Como o Holocausto

Já passou da hora de dessacralizar o Holocausto.

Em vários momentos deste blog escrevi sobre o assunto, sempre lembrando a mesma coisa: o Holocausto é singular porque não fazia sentido economicamente, ao contrário da escravidão africana; porque era apenas a materialização em última instância de um ódio racial injustificável, explicado em sua origem por uma necessidade existencial do cristianismo; e pela sua natureza industrial, o fato de os nazistas montarem um complexo mecanizado de assassinatos em massa.

O sacrifício desses seis milhões de homens, mulheres e crianças acabou tendo um aspecto curioso. O Holocausto deu fim aos quase dois milênios de perseguição institucional ao povo judeu. O antissemitismo deixou de ser considerado apenas um preconceito a mais, e a memória do genocídio possibilitou a formação do Estado de Israel, em termos prejudiciais aos habitantes da região mas autorizado pela lembrança dos horrores nos campos de concentração.

Nada disso é menos que justo.

Nas últimas décadas, no entanto, Israel fez do Holocausto o seu habeas corpus permanente, num cartão de saída livre da prisão de Banco Imobiliário. Ao transformá-lo no maior crime humanitário que o mundo viu em toda a sua história — os 10 milhões de mortos no Congo Belga na virada do século, por exemplo, batem o Holocausto nos números e também em desprezo a uma raça considerada inferior, mas carecem da sofisticação alemã na criação de uma máquina de matar e da publicidade que os campos de concentração receberam, e por isso não merecem os mesmos lamentos —, e principalmente em algo que não admite comparação possível, Israel se vê liberado para cometer as atrocidades que quiser, porque nunca deixará de ser uma vítima inalcançável. “15 mil crianças mortas em Gaza? Você tem a audácia de comparar isso com Dachau?” Dando um passo adiante, descobriram a tática eficiente que é chamar qualquer pessoa que critique o que Israel faz com os palestinos de antissemita, palavra bexigosa da qual se corre como quem corre da lepra.

É por isso que diplomatas israelenses usam estrelas amarelas ao irem à ONU enquanto avançam no genocídio do povo palestino. Foi por isso que uns 30 anos atrás judeus novaiorquinos protestaram contra uma exposição sobre as vítimas gays e ciganas nos mesmos campos de concentração onde seis milhões de judeus perderam a vida.

A exclusividade do sofrimento, aqui, não é defendida com unhas e dentes à toa. Há um propósito nessa glorificação da desgraça, e se ela nasceu como uma garantia de que o Holocausto não se repetiria, agora se torna o pedestal sobre o qual Israel se escuda diante de um mundo cada vez mais horrorizado com a sua própria selvageria.

O tabu de se comparar o Holocausto com qualquer coisa precisa cair. Torná-lo “aquele que não deve ser nomeado” não é mais exatamente uma garantia para os direitos dos judeus. É, ao contrário, o passaporte para a violação dos direitos dos palestinos. O Holocausto é agora a desculpa para um novo Holocausto.

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Quando o Hamas realizou sua ofensiva contra Israel em outubro do ano passado, jornalistas compararam o ato a um pogrom, angariando capital emocional para defender a crueldade sionista que naquele momento já tinha tido início. Fingiram esquecer que o que aconteceu ali foi justamente o contrário.

Pogroms eram algo totalmente diferente. Eram a violência contra um povo minoritário e oprimido. O ataque do Hamas foi o inverso: mais uma tentativa de um povo de se libertar do seu invasor.

A única comparação possível, que esses jornalistas se recusam naturalmente a fazer, é com a rebelião do Gueto de Varsóvia. Israel tem feito em Gaza nas últimas décadas o que os nazistas fizeram em Varsóvia, mas agora em muito maior escala.

É por isso que a definição do Hamas como terrorista parece cada vez mais inaplicável. Ninguém chama, por exemplo, a Resistência Francesa na II Guerra de “terrorista”, porque ninguém pode negar a uma nação oprimida e ocupada o direito à resistência armada. A não ser que essa nação seja a palestina.

Há toda uma nomenclatura canalha utilizada pela mídia internacional para mascarar o genocídio. Falam, por exemplo, da guerra de Netanyahu contra o Hamas, e não do que realmente é, a execução de um genocídio pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Usando esses termos, Israel pode destruir a Faixa de Gaza, pode atacar a Cisjordânia, pode chacinar mais de 100 pessoas na fila da ajuda humanitária.

Usando as palavras certas, eles podem tudo, como dizia a Golda Meir.

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Independente de como chamamos o Hamas, e independente do resultado desta crise, a única coisa que se pode tomar como garantida é que a cada incursão israelense em território palestino, a existência de Israel se torna cada vez mais inviável.

Desde o início, Israel só foi possível pelo investimento das grandes potências, pelo interesse estratégico dos EUA, por exemplo, em um enclave no posto de gasolina do mundo. Num mundo multipolar onde outras potências se afirmam, no entanto, essa posição se torna a cada dia mais vulnerável.

E a cada pai morto, a cada mãe assassinada, Israel cria mais e mais militantes do Hamas, construindo aos poucos a sua própria inviabilidade. O ódio se espalha e se justifica. Israel entrou em um círculo de violência e autodestruição do qual não poderá mais sair.

A África não tem culpa de nada

A geração que hoje tem por volta de seu meio século de tribulações cresceu sob uma narrativa bem clara sobre a Guerra do Paraguai, ao menos do ponto de vista da esquerda: a de que o conflito foi causado pelas maquinações de uma grande potência imperialista, a danada da Inglaterra, em pânico diante de um modelo de desenvolvimento autônomo protagonizado pelo Paraguai progressista de Solano López. A velha Albion então fez com que suas duas marionetes sul-americanas, o Brasil e a Argentina, atacassem e destroçassem aquele pobre país.

Pelo menos era essa a tese que “Genocídio Americano”, do Julio Chiavenato, defendia.

A verdade estava muito longe disso, e a historiografia brasileira já tornou essa versão apenas uma curiosidade histórica. Para começar, na época o Brasil vivia graves problemas com a Inglaterra, chegando a romper relações diplomáticas. A Guerra do Paraguai foi causada pelos interesses políticos e comerciais do Brasil na região platina, pela necessidade de unificação e consolidação nacional da Argentina e pela estupidez de Solano López, ditador latino típico de filme americano que não soube avaliar o mundo a sua volta e começou uma guerra desnecessária que não poderia jamais vencer. Tudo isso tendo como fundo o destino do Uruguai, uma pequena Tróia com papel decisivo no controle da navegação no rio do Prata.

Mas aquela narrativa vitimista é típica de uma certa visão de mundo e de nação, encampada por grande parte da esquerda brasileira, que perdura ainda hoje. Para ela, os vilões dos países em desenvolvimento são sempre os outros. Países subdesenvolvidos são invariavelmente vítimas impotentes das grandes potências setentrionais.

Parecem não perceber que essa constante ênfase na atribuição de responsabilidades a um agente externo nega a esses países até mesmo a condição de sujeitos e protagonistas de sua própria história. Mas não é por acaso: essa concepção nos desculpa, sempre: nós não temos culpa de nada. E ao eleger um inimigo externo, nos livra de olhar para dentro e fazer as mudanças necessárias.

Por isso me incomodei ao ver o título dessa matéria publicada esta semana no UOL: “Como este povo africano conseguiu fugir dos portugueses durante a escravidão”.

Não é apenas a inverdade histórica. O título incomoda principalmente por tudo o que estabelece como pressuposto para o debate político. Porque não era dos portugueses que esse povo fugia. Era de reinos como Axante, Daomé ou Oyó, de qualquer povo mais forte que tivesse condições de subjugá-los e vendê-los em portos com o de Ajudá, a quem desse melhor preço, mais rifles, mais fumo de rolo, mais cachaça, mais seda.

(A matéria é muito melhor que o título, dando a César o que é de César. Só erra ao colocar o Brasil como mero comprador, quando na verdade tomamos conta do tráfico no século XIX.)

Não se trata de eximir portugueses, brasileiros ou britânicos da imensa responsabilidade e culpa pelo tráfico de escravos. Quando Lula pediu desculpas à África, em seu primeiro mandato, não fazia mais que sua obrigação, a de reconhecer o papel do Brasil no tráfico transatlântico e de entender que a demanda gigantesca e inédita por mão de obra escrava ajudou a condicionar a transformação da economia africana. Sem compradores, os escravizadores africanos não teriam motivo para destroçar a estrutura social de tantos povos. Somos culpados como o diabo.

Mas os europeus “apenas” compravam escravos, em um mercado que já era forte muito antes da descoberta das Américas. Até bem adiantado o século XIX, nunca tinham feito uma incursão de captura.

Alguém capturava tribos inteiras antes disso, faziam-nos andar agrilhoados em libambos por centenas de quilômetros até enterrá-los em porões de navios negreiros, onde 10% deles, na melhor das hipóteses, iriam morrer. E não eram os europeus.

Pensei nisso também quando vi as primeiras notícias sobre o golpe de Estado no Níger, e depois no Gabão. Vi, novamente resgatado do repertório permanente de análises pseudo-dialéticas um velho conhecido na imprensa progressista: a renovação das esperanças no discurso decolonialista dos golpistas.

Não vou me estender sobre as perspectivas do golpes porque, mesmo sem conhecer suficientemente sua história, posso apostar que vão terminar como todos os outros na África: mais uma troca de guarda de parte da elite nacional por outra que vai descambar nos mesmos autoritarismo e corrupção, ancorados na eterna concepção do Estado como algo a ser apropriado pelos indivíduos e famílias de um grupo específico, até que essa casta seja destronada por outro golpe, repetindo o mesmo ciclo ad infinitum que representa a grande tragédia da África e, em menor medida, da América Latina. Sempre foi assim, e nada indica que este vai ser diferente. No caso do Gabão, ao ver os generais responsáveis pelo golpe imaginei ver também legendas com o nome de cada um. O da esquerda poderia se chamar Videla; o do centro, Médici; e aquele da direita se chama Stroessner.

As diferenças entre a ocupação europeia do Novo Mundo e da África saltam à vista. Se a escravidão no Novo Mundo foi uma tragédia humana e genocida que nos legou estruturas sociais doentes que não conseguimos superar e nos condena ainda hoje, ainda assim não se compara ao nível hediondo de violência e racismo perpetrados pelos europeus na África. O que os portugueses perpetraram em Angola e Moçambique, o que holandeses e ingleses fizeram na África do Sul não deixa absolutamente nada a dever aos campos de extermínio nazistas ou à ocupação israelense da Faixa de Gaza.

Nada disso pode ser esquecido, sequer relevado. Mas tampouco deveria servir como bode expiatório para todas as mazelas africanas.

Concorrendo com o legado colonial, a África de hoje é resultado também das estruturas políticas, relações sociais e de classe anteriores e sobreviventes a essa dominação e exploração. Falta entender isso, colocar essa percepção como elemento principal do debate. Mas parece ser mais partir do princípio de que ela não tem culpa por ter criado e consolidado o mercado de tráfico humano que possibilitou a compra de milhões de africanos por Portugal, Brasil, Inglaterra, Espanha, França. Se é um continente atrasado, é unicamente por ter sido espoliada pelas potências europeias. Da mesma forma é que dos países ocidentais a culpa única pela escravidão, pelo arrasamento da estrutura social africana, no Níger é da França a única culpa pelo subdesenvolvimento atávico, pela entrega dos recursos nacionais, mesmo tendo sido colônia por menos de 60 anos.

Mas não foram os europeus que levaram para lá crenças como a de que um portador de HIV será curado se fizer sexo com uma menina virgem. Nem criaram a perseguição a albinos, ou a mutilação do clítoris das africanas, ou ideia de que se você oferecer farofa, pipoca, galinha e cachaça a um ser inexistente ele vai trazer a pessoa amada em três dias. Acima de tudo, não foram os europeus que ensinaram a África a ganhar dinheiro escravizando outros seres humanos.

A tragédia da África é a manutenção de estruturas sociais ruins e frágeis. Mudá-las é tarefa que cabe, única e exclusivamente, aos africanos. Mas jamais será possível com essa percepção de que a culpa é sempre do outro. No máximo, leva a cartazes como o que um nigerino segurava numa das manifestações de apoio ao golpe: “A bas la France, vive Poutine”. Sem entender seu próprio papel, parecem condenados a só mudar de senhor.

Nós, brasileiros, temos ao menos a sorte de conhecer nossos algozes: uma elite canalha, rentista e entreguista, imersa em uma corrupção atávica e estrutural que não dá mostras de que vá ser superado em futuro recente — e, para ser honesto, também um povo que só difere da atitude da elite pela falta de dinheiro e de poder. A gente sabe que a culpa é nossa, e esse diagnóstico é, talvez, a única coisa a nos dar esperança em um futuro melhor.

 

O próximo presidente não pode ser do PT

Quatro anos de escuridão, de um mal-estar sem precedentes na história política brasileira; um presidente que envergonhou o país como nenhum antes dele, seguido por hordas de bandidos e de imbecilizados agressivos e cheios de ódio: dia 30 de outubro o Brasil pulou uma fogueira.

A eleição de Lula devolveu ao país a perspectiva de normalidade e de sensatez. Lula se prepara para realizar um governo de transição e reconstrução, e seus movimentos até agora têm sido, de modo geral, de acerto. Longe das frentes de quartéis, onde pequenos grupos de zumbis apatetados repetem há semanas a liturgia de uma seita dedicada ao Grande Pneu Patriota do Caminhão Sagrado e esperam o arrebatamento pelo Imbroxável da Facada Mágica, o país respira aliviado.

Mas o resultado das eleições é menos róseo do que parece.

Cientistas políticos em pânico fizeram uma avaliação estranha e apocalíptica do cenário, logo que saiu o resultado do primeiro turno. Denunciaram o fascismo como se fosse novidade, como se o autoritarismo não tivesse sido sempre uma franja às vezes mais, às vezes menos visível da sociedade brasileira, como se não tivéssemos passado pelo integralismo, pela TFP, por uma sequência de golpes de estado bem ou malsucedidos. Diante do aumento da bancada do PL no Congresso, falaram em crescimento do bolsonarismo e do fascismo. Bobagem até compreensível em quem passou quatro anos alternando-se entre a estupefação e o pânico. O que se viu não foi um crescimento ideológico: foi simplesmente a ação do dinheiro. O PL cresceu no parlamento não porque a sociedade brasileira se identificou ainda mais com um autoritarismo amalucado de verniz evangélico, mas porque comprou mais votos.

O bolsonarismo vai desaparecer tão rápido quanto surgiu, e isso podia ser dito antes mesmo das eleições. As últimas semanas apenas comprovam o que já se sabia: Bolsonaro não tem capacidade intelectual ou política para liderar os símios que marcham-soldado na frente de quartéis e pedem socorro a ETs. Seu lugar vai ser ocupado por gente mais pragmática, como o Tarcísio de Freitas ou o Romeu Zema, dentro da normalidade democrática e sujeita às circunstâncias do jogo político.

O que não vai desaparecer é a extrema-direita que vem se consolidando a partir da reação aos governos do PT, um nível variável de polarização nacional e, principalmente, aquilo que levou a esse crescimento do centrão: a total degradação do sistema eleitoral brasileiro.

Esse é o verdadeiro problema que emerge destas eleições. O nosso é um sistema completamente falido, e não vai melhorar. O debate político brasileiro se restringe cada vez mais a umas poucas camadas da população e se dá quase exclusivamente nas redes sociais, mas principalmente sobre os cargos majoritários. Eleições proporcionais estão sempre em segundo plano. Pergunte às pessoas em quem votaram para vereador ou deputados em eleições passadas e a maior parte não se lembrará. E não é só o comum das gentes, os mais despolitizados: a maior parte votou em um amigo, no candidato de um amigo, em um número entregue na boca de urna. É um fenômeno que se espalha em todas as classes e em todos os espectros políticos.

Enquanto isso, os movimentos sociais perdem força, e a descrença na possibilidade de transformação da sociedade pela política se espalha como metástase. O resultado é a ascensão do que antigamente chamavam baixo clero e que, como uma gosma alienígena de filme B dos anos 50, engole a política brasileira, reforçando o conservadorismo popular e surfando na onda evangélica — evangélicos que a tolerância, o respeito à diversidade, o medo e a pura e simples conveniência não deixam denunciar como o que são: a maior ameaça ao progresso do país.

Lula vai aprender a negociar com essa escumalha em termos, se não mais éticos, ao menos mais legais do que fez com o Mensalão, para evitar os erros dos governos anteriores. Mas a própria história do PT ajuda a levantar hipóteses sobre o que vai acontecer nos próximos anos.

Quando surgiu, em 1980, o PT representou um passo à frente na luta popular. Num cenário que tinha sido dominado nos 60 anos anteriores pelos partidos comunistas, ele colocava na mesa um projeto mais pragmático, menos radical, mais plural. Sua bandeira ainda era vermelha, mas em vez da foice e do martelo, trazia uma estrela. Não era comunista, não queria ver a jurupoca piar: era dos trabalhadores — e todo mundo é trabalhador, independente do sistema econômico. Para alguns ainda podia parecer radical, mas era um partido mais palatável do que os velhos dinossauros comunistas, porque nunca colocou em questão a troca do sistema político: era um partido reformista, no máximo, em que pesassem as correntes trotskistas que também se abrigaram sob o guarda-chuva estrelado.

Nos dez anos seguintes ele estabeleceu uma estratégia radical de crescimento, se recusando a fazer as alianças que os partidos marxistas-leninistas faziam a torto e a direito, construindo uma base ampla nos movimentos populares, como a CUT e mais tarde o MST. Construía sua identidade a cada greve, a cada eleição. Não demorou muito para conseguir eleger seus primeiros prefeitos — algumas terríveis, como Luiza Fontenele em Fortaleza, e outras muito boas, como Luiza Erundina em São Paulo.

Em novembro de 1989 Lula destronou Leonel Brizola como principal liderança nacional de esquerda, mas perdeu a eleição para Collor e o Muro de Berlim caiu, levando em efeito dominó as repúblicas populares do Leste Europeu e finalmente a própria União Soviética.

Diante de um quadro totalmente novo — no qual um aspecto, maior e mais abrangente, era o fim da perspectiva do socialismo como sistema viável e desejável; o outro, a clara opção do eleitor brasileiro por uma proposta menos radical (e mais bonita e mais chique, também) — o PT fez o necessário para chegar à presidência. Expurgou seus trotskistas, abriu mão de grande parte do radicalismo em seu discurso, votou contra o parlamentarismo no referendo de 1993. Só não esperava a avalanche do Plano Real e teve que esperar até 2002.

Durante todo esse tempo, apostou no “nós contra eles”, na radicalização do embate e na delimitação de campos bem definidos.

Mas esse discurso de radicalização só é real, ou só faz sentido, quando há uma radicalização ideológica, o que nunca foi o caso do PT. E aí está um dos elementos mais importantes para que se entenda o país de hoje. O “nós contra eles” nunca foi estrutural, socialistas versus capitalistas: em vez disso, o PT sequestrou essa polarização para o campo moral. Ao longo de sua história, o PT se apresentou como o guardião ético de uma ideia de capitalismo um pouco mais humano, levando inclusive à progressiva udenização de seus rivais, como o PSDB.

Essa imagem cobrou sua conta a partir do Mensalão, quando boa parte da classe média decretou independência do voto no PT, decepcionada ao ver que, naquilo em que o próprio partido tinha apregoado sua superioridade durante anos, ele parecia ser igual aos outros. O PT foi forçado a jogar no campo que escolheu e levou uma goleada injusta. Mais tarde, a aberração jurídica e política chamada de Lava Jato capitaneou uma das piores perseguições a um partido já vistas na história do país, mas encontrou nas práticas do PT terreno fértil e devidamente amplificado.

O resultado de tudo isso foi Bolsonaro. Que caia o pano da decência sobre esses últimos quatro anos sofridos pelo país. Chega. Já passou.

O que interessa é que o PT é hoje um partido de centro-esquerda, que perdeu ao menos parte do diferencial ético no qual apostou por décadas, com dificuldade para afirmar pautas reformistas e tendo que enfrentar a fragmentação de uma esquerda que não tem mais o referencial claro que o socialismo oferecia, e se dissolve cada vez mais em discussões identitárias, como baratas voando numa sala pequena demais. Há tempos, por diversas razões (como a evolução do capitalismo globalizado e a cooptação dos movimentos sociais, natural quando um partido de esquerda chega ao poder), vem perdendo a ligação orgânica com os movimentos sociais que tinha 30 anos atrás — há quanto tempo ninguém ouve falar na CUT, por exemplo? Onde anda o Sindipetro?—, e corre o risco de perder todo o capital de organização popular que acumulou em seus primeiros 20 anos. Sua militância ascendeu econômica e socialmente, a partir da ocupação necessária e legítima de espaços no Estado. Por mais que petistas ainda se vejam como superiores, o PT hoje é um partido como qualquer outro.

Com a colaboração inquestionável dos anos de obscurantismo e destruição do Leprechaun do Cercadinho, Lula foi eleito em 2022 sem um projeto de país, sem um plano de governo, sem ideias além da repetição daquilo que deu certo duas décadas atrás e a reconstrução de um país dividido e destroçado pela incompetência de Jair Bolsonaro. Nesse contexto, suas contradições passaram batido, ou quase, e o PT se elegeu sem apresentar propostas concretas. Mas não dá para disfarçar o fato de que, hoje, ele não oferece nada realmente novo — necessário, sim, mas nada que represente um passo à frente. Lula, um gênio político e um dos maiores presidentes que este país já teve, pouco abaixo de Vargas e Juscelino, não precisou apresentar ideias: bastou prometer consertos.

Vai ser muito difícil para o PT governar nos próximos quatro anos. Não pelos terroristas que ateiam fogo a carros em Brasília. Mas pelas imposições do próprio sistema político brasileiro corrompido e degenerado de maneira inédita, e pela necessidade imperativa de fazer um governo de transição, de reacomodação e recuperação do que o país perdeu nos últimos anos.

Por um lado, é uma tarefa relativamente fácil, porque uma árvore plantada em terra arrasada é um aumento de 100%; por outro, na prática pode impedir um avanço real em relação ao país que Lula deixou em 2010.

Problema maior, no entanto, é o Brasil que vai chegar a 2026.

Se tiver um pingo de responsabilidade, Lula não se candidatará à reeleição. E aí a cobra vai precisar fumar. O PT, sendo PT, provavelmente vai tentar arranjar em suas hostes o novo candidato. Porque não interessa o Mensalão, não interessa a Lava Jato, não interessam os governos de centro-esquerda que fizeram: petistas continuam se achando os únicos depositários da verdade de esquerda. Essa postura hegemônica vem isolando progressivamente o PT ao longo dos anos, com defecções como as de Eduardo Campos e o próprio Ciro Gomes. Até agora, a liderança absoluta de Lula conseguiu minimizar isso; não deve ser o caso em 2026.

Mas há algo ainda mais grave. É a ideia do PT em si, o partido comunista bolivariano que vai enfiar uma mamadeira de piroca satânica e abortista goela abaixo dos filhos dos evangélicos deste país, que ajuda a unificar e engajar a multidão de imbecis do WhatsApp, a galvanizar uma oposição que pode não saber a que está se opondo, mas se opõe. A paranoia se espoja na ignorância: esse pessoal não consegue raciocinar, mas assim como acreditam no Deus que paga juros a quem dá o dízimo, têm a convicção de que o PT vai fazer o que nunca fez.

Em 2026, o PT precisará ter a grandeza histórica de entender exatamente onde está e dar o passo necessário para a consolidação da democracia brasileira. Se ao longo dos próximos quatro anos não conseguir criar uma liderança nacional realmente forte e absolutamente inquestionável, precisa deixar de ser a pedra de toque dos alucinados de extrema-direita, precisa entender que a democracia precisa de mais lideranças. E isso significa abrir espaço para outras forças. Em poucas palavras, ser democrático de verdade.

Como diziam os colunistas sociais nos tempos em que colunas sociais faziam sentido, a conferir.

A estupidez dos justiceiros sociais

Até umas semanas atrás eu não fazia ideia de que compartilhava o mesmo ar poluído e os mesmos tempos estranhos com um jogador de vôlei chamado Maurício Souza. Agora não paro de pensar nele e na estupidez política que vem cercando uma frase sua.

Maurício Souza era um bolsominion insignificante e de intelecto limitado, me perdoem a redundância. Viu a notícia de que um Superman iria ser apresentado como bissexual e se manifestou nas redes sociais, lamentando o fato e torcendo o nariz para os rumos que a sociedade vem tomando. Na melhor reação a essa bobagem, ele foi chamado de “fiscal de cu de desenho”.

Até aí nada demais. Independente da definição e interpretação do crime de homofobia, Maurício não ofendeu diretamente ninguém. Apenas expressou uma visão de mundo preconceituosa e burra. Posso estar errado por não entender de leis, mas acredito que a ideia de liberdade de expressão, que vem sendo torcida à direita e à esquerda, se aplica a isso.

Mas Maurício caiu na mira dos justiceiros sociais, esse pessoal cheio de adjetivos fortes que parece passar os dias diante de uma tela procurando um alvo fácil na internet para linchar — ou “ressignificar”, não sei bem.

O que se viu depois parecia um retorno aos bons tempos do senador Joseph McCarthy e seus interrogatórios no Congresso americano, no fim dos anos 40. O jogador Fred, do Fluminense, curtiu o post — talvez por solidariedade de classe, talvez por comungar dos mesmos valores, não pretendo saber — e uma colunista do UOL pediu imediatamente o boicote dos patrocinadores do seu time, a demissão, o diabo. Pouco depois o filho de Tite se meteu no imbróglio e, imediatamente, ela fez a mesma coisa.

A moça parecia a Salomé, toda hora pedia uma cabeça.

Maurício perdeu o emprego e foi desligado da seleção brasileira de vôlei. Imagino que ela e os outros justiceiros tenham ido dormir felizes, limpando o sangue de suas cimitarras virtuais. O problema é que o mundo gira e eles não conseguem ver.

Agora Maurício, que tinha 200 mil seguidores no Instagram, tem quase 3 milhões. É procurado por partidos para se candidatar a um cargo político. Hoje, Bolsonaro o levou ao cercadinho onde o seu gado se espoja na baba da estultície.

A extrema direita ganhou um mártir da livre expressão, e ainda melhor, sem ter precisado fazer nada por isso. É essa miopia estúpida desses justiceiros que impressiona e preocupa.

Maurício é um idiota, mas não se deve esquecer que ele expressou o descontentamento de uma parcela significativa, se não majoritária, da população brasileira. Gente conservadora, incomodada com a conquista de direitos por minorias porque isso altera o status quo ou, mais importante, valores atávicos que acalentam desde sempre, passados de pai para filho ou adquiridos nos bancos duros das igrejas.

O busílis do bagulho é que essa gente é conservadora, mas não necessariamente se mobiliza contra o avanço social. É aquela grande massa informe que vê o progresso passar enquanto resmunga, desconfortável. Gente que oferece resistência mínima, nunca organizada, e que no fim do dia acaba aceitando de cara feia o mundo que a cerca.

Mas no caso do Maurício, 2,5 milhões de pessoas pelo visto acreditaram que ele simboliza não um direito dado a outros, mas um direito tomado deles, o de manifestarem sua opinião desde que não ofenda diretamente ninguém, e resolveram tomar uma atitude simbólica, dando apoio tácito a alguém que julgam perseguido.

O problema é que isso não vai ficar no simbolismo tão caro a esses justiceiros.

Maurício Souza não era nada em política. Se tudo correr como a direita espera, vai ser um deputado federal a partir de 2023. Um legislador. Um sujeito que propõe e vota leis. Se até semanas atrás era um cretino inofensivo que resmungava seus preconceitos no Instagram, no Congresso Maurício vai ser uma autoridade que votará contra leis que promovam direitos dos gays, contra o aborto, contra minorias de modo geral.

Ele foi “cancelado” porque não gostou do Superman gay. Agora, Maurício vai poder dizer que leis que protegem gays ameaçam a família brasileira, e ninguém poderá fazer nada porque ele terá imunidade para isso. Mais que isso não consigo desenhar.

Mas os justiceiros do alto do seu pedestal moral, a versão 2020 do “Deus está do nosso lado”, vão continuar acreditando e agindo como se duas linhas idiotas no Instagram e um voto efetivo contra direitos no Congresso fossem a mesma coisa. Dificilmente vão reconhecer que foi o seu totalitarismo, seu descolamento da realidade e sua total imbecilidade política que criaram um novo monstrinho. Para esse pessoal, o que importa é estarem certos e lutar o bom combate; para gente inteligente, o que importa é assegurar direitos de fato. O caso Maurício Souza é importante porque mostra que, mais que garantir avanços, a atuação desses parvos começa a gerar uma reação desnecessária e desproporcional. E também mostra que os tais justiceiros são o outro lado da estupidez generalizada que costumamos ver apenas nos outros.

Zumbi dos Palmares

Sempre achei essa história de “pobre do país que precisa de heróis” uma estupidez. Um país sem heróis é um país sem referência e sem identidade, porque são eles que encarnam, de maneira simples e intuitiva, os melhores valores de uma sociedade. A França tem Carlos Martel, Carlos Magno e Joana d’Arc, os ingleses inventaram o rei Arthur e Robin Hood, Portugal tem seu dom Sebastião já há muito atrasado em sua volta.

O Brasil tem uma característica curiosa — não exclusiva, mas bem forte nestas plagas: temos o dom da iconoclastia absoluta, a necessidade atávica de destruir heróis e ídolos, de apontar seus defeitos antes de qualquer coisa, de desmerecer o que fizeram e dizer que olha, as coisas não são bem assim. Mas os tempos de redes sociais e neo-colonialismo cultural criaram também outro fenômeno, a defesa histérica e algumas vezes totalitária dos valores de grupos inconciliáveis, a seleção de umas lendas em detrimento absoluto de outras.

Quem reclama que o 7 de Setembro ou Tiradentes são figuras de importância histórica criada a posteriori pode dizer o mesmo de Zumbi dos Palmares, fenômeno burilado a partir dos anos 70 para atender à necessidade, então nascente, de um herói negro.

Por isso, o que se sabe de Palmares é muito pouco. Era uma confederação de quilombos espalhados por uma área bem razoável em Alagoas, liderada por Zumbi e destruída por Domingos Jorge Velho depois de anos de confrontos — e isso é quase tudo o que se pode dizer com absoluta certeza.

Aparentemente, seu primeiro grande líder foi Ganga Zumba que, já velho, entendeu o óbvio — eles não poderiam ganhar aquela guerra — e tomou uma decisão que acabaria se revelando fatal: negociou um acordo com Portugal, em que devolvia os escravos fugidos mas garantia a liberdade daqueles nascidos no quilombo, que viveriam em terra própria.

O que ele não entendeu é que o sistema econômico da colônia, baseado na monocultura da cana e na mão de obra escrava, jamais poderia tolerar voluntariamente a existência de um quilombo tão grande (embora fosse obrigada a conviver com quilombos em vários níveis diferentes quando não havia jeito): os senhores de engenho sabiam que Palmares se tornaria uma Xangri-lá, um foco de resistência negra e uma ameaça constante e cada vez mais forte à estabilidade da economia colonial. Além disso, é possível imaginar a resistência a um acordo desses dentro do próprio quilombo; os que seriam devolvidos não estavam muito felizes — e por isso há uma versão de que Ganga Zumba foi envenenado pelo próprio quilombo.

O trato foi feito para ser descumprido, e o quilombola pagou a sua ingenuidade com a vida ao ser atraiçoado pelos portugueses. Zumbi teria se oposto ao acordo e, legitimado pela morte de Ganga Zumba, passou a liderar a resistência.

Mas Ganga Zumba tinha razão: era impossível manter Palmares. O quilombo tinha se tornado grande demais para continuar existindo. O acordo de Ganga Zumba não era desprovido de sentido, mas lutar contra a história é sempre tarefa inglória e com fim trágico para o lado mais fraco.

Depois da destruição de Palmares, Zumbi conseguiu se esconder por dois anos, até que foi finalmente capturado. Sua cabeça foi cortada, salgada e exposta em Recife, para tranquilizar a população e servir como recado aos escravos que caíssem na besteira de sonhar com a liberdade.

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Eu tinha 11 anos quando ouvi falar de Zumbi dos Palmares pela primeira vez. Uma prima, Celina, me emprestou um livro de história — dele só lembro que era volumoso, em A4, e que o texto vinha em duas colunas. Ele trazia a história do líder quilombola que, depois de resistir por anos às incursões dos portugueses, se jogou de um precipício para não ser capturado com vida, fazendo da Serra da Barriga uma espécie de Masada do novo mundo. Um herói maior que a vida, que demoraria três séculos para ser resgatado do oblívio.

O que eu ainda não sabia é que naquele mesmo ano um jornalista chamado Décio Freitas publicava um livro com a história inédita de Zumbi. Ele dizia ter tido acesso a cartas de um tal padre Antonio Melo, que traziam detalhes que ninguém conhecia até então: sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi fora capturado aos 7 anos e criado como Francisco pelo padre Mello, que o ensinou a ler e escrever. Aos 15, fugiu e voltou para Palmares, onde se tornou seu último líder.

É uma história bela e romanesca, diriam alguns. Nesse caso, romanesco deve ter virado sinônimo de mentira, porque essa história era só isso: mentira cabeluda e desavergonhada, daquelas criadas com má fé e canalhice em nome de um ideal nobre.

Ninguém jamais viu essa carta. Ela é, até prova em contrário (e prova simples, um simples mostrar de um documento), uma invenção de Freitas. O fato é que os únicos registros contemporâneos sobre Palmares foram escritos por aqueles que o combateram, e isso quer dizer que mesmo os mais fiéis aos fatos refletem necessariamente a visão, os preconceitos e os interesses daqueles que tentavam destruir o quilombo.

Curiosamente, o próprio Décio, pouco antes de morrer, dizia que Zumbi era radical demais e que a solução de Ganga Zumba era a mais indicada.

Tudo isso, essas idas e vindas, essas versões e contra-versões, reflete muito mais que a rarefação de fontes históricas. Diz respeito à necessidade de fazer de Palmares e de Zumbi um símbolo perfeito para a luta negra, e é essa perfeição almejada o seu grande problema.

Historiadores e militantes de todo tipo tentam fazer de Palmares a concretização de seus sonhos. “Marxistas” se tornam socráticos e fingem desconhecer qualquer ideia de dialética, atropelando quaisquer indícios históricos e senso comum para apontar Palmares como um regime proto-socialista, como se os quilombolas fossem criar ali, do nada, um sistema social que não o que conheciam, na África ou no Brasil. Adeptos das religiões de matriz africana o pintam como um bastião da liberdade religiosa, o que é possivelmente verdade: havia igrejas no quilombo, e é lógico imaginar que não era muito diferente das senzalas; difícil é saber se e como um eventual conflito entre macumbeiros e cristãos se dava. Até o indefectível Luiz Mott resolveu levar Zumbi para “a irmandade”, dizendo ser óbvio que ele era gay, boy magia do tal padre Antônio Melo.

Eu sempre respeitei o Mott, mesmo no tempo em que ele batia boca com o Berbert de Castro nas páginas d’A Tarde. Seu “Sergipe Colonial e Imperial” é um bom livro, dentro do seu escopo; seu trabalho de pesquisa sobre família e sexualidade é elogiado; e sua militância pela causa gay é admirável. Mas o “Zumbicha” é apenas um delírio tropical, como uma fantasia de Clóvis Bornay. Não apenas porque é baseado na fábula de Décio Freitas, mas porque é essencialmente uma grande torção de fatos para que se adeque à agenda do Mott. Ladino, Mott percebe a necessidade de heróis ou, ao menos, de anti-heróis, e Zumbi é dos mais adequados ao atual zeitgeist. Ele o usa para chamar atenção à sua causa, e paradoxalmente acaba catalisando o preconceito de outras minorias, talvez um dos grandes problemas dessas militâncias identitárias.

A questão que incomoda é: o pouco que se sabe de Zumbi já é mais que suficiente para garantir o seu papel na história. Não precisa de invenções nem de falseamentos. Zumbi é um herói, um dos grandes deste país. Mas isso não parece suficiente para aqueles que tentam recriá-lo dentro dos parâmetros éticos e morais de hoje, e então ele precisa se tornar um super-herói moderno, um socialista que abominava a escravidão, livre de preconceitos e muito à frente do seu tempo. Do jeito que andam as coisas, não vai demorar para que se descubra que ele tinha um “pet” que alimentava com ração vegana super-premium.

A anormalidade social da escravidão é um fenômeno histórico recente na história humana, não tem quatrocentos anos. Ela não apenas fez parte de virtualmente todas as sociedades antigas, mas continuava legal em partes do mundo até este milênio. A escravidão no Brasil só foi possível porque primeiro os portugueses, depois os brasileiros encontraram na África um mercado secular de escravos que jamais houve em terras tupiniquins — mercado que negacionistas usam para desculpar a escravidão no Brasil, mais ou menos como um sujeito se desculparia por estuprar uma mulher alegando que ela já tinha sido estuprada antes.

Além disso, a escravidão no país seguiu caminhos que hoje parecem tortuosos, mas que na época eram perfeitamente normais. Quem se espanta por negros forros terem escravos, até mesmo escravos terem escravos, simplesmente não entende o mecanismo econômico que possibilita a escravidão nem as sutilezas sociais deste país e deste povo (embora isso tampouco fosse exclusividade nossa). Nós somos estranhos, e damos um boi para não entrar numa briga e uma boiada para ver como é que a gente ajeita as coisas depois.

Apesar do que os teóricos liberais apregoam, a escravidão não é incompatível com o capitalismo, nem com nenhum outro sistema econômico, e chega a ser quase uma exigência econômica nos setores primário e secundário da economia: lavouras extensivas como a cana ainda exigem mão de obra farta e muito barata para compensar o volume de produção necessário e o baixo preço das commodities — e basta pensar um pouquinho nos robôs que ocuparam as fábricas de automóveis para entender que a escravidão só foi superada porque a tecnologia permitiu a substituição desse tipo de trabalho por outro mais barato e mais eficiente. Os luditas perceberam isso imediatamente. Robôs são os novos escravos, e quando chegar a Inteligência Artificial Geral, se prepare que o pau vai comer.

Tudo isso é para dizer que talvez o maior crime que se comete contra a história deste e de qualquer país é tentar julgar o passado exclusivamente com os olhos do presente. É aplicar um determinado padrão moral ou ético anacrônico a situações que não podiam obedecer a ele. Para piorar, o crescente puritanismo que orienta a discussão social torna cada vez mais difícil falar da escravidão sem afetar, antes, um horror que se quer genuíno, um reboco emocional que é dispensável e até prejudicial. É o que faz gente “estudada” dizer que africanos foram escravizados porque eram negros, implicando um racismo que na verdade é consequência da escravidão.

Quando matilhas de militantes identitários atacam qualquer um que fale disso, elevando, por exemplo, pessoas como o jornalista Leandro Narloch a um patamar que eles não merecem, fazem um desserviço à história de Zumbi. Seria injusto exigir de um homem do século XVII a compreensão de mundo própria do século XXI. Fazer isso é tirar dele seu valor, é desconsiderar o seu papel histórico e sua grandeza em seu tempo, é quase como achar que, sendo o que foi, ele não podia ser um herói.

Mas o debate sobre racismo, cada vez mais tisnado por nuances identitárias nascidas num regime acadêmico cada vez mais insular e estrito, que distorcem (ou, se preferirem a nova queridinha vernacular, “ressignificam”) os objetivos finais da luta negra, e por uma progressiva infantilização potencializada pelas redes sociais, tem feito com que isso se torne cada vez mais um debate obscurantista para surdos.

Às vezes desconfio que isso acontece também porque, de outra forma, ficaria difícil acomodar tantas vozes. Todo mundo tem que ser ouvido, a opinião de todos — inclusive a deste velho blogueiro comunista que só entende mesmo de balançar na rede — vale alguma coisa. Ficou feio dizer que alguém não sabe o que está falando, ou que está falando besteira. E mais importante do que debater passou a ser a conquista da aceitação do maior número de pessoas possível dentro de sua bolha. Porque embora digam que a grande obra do Diabo foi fazer as pessoas acreditarem que ele não existe, a verdade é que seu pulo do gato foi fazer as pessoas acharem que sua opinião, qualquer que seja, importa.

O capitalismo brasileiro

Meninos, eu juro que vi.

Ontem, quarta-feira, 14 de julho, dia da grande revolução burguesa francesa, a revolução que os liberais elogiam mas que Napoleão botou em seu lugar em uns poucos anos, a revolução cujo aniversário de 200 anos marca, para mim, o ressurgimento do liberalismo — nesta quarta eu vi um episódio de um documentário na TV Cultura, salvo engano chamado de “Os Empreendedores”.

Nele, Fernando Henrique Cardoso faz um auto-de-fé liberal. A partir da história de quatro empreendedores brasileiros, Barão de Mauá, Conde Francisco Matarazzo, Hermann Hering e Antônio Ermírio de Moraes, ele enceta uma diatribe contra a presença do Estado na economia. Segundo FH, nenhum desses empreendedores, todos eles bilionários, jamais utilizou o Estado para enriquecer.

Eu confesso que sempre que olho para a cara mole de Fernando Henrique lembro de João Ubaldo Ribeiro. João Ubaldo, grande baiano, foi o homem que escreveu do então presidente:

Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico.

Todo — absolutamente todo — o texto do programa é de uma canalhice, de uma parcialidade e seletividade impressionantes. Fernando Henrique não diz, por exemplo, que teve a iniciativa e a honra de colocar a Hering em maus lençóis ao proceder à destruição da indústria têxtil brasileira, importando malhas chinesas a preços inalcançáveis. Não fala que exemplos como o de Mauá são a exceção, que em virtualmente todos os setores a iniciativa estatal foi imposta pelo absoluto desinteresse do tal empreendedorismo privado. E quando menciona a indústria naval brasileira, diz algo como “o primeiro programa de incentivo à indústria naval foi de Juscelino Kubitschek. O segundo foi de Geisel. O terceiro agoniza.”

Adivinhe quem bancou o programa que salvou a indústria naval brasileira nos anos 2000 e cujo nome não pode ser mencionado.

É estranho ver um sociólogo que já foi respeitado se deixando rebaixar a um papel desses. Eu, que brinco diuturnamente com a possibilidade de me filiar ao PCO porque a um cavalheiro só interessam as causas impossíveis (©Jorge Luís Borges), fico triste ao ver isso. Eu lembro de FH na campanha das Diretas, idolatrado pelos peitos tão fartos da Christiane Torloni. Só por isso ele merecia um fim mais digno.

Mas ele não degenerou totalmente, e faz um único elogio à Embrapa. Claro, não menciona as dezenas de Ematers, Epagris que se dedicam a ajudar pequenos agricultores Brasil afora. Não faz isso porque o FH do século XXI é daqueles que jogaram às favas os escrúpulos de consciência e fecharam os olhos ao embarcar numa nave estranha.

Tudo bem, direito dele. Pelo menos é o que você pensa até ver que esse documentário foi financiado pela Lei de Incentivo Cultural e pela Ancine. Dinheiro de impostos.

Pois é.

Você provavelmente tem raiva do Bolsonaro, aquele verme com retenção anal. Eu tenho raiva do Fernando Henrique. Agora você sabe por quê.

***

O programa é sucedido por um que pergunta se velhice é doença.

Idiotas.

Todo mundo sabe que velhice é doença terminal. O problema é que a alternativa é muito pior.

Marighella

Fernando Meirelles me chamou de ladrão.

Não foi nada pessoal, até porque ele nem sabe que existo. Foi uma ofensa genérica: ele anda meio chateado porque o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, estrelado por seu Jorge e do qual ele é produtor associado, vazou nas redes. “Por alguma razão as pessoas acham que roubar fruta na árvore ou assistir filme pirata não é roubo. A mente humana é pródiga em autoengano”, ele disse à Folha de S. Paulo ontem, sentado nos muitos dinheiros arrecadados através de leis de renúncia fiscal e financiamento direto das tetas da viúva. O discurso é assustadoramente próximo dos bolsonaros da vida, que também chamam o financiamento público de filmes de roubo, mas adoram se apropriar dos fundos públicos em rachadinhas e quetais. Muda só o ponto de vista.

A novela de “Marighella” acabou se tornando razoavelmente longa. Primeiro por causa do boicote anunciado pelos bolsominions, assustados com qualquer coisa que não seja fake news; depois por causa da pandemia. Lá fora o filme estreou em 2019, fazendo o circuito dos festivais que é a praxe em filmes fora do esquema hollywoodiano. No Brasil, estrearia em novembro daquele ano, mas o governo Bolsonaro fez o que pôde para evitar sua exibição. Eles têm muito medo de filmes, de comunistas mortos e de vacinas. Recentemente, “Marighella” estreou comercialmente nos EUA, de onde vazaram as cópias legendadas que circulam agora. Vai estrear no Brasil em novembro deste ano.

O povo brasileiro ajudou a financiar um filme que, durante dois anos, não pôde ver, enquanto seus produtores o rodavam mundo afora para viabilizar seu lucro ou sei-lá-o-quê. Quando finalmente tem a chance de assistir a ele, graças à desonestidade inata dos americanos, é chamado de ladrão.

Assim, enquanto murmurava “não esculacha, chefia!” e colocava as mãos atrás da cabeça, sabendo-me pego, lembrei do Cacá Diegues chiando quando cobraram a ele algo que, se não me engano, chamaram de “contrapartidas sociais”, uns 20 anos atrás — e que, acho, consistia em levar ao povo o filme feito com seu dinheiro. Diegues é o mesmo sujeito que criou a expressão “patrulha ideológica”, em meio à ditadura militar. Como Meirelles, é gente que gosta muito de dinheiro público, mas não tanto de devolvê-lo.

Para piorar ainda mais as coisas, essa postura hipócrita do Meirelles talvez não fosse tão irônica se o filme não contasse de um comunista que dedicou sua vida, quem diria, à abolição da propriedade privada. Se ladrão há nessa história, esse ladrão é o Marighella, e nesse caso tenho muito orgulho de ser chamado assim, ainda que por tabela.

Só então eu, ladrão contumaz e irrecuperável, percebi que nunca tinha roubado um filme do Fernando Meirelles, muito menos esse “Marighella” (que, não custa lembrar, não é dele).

Eu não lembrava do filme, nem mesmo da polêmica causada pela escolha de Seu Jorge para o papel do protagonista, o primeiro caso de “blackwashing” de que tenho notícia. Na época achei interessante, porque não apenas é mais válido que embranquecer um personagem, mas também porque levou a uma reavaliação iconográfica de Marighella que corrigiu um grande erro histórico e jogou nas fuças das pessoas a glória da sua mulatice. Só depois percebi que há um problema inerente a essa decisão. A escolha de Seu Jorge parece mais que aceitável diante do histórico de racismo e obliteração da imagem do negro nas artes, mas no fundo acaba sendo mais um evento de negação da miscigenação brasileira, a entronização de um binarismo racial americano que representa um retrocesso e que, infelizmente, é cada vez mais aceito. Um cabo de guerra em que o mulato, moreno, pardo, chamem do que quiserem, é negado em função de um discurso insuficiente.

Mas quem disse que o crime não compensa não viu ainda este filme. “Marighella” é excelente, uma grande obra. É ainda melhor no atual contexto político do país, em que qualquer pessoa que não seja totalmente imbecil ou canalha é chamada de comunista. Wagner Moura estreia como um diretor seguro, que tem perfeita noção da história que está contando. Para inseri-la melhor no contexto atual, reforça inclusive a questão racial, que não era exatamente prioridade naqueles tempos. Moura mostra-se também um excelente diretor de atores, como se pode ver nas atuações excelentes de Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Luiz Carlos Vasconcelos. Nenhum desses, entretanto, iguala o desempenho excepcional de Seu Jorge. Seu Jorge consegue passar, simultaneamente e com brilhantismo, a dureza e a humanidade de Marighella.

A direção de arte também é excelente, em que pesem anacronismos como a presença conspícua de pistolas PT 92 muitos anos antes de serem criadas, antes mesmo até das Beretta 92 que as originaram, ou a luz avermelhada das lâmpadas de vapor de sódio nas ruas.

Terminado o filme, satisfeito com meu butim, desliguei a televisão esquecido de Fernando Meirelles, até que fui ao IMDb e vi que a nota dada a “Marighella” é 3,2.

Cheguei à conclusão de que só gente como Meirelles avaliou este filme, pelo visto. E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia. Por isso ele deve ser roubado e compartilhado por quem puder. Todos os brasileiros deveriam ver este filme; velhos comunistas como Marighella e o Comandante Toledo (e João Amazonas, e Elza Monnerat, ou os tantos outros que não conheci) podem estar fora de moda, mas é preciso que voltem a mostrar a um povo cada vez mais afundado numa lama antes inimaginável que um outro mundo é possível, e que para isso ele nem precisa existir de verdade.

“Marighella” deve ser roubado e roubado e roubado de novo porque ele quase nos devolve o orgulho de sermos brasileiros. Ainda que seja de uma forma perfeitamente exemplificada na cena final, que deveria ter sido incluída no meio do filme: angustiada, desesperançada, mas ainda assim com orgulho e, acima de tudo, fé.

Leonel Brizola e Ciro Gomes

Desde o início, as eleições presidenciais de 1989 giraram em torno de apenas três candidatos: Fernando Collor, Leonel Brizola e Lula. Sempre nessa ordem: até a última pesquisa do Datafolha, não houve alteração na ordem dos candidatos.

Ao longo da campanha houve momentos interessantes, como quando a elite paulista, já desenganada quanto a Ulysses Guimarães mas ainda desconfiada de Collor, tentou inflar a campanha de Guilherme Afif Domingos. Mas Collor era muito mais que o “caçador de marajás” da Globo: era jovem, bonito, viril, e tinha as condições necessárias para se apresentar como a verdadeira renovação em um momento de crise na política brasileira, diante da implosão do governo Sarney.

No campo da esquerda, o grande nome ainda era Brizola, do PDT. Ainda não havia urnas eletrônicas e a apuração dos votos era lenta. Nas primeiras horas da noite de 15 de novembro, parecia que Leonel Brizola seria o escolhido pelo povo brasileiro. Pela sua trajetória, pelo seu governo controvertido no Rio de Janeiro, pelo respeito que sua figura impunha, parecia uma escolha natural.

Mas foi Lula a ir para o segundo turno.

Brizola perdeu por várias razões. Porque foi à disputa completamente isolado, esperando que a sua história o elegesse — parece incrível, mas o PT foi menos sectário e engendrou uma coalizão com o PCdoB e o PSB que se manteve até 2010. Perdeu porque não compreendeu a nova linguagem televisiva e fazia campanha como se estivesse ainda nos tempos da Rede da Legalidade. Perdeu porque a militância da Frente Brasil Popular ganhou as ruas, fazendo um trabalho de formiguinha com altruísmo e convicção verdadeira, e porque a equipe liderada por Paulo de Tarso soube fazer programas muito mais competentes na TV e no rádio.

No fundo, Brizola perdeu porque seu tempo tinha passado e o novo sempre supera o velho.

Ao perder as eleições, Brizola não hesitou em declarar seu apoio a Lula. Reclamou de ter que engolir um “sapo barbudo”, é verdade; mas em nenhum momento reclamou que Lula deveria ter renunciado porque ele, Leonel Brizola, tinha mais chances de ganhar porque não tinha uma Miriam Cordeiro em seu passado nem aparelho de som na casa da namorada, e podia alegar que a campanha da Globo contra ele seria mitigada pela sua história de antagonismo; podia até mesmo alegar que, mais moderado, não seria vítima do anticomunismo utilizado como arma de campanha, num tempo em que o PT combatia a privatização da Mafersa e ainda abrigava a Convergência Socialista. No segundo turno, Brizola não viajou para lugar desconhecido para não ter que participar da campanha do ex-adversário.

Por mais divergências que se tivesse com Brizola — e era muito fácil tê-las, pelo menos antes de ele morrer e virar quase santo —, uma coisa é inegável: ele não era apenas um dos grandes nomes da política brasileira, era antes de tudo um político de verdade e um homem com vocação para estadista.

Conhecendo a história do PDT e de Brizola, é inevitável que pareça estranho e infantil ver Ciro e seus porta-vozes reclamarem que Fernando Haddad deveria ter renunciado no segundo turno em favor do ex-governador do Ceará, baseados na lógica meio confusa de que ele não tinha tido sequer metade dos votos do candidato do PT no primeiro turno, mas ganharia de Bolsonaro. Mais ainda, jogam toda a culpa no antipetismo óbvio, mas esquecem que a atitude adotada pelos irmãos Gomes (“Lula tá preso, babaca!”) não contribuiu em nada para diminui-lo ou diminuir a desconfiança em toda a esquerda.

O mais estranho, mesmo, é a tentativa de negar ao PT o direito de tentar manter sua hegemonia, como se em algum momento da história política mundial algum partido ou grupo sério tenha feito isso. Além da lambança ética em seus governos, o PT cometeu erros grosseiros em sua campanha. Mas foi uma escolha dele. É uma lógica estranha, essa, de uma esquerda infantil que não entende mais a política e acha que liderança, nessa área, pode ser concedida, e não apenas conquistada. Se a esquerda ainda não conseguiu superar o PT e Lula, não é pedindo para eles desocuparem a moita que vão conseguir ocupar o proscênio, e sim apresentando uma alternativa, algo de que até agora não temos sido capazes.

Em 1989, Lula conquistou um lugar que até então tinha sido de Brizola porque fez política melhor. Em 2018, Ciro apenas ocupou o lugar que sempre ocupou: um político voluntarista, irregular, em cuja história podem ser computados um ministério no governo Lula e o fato de ter quebrado a indústria nacional para eleger Fernando Henrique, quando foi ministro de Itamar Franco. E culpa o PT por não ter sido capaz de ir além disso.

Como diz o Mark Lilla, em política não existe antes, só existe o depois. Cabe ao PDT e ao resto da esquerda brasileira tomarem o lugar que hoje pertence a Lula e, em menor escala, ao PT. Mas para isso é preciso apresentar uma alternativa viável, um projeto de Estado que responda às necessidades da atualidade. Não é pedindo licença que vão conseguir.

50 anos depois

Essa é a capa da edição especial da revista Manchete publicada em abril de 1964, comemorativa ao golpe militar.

A capa serve para lembrar qual era, exatamente, o pensamento da elite brasileira em 1964, as razões pelas quais apoiou o golpe, as esperanças que tinha na obediência da caserna.

Ela embarcou alegre na aventura militar golpista porque acreditava que aquela era a maneira mais fácil, ou talvez a única, de tirar do poder um governo não apenas eleito democraticamente — mas, mais importante ainda, referendado no plebiscito de 1963. Acreditava também que os militares apenas fariam o seu papel abjeto de cães de guarda e, derrubado Goulart, lhe entregariam o poder.

A elite carioca, especificamente, depositava todas as suas esperanças em Carlos Lacerda. O tempo passou e as pessoas talvez esqueçam que esse homem, o responsável pela crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas dez anos antes e talvez a principal vivandeira do golpe de 64, foi uma das personalidades mais nocivas da história brasileira. O mal que ele fez ao país é imensurável.

Não satisfeito com o suicídio de Vargas, tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek como presidente em 1955. Depois do exílio na Cuba de Fulgêncio Batista, voltou para ser eleito governador da Guanabara. Foi um bom governador, de acordo com os registros. Melhor ainda para empreiteiras que realizaram obras importantes como os túneis Rebouças e Santa Bárbara. É tentador supor que os moradores da zona norte se encantaram com ele porque acharam que os túneis os tinham transformado em quase moradores da zona sul — mais ou menos como a classe média que hoje não gosta de ver pobres no avião porque eles acabam com a ilusão de que ela é quase rica.

Era esse homem que as elites brasileiras esperavam ver na presidência. Assim como Aécio Neves 50 anos depois, ele apostou na imposição do caos como maneira de chegar ao poder, não importando se, com isso, destruiria as instituições nacionais e criaria uma crise que dividiria e implodiria o país. Lacerda, brilhante como Aécio nunca foi, não teve trabalho para fazer as elites brasileiras, sempre canalhas, acreditarem que os militares entregariam a elas o poder assim que fizessem o trabalho sujo de depor Jango, devolvendo a aparência de normalidade democrática.

Pouco mais de quatro anos depois dessa capa, Lacerda estava na prisão, preso pelo regime que, como poucos, ajudou a instalar. Não viveu para ver o fim do regime militar. Assim como Aécio Neves 50 anos depois, foi engolido pelo monstro que alimentou.

Para as elites, o golpe compensou. Elas receberam seu investimento de volta; elas sempre recebem. Não consta que os ricos tenham deixado de ficar ricos, que as empreiteiras tenham deixado de pagar propinas para realizar obras públicas superfaturadas, que as mesmas estruturas de poder e clientelismo herdadas da nossa tradição ibérica tenham sido modificadas.

Mas as classes médias e os pobres, que apoiaram o golpe acreditando no discurso hipócrita e udenista de combate à corrupção, de medo do comunismo que iria lhes roubar as posses que nunca tiveram, que fizeram seu o discurso dos ricos, desses a história cuidou sem muita compaixão.

Foi essa gente cada vez mais iletrada e ignorante, que se recusa a aprender a lição de meio século de história porque agora tem a legitimação de seus iguais no WhatsApp, gente igualmente estúpida que compartilha suas ideias bovinas e destila a frustração, o despeito e os maus sentimentos de uma classe média ética e moralmente decadente, que ajudou a eleger Bolsonaro.

Mas a história é uma megera, e é também essa gente que agora vê calada o seu paladino Sergio Moro ter sua corrupção exposta enquanto é constantemente humilhado pelo ex-tenente terrorista. Que vê calada o ex-tenente atropelar as instituições para proteger seus filhos corruptos. Que vê calada os seus direitos desparecerem. Que vê calada o país que dizia defender em patacoadas verde-e-amarelas sendo desmontado e humilhado mundialmente — calada em um silêncio cúmplice porque, sempre obtusa, se recusa a admitir que sua estupidez atávica foi a principal causa dessa tragédia que o país vive hoje.

Infelizmente, repetindo a história, ela vai apenas seguir o destino de Carlos Lacerda.