Fraulein,
Recebi o seu presente. Veio rápido, pelo Sedex.
Não sei se você sabe, mas sou do tipo de pessoa que quando ganha livros de presente olha desconfiado e espera uma pequena e inevitável decepção. É tão fácil dar livros ruins de presente, e assim é a maioria dos que ganho de amigos. Então eles ficam na estante, lado a lado com livros de que gosto, talvez se sentindo iguais a algo maior que eles; impossíveis de se jogar fora por causa da dedicatória, impossíveis de serem lidos por causa do seu mau conteúdo. É tão triste ir a um sebo — eu gosto de sebos, como você sabe — e achar livros que foram dados de presente a alguém com dedicatórias carinhosas. Amores antigos e amizades passadas, são essas as histórias que essas dedicatórias contam; e eu me sinto um intruso quando vejo essas pequenas histórias tristes, como se estivesse olhando pelo buraco da fechadura para algo tão íntimo e agora tão melancólico.
Em um Natal, muito tempo atrás, ganhei de uma namorada um romance de John Updike, e eu não gosto de Updike, mas dei o meu melhor sorriso e agradeci, e sabia que não ia jamais poder passar o livro adiante. O livro está lá até hoje, na estante, e dentro dele a dedicatória apaixonada me lembra que houve um tempo em que uma mulher quase esquecida me amava e achava que aquilo era o que de maior poderia haver. Não era e disso ela sabe agora. Há outros livros, outros amigos, outras mulheres. Ficaram os livros, bonitos na estante porque suas lombadas não adquirem aquelas marcas de uso; é um triste destino o dos livros, o de só serem bonitos e perfeitos se não são usados.
Mas o livro que você mandou sequer tem dedicatória, e eu poderia mandar para o sebo, se quisesse; mas não quero e não vou, porque “Memórias de Minhas Putas Tristes” é um livro tão bom. Eu ainda não havia lido. Sabia que ia comprar, mais cedo ou mais tarde, mas sempre tem algo que passa em sua frente, outro livro, um filme, uma viagem, uma garrafa de chianti para se tomar deitado no tapete, uma noite agradável ao som de Billie Holiday.
Agora, depois de ter lido e relido o livro, eu me pergunto: por que esse presente, assim, do nada, sem um motivo especial ou sem uma data comemorativa. Não é meu aniversário, não fiz nada bom e não fiz nada ruim, nem saí desta salinha onde agora escrevo esta carta. Nos falamos tão raramente hoje em dia. O livro foi uma surpresa, e eu não agradeci por ela.
Me pergunto essas coisas porque é de minha natureza perguntar por quê, provavelmente porque não cresci o bastante para achar que tenho respostas demais; prefiro achar que alguém lembrou de mim e desejou me dar um presente de que sabia que eu ia gostar. Eu não ligo para quem não gosta de mim, mas gosto de saber que algumas pessoas gostam.
Há outra pergunta, ainda mais importante. Quando pediu meu novo endereço, você disse que ia me mandar o “Memórias de Minhas Putas Tristes” porque o Sábio Triste lhe lembrava a mim.
E é isso que não entendo, e o que me faz escrever essa carta. Porque olhando para o Sábio Triste, para a descrição amarga e um pouco cruel que faz de si mesmo, eu não me reconheço nele. Eu não sou magro, não tenho perfil eqüino, ainda não fiz 90 anos e nunca vou fazer. Em suas lembranças ele vê apenas mulheres com quem pagou para estar; e me dá um certo alívio olhar para trás e ver que sim, há tantas mulheres de que posso me lembrar com carinho, com aquela calma da velhice, “com aquela paz com a qual um eunuco de meia-idade poderia rememorar o tempo morto que precedera sua alteração, nas formas apagadas e (por fim) que ora viviam apenas na memória e não na carne”, como disse um escritor americano bem melhor que aquele Hemingway de que você tanto gosta e do qual eu fazia troça todo o tempo.
Também gosto de pensar que as mulheres que não têm uma raiva calma de mim por algo que eu tenha feito ou deixado de fazer também se lembram de mim com carinho; não que eu me importe muito com o passado e você sabe disso, mas de vez em quando me vem uma certa consciência da mortalidade e imagino que, já que não vou saber se sou lembrado bem ou mal, que seja bem, porque mal isso não faz e aquela vaidade boba de que eu não conseguiria nem quero me livrar seria finalmente atendida.
Eu não sou como o Sábio Triste; não sou triste, por sorte, mas tampouco sou sábio — e a fileira de bobagens em que recorro na vida, bobagens das quais não me corrijo porque lá no fundo é mais fácil me arrepender do que tentar melhorar, é a melhor prova disso. Se eu fosse sábio minha vida seria diferente; talvez não melhor, mas diferente. No fundo não faço muita questão de sabedoria, porque os momentos em que não fui insensato foram também chatos ou pelo menos comuns; e a expressão “Sábio Triste” me incomoda, porque como uma criança para quem tudo pode se resumir a um sim ou a um não, se sabedoria traz tristeza eu não quero ser sábio.
Também não posso ser o Sábio Triste e você a Delgadina porque não sou tão velho nem você era tão nova; e semanas não são anos; e não parece que eu, sempre tão relapso e distraído e preocupado com tantas coisas, fosse capaz de tamanha paciência e cuidado para montar um pequeno santuário de alcova enquanto espera, e espera, e espera. É engraçado: eu sei esperar, mas não sei esperar muito. E essa incapacidade não me incomoda.
Acima de tudo, fico feliz por não precisar chegar aos 90 anos — idade a que sei que não vou chegar pelos tantos abusos a que submeto meu corpo, pelas tantas noites perdidas, pelos tantos cigarros fumados, pelos tantos uísques bebidos, abusos sem os quais eu não saberia viver — para descobrir o que é amar alguém. Pelo meu passado, mas principalmente pelo meu presente, eu fico realmente feliz, e é daí que a vem a minha calma e a minha tranqüilidade.
O fato é que, por tudo isso e talvez por outras coisas que não fui capaz de falar, em nenhum momento eu gostaria de ser o Sábio Triste, não me vejo nele daqui a mais de cinqüenta anos, não me vejo nele agora. E isso, repito, me deixa feliz.
Lembrei agora que quando contei de minha namorada você disse que não deveria ser assim, que eu deveria ficar velho chorando teu nome, e eu ri. Porque sei, e acho que você sabe também, que a vida não é assim (ou que pelo menos eu não sou assim, ou não era assim). Sim, eu também gostaria de saber que sou inesquecível para todas as mulheres que passaram pela minha vida. Com aquele egoísmo de que não conseguimos escapar, gostaria de saber que elas, todas elas, lembram de detalhes que esqueci há muito tempo, eu que delas no mais das vezes não lembro sequer seus nomes completos, e confundo uma com outra, e esqueço de tantas. Gostaria de saber que elas lembram de mim com saudade e ficam ao lado do telefone esperando a ligação que eu nunca faço, dias e dias e dias intermináveis.
Novamente tenho que lembrar que a vida não é assim, e sei que as pessoas me esqueceram como eu esqueci delas. Eu fico feliz se pelo menos lembram o meu nome e conseguem associá-lo ao meu rosto. Agora esqueça tudo o que falei ali em cima, essas coisas em que você provavelmente não acreditou porque como tanta gente me acha um cínico, um cafajeste e um insensível, e lhe direi algo que lhe parecerá mais plausível, embora seja somente tão verdadeiro quanto o que eu disse antes: ser esquecido não me deixa triste. Na verdade me deixa aliviado, porque a minha cruz já é muito pesada para que eu tenha que carregar a cruz de mais alguém.
Talvez por isso eu tenha ficado tão feliz quando soube que você ia viajar e começar uma nova vida. Talvez eu tenha isso de um velho, essa mania de olhar para o lado e ficar contente quando as pessoas de quem gosto encontram o seu caminho. Acho que você vai ser muito feliz lá no seu novo país; e embora tenha certeza de que nunca mais verei você, e isso doa lá no fundo, tenho certeza de que você será muito mais feliz do que a Delgadina. E isso me faz feliz, também.
Republicado em 23 de setembro de 2010