Luís Nassif e a Veja

Via o sempre atento Idelber, a série de artigos escritos pelo Luís Nassif sobre os intestinos apodrecidos da Veja pode vir a ser um dos maiores favores que se fez à imprensa nacional, e desde já são seguramente alguns dos posts mais importantes da blogoseira pátria.

Os artigos são uma dissecação do modus operandi da Veja. De repente, temos acesso a informações e análises que, se entre jornalistas são fatos velhos, óbvios e conhecidos, não costumam chegar ao grande público, graças em grande parte ao sistema de interesses de todo o mercado e em pequena parte a um certo esprit de corps de jornalistas.

A análise feita pelo Nassif dos fatores conjunturais que levaram à derrocada da Veja, pelo que se vê do que foi publicado até agora, é em alguns aspectos superficial. Desconsidera como causas alguns fatores externos importantes, econômicos e principalmente políticos. Além disso, a ênfase em duas pessoas específicas — Eurípides Alcântara e Mario Sabino, os atuais condottieri da revista –, em alguns momentos deixa a impressão de que essa reportagem é uma espécie de vendetta pessoal.

Falta também, até agora, ressaltar detalhes importantes, como o fato de que Alcãntara e Sabino não são os donos da Veja, nem fazem o que querem porque têm poder total. Nenhum jornalista publica o que o dono do veículo não quer. O que, sendo as denúncias de Nassif verdadeiras, faz deles jornalistas inferiores é o fato de se sujeitarem aos interesses empresariais dessa forma, o fato de utilizarem uma revista que já foi a mais importante do país e hoje não passa de um panfleto canalha e mentiroso.

Mas as motivações do Nassif não importam. A reportagem é brilhante do ponto de vista da informação e da análise sobre a maneira como a Veja opera. É um documento que precisa ser lido por qualquer pessoa que queira entender como funciona a relação complexa entre a mídia e o poder.

O que o Nassif denuncia na Veja é comum em virtualmente todos os jornais e revistas espalhados pelo país. Apenas quem não conhece uma redação de jornal acha que é diferente. Do jornalzinho de interior à maior rede de TV do país, achaques, pressões, implicâncias são moeda comum — e efetivas. Interesses pessoais e comerciais são travestidos de interesse público. O resto é conversa aprendida já nos bancos da faculdade. O jornalzinho do interior faz algumas matérias batendo no prefeito para ganhar anúncios e calar a boca; e só como exemplo, há alguns anos a Globo se sentiu ameaçada por uma incursão da Legião da Boa Vontade, aquela do Paiva Netto, no mercado educacional; o resultado foi uma série de matérias denunciando irregularidades da entidade.

Sobra também para o mercado publicitário. Quando há quase três anos estourou o escândalo do mensalão, o mercado publicitário correu para desqualificar Marcos Valério. Segundo eles, Valério seria “lobista”, e não “publicitário”. Mas o fato é que publicidade e lobby sempre foram praticamente indissociáveis, apesar do discurso de fachada. Agora quem entra na roda é Eduardo Fischer, um dos melhores publicitários do país, responsável por campanhas brilhantes com a da Calvin Klein de 1983 e a “número 1” da Brahma, mas que teria feito o tipo de lobby mais rasteiro junto ao banqueiro André Esteves (no que, da maneira como Nassif coloca as coisas, mais parece um daqueles esquemas de proteção de mafiosos), envolvendo a coluna Radar, da Veja. Fischer também não é publicitário? Se não é, quem é?

A reportagem de Nassif é um obituário adequado à Veja. É importante pelas respostas que dá e pelas perguntas que suscita. E deve ser lido por todos.

Dos prazeres baratos

Estou longe de ser um bibliófilo. Não posso dizer que conheço os mistérios da coleção de livros como hobby sério, e nunca fiz um ex-libris para mim (mas há algumas semanas uma senhora na Kosmos, um bom sebo no Rio, me deu o endereço de um encadernador sério: Largo de São Francisco de Paula, 01. L.C. Encadernação, e o telefone é [21] 2252-6051. Vi o trabalho do sujeito, que não conheço, e me pareceu decente. A quem interessar possa).

Mas eu tenho um prazer bobo e inconseqüente. Não é o do bibliófilo, é o do alfarrabista, aquele sujeito que compra e vende livros velhos na esperança de achar uma raridade que vai fazer seu trabalho valer a pena.

Como sabe qualquer pessoa que tenha tido o desprazer de andar comigo pelo centro do Rio ou de São Paulo, eu gosto de sebos. Se tenho pena de dar 100 reais numa edição de “Sobrados e Mucambos”, que só consegui ler em 2006 porque ganhei de presente, fico feliz quando consigo comprar uma dezena de livros de uma só vez, até por mais que isso. Ou, de preferência, por quaisquer dez ou vinte reais.

A graça de um sebo não está nos livros raros e corretamente avaliados — e portanto caros, como uma primeira edição dos “Sermões” do Padre Vieira que esteve à venda há alguns anos por 3 mil reais. Está nos livros que se pode comprar por um real, ou três por cinco, e nas pequenas raridades escondidas em estantes empoeiradas e aparentemente desconhecidas dos próprios livreiros.

Em qualquer sebo, a minha preferência é pelos balcões de livros baratos. É onde se pode encontrar bons livros por preços ao alcance de todo mundo. Por isso me irrita quando vejo alguém — principalmente professores — reclamando que livros são caros. Livros novos são caros, sim, mas você pode achar bons exemplares por um real. Quem reclama que livro é caro é porque não quer ler e fica arranjando desculpa. Os balcões de livros baratos atendem perfeitamente ao objetivo primário de qualquer livro: ser lido.

Mas há também o que se poderia chamar de livros normais de sebo.

Posso dar um exemplo simples: há anos procuro uma edição barata de “Ascensão e Queda do III Reich”, de William Shirer. A edição brasileira, em 4 volumes, está esgotada há décadas mas é encontrável nos sebos com alguma facilidade, sempre por volta de 150 reais. Não pago. Li a maior parte do livro no começo da adolescência e queria reler há bastante tempo, mas não pago quase meio salário mínimo por isso. Não vale a pena.

No fim de outubro, na Livraria São José, na Primeiro de Março, achei uma edição comemorativa do livro, no original em inglês. Capa dura, sem sinais de que sequer foi lido. 40 reais. Comprei. E fiz um grande negócio, porque não vou ter que me sujeitar ao tradutor e tenho a garantia de que quaisquer correções históricas já foram feitas. E continuo rindo de todos aqueles que tentaram me arrancar 150 reais por ele.

Essa é a minha mania. É o que me deixa próximo de um alfarrabista e distante de um bibliófilo como o José Mindlin. Mas aos poucos vou me especializando — se é que se pode chamar tal atividade bissexta e normalmente casual de especialização — em um tipo de livro específico que só se encontra em sebos: primeiras edições de livros americanos.

São sempre o melhor negócio a ser feito em um sebo brasileiro. Por exemplo, há muito tempo comprei uma primeira edição de Quiet Days in Clichy, de Henry Miller, por 3 reais, um dólar na época. Já contei o caso aqui. Na minha última visita ao Abebooks.com, o livro chegava a ser cotado por 3714.36 dólares. Mesmo que o meu valha muito menos, ainda acho que fiz um bom negócio. Certamente venderia o livro por ao menos 10 dólares, o que já me daria um bom retorno percentual do investimento. 1000%.

Tenho outros pequenos orgulhos do tipo. Entre outras, uma primeira edição de Billy Bathgate, de E. L. Doctorow, e outra de The Information, de Martin Amis, compradas uns dois anos atrás por dez reais, cada, no antigo Imperial, sebo que funcionava no Paço Imperial e que hoje deu lugar a um desses ambientes que misturam livros caros, CDs e bar (um dia ainda entendo por que alguém em sã consciência inventa de vender CDs nos dias de hoje), esses sambas do crioulo doido que viraram mania porque dão a a impressão de ser algo sofisticado.

Gosto de saber que esses livros valem muito mais do que paguei por eles. É bobo, eu sei, mas isso me dá uma sensação de esperteza que me falta em praticamente todas as outras áreas da vida cotidiana.

Comentando os comentários

Malavolta,
A narração em off de “Cidade de Deus” (um vício comum no kinemanacional e que normalmente indica insuficiência do roteiro) me incomoda, pelo amadorismo. Mas é realmente muito bom. E é também o filme brasileiro mais influente em termos internacionais nos últimos tempos. É só ver os filmes de Tony Scott.

André,
Comecei a ver “Era Uma Vez no México” semana passada; desliguei para assistir à primeira temporada de “Roma”. Minah primeira impressão foi a de que era uma tentativa de transpor o western spaghetti para o terceiro mundo atual, sem muito sucesso. Uns diriam que isso é o trabalho de um “autor”. Tem algumas similaridades com Sin City, mas este é um trabalho bem concebido e acabado, enquanto o outro é só lixo, mesmo.

Emanuelle,
Eu me sinto realmente feliz ao contribuir para o aumento da produtividade nacional. 🙂

Bia,
É verdade, você já tinha me falado de “O Labirinto do Fauno”. E não é moda dizer que você é exagerado. É uma constatação básica e antiga…

Bruno,
Talvez essa futilidade que você aponta em Almodóvar seja provavelmente a sua grande qualidade. A forma como trabalha isso, esse jogo de aparências, é brilhante. Mudando de assunto, você disse algo de que eu não tinha me tocado até agora: “Fale Com Ela” é realmente o trabalho mais masculino de Almodóvar. Perfeito. E só uma correção: “Magnólia” é de 99, século passado.

Madson,
Spielberg para mim tem um grande filme, “Tubarão”, que eu incluo entre os 100 melhores da história. E tem um filme brilhante, que poderia ser a sua grande obra-prima, mas cujo final ele estraga: “A Lista de Schindler“. Mas normalmente, no minha opinião, falta substância a ele, que tem uma tendência à emoção fácil, mesmo à pieguice. Por exemplo, aí pelo final dos anos 80 dois filmes foram lançados na mesma época.

Victor,
Eu acho que o problema do Shyamalan é mais grave. Diz respeito ao esgotamento da temática que ele escolheu e à falta de capacidade de escrever um bom roteiro dentro dessas amarras que ele criou para si, essa necessidade da reviravolta final, da grande surpresa, dentro de um clima narrativo de fantasia. Porque o grande trunfo de “O Sexto Sentido” é justamente isso, um roteiro brilhante; “A Vila” é um filme que, embora eu tenha achado muito fraco, merece ser revisto dentro da ótica do Bia e do Ina. Mas o resto é ruim com toda a certeza do mundo. “Sinais” é muito fraco, “A Dama na Água” é simplesmente medíocre. No final das contas, talvez Shyamalan fosse apenas um diretor limitado que acertou de primeira e nunca mais conseguiu repetir o seu sucesso.

Daniel Boone

Durante uns 15 anos, ou mais, não ouvi ninguém falar daquele que tinha sido o meu seriado preferido na infância. Foi preciso que as pessoas começassem a fazer homepages compartilhando com o mundo seus gostos pessoais para que eu, finalmente, soubesse que não estava sozinho no universo. E por isso um dos posts que recebem comentários constantes ao longo dos anos, neste blog, é um sobre o seriado Daniel Boone.

“Daniel Boone” é uma paixão antiga. Foi o seriado de que mais gostei na infância. Eu queria ter um chapéu de guaxinim — melhor dizendo, de raccoon — e ser um pioneiro americano em eterno conflito com os índios. Em 1979 eu voltava da escola correndo para assistir ao seriado, que àquela época era exibido pela TV Aratu aí pelo meio-dia, meio-dia e meia.

Eu só não sabia que, para tantas outras crianças, “Daniel Boone” tinha sido tão importante. E há uma sensação de pertinência quando vejo comentários que, assim como eu, reconhecem em um seriado sobre um personagem histórico (e controverso) americano uma parte significativa de sua vida.

Mas há uma coisa que me incomoda, e não é o saudosismo generalizado nem aquela crença de que na minha época as coisas eram melhores, porque nem sempre eram. É a idéia de que “Daniel Boone” deveria ser reprisado.

Porque eu estou convencido de que reprisar “Daniel Boone” seria um fracasso fenomenal. Os tempos são outros. E o passado, para a tristeza da humanidade, não volta.

Assistir a um seriado antigo, daqueles que lhe empolgaram na infância, é sempre arriscado. Não se trata apenas do risco de ver que aquilo que você achava o máximo não era tão bom assim. É perceber que não é mais possível estabelecer aquela simbiose emocional com o filme. Não se pode voltar para casa, dizia Tom Wolfe, e há poucas sensações tão decepcionantes quanto rever algo ou alguém que foi muito querido, de que você sempre lembra, mas que hoje não lhe diz mais nada.

Bons seriados dos anos 60 e 70 caem nesse limbo. “Viagem ao Fundo do Mar”, por exemplo: parecia ser muito naquela época, mas envelheceu mal, e se revela pouco mais que propaganda tardia da guerra fria. “Túnel do Tempo”, fantástico naqueles tempos, pode se mostrar um seriado fraco, insuficiente, sem os elementos dramáticos necessários para contrabalançar os absurdos históricos (embora este não seja o meu caso).

Há também os que caem no ridículo. “Besouro Verde”, cujo único mérito é o de ter revelado Bruce Lee para o mundo, é quase demente: um super-herói que anda por aí com motorista. Outros, no entanto, crescem. Kojak, Baretta, Columbo eram bons seriados naqueles tempos e continuam sendo agora, mas principalmente por causa da linguagem utilizada. “Terra de Gigantes”, por sua vez, é um caso único. Eu não gostava quando era criança; hoje me empolgo com o tratamento dado à câmera e às vezes até com a temática.

“Daniel Boone”, infelizmente, não está em nenhum desses casos.

Eu fui criado assistindo a faroestes na Sessão da Tarde e a seriados como “Zorro” — Lone Ranger no original. A geração anterior à minha assistia a Bonanza, “O Homem de Virgínia”, Bat Masterson. Fomos todos criados perto da noção de transposição da mitologia medieval européia para o oeste dos Estados Unidos, com o pistoleiro solitário fazendo as vezes do cavaleiro errante. Minha geração ainda brincou com revólveres de espoleta. Porque víamos na TV o cinema dos anos 40 e 50, nós ainda estávamos próximos do século XIX. Isso já acabou, acabou nos anos 80, quando passamos a ver na TV os nossos próprios tempos.

Para mim, índio vai ser sempre bandido. Mexicano também, com os bigodões como agravante. O faroeste é uma invenção WASP e é assim que deve ser. A única modificação admissível a esse modelo é o western spaghetti — mas ali se perverte tudo, não apenas se inverte a ordem de mocinhos e bandidos. Não é a bobajada politicamente correta de, mais que corrigir a história, inverter tudo e colocar índios no lugar de colonos e negros no lugar de brancos, como em um filme idiota com Sidney Poitier chamado Caçada Brutal. Nada é tão falso, talvez tão falso como aqueles filmes americanos passados no Brasil em que todos falamos espanhol. A graça do western está na manutenção de estereótipos que necessariamente fazem parte da mitologia que os americanos criaram para si.

Mas a conquista do oeste americano não faz mais parte do imaginário popular. É história apenas, tão antiga quanto a queima de bruxas em Salem ou a Noite de São Bartolomeu. “Daniel Boone” faz parte dessa história, que não tem mais apelo em época de Lost. E por isso não deveria ser reprisado, porque um seriado tão bom não merece ser sujeito à humilhação pública.

***

No Natal de 2006 ganhei o primeiro volume da reedição em DVD do seriado. São 15 episódios da segunda temporada (a primeira em cores), em quatro DVDs lançados pela Focus.

Do ponto de vista crítico, essa edição é um fracasso e um desrespeito. A Focus editou a temporada de maneira porca, sem respeitar a cronologia (provavelmente porque isso a forçaria a começar com uma primeira temporada em preto e branco). Mais grave ainda, lançou apenas o áudio dublado em português. Cometeu até o pecadilho de transformar os créditos de encerramento em uma seqüência de slides, provavelmente para economizar espaço em disco e poder incluir trailers de outros lançamentos seus. A edição feita pela Focus chega a ser vergonhosa.

Mas do ponto de vista de um saudosista, isso não importa. Porque era assim que a Globo exibia o seriado, completamente fora de ordem e com a dublagem em português. Por exemplo, originalmente a família Boone consistia em Daniel, Rebecca, Jemima e Israel. Mais tarde Jemima desapareceria do seriado sem dar aviso. Mas eu, depois de anos acostumado a ver apenas Israel como filho de Boone, me vi diante de uma filha mais velha, que apareceu sem explicação.

Mais importante ainda, o seriado traz a dublagem original, e isso é fundamental para a recriação da experiência de infância. “A Fox Filmes do Brasil apresenta…” é uma daquelas frases cuja entonação é inesquecível. Rever “Daniel Boone” sem a dublagem original seria uma experiência incompleta.

(Talvez a Focus use esse argumento de fã para se justificar. Mas não pretendo comprar os volumes seguintes, porque um volume basta para satisfazer essa nostalgia. Se eu quisesse rever todos os episódios de Daniel, preferia comprar a versão americana, à venda na Amazon.)

Os melhores filmes do século

O Bia fez um post com os oito melhores filmes do século. Na verdade a conversa original era sobre cinco, mas o Bia é um exagerado. O curioso é que ele fica dizendo que eu defendo “A Noviça Rebelde” (o que é apenas uma meia verdade: acho o filme brilhante, só que é daqueles dos quais não se precisa falar muito), mas é ele quem elogia qualquer porcaria transposta para celulóide.

Agora é a minha vez.

Dogville
De longe, é o melhor, mais consistente e mais profundo filme deste século. E aqui tenho que dar o crédito que o Bia merece. Em um comentário bem antigo, ele anteviu perfeitamente a importância do filme, enquanto eu me recusava a assisti-lo por achar, imbecilmente, que era teatro filmado:

escuta: viste DOGVILLE? rapas, vi ontem e estou INACREDITÁVEL até agora! um dos mais importantes filmes da nossa ERA.

Era a época em que o Bia ainda tinha o Tiro e Queda e escrevia como o Cardoso. Isso foi há muito tempo, antes que o blog domasse o rapaz. Antes que ele casasse e antes que a Lia nascesse e antes que ele voltasse para a televisão.

Hoje o Bia elogia o Shyamalan.

Medos Privados em Lugares Públicos
Alain Resnais é o último dos grandes cineastas franceses, levando-se em consideração que Godard morreu há décadas e apenas esqueceu de deitar. O sujeito foi capaz de fazer Hiroshima, Mon Amour, e ainda hoje mostra que sabe o que faz. “Medos Privados em Lugares Públicos” é tudo o que Closer gostaria de ser.

O Labirinto do Fauno
Na verdade o filme que deu origem a esse conversa toda. É um filme brilhante, de uma sensibilidade e delicadeza asssustadores.

Sin City
Embora saudado como o grande filme derivado dos quadrinhos, ele é muito mais que isso. É a melhor releitura do film noir feita desde Blade Runner, e ainda mais radical.

Sobre Meninos e Lobos e Fale Com Ela
Não há nada demais em “Sobre Meninos e Lobos”, do ponto de vista formal. Mas é um exemplo perfeito de domínio da arte narrativa. Eastwood é hoje um dos principais diretores americanos.

Já Almodóvar tem uma carreira que, mesmo nos piores momentos, é brilhante. “Fale Com Ela” é o seu filme mais equilibrado, o mais delicado, em que os exageros que se vê, por exemplo, em “Ata-me” (certamente um de seus melhores filmes) estão maduros e totalmente sob controle.

Carta a uma jovem senhora

Fraulein,

Recebi o seu presente. Veio rápido, pelo Sedex.

Não sei se você sabe, mas sou do tipo de pessoa que quando ganha livros de presente olha desconfiado e espera uma pequena e inevitável decepção. É tão fácil dar livros ruins de presente, e assim é a maioria dos que ganho de amigos. Então eles ficam na estante, lado a lado com livros de que gosto, talvez se sentindo iguais a algo maior que eles; impossíveis de se jogar fora por causa da dedicatória, impossíveis de serem lidos por causa do seu mau conteúdo. É tão triste ir a um sebo — eu gosto de sebos, como você sabe — e achar livros que foram dados de presente a alguém com dedicatórias carinhosas. Amores antigos e amizades passadas, são essas as histórias que essas dedicatórias contam; e eu me sinto um intruso quando vejo essas pequenas histórias tristes, como se estivesse olhando pelo buraco da fechadura para algo tão íntimo e agora tão melancólico.

Em um Natal, muito tempo atrás, ganhei de uma namorada um romance de John Updike, e eu não gosto de Updike, mas dei o meu melhor sorriso e agradeci, e sabia que não ia jamais poder passar o livro adiante. O livro está lá até hoje, na estante, e dentro dele a dedicatória apaixonada me lembra que houve um tempo em que uma mulher quase esquecida me amava e achava que aquilo era o que de maior poderia haver. Não era e disso ela sabe agora. Há outros livros, outros amigos, outras mulheres. Ficaram os livros, bonitos na estante porque suas lombadas não adquirem aquelas marcas de uso; é um triste destino o dos livros, o de só serem bonitos e perfeitos se não são usados.

Mas o livro que você mandou sequer tem dedicatória, e eu poderia mandar para o sebo, se quisesse; mas não quero e não vou, porque “Memórias de Minhas Putas Tristes” é um livro tão bom. Eu ainda não havia lido. Sabia que ia comprar, mais cedo ou mais tarde, mas sempre tem algo que passa em sua frente, outro livro, um filme, uma viagem, uma garrafa de chianti para se tomar deitado no tapete, uma noite agradável ao som de Billie Holiday.

Agora, depois de ter lido e relido o livro, eu me pergunto: por que esse presente, assim, do nada, sem um motivo especial ou sem uma data comemorativa. Não é meu aniversário, não fiz nada bom e não fiz nada ruim, nem saí desta salinha onde agora escrevo esta carta. Nos falamos tão raramente hoje em dia. O livro foi uma surpresa, e eu não agradeci por ela.

Me pergunto essas coisas porque é de minha natureza perguntar por quê, provavelmente porque não cresci o bastante para achar que tenho respostas demais; prefiro achar que alguém lembrou de mim e desejou me dar um presente de que sabia que eu ia gostar. Eu não ligo para quem não gosta de mim, mas gosto de saber que algumas pessoas gostam.

Há outra pergunta, ainda mais importante. Quando pediu meu novo endereço, você disse que ia me mandar o “Memórias de Minhas Putas Tristes” porque o Sábio Triste lhe lembrava a mim.

E é isso que não entendo, e o que me faz escrever essa carta. Porque olhando para o Sábio Triste, para a descrição amarga e um pouco cruel que faz de si mesmo, eu não me reconheço nele. Eu não sou magro, não tenho perfil eqüino, ainda não fiz 90 anos e nunca vou fazer. Em suas lembranças ele vê apenas mulheres com quem pagou para estar; e me dá um certo alívio olhar para trás e ver que sim, há tantas mulheres de que posso me lembrar com carinho, com aquela calma da velhice, “com aquela paz com a qual um eunuco de meia-idade poderia rememorar o tempo morto que precedera sua alteração, nas formas apagadas e (por fim) que ora viviam apenas na memória e não na carne”, como disse um escritor americano bem melhor que aquele Hemingway de que você tanto gosta e do qual eu fazia troça todo o tempo.

Também gosto de pensar que as mulheres que não têm uma raiva calma de mim por algo que eu tenha feito ou deixado de fazer também se lembram de mim com carinho; não que eu me importe muito com o passado e você sabe disso, mas de vez em quando me vem uma certa consciência da mortalidade e imagino que, já que não vou saber se sou lembrado bem ou mal, que seja bem, porque mal isso não faz e aquela vaidade boba de que eu não conseguiria nem quero me livrar seria finalmente atendida.

Eu não sou como o Sábio Triste; não sou triste, por sorte, mas tampouco sou sábio — e a fileira de bobagens em que recorro na vida, bobagens das quais não me corrijo porque lá no fundo é mais fácil me arrepender do que tentar melhorar, é a melhor prova disso. Se eu fosse sábio minha vida seria diferente; talvez não melhor, mas diferente. No fundo não faço muita questão de sabedoria, porque os momentos em que não fui insensato foram também chatos ou pelo menos comuns; e a expressão “Sábio Triste” me incomoda, porque como uma criança para quem tudo pode se resumir a um sim ou a um não, se sabedoria traz tristeza eu não quero ser sábio.

Também não posso ser o Sábio Triste e você a Delgadina porque não sou tão velho nem você era tão nova; e semanas não são anos; e não parece que eu, sempre tão relapso e distraído e preocupado com tantas coisas, fosse capaz de tamanha paciência e cuidado para montar um pequeno santuário de alcova enquanto espera, e espera, e espera. É engraçado: eu sei esperar, mas não sei esperar muito. E essa incapacidade não me incomoda.

Acima de tudo, fico feliz por não precisar chegar aos 90 anos — idade a que sei que não vou chegar pelos tantos abusos a que submeto meu corpo, pelas tantas noites perdidas, pelos tantos cigarros fumados, pelos tantos uísques bebidos, abusos sem os quais eu não saberia viver — para descobrir o que é amar alguém. Pelo meu passado, mas principalmente pelo meu presente, eu fico realmente feliz, e é daí que a vem a minha calma e a minha tranqüilidade.

O fato é que, por tudo isso e talvez por outras coisas que não fui capaz de falar, em nenhum momento eu gostaria de ser o Sábio Triste, não me vejo nele daqui a mais de cinqüenta anos, não me vejo nele agora. E isso, repito, me deixa feliz.

Lembrei agora que quando contei de minha namorada você disse que não deveria ser assim, que eu deveria ficar velho chorando teu nome, e eu ri. Porque sei, e acho que você sabe também, que a vida não é assim (ou que pelo menos eu não sou assim, ou não era assim). Sim, eu também gostaria de saber que sou inesquecível para todas as mulheres que passaram pela minha vida. Com aquele egoísmo de que não conseguimos escapar, gostaria de saber que elas, todas elas, lembram de detalhes que esqueci há muito tempo, eu que delas no mais das vezes não lembro sequer seus nomes completos, e confundo uma com outra, e esqueço de tantas. Gostaria de saber que elas lembram de mim com saudade e ficam ao lado do telefone esperando a ligação que eu nunca faço, dias e dias e dias intermináveis.

Novamente tenho que lembrar que a vida não é assim, e sei que as pessoas me esqueceram como eu esqueci delas. Eu fico feliz se pelo menos lembram o meu nome e conseguem associá-lo ao meu rosto. Agora esqueça tudo o que falei ali em cima, essas coisas em que você provavelmente não acreditou porque como tanta gente me acha um cínico, um cafajeste e um insensível, e lhe direi algo que lhe parecerá mais plausível, embora seja somente tão verdadeiro quanto o que eu disse antes: ser esquecido não me deixa triste. Na verdade me deixa aliviado, porque a minha cruz já é muito pesada para que eu tenha que carregar a cruz de mais alguém.

Talvez por isso eu tenha ficado tão feliz quando soube que você ia viajar e começar uma nova vida. Talvez eu tenha isso de um velho, essa mania de olhar para o lado e ficar contente quando as pessoas de quem gosto encontram o seu caminho. Acho que você vai ser muito feliz lá no seu novo país; e embora tenha certeza de que nunca mais verei você, e isso doa lá no fundo, tenho certeza de que você será muito mais feliz do que a Delgadina. E isso me faz feliz, também.

Republicado em 23 de setembro de 2010

Anatomia do comportamento de manés na internet – o caso do professor Anselmo

Um rapaz chamado Anselmo deixou um comentário neste post, sobre Lampião.

rafael qualé a suaformação? eu sou formado em historia pela ufs. Fiz minha monografia sobre lampião,ou seja sei um pouquinho sobre ele.

Aqui o professor Anselmo apresenta suas credenciais. Ficamos sabendo que ele se formou em História pela Universidade Federal de Sergipe, a mesma em que cursei Direito. Isso deveria nos aproximar, não fosse um pequeno detalhe: ele parece ter muito orgulho por ter estudado na UFS, enquanto eu a tomo pelo que realmente é: uma universidade periférica, sem recursos e sem nenhuma tradição em produção de conhecimento. Não é exatamente uma UFRJ.

Um sujeito que dá carteirada de UFS pode muito bem envenenar um Celta e sair por aí achando que tem uma Ferrari.

Por alguma razão, professores de história gostam de dar carteiradas neste blog. Uma delas foi uma professora que insistiu em negar os jornais dizendo que determinadas leis anti-palestinas não tinham sido promulgadas em 2003 em Israel, e defendeu a tese esquisita de que um casamento entre judeus e alemães na Alemanha nazista prejudicava o alemão em vez de proteger o judeu, tese que não encontra respaldo em historiadores como, por exemplo, Shirer ou Bryan Mark Rigg.

Não estou reclamando — pelo menos não muito. Antes isso que o bando de malucos que vem aqui atrás de “pinto pequeno”.

acho q vc tem que estudar mais sobre lampião,seu modo de vida e as condições do sertão naquela época. comece estudando frederico pernambucano de mello, em seu livro guerreiros do sol vc encontrará muitos argumentos para escrever de forma coerente e convicente.

O autor que o professor Anselmo cita é realmente bom. O livro também, um entre vários. Pernambucano de Mello é um dos grandes pesquisadores nacionais sobre o ciclo do cangaço, e mais especificamente sobre Lampião, de quem tem boas relíquias. Era muito próximo de Vera Ferreira, neta de Lampião, mas os dois brigaram. Dizem que Vera não suportou ver o sujeito ganhando dinheiro com a memória do seu avô, algo mais ou menos na linha do que aconteceu com o livro “Estrela Solitária”, de Ruy Castro sobre Garrincha. Eu não sei. Eu não estava lá.

Mesmo assim o professor precisa aprender a dar carteiradas com mais aplomb. Citar apenas um autor não indica a erudição desejada, e sim pobreza de recursos. Não é que o professor Anselmo só tenha lido isso, claro; mas soa mal. Uma carteirada, para ser realmente efetiva, precisa de um pouquinho mais de elaboração.

No lugar dele eu teria citado também outros autores que gostam do assunto. Para fazer uma média demagógica, citaria os sergipanos José Anderson Nascimento e o folclórico Alcino Costa, nem que fosse para contestá-los e dizer que estão errados e que não são sérios. Ou então autores reconhecidos nacionalmente, para mostrar que informações de um e outro se complementam. Citar um autor só é carteirada de segunda.

Viu, Anselmo? Carteirada se dá assim. Aprenda.

(Sobre Alcino, sujeito simpaticíssimo: ex-prefeito de um município do alto sertão sergipano, é um apaixonado pelo cangaço. Vi pelo menos um de seus livros, ainda em manuscrito. Pode-se discordar de suas conclusões, de muitas coisas. Mas não fazer o que o professor Anselmo provavelmente faria: dizer que ele não conhece o assunto porque não escreveu uma monografia.)

também acho que lampião foi um bandido, mas não podemos dizer simplesmente que ele foi um bandido e pronto, devemos argumentar através de evidencias, e é isso que falta em vc e o torna um tremendo amador no assunto.

E aí as coisas complicam. O que o professor diz é basicamente o seguinte: “você está certo, mas é um amador e não pode falar do assunto”. Eu não sei o que leva uma pessoa a brigar com um texto com o qual ele basicamente concorda. Deve ser excesso de tempo livre. Não é possível que ele seja tão burro a ponto de esperar, em um blog de variedades em que a principal diversão do autor é liberar comentários bobos para ter assunto no dia seguinte, uma tese de mestrado.

Acho que é isso: o digno lente sentiu falta da bibliografia no final do post.

O pior é que o professor Anselmo, que se quer especialista no assunto, tampouco dá evidências. Não cita nada. Não diz o que está errado; não diz nada além do fato de que escreveu uma monografia que nós não lemos — e que dificilmente vamos ler. E esse tipo de discussão é desprezada até em blogs, superficiais por natureza. No fim das contas, o professor Anselmo é despreparado até para discutir com amadores em um blog. Isso faz do catedrático um mané típico de internet, e eu não queria vê-lo enfrentando um debate realmente sério na “academia”. Ao dileto docente faltariam fôlego e talento.

O mais engraçado é que há evidências neste blog, sim, dentro dos limites que textos em blogs podem ter. Aliás, o texto que motivou o comentário do Anselmo começa com a narrativa de um deles, acontecido com membros da minha família.

vc deve aprender sobre o assunto para depois expor sua própria opinião. Deve aprender sobre a colonização do sertão que foi diferente da do litoral, saber que a violência no sertão foi utilizada desde colonização, que o uso da violência era um pre-requisito para a sobrevivência sobrevivência, enfim.

Então foi para isso que o professor Anselmo gastou o dinheiro dos contribuintes? Para escrever obviedades em blogs alheios? O arroz cheio de bicarbonato de sódio do restaurante universitário deve ter-lhe feito mal. Porque quando alguém acha que só ele e sua monografia sabem da gênese da violência no sertão, esse alguém tem problemas sérios. O Anselmo fala platitudes como quem faz uma revelação, como quem anuncia o Apocalipse à patuléia ignara. E no entanto não diz mais que o óbvio, o comum, conhecimento rasteiro.

O problema, mesmo, é que eu e a torcida do Flamengo sabemos de tudo isso. A diferença é que não precisei passar quatro anos na universidade para chegar à conclusão de que Lampião era um bandido.

O ilustre catedrático Anselmo parece ser jovem, pela atitude e pelo péssimo estilo. Tem aquela arrogância típica de quem aprendeu as primeiras letras na universidade e, de repente, se acha o grande conhecedor do assunto sobre o qual escreveu uma monografia. É essa coisa de juventude que o faz perpetrar bobagens como essa.

Fico por aqui, porque não estou aqui para te ensinar nada.

E eu tenho sérias dúvidas de que conseguiria.

É só uma crítica construtiva.

A minha também, professor Anselmo. A minha também.

Estude exaustivamente sobre o assunto, beba em vários autores de opiniões contrárias e depois forme sua própria opinião, só assim você estará capacitado pra falar sobre um assunto tão complexo sobre “Lampião: bandido ou herói? ok.

Por que diabos um sujeito acha que eu iria “estudar exaustivamente” Lampião, quando tenho mais o que fazer, é um mistério. Ele não entende que isto aqui é um blog, só um blog, nada mais que um blog? Prefiro me espantar com as palavras do rapaz, com a sua arrogância cega. O professor não sabe o que li ou deixei de ler, com quem conversei ou deixei de conversar. Mas sabe que escreveu uma monografia de conclusão de curso, e isso o credencia. Então faz questão de mitificar a matéria sobre a qual aprendeu alguma coisa, falando do “assunto complexo” que é — mesmo quando se trata de um dos temas que ajudaram a definir a auto-imagem de toda uma região. Ele tem que se valorizar, afinal. E se isso não é possível no meio acadêmico, que seja num blog.

Apenas um idiota espera de um blog a profundidade de uma tese de mestrado; mas é preciso ser mais que isso para discutir de maneira tão boba, baseado apenas em um argumento de autoridade pífio e fácil. É preciso ser um autêntico mané.

Republicado em 21 de setembro de 2010

As bobagens que dizem em Seu nome

Aí pela época do Natal o Discovery exibiu alguns documentários sobre o “Jesus histórico”. Vi um deles. E fiquei impressionado com o jeito como se manipula a história de acordo com os seus interesses.

Documentários históricos deveriam ter um compromisso, pelo menos: com o bom senso. Não é o caso desse, cuja maior parte consiste em tentativas de comprovar episódios do texto bíblico. A estrela de Belém teria sido então um alinhamento de planetas, os reis magos viriam de determinados lugares, Jesus nasceu numa estrebaria porque era o andar de baixo de estalagens, e por aí vai.

O problema não está no método usado, que afinal é um bom método. Está no fato de utilizá-lo sob premissas falsas.

Em primeiro lugar, um pouco de psicologia de massas deveria ser sempre levada em conta. Por exemplo, deveriam levar em consideração a forma como boatos nascem, crescem e às vezes se perpetuam. Se alguém estava vivo nos anos 70 deve lembrar que diziam que Peter Frampton tinha perdido o braço direito. As pessoas acreditavam nisso. O boato tinha um fundo de verdade: Frampton tinha sofrido um acidente e quebrado o braço. Mas o membro continuava lá.

Boa parte do texto bíblico é basicamente isso, exageros da tradição oral. Cabe aos homens de fé e extrema boa vontade acreditar nisso; a um historiador caberia investigar o que há de verdade aí, mas não tentando provar alguma coisa.

Com os evangelhos aconteceu, seguramente, a mesma coisa. Uma cura de Jesus se transforma na ressurreição de Lázaro; e de boca em boca, ao longo de mais de 40 anos, a epopéia do filho do carpinteiro passou a ter uma dimensão fantástica e micraculosa. Meio século, no mínimo, é bastante tempo para se inventar milagres — e inventar de boa fé.

É improvável que tenha havido alguma estrela de Belém, ou estrebaria em Belém, reis magos levando ouro, incenso e mirra, multiplicação dos peixes, ressurreição. Eu pessoalmente acho que Jesus era, sim, descendente de Davi; isso justificaria a sua sensação de ser especial, príncipe entre os príncipes (e certamente não era nada difícil ser descendente de um sujeito com tantas esposas e concubinas). Como acho que a maior parte dos fatos em sua vida adulta é essencialmente correta, ao menos nos fatos básicos.

E tem Judas.

É o mais interessante de todos esses temas, principalmente nos últimos tempos, quando o Evangelo Segundo Judas chegou às manchetes do mundo inteiro.

O furor causado pelo manuscrito era artificial. Porque é um documento como qualquer outro evangelho apócrifo, sem muita base histórica. E de resto não dizia nada novo, além de uma interpretação que, a propósito, não aparece como nenhuma novidade. Qualquer pessoa que se tenha questionado sobre o cristianismo, ainda sob a premissa de que Jesus era realmente o filho de Deus, já se perguntou se Judas não fazia parte do plano e não era, portanto, um traidor, e sim uma peça no jogo divino. É tão lógico que chega a doer: se Jesus era filho de Deus e sabia que Judas ia traí-lo e não fez nada porque era tudo parte do Plano Divino, por que então Judas é um traidor? Digamos apenas que ele fez sua parte. O mundo precisa de garis.

Historicamente é mais que provável que Judas tenha sido apenas isso: um traidor, movido por quaisquer que tenham sido seus motivos — seja desencanto com um Jesus que ele queria guerreiro, seja simples ganãncia. Mas o documentário tenta apenas provar que Judas agiu de acordo com Jesus.

Em vez de ficar perdendo tempo com elocubrações bobas, esses documentários deveriam se preocupar em encontrar respostas para as perguntas que ninguém responde.

É quase unanimidade entre os historiadores o fato de que Jesus tinha irmãos. Que Tiago, chefe da Igreja adversário de São Paulo nos primórdios da Igreja, era irmão de Jesus. Então onde estão seus descendentes? Tanta gente por aí se orgulhando de ser descendente de qualquer degredado português quatrocentão, ou de marginais que se diziam bandeirantes — por que, então, não há descendentes de filhos, ou de primos de Maria, de José, de qualquer dos apóstolos?