton. Inseguro, Clapton permitia que sua relação com Harrison seguisse uma hierarquia rígida, na qual o beatle era o ente superior. George reproduzia, ali, a relação que tinha com Lennon, apenas invertendo os papéis. Em cima de alguém ele tinha que descontar, afinal.

Além disso, mulherengo em excesso, George ofereceu a mulher para Eric Clapton para tentar pegar a irmã dela; teve um caso com a mulher de Ringo, seu melhor amigo (e depois, quando perguntaram por quê, ele respondeu simplesmente: “incesto”). E mesmo Olivia Harrison, com quem George teve um casamento bem mais sólido e maduro que o anterior, teve que agüentar a vergonha de ver uma prostituta de Los Angeles (parece que os Beatles tinham uma queda por putas angelenas, a julgar por experiências semelhantes de McCartney) contar publicamente que, enquanto prestava um serviço sexual a Harrison, ele tocava o seu ukulele e cantava uma canção de George Formby.

(A propósito, Harrison ganhou pontos comigo quando fiquei sabendo disso. Não há dúvida: George Harrison, definitivamente, era um grande artista.)

Mas é preciso fazer uma ressalva. Depois de ler tudo isso acima é fácil ficar com a impressão de que George Harrison era um nada, e isso seria uma injustiça. Era um grande músico, capaz de compor canções extraordinárias como Something e All Things Must Pass, e autor de dois ou três discos solo indispensáveis em qualquer discoteca. Não era um grande cantor, mas não fazia vergonha. O problema é que é impossível deixar de compará-lo aos seus parceiros de banda. Harrison não fazia vergonha cantando? Certo, mas não era versátil como McCartney nem visceral como Lennon. É nesse contexto que George Harrison é diminuído: a sombra de dois gigantes como Lennon e McCartney dava a sua exata dimensão. Porque, bem ou mal, ele é o autor de algumas das mais belas canções da música pop, um guitarrista superior a 98% de todos os outros, e um homem cujo nome está na história. Seu único problema é que seus companheiros de banda eram muito melhores que ele. E essa foi a dor que George Harrison carregou até o fim de sua vida.