Foi há seis anos. Domingo ou segunda ou terça de Carnaval, e pela minha janela entrava o som de uma banda de baile tocando no Cotinguiba Esporte Clube.
O Cotinguiba foi clube chique, umas três vidas atrás. À beira do rio Sergipe, tinha uma grande equipe de remo, do qual meu avô, vagabundo emérito, fez parte. Era onde a elite da cidade se reunia — elite feia, provinciana, malvestida, cujo consolo e orgulho era saber que tinha gente pior por aí, nas casinhas geminadas do Bairro Industrial ou nas choupanas de palha dos pescadores da praia Formosa, logo adiante.
Mas nos anos 50 construíram o Iate Clube, e o Cotinguiba iniciou a sua decadência. De clube da elite sergipana passou a ser o segundo; verdade, aguentou mais tempo que os outros — primeiro fechou o Vasco Esporte Clube, o clube da periferia; depois foi a vez da Associação Atlética, o clube da juventude e de bailes, matinês e vesperais que também se foram aos poucos, como as folhinhas de um calendário do Sagrado Coração. Mas não podia vencer totalmente o tempo, e se ainda existe é porque oferece uma piscina e uma quadra esportiva a gente menos esnobe, e aluga seus salões para eventos e convenções de políticos.
O remo, que ainda tentou um ressurgimento nos anos 80, desapareceu para sempre, levado pelo esgoto que agora polui o rio Sergipe. O futebol, depois de uma agonia lenta e humilhante, sumiu por aí sem que ninguém perguntasse por onde andava.
O Cotinguiba é já há muito tempo o clube da periferia, mesmo localizado no primeiro bairro da zona sul.
Exatamente 30 anos antes eu tinha passado um Carnaval ali. É algo que até a mim surpreende, porque sempre achei que Carnaval é um negócio tão ruim que as pessoas têm que encher a cara para suportar — ainda mais Carnavais como o de Aracaju, que acontecia nos clubes: os mais pobres no Vasco, os mais ricos no Iate. Mas adolescentes andam em bando e existem para aplacar uma fome inextinguível, e rezava a lenda que no Carnaval as moças lhe tratavam melhor, e o Cotinguiba tinha muitas moças, muitas moças.
O Cotinguiba estava lotado, absolutamente lotado. Estava assim também porque era melhor que o Carnaval do Iate Clube. Era animado, desbragado, as moças eram mais dadas e alegres e suadas e dançavam com os braços levantados salão afora, e confete e serpentina e cerveja jogada para cima, e não existe razão para sofrer um carnaval que não seja essa, única e exclusiva.
Entrei com a carteirinha de alguém. E basicamente, o que lembro é que terminei aquela noite pendurado no capô traseiro de um Maverick a uns 100 por hora.
É outra coisa que o tempo deixou para trás. Até os anos 80, o carnaval de Aracaju era marcado por uns poucos eventos: o Baile dos Artistas, em que os homens machos do sexo masculino podiam soltar a franga trancada no armário a sete chaves durante o resto do ano, ao lado das bichas e viados e travestis; o desfile das escolas de samba na Av. Barão de Maruim, arremedo miserável de corsos mais dignos em outras paragens; e o desfile dos calhambeques logo em seguida: as pessoas compravam carros velhos, como Galaxies e Dodge Darts (imagino que antes as pessoas usassem Dauphines, Vemaguettes, Gordinis e Aero Wyllis, mas nos anos 80 eles já quase não existiam mais), pintavam e modificavam os carros e desfilavam logo após as escolas de samba. Depois, boa parte ia para a praia dar cavalos de pau. Era carnaval de rico, claro, mas também de agregados que acham bonito idiotas destruindo automóveis; como dizia o velho Valois Galvão, tem gente para tudo no mundo e ainda sobra um para comer merda. Naquele ano fui um deles.
Ia quase amanhecendo quando o pessoal que estava comigo decidiu acompanhar um amigo deles que tinha um desses calhambeques, um Maverick pintado de preto com desenhos de chamas em suas laterais. Não lembro se tinha todos os vidros, mas com certeza não tinha o para-brisa traseiro. Eles entraram no carro. Eu não ia — achava aquilo uma estupidez e para mim a noite já tinha acabado; mas decidi no último instante ir também. O carro já estava saindo quando me joguei em cima dele.
O Maverick a 100 por hora em plena Av. Beira Mar e eu ali pendurado, pensando que se eu me soltasse ia morrer e aí ia para casa chorando. Eu não tinha muita alternativa. Foram alguns momentos de pânico, mas alguém deve ter me ajudado a subir, acho. Aparentemente, eu não morri naquele dia — e se fosse para morrer num Carnaval, que fosse como Vadinho, no meio da folia, e não uma morte indigna como essa.
Decidi que aquele era o primeiro e último carnaval que eu passava no Cotinguiba, mesmo que ele tivesse tantas moças dadas e alegres, e certamente a última vez que eu chegaria perto de um desses calhambeques, que sempre achei idiotas. Cumpri o que prometi a mim mesmo.
Mas o tempo passa, as lembranças adquirem novas cores. Os bailes dos clubes foram morrendo mais rápido que um frevo de Dodô e Osmar, começando pelos mais chiques, como o do Iate. Nos anos seguintes o carnaval de Aracaju se dividiria em dois. O dos ricos aconteceria em Salvador, enquanto o Clube do Povo atraía aqueles sem algibeiras nem sorte para a praça Fausto Cardoso, no centro, para levar porrada.
Em 2017, no entanto, nada disso existia mais. Resistia, no entanto, o baile do Cotinguiba.
Devia ser umas duas da manhã quando a banda finalmente parou de tocar. Por uma curiosidade mórbida, fui até a varanda ver as pessoas saindo. E então este bloco de pedra que chamam de meu coração ficou um pouquinho apertado.
Da quadra do Cotinguiba saíam menos que quinze pessoas, provavelmente uma família só, no máximo duas. Se despediam alegres, tinham se divertido — mas eram menos de quinze almas, homens, mulheres, crianças. O Cotinguiba Esporte Clube, outrora chamado de o “tubarão da praia”, o lugar onde gente metida a besta ia se pavonear diante de gente metida a besta, comemorava seus 110 anos com uma banda tocando com galhardia para uma ou duas famílias que não tinham nada melhor para fazer na folia de Momo, sem que um Martin Scorsese registrasse isso em um filme que poderia se chamar The Last Ball.