O próximo presidente não pode ser do PT

Quatro anos de escuridão, de um mal-estar sem precedentes na história política brasileira; um presidente que envergonhou o país como nenhum antes dele, seguido por hordas de bandidos e de imbecilizados agressivos e cheios de ódio: dia 30 de outubro o Brasil pulou uma fogueira.

A eleição de Lula devolveu ao país a perspectiva de normalidade e de sensatez. Lula se prepara para realizar um governo de transição e reconstrução, e seus movimentos até agora têm sido, de modo geral, de acerto. Longe das frentes de quartéis, onde pequenos grupos de zumbis apatetados repetem há semanas a liturgia de uma seita dedicada ao Grande Pneu  Patriota do Caminhão Sagrado e esperam o arrebatamento pelo Imbroxável da Facada Mágica, o país respira aliviado.

Mas o resultado das eleições é menos róseo do que parece.

Cientistas políticos em pânico fizeram uma avaliação estranha e apocalíptica do cenário, logo que saiu o resultado do primeiro turno. Denunciaram o fascismo como se fosse novidade, como se o autoritarismo não tivesse sido sempre uma franja às vezes mais, às vezes menos visível da sociedade brasileira, como se não tivéssemos passado pelo integralismo, pela TFP, por uma sequência de golpes de estado bem ou malsucedidos. Diante do aumento da bancada do PL no Congresso, falaram em crescimento do bolsonarismo e do fascismo. Bobagem até compreensível em quem passou quatro anos alternando-se entre a estupefação e o pânico. O que se viu não foi um crescimento ideológico: foi simplesmente a ação do dinheiro. O PL cresceu no parlamento não porque a sociedade brasileira se identificou ainda mais com um autoritarismo amalucado de verniz evangélica, mas porque comprou mais votos.

O bolsonarismo vai desaparecer tão rápido quanto surgiu, e isso podia ser dito antes mesmo das eleições. As últimas semanas apenas comprovam o que já se sabia: Bolsonaro não tem capacidade intelectual ou política para liderar os símios que marcham-soldado na frente de quartéis e pedem socorro a ETs. Seu lugar vai ser ocupado por gente mais pragmática, como o Tarcísio de Freitas e o Romeu Zema, dentro da normalidade democrática e sujeita às circunstâncias do jogo político.

O que não vai desaparecer é a extrema-direita que vem se consolidando a partir da reação aos governos do PT, um nível variável de polarização nacional e, principalmente, aquilo que levou a esse crescimento do centrão: a total degradação do sistema eleitoral brasileiro.

Esse é o verdadeiro problema que emerge destas eleições. O nosso é um sistema completamente falido, e não vai melhorar. O debate político brasileiro se restringe cada vez mais a umas poucas camadas da população e se dá quase exclusivamente nas redes sociais, mas principalmente sobre os cargos majoritários. Eleições proporcionais estão sempre em segundo plano. Pergunte às pessoas em quem votaram para vereador ou deputados em eleições passadas e a maior parte não se lembrará. E não é só o comum das gentes, os mais despolitizados: a maior parte votou em um amigo, no candidato de um amigo, em um número entregue na boca de urna. É um fenômeno que se espalha em todas as classes e em todos os espectros políticos.

Enquanto isso, os movimentos sociais perdem força e a descrença na possibilidade de transformação da sociedade pela política se espalha como metástase. O resultado é a ascensão do que antigamente chamavam baixo clero e que, como uma gosma alienígena de filme B dos anos 50, engole a política brasileira, reforçando o conservadorismo popular e surfando na onda evangélica — evangélicos que a tolerância, o respeito à diversidade, o medo e a pura e simples conveniência não deixam denunciar como o que são: a maior ameaça ao progresso do país.

Lula vai aprender a negociar com essa escumalha em termos, se não mais éticos, ao menos mais legais do que fez com o Mensalão, para evitar os erros dos governos anteriores. Mas a própria história do PT ajuda a levantar hipóteses sobre o que vai acontecer nos próximos anos.

Quando surgiu, em 1980, o PT representou um passo à frente na luta popular. Num cenário que tinha sido dominado nos 60 anos anteriores pelos partidos comunistas, ele colocava na mesa um projeto mais pragmático, menos radical, mais plural. Sua bandeira ainda era vermelha, mas em vez da foice e do martelo, trazia uma estrela. Não era comunista, não queria ver a jurupoca piar: era dos trabalhadores — e todo mundo é trabalhador, independente do sistema econômico. Para alguns ainda podia parecer radical, mas era um partido mais palatável do que os velhos dinossauros comunistas, porque nunca colocou em questão a troca do sistema político: era um partido reformista, no máximo, em que pesassem as correntes trotskistas que também se abrigaram sob o guarda-chuva estrelado.

Nos dez anos seguintes ele estabeleceu uma estratégia radical de crescimento, se recusando a fazer as alianças que os partidos marxistas-leninistas faziam a torto e a direito, construindo uma base ampla nos movimentos populares, como a CUT e mais tarde o MST. Construía sua identidade a cada greve, a cada eleição. Não demorou muito para conseguir eleger seus primeiros prefeitos — algumas terríveis, como Luiza Fontenele em Fortaleza, e outras muito boas, como Luiza Erundina em São Paulo.

Em novembro de 1989 Lula destronou Leonel Brizola como principal liderança nacional de esquerda, mas perdeu a eleição para Collor e o Muro de Berlim caiu, levando em efeito dominó as repúblicas populares do Leste Europeu e finalmente a própria União Soviética.

Diante de um quadro totalmente novo — um, maior e mais abrangente, era o fim da perspectiva do socialismo como sistema viável e desejável; o outro, a clara opção do eleitor brasileiro por uma proposta menos radical (e mais bonita e mais chique, também) — o PT fez o necessário para chegar à presidência. Expurgou seus trotskistas, abriu mão de grande parte do radicalismo em seu discurso, votou contra o parlamentarismo no referendo de 1993. Só não esperava a avalanche do Plano Real e teve que esperar até 2002.

Durante todo esse tempo, apostou no “nós contra eles”, na radicalização do embate e na delimitação de campos bem definidos.

Mas esse discurso de radicalização só é real, ou só faz sentido, quando há uma radicalização ideológica, o que nunca foi o caso do PT. E aí está um dos elementos mais importantes para que se entenda o país de hoje. O “nós contra eles” nunca foi estrutural, socialistas versus capitalistas: em vez disso, o PT sequestrou essa polarização para o campo moral. Ao longo de sua história, o PT se apresentou como o guardião ético de um capitalismo um pouco mais humano, levando inclusive à progressiva udenização de seus rivais, como o PSDB.

Essa imagem cobrou sua conta a partir do Mensalão, quando boa parte da classe média decretou independência do voto no PT, decepcionada ao ver que, naquilo em que o próprio partido tinha apregoado sua superioridade durante anos, ele parecia ser igual aos outros. O PT foi forçado a jogar no campo que escolheu e levou uma goleada injusta. Mais tarde, a aberração jurídica e política chamada de Lava Jato capitaneou uma das piores perseguições a um partido já vistas na história do país, mas encontrou nas práticas do PT terreno fértil e devidamente amplificado.

O resultado de tudo isso foi Bolsonaro. Que caia o pano da decência sobre esses últimos quatro anos sofridos pelo país. Chega. Já passou.

O que interessa é que o PT é hoje um partido de centro-esquerda, que perdeu ao menos parte do diferencial ético no qual apostou por décadas, com dificuldade para afirmar pautas reformistas e tendo que enfrentar a fragmentação de uma esquerda que não tem mais o referencial claro que o socialismo oferecia, e se dissolve cada vez mais em discussões identitárias, como baratas voando numa sala pequena demais. Há tempos, por diversas razões (como a evolução do capitalismo globalizado e a cooptação dos movimentos sociais, natural quando um partido de esquerda chega ao poder), vem perdendo a ligação orgânica com os movimentos sociais que tinha 30 anos atrás — há quanto tempo ninguém ouve falar na CUT, por exemplo? Onde anda o Sindipetro?—, e corre o risco de perder todo o capital de organização popular que acumulou em seus primeiros 20 anos. Sua militância ascendeu econômica e socialmente, a partir da ocupação necessária e legítima de espaços no Estado. Por mais que petistas ainda se vejam como superiores, o PT hoje é um partido como qualquer outro.

Com a colaboração inquestionável dos anos de obscurantismo e destruição do Leprechaun do Cercadinho, Lula foi eleito em 2022 sem um projeto de país, sem um plano de governo, sem ideias além da repetição daquilo que deu certo duas décadas atrás e a reconstrução de um país dividido e destroçado pela incompetência de Jair Bolsonaro. Nesse contexto, suas contradições passaram batido, ou quase, e o PT se elegeu sem apresentar propostas concretas. Mas não dá para disfarçar o fato de que, hoje, ele não oferece nada realmente novo — necessário, sim, mas nada que represente um passo à frente. Lula, um gênio político e um dos maiores presidentes que este país já teve, pouco abaixo de Vargas e Juscelino, não precisou apresentar ideias: bastou prometer consertos.

Vai ser muito difícil para o PT governar nos próximos quatro anos. Não pelos terroristas que ateiam fogo a carros em Brasília. Mas pelas imposições do próprio sistema político brasileiro corrompido e degenerado de maneira inédita, e pela necessidade imperativa de fazer um governo de transição, de reacomodação e recuperação do que o país perdeu nos últimos anos.

Por um lado, é uma tarefa relativamente fácil, porque uma árvore plantada em terra arrasado é um aumento de 100%; por outro, na prática pode impedir um avanço real em relação ao país que Lula deixou em 2010.

Problema maior, no entanto, é o Brasil que vai chegar a 2026.

Se tiver um pingo de responsabilidade, Lula não se candidatará à reeleição. E aí a cobra vai precisar fumar. O PT, sendo PT, provavelmente vai tentar arranjar em suas hostes o novo candidato. Porque não interessa o Mensalão, não interessa a Lava Jato, não interessam os governos de centro-esquerda que fizeram: petistas continuam se achanod os únicos depositários da verdade de esquerda. Essa postura hegemônica vem isolando progressivamente o PT ao longo dos anos, com defecções como as de Eduardo Campos e o próprio Ciro Gomes. Até agora, a liderança absoluta de Lula conseguiu minimizar isso; não deve ser o caso em 2026.

Mas há algo ainda mais grave. É a ideia do PT em si, o partido comunista bolivariano que vai enfiar uma mamadeira de piroca satânica e abortista goela abaixo dos filhos dos evangélicos deste país, que ajuda a unificar e engajar a multidão de imbecis do WhatsApp, a galvanizar uma oposição que pode não saber a que está se opondo, mas se opõe. A paranoia se espoja na ignorância: esse pessoal não consegue raciocinar, mas assim como acreditam no Deus que paga juros a quem dá o dízimo, têm a convicção de que o PT vai fazer o que nunca fez.

Em 2026, o PT precisará ter a grandeza histórica de entender exatamente onde está e dar o passo necessário para a consolidação da democracia brasileira. Se ao longo dos próximos quatro anos não conseguir criar uma liderança nacional realmente forte e absolutamente inquestionável, precisa deixar de ser a pedra de toque dos alucinados de extrema-direita, precisa entender que a democracia precisa de mais lideranças. E isso significa abrir espaço para outras forças. Em poucas palavras, ser democrático de verdade.

Como diziam os colunistas sociais nos tempos em que colunas sociais faziam sentido, a conferir.

A estupidez dos justiceiros sociais

Até umas semanas atrás eu não fazia ideia de que compartilhava o mesmo ar poluído e os mesmos tempos estranhos com um jogador de vôlei chamado Maurício Souza. Agora não paro de pensar nele e na estupidez política que vem cercando uma frase sua.

Maurício Souza era um bolsominion insignificante e de intelecto limitado, me perdoem a redundância. Viu a notícia de que um Superman iria ser apresentado como bissexual e se manifestou nas redes sociais, lamentando o fato e torcendo o nariz para os rumos que a sociedade vem tomando. Na melhor reação a essa bobagem, ele foi chamado de “fiscal de cu de desenho”.

Até aí nada demais. Independente da definição e interpretação do crime de homofobia, Maurício não ofendeu diretamente ninguém. Apenas expressou uma visão de mundo preconceituosa e burra. Posso estar errado por não entender de leis, mas acredito que a ideia de liberdade de expressão, que vem sendo torcida à direita e à esquerda, se aplica a isso.

Mas Maurício caiu na mira dos justiceiros sociais, esse pessoal cheio de adjetivos fortes que parece passar os dias diante de uma tela procurando um alvo fácil na internet para linchar — ou “ressignificar”, não sei bem.

O que se viu depois parecia um retorno aos bons tempos do senador Joseph McCarthy e seus interrogatórios no Congresso americano, no fim dos anos 40. O jogador Fred, do Fluminense, curtiu o post — talvez por solidariedade de classe, talvez por comungar dos mesmos valores, não pretendo saber — e uma colunista do UOL pediu imediatamente o boicote dos patrocinadores do seu time, a demissão, o diabo. Pouco depois o filho de Tite se meteu no imbróglio e, imediatamente, ela fez a mesma coisa.

A moça parecia a Salomé, toda hora pedia uma cabeça.

Maurício perdeu o emprego e foi desligado da seleção brasileira de vôlei. Imagino que ela e os outros justiceiros tenham ido dormir felizes, limpando o sangue de suas cimitarras virtuais. O problema é que o mundo gira e eles não conseguem ver.

Agora Maurício, que tinha 200 mil seguidores no Instagram, tem quase 3 milhões. É procurado por partidos para se candidatar a um cargo político. Hoje, Bolsonaro o levou ao cercadinho onde o seu gado se espoja na baba da estultície.

A extrema direita ganhou um mártir da livre expressão, e ainda melhor, sem ter precisado fazer nada por isso. É essa miopia estúpida desses justiceiros que impressiona e preocupa.

Maurício é um idiota, mas não se deve esquecer que ele expressou o descontentamento de uma parcela significativa, se não majoritária, da população brasileira. Gente conservadora, incomodada com a conquista de direitos por minorias porque isso altera o status quo ou, mais importante, valores atávicos que acalentam desde sempre, passados de pai para filho ou adquiridos nos bancos duros das igrejas.

O busílis do bagulho é que essa gente é conservadora, mas não necessariamente se mobiliza contra o avanço social. É aquela grande massa informe que vê o progresso passar enquanto resmunga, desconfortável. Gente que oferece resistência mínima, nunca organizada, e que no fim do dia acaba aceitando de cara feia o mundo que a cerca.

Mas no caso do Maurício, 2,5 milhões de pessoas pelo visto acreditaram que ele simboliza não um direito dado a outros, mas um direito tomado deles, o de manifestarem sua opinião desde que não ofenda diretamente ninguém, e resolveram tomar uma atitude simbólica, dando apoio tácito a alguém que julgam perseguido.

O problema é que isso não vai ficar no simbolismo tão caro a esses justiceiros.

Maurício Souza não era nada em política. Se tudo correr como a direita espera, vai ser um deputado federal a partir de 2023. Um legislador. Um sujeito que propõe e vota leis. Se até semanas atrás era um cretino inofensivo que resmungava seus preconceitos no Instagram, no Congresso Maurício vai ser uma autoridade que votará contra leis que promovam direitos dos gays, contra o aborto, contra minorias de modo geral.

Ele foi “cancelado” porque não gostou do Superman gay. Agora, Maurício vai poder dizer que leis que protegem gays ameaçam a família brasileira, e ninguém poderá fazer nada porque ele terá imunidade para isso. Mais que isso não consigo desenhar.

Mas os justiceiros do alto do seu pedestal moral, a versão 2020 do “Deus está do nosso lado”, vão continuar acreditando e agindo como se duas linhas idiotas no Instagram e um voto efetivo contra direitos no Congresso fossem a mesma coisa. Dificilmente vão reconhecer que foi o seu totalitarismo, seu descolamento da realidade e sua total imbecilidade política que criaram um novo monstrinho. Para esse pessoal, o que importa é estarem certos e lutar o bom combate; para gente inteligente, o que importa é assegurar direitos de fato. O caso Maurício Souza é importante porque mostra que, mais que garantir avanços, a atuação desses parvos começa a gerar uma reação desnecessária e desproporcional. E também mostra que os tais justiceiros são o outro lado da estupidez generalizada que costumamos ver apenas nos outros.

Zumbi dos Palmares

Sempre achei essa história de “pobre do país que precisa de heróis” uma estupidez. Um país sem heróis é um país sem referência e sem identidade, porque são eles que encarnam, de maneira simples e intuitiva, os melhores valores de uma sociedade. A França tem Carlos Martel, Carlos Magno e Joana d’Arc, os ingleses inventaram o rei Arthur e Robin Hood, Portugal tem seu dom Sebastião já há muito atrasado em sua volta.

O Brasil tem uma característica curiosa — não exclusiva, mas bem forte nestas plagas: temos o dom da iconoclastia absoluta, a necessidade atávica de destruir heróis e ídolos, de apontar seus defeitos antes de qualquer coisa, de desmerecer o que fizeram e dizer que olha, as coisas não são bem assim. Mas os tempos de redes sociais e neo-colonialismo cultural criaram também outro fenômeno, a defesa histérica e algumas vezes totalitária dos valores de grupos inconciliáveis, a seleção de umas lendas em detrimento absoluto de outras.

Quem reclama que o 7 de Setembro ou Tiradentes são figuras de importância histórica criada a posteriori pode dizer o mesmo de Zumbi dos Palmares, fenômeno burilado a partir dos anos 70 para atender à necessidade, então nascente, de um herói negro.

Por isso, o que se sabe de Palmares é muito pouco. Era uma confederação de quilombos espalhados por uma área bem razoável em Alagoas, liderada por Zumbi e destruída por Domingos Jorge Velho depois de anos de confrontos — e isso é quase tudo o que se pode dizer com absoluta certeza.

Aparentemente, seu primeiro grande líder foi Ganga Zumba que, já velho, entendeu o óbvio — eles não poderiam ganhar aquela guerra — e tomou uma decisão que acabaria se revelando fatal: negociou um acordo com Portugal, em que devolvia os escravos fugidos mas garantia a liberdade daqueles nascidos no quilombo, que viveriam em terra própria.

O que ele não entendeu é que o sistema econômico da colônia, baseado na monocultura da cana e na mão de obra escrava, jamais poderia tolerar voluntariamente a existência de um quilombo tão grande (embora fosse obrigada a conviver com quilombos em vários níveis diferentes quando não havia jeito): os senhores de engenho sabiam que Palmares se tornaria uma Xangri-lá, um foco de resistência negra e uma ameaça constante e cada vez mais forte à estabilidade da economia colonial. Além disso, é possível imaginar a resistência a um acordo desses dentro do próprio quilombo; os que seriam devolvidos não estavam muito felizes — e por isso há uma versão de que Ganga Zumba foi envenenado pelo próprio quilombo.

O trato foi feito para ser descumprido, e o quilombola pagou a sua ingenuidade com a vida ao ser atraiçoado pelos portugueses. Zumbi teria se oposto ao acordo e, legitimado pela morte de Ganga Zumba, passou a liderar a resistência.

Mas Ganga Zumba tinha razão: era impossível manter Palmares. O quilombo tinha se tornado grande demais para continuar existindo. O acordo de Ganga Zumba não era desprovido de sentido, mas lutar contra a história é sempre tarefa inglória e com fim trágico para o lado mais fraco.

Depois da destruição de Palmares, Zumbi conseguiu se esconder por dois anos, até que foi finalmente capturado. Sua cabeça foi cortada, salgada e exposta em Recife, para tranquilizar a população e servir como recado aos escravos que caíssem na besteira de sonhar com a liberdade.

***

Eu tinha 11 anos quando ouvi falar de Zumbi dos Palmares pela primeira vez. Uma prima, Celina, me emprestou um livro de história — dele só lembro que era volumoso, em A4, e que o texto vinha em duas colunas. Ele trazia a história do líder quilombola que, depois de resistir por anos às incursões dos portugueses, se jogou de um precipício para não ser capturado com vida, fazendo da Serra da Barriga uma espécie de Masada do novo mundo. Um herói maior que a vida, que demoraria três séculos para ser resgatado do oblívio.

O que eu ainda não sabia é que naquele mesmo ano um jornalista chamado Décio Freitas publicava um livro com a história inédita de Zumbi. Ele dizia ter tido acesso a cartas de um tal padre Antonio Melo, que traziam detalhes que ninguém conhecia até então: sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi fora capturado aos 7 anos e criado como Francisco pelo padre Mello, que o ensinou a ler e escrever. Aos 15, fugiu e voltou para Palmares, onde se tornou seu último líder.

É uma história bela e romanesca, diriam alguns. Nesse caso, romanesco deve ter virado sinônimo de mentira, porque essa história era só isso: mentira cabeluda e desavergonhada, daquelas criadas com má fé e canalhice em nome de um ideal nobre.

Ninguém jamais viu essa carta. Ela é, até prova em contrário (e prova simples, um simples mostrar de um documento), uma invenção de Freitas. O fato é que os únicos registros contemporâneos sobre Palmares foram escritos por aqueles que o combateram, e isso quer dizer que mesmo os mais fiéis aos fatos refletem necessariamente a visão, os preconceitos e os interesses daqueles que tentavam destruir o quilombo.

Curiosamente, o próprio Décio, pouco antes de morrer, dizia que Zumbi era radical demais e que a solução de Ganga Zumba era a mais indicada.

Tudo isso, essas idas e vindas, essas versões e contra-versões, reflete muito mais que a rarefação de fontes históricas. Diz respeito à necessidade de fazer de Palmares e de Zumbi um símbolo perfeito para a luta negra, e é essa perfeição almejada o seu grande problema.

Historiadores e militantes de todo tipo tentam fazer de Palmares a concretização de seus sonhos. “Marxistas” se tornam socráticos e fingem desconhecer qualquer ideia de dialética, atropelando quaisquer indícios históricos e senso comum para apontar Palmares como um regime proto-socialista, como se os quilombolas fossem criar ali, do nada, um sistema social que não o que conheciam, na África ou no Brasil. Adeptos das religiões de matriz africana o pintam como um bastião da liberdade religiosa, o que é possivelmente verdade: havia igrejas no quilombo, e é lógico imaginar que não era muito diferente das senzalas; difícil é saber se e como um eventual conflito entre macumbeiros e cristãos se dava. Até o indefectível Luiz Mott resolveu levar Zumbi para “a irmandade”, dizendo ser óbvio que ele era gay, boy magia do tal padre Antônio Melo.

Eu sempre respeitei o Mott, mesmo no tempo em que ele batia boca com o Berbert de Castro nas páginas d’A Tarde. Seu “Sergipe Colonial e Imperial” é um bom livro, dentro do seu escopo; seu trabalho de pesquisa sobre família e sexualidade é elogiado; e sua militância pela causa gay é admirável. Mas o “Zumbicha” é apenas um delírio tropical, como uma fantasia de Clóvis Bornay. Não apenas porque é baseado na fábula de Décio Freitas, mas porque é essencialmente uma grande torção de fatos para que se adeque à agenda do Mott. Ladino, Mott percebe a necessidade de heróis ou, ao menos, de anti-heróis, e Zumbi é dos mais adequados ao atual zeitgeist. Ele o usa para chamar atenção à sua causa, e paradoxalmente acaba catalisando o preconceito de outras minorias, talvez um dos grandes problemas dessas militâncias identitárias.

A questão que incomoda é: o pouco que se sabe de Zumbi já é mais que suficiente para garantir o seu papel na história. Não precisa de invenções nem de falseamentos. Zumbi é um herói, um dos grandes deste país. Mas isso não parece suficiente para aqueles que tentam recriá-lo dentro dos parâmetros éticos e morais de hoje, e então ele precisa se tornar um super-herói moderno, um socialista que abominava a escravidão, livre de preconceitos e muito à frente do seu tempo. Do jeito que andam as coisas, não vai demorar para que se descubra que ele tinha um “pet” que alimentava com ração vegana super-premium.

A anormalidade social da escravidão é um fenômeno histórico recente na história humana, não tem quatrocentos anos. Ela não apenas fez parte de virtualmente todas as sociedades antigas, mas continuava legal em partes do mundo até este milênio. A escravidão no Brasil só foi possível porque primeiro os portugueses, depois os brasileiros encontraram na África um mercado secular de escravos que jamais houve em terras tupiniquins — mercado que negacionistas usam para desculpar a escravidão no Brasil, mais ou menos como um sujeito se desculparia por estuprar uma mulher alegando que ela já tinha sido estuprada antes.

Além disso, a escravidão no país seguiu caminhos que hoje parecem tortuosos, mas que na época eram perfeitamente normais. Quem se espanta por negros forros terem escravos, até mesmo escravos terem escravos, simplesmente não entende o mecanismo econômico que possibilita a escravidão nem as sutilezas sociais deste país e deste povo (embora isso tampouco fosse exclusividade nossa). Nós somos estranhos, e damos um boi para não entrar numa briga e uma boiada para ver como é que a gente ajeita as coisas depois.

Apesar do que os teóricos liberais apregoam, a escravidão não é incompatível com o capitalismo, nem com nenhum outro sistema econômico, e chega a ser quase uma exigência econômica nos setores primário e secundário da economia: lavouras extensivas como a cana ainda exigem mão de obra farta e muito barata para compensar o volume de produção necessário e o baixo preço das commodities — e basta pensar um pouquinho nos robôs que ocuparam as fábricas de automóveis para entender que a escravidão só foi superada porque a tecnologia permitiu a substituição desse tipo de trabalho por outro mais barato e mais eficiente. Os luditas perceberam isso imediatamente. Robôs são os novos escravos, e quando chegar a Inteligência Artificial Geral, se prepare que o pau vai comer.

Tudo isso é para dizer que talvez o maior crime que se comete contra a história deste e de qualquer país é tentar julgar o passado exclusivamente com os olhos do presente. É aplicar um determinado padrão moral ou ético anacrônico a situações que não podiam obedecer a ele. Para piorar, o crescente puritanismo que orienta a discussão social torna cada vez mais difícil falar da escravidão sem afetar, antes, um horror que se quer genuíno, um reboco emocional que é dispensável e até prejudicial. É o que faz gente “estudada” dizer que africanos foram escravizados porque eram negros, implicando um racismo que na verdade é consequência da escravidão.

Quando matilhas de militantes identitários atacam qualquer um que fale disso, elevando, por exemplo, pessoas como o jornalista Leandro Narloch a um patamar que eles não merecem, fazem um desserviço à história de Zumbi. Seria injusto exigir de um homem do século XVII a compreensão de mundo própria do século XXI. Fazer isso é tirar dele seu valor, é desconsiderar o seu papel histórico e sua grandeza em seu tempo, é quase como achar que, sendo o que foi, ele não podia ser um herói.

Mas o debate sobre racismo, cada vez mais tisnado por nuances identitárias nascidas num regime acadêmico cada vez mais insular e estrito, que distorcem (ou, se preferirem a nova queridinha vernacular, “ressignificam”) os objetivos finais da luta negra, e por uma progressiva infantilização potencializada pelas redes sociais, tem feito com que isso se torne cada vez mais um debate obscurantista para surdos.

Às vezes desconfio que isso acontece também porque, de outra forma, ficaria difícil acomodar tantas vozes. Todo mundo tem que ser ouvido, a opinião de todos — inclusive a deste velho blogueiro comunista que só entende mesmo de balançar na rede — vale alguma coisa. Ficou feio dizer que alguém não sabe o que está falando, ou que está falando besteira. E mais importante do que debater passou a ser a conquista da aceitação do maior número de pessoas possível dentro de sua bolha. Porque embora digam que a grande obra do Diabo foi fazer as pessoas acreditarem que ele não existe, a verdade é que seu pulo do gato foi fazer as pessoas acharem que sua opinião, qualquer que seja, importa.

O capitalismo brasileiro

Meninos, eu juro que vi.

Ontem, quarta-feira, 14 de julho, dia da grande revolução burguesa francesa, a revolução que os liberais elogiam mas que Napoleão botou em seu lugar em uns poucos anos, a revolução cujo aniversário de 200 anos marca, para mim, o ressurgimento do liberalismo — nesta quarta eu vi um episódio de um documentário na TV Cultura, salvo engano chamado de “Os Empreendedores”.

Nele, Fernando Henrique Cardoso faz um auto-de-fé liberal. A partir da história de quatro empreendedores brasileiros, Barão de Mauá, Conde Francisco Matarazzo, Hermann Hering e Antônio Ermírio de Moraes, ele enceta uma diatribe contra a presença do Estado na economia. Segundo FH, nenhum desses empreendedores, todos eles bilionários, jamais utilizou o Estado para enriquecer.

Eu confesso que sempre que olho para a cara mole de Fernando Henrique lembro de João Ubaldo Ribeiro. João Ubaldo, grande baiano, foi o homem que escreveu do então presidente:

Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico.

Todo — absolutamente todo — o texto do programa é de uma canalhice, de uma parcialidade e seletividade impressionantes. Fernando Henrique não diz, por exemplo, que teve a iniciativa e a honra de colocar a Hering em maus lençóis ao proceder à destruição da indústria têxtil brasileira, importando malhas chinesas a preços inalcançáveis. Não fala que exemplos como o de Mauá são a exceção, que em virtualmente todos os setores a iniciativa estatal foi imposta pelo absoluto desinteresse do tal empreendedorismo privado. E quando menciona a indústria naval brasileira, diz algo como “o primeiro programa de incentivo à indústria naval foi de Juscelino Kubitschek. O segundo foi de Geisel. O terceiro agoniza.”

Adivinhe quem bancou o programa que salvou a indústria naval brasileira nos anos 2000 e cujo nome não pode ser mencionado.

É estranho ver um sociólogo que já foi respeitado se deixando rebaixar a um papel desses. Eu, que brinco diuturnamente com a possibilidade de me filiar ao PCO porque a um cavalheiro só interessam as causas impossíveis (©Jorge Luís Borges), fico triste ao ver isso. Eu lembro de FH na campanha das Diretas, idolatrado pelos peitos tão fartos da Christiane Torloni. Só por isso ele merecia um fim mais digno.

Mas ele não degenerou totalmente, e faz um único elogio à Embrapa. Claro, não menciona as dezenas de Ematers, Epagris que se dedicam a ajudar pequenos agricultores Brasil afora. Não faz isso porque o FH do século XXI é daqueles que jogaram às favas os escrúpulos de consciência e fecharam os olhos ao embarcar numa nave estranha.

Tudo bem, direito dele. Pelo menos é o que você pensa até ver que esse documentário foi financiado pela Lei de Incentivo Cultural e pela Ancine. Dinheiro de impostos.

Pois é.

Você provavelmente tem raiva do Bolsonaro, aquele verme com retenção anal. Eu tenho raiva do Fernando Henrique. Agora você sabe por quê.

***

O programa é sucedido por um que pergunta se velhice é doença.

Idiotas.

Todo mundo sabe que velhice é doença terminal. O problema é que a alternativa é muito pior.

Marighella

Fernando Meirelles me chamou de ladrão.

Não foi nada pessoal, até porque ele nem sabe que existo. Foi uma ofensa genérica: ele anda meio chateado porque o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, estrelado por seu Jorge e do qual ele é produtor associado, vazou nas redes. “Por alguma razão as pessoas acham que roubar fruta na árvore ou assistir filme pirata não é roubo. A mente humana é pródiga em autoengano”, ele disse à Folha de S. Paulo ontem, sentado nos muitos dinheiros arrecadados através de leis de renúncia fiscal e financiamento direto das tetas da viúva. O discurso é assustadoramente próximo dos bolsonaros da vida, que também chamam o financiamento público de filmes de roubo, mas adoram se apropriar dos fundos públicos em rachadinhas e quetais. Muda só o ponto de vista.

A novela de “Marighella” acabou se tornando razoavelmente longa. Primeiro por causa do boicote anunciado pelos bolsominions, assustados com qualquer coisa que não seja fake news; depois por causa da pandemia. Lá fora o filme estreou em 2019, fazendo o circuito dos festivais que é a praxe em filmes fora do esquema hollywoodiano. No Brasil, estrearia em novembro daquele ano, mas o governo Bolsonaro fez o que pôde para evitar sua exibição. Eles têm muito medo de filmes, de comunistas mortos e de vacinas. Recentemente, “Marighella” estreou comercialmente nos EUA, de onde vazaram as cópias legendadas que circulam agora. Vai estrear no Brasil em novembro deste ano.

O povo brasileiro ajudou a financiar um filme que, durante dois anos, não pôde ver, enquanto seus produtores o rodavam mundo afora para viabilizar seu lucro ou sei-lá-o-quê. Quando finalmente tem a chance de assistir a ele, graças à desonestidade inata dos americanos, é chamado de ladrão.

Assim, enquanto murmurava “não esculacha, chefia!” e colocava as mãos atrás da cabeça, sabendo-me pego, lembrei do Cacá Diegues chiando quando cobraram a ele algo que, se não me engano, chamaram de “contrapartidas sociais”, uns 20 anos atrás — e que, acho, consistia em levar ao povo o filme feito com seu dinheiro. Diegues é o mesmo sujeito que criou a expressão “patrulha ideológica”, em meio à ditadura militar. Como Meirelles, é gente que gosta muito de dinheiro público, mas não tanto de devolvê-lo.

Para piorar ainda mais as coisas, essa postura hipócrita do Meirelles talvez não fosse tão irônica se o filme não contasse de um comunista que dedicou sua vida, quem diria, à abolição da propriedade privada. Se ladrão há nessa história, esse ladrão é o Marighella, e nesse caso tenho muito orgulho de ser chamado assim, ainda que por tabela.

Só então eu, ladrão contumaz e irrecuperável, percebi que nunca tinha roubado um filme do Fernando Meirelles, muito menos esse “Marighella” (que, não custa lembrar, não é dele).

Eu não lembrava do filme, nem mesmo da polêmica causada pela escolha de Seu Jorge para o papel do protagonista, o primeiro caso de “blackwashing” de que tenho notícia. Na época achei interessante, porque não apenas é mais válido que embranquecer um personagem, mas também porque levou a uma reavaliação iconográfica de Marighella que corrigiu um grande erro histórico e jogou nas fuças das pessoas a glória da sua mulatice. Só depois percebi que há um problema inerente a essa decisão. A escolha de Seu Jorge parece mais que aceitável diante do histórico de racismo e obliteração da imagem do negro nas artes, mas no fundo acaba sendo mais um evento de negação da miscigenação brasileira, a entronização de um binarismo racial americano que representa um retrocesso e que, infelizmente, é cada vez mais aceito. Um cabo de guerra em que o mulato, moreno, pardo, chamem do que quiserem, é negado em função de um discurso insuficiente.

Mas quem disse que o crime não compensa não viu ainda este filme. “Marighella” é excelente, uma grande obra. É ainda melhor no atual contexto político do país, em que qualquer pessoa que não seja totalmente imbecil ou canalha é chamada de comunista. Wagner Moura estreia como um diretor seguro, que tem perfeita noção da história que está contando. Para inseri-la melhor no contexto atual, reforça inclusive a questão racial, que não era exatamente prioridade naqueles tempos. Moura mostra-se também um excelente diretor de atores, como se pode ver nas atuações excelentes de Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Luiz Carlos Vasconcelos. Nenhum desses, entretanto, iguala o desempenho excepcional de Seu Jorge. Seu Jorge consegue passar, simultaneamente e com brilhantismo, a dureza e a humanidade de Marighella.

A direção de arte também é excelente, em que pesem anacronismos como a presença conspícua de pistolas PT 92 muitos anos antes de serem criadas, antes mesmo até das Beretta 92 que as originaram, ou a luz avermelhada das lâmpadas de vapor de sódio nas ruas.

Terminado o filme, satisfeito com meu butim, desliguei a televisão esquecido de Fernando Meirelles, até que fui ao IMDb e vi que a nota dada a “Marighella” é 3,2.

Cheguei à conclusão de que só gente como Meirelles avaliou este filme, pelo visto. E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia. Por isso ele deve ser roubado e compartilhado por quem puder. Todos os brasileiros deveriam ver este filme; velhos comunistas como Marighella e o Comandante Toledo (e João Amazonas, e Elza Monnerat, ou os tantos outros que não conheci) podem estar fora de moda, mas é preciso que voltem a mostrar a um povo cada vez mais afundado numa lama antes inimaginável que um outro mundo é possível, e que para isso ele nem precisa existir de verdade.

“Marighella” deve ser roubado e roubado e roubado de novo porque ele quase nos devolve o orgulho de sermos brasileiros. Ainda que seja de uma forma perfeitamente exemplificada na cena final, que deveria ter sido incluída no meio do filme: angustiada, desesperançada, mas ainda assim com orgulho e, acima de tudo, fé.

Leonel Brizola e Ciro Gomes

Desde o início, as eleições presidenciais de 1989 giraram em torno de apenas três candidatos: Fernando Collor, Leonel Brizola e Lula. Sempre nessa ordem: até a última pesquisa do Datafolha, não houve alteração na ordem dos candidatos.

Ao longo da campanha houve momentos interessantes, como quando a elite paulista, já desenganada quanto a Ulysses Guimarães mas ainda desconfiada de Collor, tentou inflar a campanha de Guilherme Afif Domingos. Mas Collor era muito mais que o “caçador de marajás” da Globo: era jovem, bonito, viril, e tinha as condições necessárias para se apresentar como a verdadeira renovação em um momento de crise na política brasileira, diante da implosão do governo Sarney.

No campo da esquerda, o grande nome ainda era Brizola, do PDT. Ainda não havia urnas eletrônicas e a apuração dos votos era lenta. Nas primeiras horas da noite de 15 de novembro, parecia que Leonel Brizola seria o escolhido pelo povo brasileiro. Pela sua trajetória, pelo seu governo controvertido no Rio de Janeiro, pelo respeito que sua figura impunha, parecia uma escolha natural.

Mas foi Lula a ir para o segundo turno.

Brizola perdeu por várias razões. Porque foi à disputa completamente isolado, esperando que a sua história o elegesse — parece incrível, mas o PT foi menos sectário e engendrou uma coalizão com o PCdoB e o PSB que se manteve até 2010. Perdeu porque não compreendeu a nova linguagem televisiva e fazia campanha como se estivesse ainda nos tempos da Rede da Legalidade. Perdeu porque a militância da Frente Brasil Popular ganhou as ruas, fazendo um trabalho de formiguinha com altruísmo e convicção verdadeira, e porque a equipe liderada por Paulo de Tarso soube fazer programas muito mais competentes na TV e no rádio.

No fundo, Brizola perdeu porque seu tempo tinha passado e o novo sempre supera o velho.

Ao perder as eleições, Brizola não hesitou em declarar seu apoio a Lula. Reclamou de ter que engolir um “sapo barbudo”, é verdade; mas em nenhum momento reclamou que Lula deveria ter renunciado porque ele, Leonel Brizola, tinha mais chances de ganhar porque não tinha uma Miriam Cordeiro em seu passado nem aparelho de som na casa da namorada, e podia alegar que a campanha da Globo contra ele seria mitigada pela sua história de antagonismo; podia até mesmo alegar que, mais moderado, não seria vítima do anticomunismo utilizado como arma de campanha, num tempo em que o PT combatia a privatização da Mafersa e ainda abrigava a Convergência Socialista. No segundo turno, Brizola não viajou para lugar desconhecido para não ter que participar da campanha do ex-adversário.

Por mais divergências que se tivesse com Brizola — e era muito fácil tê-las, pelo menos antes de ele morrer e virar quase santo —, uma coisa é inegável: ele não era apenas um dos grandes nomes da política brasileira, era antes de tudo um político de verdade e um homem com vocação para estadista.

Conhecendo a história do PDT e de Brizola, é inevitável que pareça estranho e infantil ver Ciro e seus porta-vozes reclamarem que Fernando Haddad deveria ter renunciado no segundo turno em favor do ex-governador do Ceará, baseados na lógica meio confusa de que ele não tinha tido sequer metade dos votos do candidato do PT no primeiro turno, mas ganharia de Bolsonaro. Mais ainda, jogam toda a culpa no antipetismo óbvio, mas esquecem que a atitude adotada pelos irmãos Gomes (“Lula tá preso, babaca!”) não contribuiu em nada para diminui-lo ou diminuir a desconfiança em toda a esquerda.

O mais estranho, mesmo, é a tentativa de negar ao PT o direito de tentar manter sua hegemonia, como se em algum momento da história política mundial algum partido ou grupo sério tenha feito isso. Além da lambança ética em seus governos, o PT cometeu erros grosseiros em sua campanha. Mas foi uma escolha dele. É uma lógica estranha, essa, de uma esquerda infantil que não entende mais a política e acha que liderança, nessa área, pode ser concedida, e não apenas conquistada. Se a esquerda ainda não conseguiu superar o PT e Lula, não é pedindo para eles desocuparem a moita que vão conseguir ocupar o proscênio, e sim apresentando uma alternativa, algo de que até agora não temos sido capazes.

Em 1989, Lula conquistou um lugar que até então tinha sido de Brizola porque fez política melhor. Em 2018, Ciro apenas ocupou o lugar que sempre ocupou: um político voluntarista, irregular, em cuja história podem ser computados um ministério no governo Lula e o fato de ter quebrado a indústria nacional para eleger Fernando Henrique, quando foi ministro de Itamar Franco. E culpa o PT por não ter sido capaz de ir além disso.

Como diz o Mark Lilla, em política não existe antes, só existe o depois. Cabe ao PDT e ao resto da esquerda brasileira tomarem o lugar que hoje pertence a Lula e, em menor escala, ao PT. Mas para isso é preciso apresentar uma alternativa viável, um projeto de Estado que responda às necessidades da atualidade. Não é pedindo licença que vão conseguir.

50 anos depois

Essa é a capa da edição especial da revista Manchete publicada em abril de 1964, comemorativa ao golpe militar.

A capa serve para lembrar qual era, exatamente, o pensamento da elite brasileira em 1964, as razões pelas quais apoiou o golpe, as esperanças que tinha na obediência da caserna.

Ela embarcou alegre na aventura militar golpista porque acreditava que aquela era a maneira mais fácil, ou talvez a única, de tirar do poder um governo não apenas eleito democraticamente — mas, mais importante ainda, referendado no plebiscito de 1963. Acreditava também que os militares apenas fariam o seu papel abjeto de cães de guarda e, derrubado Goulart, lhe entregariam o poder.

A elite carioca, especificamente, depositava todas as suas esperanças em Carlos Lacerda. O tempo passou e as pessoas talvez esqueçam que esse homem, o responsável pela crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas dez anos antes e talvez a principal vivandeira do golpe de 64, foi uma das personalidades mais nocivas da história brasileira. O mal que ele fez ao país é imensurável.

Não satisfeito com o suicídio de Vargas, tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek como presidente em 1955. Depois do exílio na Cuba de Fulgêncio Batista, voltou para ser eleito governador da Guanabara. Foi um bom governador, de acordo com os registros. Melhor ainda para empreiteiras que realizaram obras importantes como os túneis Rebouças e Santa Bárbara. É tentador supor que os moradores da zona norte se encantaram com ele porque acharam que os túneis os tinham transformado em quase moradores da zona sul — mais ou menos como a classe média que hoje não gosta de ver pobres no avião porque eles acabam com a ilusão de que ela é quase rica.

Era esse homem que as elites brasileiras esperavam ver na presidência. Assim como Aécio Neves 50 anos depois, ele apostou na imposição do caos como maneira de chegar ao poder, não importando se, com isso, destruiria as instituições nacionais e criaria uma crise que dividiria e implodiria o país. Lacerda, brilhante como Aécio nunca foi, não teve trabalho para fazer as elites brasileiras, sempre canalhas, acreditarem que os militares entregariam a elas o poder assim que fizessem o trabalho sujo de depor Jango, devolvendo a aparência de normalidade democrática.

Pouco mais de quatro anos depois dessa capa, Lacerda estava na prisão, preso pelo regime que, como poucos, ajudou a instalar. Não viveu para ver o fim do regime militar. Assim como Aécio Neves 50 anos depois, foi engolido pelo monstro que alimentou.

Para as elites, o golpe compensou. Elas receberam seu investimento de volta; elas sempre recebem. Não consta que os ricos tenham deixado de ficar ricos, que as empreiteiras tenham deixado de pagar propinas para realizar obras públicas superfaturadas, que as mesmas estruturas de poder e clientelismo herdadas da nossa tradição ibérica tenham sido modificadas.

Mas as classes médias e os pobres, que apoiaram o golpe acreditando no discurso hipócrita e udenista de combate à corrupção, de medo do comunismo que iria lhes roubar as posses que nunca tiveram, que fizeram seu o discurso dos ricos, desses a história cuidou sem muita compaixão.

Foi essa gente cada vez mais iletrada e ignorante, que se recusa a aprender a lição de meio século de história porque agora tem a legitimação de seus iguais no WhatsApp, gente igualmente estúpida que compartilha suas ideias bovinas e destila a frustração, o despeito e os maus sentimentos de uma classe média ética e moralmente decadente, que ajudou a eleger Bolsonaro.

Mas a história é uma megera, e é também essa gente que agora vê calada o seu paladino Sergio Moro ter sua corrupção exposta enquanto é constantemente humilhado pelo ex-tenente terrorista. Que vê calada o ex-tenente atropelar as instituições para proteger seus filhos corruptos. Que vê calada os seus direitos desparecerem. Que vê calada o país que dizia defender em patacoadas verde-e-amarelas sendo desmontado e humilhado mundialmente — calada em um silêncio cúmplice porque, sempre obtusa, se recusa a admitir que sua estupidez atávica foi a principal causa dessa tragédia que o país vive hoje.

Infelizmente, repetindo a história, ela vai apenas seguir o destino de Carlos Lacerda.

Bolsonaro, o perdão ao Holocausto e o desvio da esquerda

A reação à declaração do tenente expulso do Exército, Jair Bolsonaro, de que podíamos perdoar o Holocausto, mas não esquecê-lo, é uma mostra do quão míope e desconectada da realidade está uma parte da esquerda, pelo menos essa que parece militar em posts de Facebook e respostas inteligentes no Twitter.

O Holocausto se transformou em um trunfo histórico e político para o movimento sionista. Golda Meir mostrou entender isso perfeitamente ao dizer que “depois do que fizeram conosco, podemos fazer tudo”. É o que justifica a atuação de grupos como o Yad Vashem, que se recusa a aceitar homossexuais, ciganos e comunistas como vítimas do Holocausto, e o que motivou o protesto preconceituoso de certos setores judeus nova-iorquinos quando, no início dos anos 1990, um museu tentou promover uma mostra sobre essas vítimas do Holocausto. Em grande parte, essa é a justificativa subjacente ao colonialismo agressivo e ao genocídio que Israel executa há décadas na Palestina.

Mesmo gente mais ilustrada tem dificuldade em compreender a dimensão tenebrosa da Solução Final. Certos setores do movimento negro, por exemplo, tentam (inadvertidamente ou não) relativizar o Holocausto comparando números com outro crime contra a humanidade, a escravidão africana nas Américas, sem entender sequer o mínimo: que para além da questão racial inerente e justificadora, a escravidão tinha motivação e racionalidade econômica, enquanto o antissemitismo não tem nenhuma — ao contrário, é absolutamente irracional, ódio puro que deve ser materializado não importa o custo econômico. Escravizar negros gerava lucro; matar judeus representava um prejuízo que valia a pena diante do ódio aos “assassinos de Cristo”.

E no fim das contas nada disso quer dizer alguma coisa para 95% dos eleitores de Bolsonaro.

Analfabetos políticos e simplórios, eles estão absolutamente alheios a questões históricas como essa. Para eles, o Holocausto representa pouco ou nada. É algo que, quando ouviram falar, sabem ser errado, mas que já passou e não afeta suas vidas. Não têm a dimensão do horror, e para eles Auschwitz é algo quase tão distante, e sem nenhuma conexão emocional, quanto a batalha de Hastings.

Para esses eleitores, quando Bolsonaro diz que “podemos perdoar o Holocausto, mas jamais esquecer”, ele não está subscrevendo o nazismo, não está justificando suas ações, não está se posicionando a favor desse crime. Fora do sectarismo militante, pelo contrário, para seus eleitores ele mostra uma faceta que seus opositores não conseguem ver nele: um governante tolerante, moderado. É o contrário do psicopata fascista que seus opositores enxergam, e do idiota funcional, reacionário, ignorante e despreparado que ele realmente é. E nesse caso, ele é transformado, para aqueles que o elegeram, em vítima.

Ainda mais triste — ou talvez mais uma prova desse entrincheiramento intelectual míope — é que eles não conseguem ver que algo semelhante aconteceu com Lula. Quando ele traduzia posicionamentos mais complexos em palavras simples, quando dizia que “a gente não vai pagar a conta dessa crise criada pelos louros de olhos azuis”, ele era rechaçado pela elite, que o acusava de analfabeto — enquanto se fazia entender pela patuleia, que era o que interessava a ele. Bolsonaro faz isso de maneira mais simplória, talvez até involuntária.

O resultado é que o eleitor médio de Bolsonaro continua se identificando com ele. Com as barbaridades que diz, com a incompetência verbal. Esses eleitores foram educados, ao longo de quase 40 anos de exercício da democracia em eleições, a descrer de promessas de campanha de candidatos e confiar no seu “bom senso” e na opinião majoritária de sua comunidade. Eles veem no idiota twitteiro o seu mesmo padrão de comportamento, de pensamento, o mesmo modo de ver o mundo e se posicionar diante dele.

Talvez o fenômeno mais curioso nessas eleições tenha sido o número de famílias de latrocidas, de gays e negros que votaram nele. Para eles, o discurso identitário nunca surtiu efeito. Eles focaram seletivamente naquilo que lhes: o discurso do combate à corrupção, da restauração da ordem, do fim de privilégios que só os outros têm, do conservadorismo de costumes que representa uma estabilidade existencial perdida há muito tempo (se é que alguma vez existiu). Anos de bombardeio da mídia contra a corrupção inventada pelos petistas o tornaram descrente e radical, infelizmente com a ajuda alegre de uma parte do PT. E o crescimento da penetração das redes, da possibilidade do compartilhamento em massa de ideias semelhantes e compreensíveis, ainda que estúpidas, lhes deu força e autoafirmação.

É isso que essa parte dos seus opositores não consegue enxergar. É um problema que aparentemente tem origem no momento em que o Muro de Berlim caiu e a esquerda perdeu o referencial ideológico e concreto do socialismo. Órfã, se tornou presa fácil para a dominação das pautas identitárias, que sobrepunha questões de gênero e étnicas à luta de classes.

Desde o início, quem conseguia ver um pouco além dos posts lacradores de uma esquerda que achava que todo mundo ia se afastar de Bolsonaro pela sua homofobia, pelo seu racismo, pelo seu machismo delirante, tinha muito mais medo da sua incompetência e do seu despreparo. Mas a guerra de informação que se travou nas redes, especialmente no WhatsApp, se deu a partir de uma militância que privilegiava esses argumentos — que, no fim das contas, apenas galvanizavam a certeza de cada lado de que ele é que estava certo, levando a um impasse infértil que ajudou, mesmo que pouco, a beneficiar o candidato de uma direita desesperada.

É uma esquerda que se recusa a compreender as consequências sociológicas do crescimento do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade; que denuncia acertadamente que negros são as principais vítimas da violência, mas convenientemente esquece o que essas vítimas sentem na pele: que negros são também os perpetradores imediatos dessa violência.

Mais importante, não consegue entender as mudanças profundas que o capitalismo vem atravessando, possibilitadas pela tecnologia, e que transformaram profundamente a natureza das relações de trabalho. O sujeito que trabalha no Uber, o motoboy, o ciclista do Uber Eats, o caminhoneiro que está pouco se lixando se os subsídios que Bolsonaro prometeu há pouco vão beneficiar principalmente os fabricantes de pneus, os milhares de MEIs que aos poucos se tornam a norma nas relações trabalhistas representam uma mudança profunda e irreversível, que afeta profundamente a maneira como essas pessoas enxergam as pautas da esquerda. Para elas, que se veem não como explorados, mas como agentes autônomos, e que acham que seu sucesso depende apenas do seu próprio esforço, questões como previdência e pisos salariais representam antes de tudo a defesa de privilégios que certamente não são seus.

É com essa realidade complexa, em que certo e errado são cada vez mais fluidos, verdadeiros ou falsos apenas para um fragmento da sociedade mas não para outros, e que são definidos por experiências muitas vezes conflitantes, que essa esquerda teria que lidar — mas suas pautas identitárias impedem isso. Em vez de tentar compreender e lidar com esses processos, essa esquerda se esbalda em estultícies como o conceito de apropriação cultural.

As classes dominantes deste país nunca tiveram medo de se jogar aos crocodilos, se isso impedisse a esquerda de assumir o poder e promover mudanças estruturais que temem quase irracionalmente, em parte pela ignorância atávica e provinciana que lhe é característica e que fez, por exemplo, os médicos cearenses que foram vaiar os cubanos do Mais Médicos se espantarem ao ver que em Cuba há médicos negros. Já tinham feito isso com Castello Branco, e mesmo com Fernando Collor. A diferença é que agora, com a internet dando voz a uma legião de imbecis que sequer sabe escrever — e que se recusa até mesmo a confiar no corretor ortográfico do Microsoft Word —, quanto mais pensar política, essa burguesia tem ao seu lado uma camada de gente ignorante, preconceituosa e burra que assume como seu esse discurso. Eles, a propósito, são um indício de que em algumas coisas Marx estava errado. O barbudo não conseguiu prever que poderíamos viver a ditadura do lumpemproletariado.

De qualquer forma, são essas pessoas que ajudarão a decidir o futuro do país, e é com elas que se precisa dialogar. Mas essa esquerda parece não entender que política não é uma disputa para ver quem está moralmente certo ou errado. Infelizmente, é essa a base dessa esquerda identitária, aparentemente mais interessada em se afirmar diante de seus pares do que em conseguir conquistas tangíveis, mais interessada em fazer valer sua visão sectária de mundo do que em efetivamente mudá-lo.

Niemölleriana

Primeiro vieram buscar os negros, mas como eu não estava no meu lugar de fala, eu tive que me calar.

Depois vieram buscar as mulheres, mas como eu era homem cis hétero estuprador opressor, eu não pude protestar.

Então vieram buscar os trans, e como eu não era gay, fiquei calado para não entrar em treta.

Depois vieram buscar os comunistas, mas como eu insistia que não era golpe, eu achei foi pouco.

Então vieram buscar os sindicalistas, mas como eram todos pelegos, eu fiquei calado.

Depois vieram buscar as moças com turbante, e achei bom porque aquilo era apropriação cultural.

Então, quando vieram me buscar, eu fiz um post lacrador no Facebook.