A “Buceta” do Bia

É meio esquisito escrever sobre um livro que vi nascer e que, por acaso, tem um personagem com meu nome e sobrenome.

Mas escrever sobre um livro do Bia é sempre bom.

Esqueça o que ele diz, porque a memória do Bia é ruim que dói. “Buceta” foi concebido em 2005, no vácuo do seu primeiro livro, “Sexo Anal”. No comecinho de junho, para ser mais exato: foi quando o Bia me mandou um primeiro esboço do livro, basicamente uma cena, ainda bastante diferente do que ficaria na versão final. Já tinha um Rafael Galvão ali. O sujeito era baiano, beatlemaníaco e escrivão.O Bia diz que o personagem foi inspirado em mim; eu prefiro acreditar que ele gostou do meu nome, só. Porque escrever qualquer um escreve; mas ser personagem é para poucos. E se eu acreditasse nisso ia começar a ficar mais metido do que já sou. E faria uma brincadeira aqui, escreveria sobre o livro como se fosse o personagem, e então a bagunça se instalaria completamente. Não, obrigado.

Mas mesmo com um personagem bom como um Rafael Galvão, o Bia desistiu rapidinho do livro — que já tinha o título e o subtítulo definitivos — e retomou o que deveria ter sido a sua primeira novela: “Virginia Berlim”, lançado há uns dois anos e que veio com um CD com a trilha sonora do livro.

Dois livros não poderiam ser mais diferentes. De um lado o policial leve e rápido de “Sexo Anal”; do outro, um romance claustrofóbico e psicologicamente mais profundo. A diversidade dos livros é um elogio claro à capacidade do Bia, e uma prova de que como escritor ele vinha evoluindo.

Eu pensei que o Bia tinha desistido de “Buceta”. Até que no final do ano passado ele apareceu de novo com “Buceta” — agora um livro inteiro, com começo, meio e fim. Depois de ler as primeiras páginas e ver que o meu nome continuava ali, fiquei com medo e preparei com antecedência a minha habitual coleção de insultos: “Seu puto, você tá pensando o quê? Muda o nome desse personagem!”. Imaginei que o Rafael Galvão do Bia terminaria em uma orgia com travestis, manchando para sempre a minha já frágil reputação.

Depois que eu me acostumei com um homônimo, as coisas ficaram mais fáceis. E pude olhar o belo livro que é “Buceta”.

Não é possível olhar para “Buceta” sem imaginar que é a continuação de “Sexo Anal”. Pelo título, pelos personagens, pelo ritmo que é uma das marcas registradas do Bia. O Bia tem estilo próprio, três livros depois já dá para perceber sem chance de engano. “Sexo Anal” era um livro leve, engraçado, bem humorado. “Buceta” tem tudo isso — mais é mais bem construído, mais bem estruturado, acima de tudo um avanço no estilo do Bia. Mesmo que ele aponte as diferenças, vai ser mais fácil enxergar as semelhanças entre os dois livros — e é aí que essa evolução estilística entra. “Buceta” é um livro melhor do que foi “Sexo Anal”. E SA já era bom.

Eu tenho algumas críticas ao livro. O excesso de pontos de exclamação, principalmente na voz do narrador, é um deles, que às vezes a torna parecida com as dos personagens. Outro é a forma como reticências se imiscuem em diálogos que talvez devessem ser monólogos. Eventualmente os personagens falam de maneira literária demais.

Mas os defeitos de estilo são pequenos, comparados à delícia que é ler o “Buceta”. O livro flui rápido, a trama envolve. Não é um policial noir, nem longe: está mais para um policial pink, bem humorado, com uma visão cínica do mundo enganadoramente disfarçada em humor leve e em situações esdrúxulas, mas ainda assim familiares. A começar pela capa, com uma foto de Rock Hudson que exemplifica, de maneira perfeita, o espírito do livro. O talento do Bia está aí, em estender os limites do real, do crível. É o que faz de “Buceta” um grande livro.

Vale a pena ler “Buceta”. O Bia é um dos melhores novos escritores brasileiros. E com “Buceta” mostra que tem fôlego e um universo narrativo próprio. Não é pouco.

A "Buceta" do Bia

É meio esquisito escrever sobre um livro que vi nascer e que, por acaso, tem um personagem com meu nome e sobrenome.

Mas escrever sobre um livro do Bia é sempre bom.

Esqueça o que ele diz, porque a memória do Bia é ruim que dói. “Buceta” foi concebido em 2005, no vácuo do seu primeiro livro, “Sexo Anal”. No comecinho de junho, para ser mais exato: foi quando o Bia me mandou um primeiro esboço do livro, basicamente uma cena, ainda bastante diferente do que ficaria na versão final. Já tinha um Rafael Galvão ali. O sujeito era baiano, beatlemaníaco e escrivão.O Bia diz que o personagem foi inspirado em mim; eu prefiro acreditar que ele gostou do meu nome, só. Porque escrever qualquer um escreve; mas ser personagem é para poucos. E se eu acreditasse nisso ia começar a ficar mais metido do que já sou. E faria uma brincadeira aqui, escreveria sobre o livro como se fosse o personagem, e então a bagunça se instalaria completamente. Não, obrigado.

Mas mesmo com um personagem bom como um Rafael Galvão, o Bia desistiu rapidinho do livro — que já tinha o título e o subtítulo definitivos — e retomou o que deveria ter sido a sua primeira novela: “Virginia Berlim”, lançado há uns dois anos e que veio com um CD com a trilha sonora do livro.

Dois livros não poderiam ser mais diferentes. De um lado o policial leve e rápido de “Sexo Anal”; do outro, um romance claustrofóbico e psicologicamente mais profundo. A diversidade dos livros é um elogio claro à capacidade do Bia, e uma prova de que como escritor ele vinha evoluindo.

Eu pensei que o Bia tinha desistido de “Buceta”. Até que no final do ano passado ele apareceu de novo com “Buceta” — agora um livro inteiro, com começo, meio e fim. Depois de ler as primeiras páginas e ver que o meu nome continuava ali, fiquei com medo e preparei com antecedência a minha habitual coleção de insultos: “Seu puto, você tá pensando o quê? Muda o nome desse personagem!”. Imaginei que o Rafael Galvão do Bia terminaria em uma orgia com travestis, manchando para sempre a minha já frágil reputação.

Depois que eu me acostumei com um homônimo, as coisas ficaram mais fáceis. E pude olhar o belo livro que é “Buceta”.

Não é possível olhar para “Buceta” sem imaginar que é a continuação de “Sexo Anal”. Pelo título, pelos personagens, pelo ritmo que é uma das marcas registradas do Bia. O Bia tem estilo próprio, três livros depois já dá para perceber sem chance de engano. “Sexo Anal” era um livro leve, engraçado, bem humorado. “Buceta” tem tudo isso — mais é mais bem construído, mais bem estruturado, acima de tudo um avanço no estilo do Bia. Mesmo que ele aponte as diferenças, vai ser mais fácil enxergar as semelhanças entre os dois livros — e é aí que essa evolução estilística entra. “Buceta” é um livro melhor do que foi “Sexo Anal”. E SA já era bom.

Eu tenho algumas críticas ao livro. O excesso de pontos de exclamação, principalmente na voz do narrador, é um deles, que às vezes a torna parecida com as dos personagens. Outro é a forma como reticências se imiscuem em diálogos que talvez devessem ser monólogos. Eventualmente os personagens falam de maneira literária demais.

Mas os defeitos de estilo são pequenos, comparados à delícia que é ler o “Buceta”. O livro flui rápido, a trama envolve. Não é um policial noir, nem longe: está mais para um policial pink, bem humorado, com uma visão cínica do mundo enganadoramente disfarçada em humor leve e em situações esdrúxulas, mas ainda assim familiares. A começar pela capa, com uma foto de Rock Hudson que exemplifica, de maneira perfeita, o espírito do livro. O talento do Bia está aí, em estender os limites do real, do crível. É o que faz de “Buceta” um grande livro.

Vale a pena ler “Buceta”. O Bia é um dos melhores novos escritores brasileiros. E com “Buceta” mostra que tem fôlego e um universo narrativo próprio. Não é pouco.

A tal da reforma ortográfica

Para mim, reclamar de uma reforma ortográfica é como reclamar da chuva. Pode até dar algum alívio, mas não adianta nada.

Então eu não reclamo, apesar de achar a reforma desnecessária. Mas digo desde logo que ligo tanto para ela como ligo para a árvore que cai num parque qualquer da Sibéria.

Eu escrevo muito, todos os dias. Só neste blog há quase 2 mil posts. Não sei quanto isso dá em palavras ou em toques, mas sei que são muitas. Escrevo muito mais fora daqui; não sei quantos segundos de texto, quantos parágrafos escrevo todos os dias; são muito mais do que eu poderia — ou quereria — medir. E durante esses mais de 20 anos, escrevi praticamente todos os dias, dentro de regras que agora não valem mais.

Tampouco não sei quanto já li nesta vida, livros em que estavam grafados lingüiça, pára-quedas e outras palavrinhas e sinais que o acordo ortográfico, agora, decidiu por bem fazer de conta que não valem mais, que são velhas sem serventia.

Achar imbecis uma parte das novas normas também não ajuda muito. Alguém pode alegar que, daqui a 20 anos, nada disso fará diferença. Os hoje vivos se acostumarão; os nascituros sequer saberão que houve grafias diferentes um dia. Mas se mantivessem tudo do que jeito que estava até o ano passado, iria dar no mesmo. Sob esse ponto de vista, uma reforma só é válida se ajuda a simplificar as coisas. Esse é o meu problema com ela: não acho que ela simplifique, realmente.

Uma das coisas que sempre gostei na última vagaba do Lácio é que, mesmo que não conhecesse uma palavra, eu saberia exatamente como ela é pronunciada apenas vendo a sua grafia; então eu sabia que “enguiça” era pronunciada de maneira diferente de “lingüiça”; que “esquenta” era diferente de “cinqüenta”. Não entendo a queda do trema. Mais que isso, acho um erro grave. Alguns acentos diferenciais também: aquele acento em cima de “vôo” pode até ser desnecessário, mas em um tempo em que o inglês faz cada vez mais parte do cotidiano das pessoas, é mais fácil pronunciar a palavra como “vu”.

A queda do hífen em várias palavras me parece bem vinda; acho que pára-quedas não faz mais sentido que paraquedas. Mas beijaflor também rezaria pela mesma cartilha, é uma palavra que evoluiu além do seu sentido original, mas eu vou ter que continuar escrevendo beija-flor. Se eu tenho agumas críticas à reforma, essa é uma delas: é um trabalho porco e incompleto.

Mas reclamar não adianta nada. A nova grafia das palavras vai continuar a despeito da minha ranhetice. Isso não significa, no entanto, que eu tenha que correr para me forçar a aprender essa nova forma de escrever.

Eu estou ficando velho e sem paciência para um montinho de coisas novas. Velho o suficiente também para me tornar turrão em algumas coisas, e me apegar a certezas antigas. Ninguém conseguiu me provar que o trema era desnecessário, dois pinguinhos líricos nos ii; eu vou continuar usando o velhinho entrevado até que escrever as palavras sem ele seja algo natural para mim. Até que a sua ausência não me cause estranheza e incômodo.

Então desde cedo eu decidi que não ia me esforçar para escrever dentro dessas novas regras, que nem sempre fazem sentido para mim e que, acima de tudo, me custariam uma atenção e um esforço que eu não quero lhe dedicar.

É por isso que vou continuar escrevendo do meu jeito, o jeito antigo. Não vou parar para estudar ou escrever uma palavra de acordo com os novos termos. Sei que vou aprender muito por osmose, porque as pessoas que se darão ao trabalho de se policiar em relação a essas normas farão com que eu me acostume. Elas vão me poupar o trabalho.

Vou estar escrevendo corretamente enquanto se admitir a nova e a antiga grafias. Mas se continuar errado daqui a dois anos, quando eu não tiver mais o direito de colocar o trema nas palavras em que o julgo necessário, tanto faz para mim. Que o Word apareça logo com um corretor ortográfico que corrija meus tremas e meus hífens como hoje corrige meu “uqe” e meu “nào” e meu “voc6e”; mas não por mim, porque eu não ligo e vou continuar não ligando; mas por aqueles que se prezam em escrever corretamente e que vão estranhar o português arcaico — além dos erros de sempre — que este blog vai apresentar nos próximos anos.

Sobre as cotas raciais

Sou contra as cotas raciais para as universidades. Não é uma posição confortável — em primeiro lugar porque até há algum tempo eu era a favor, e depois porque isso significa que estou do mesmo lado de gente como Demétrio Magnoli, autor de algumas das frases mais absurdas sobre a questão racial no Brasil, e Ali Kamel, o homem que diz que não somos racistas.

Meu consolo é que do outro lado a posição também seria incômoda. É uma discussão ingrata, essa. De um lado está o Demétrio Magnoli, pintando o país como uma democracia racial quase utópica, negando o racismo ou o preconceito, às vezes até mesmo ditorcendo a história brasileira para provar seus pontos de vista, e quem o leva a sério tende a acreditar que os escravos iam felizes e gratos para o eito cortar cana; do outro, militantes que vêm o negativo dessa fábula, um país que praticamente queimava negros em praça pública e que tinha um prazer perverso em reduzi-los a uma semi-escravidão.

A discussão das cotas raciais normalmente parte da comparação com o exemplo americano, onde esse tipo de ação afirmativa ganhou notoriedade. O grande problema é que tendem a distorcer a realidade americana, para pintá-la pior do que foi e, por comparação, tornar o Brasil um paraíso racial. Esse trecho da reportagem de capa da Época da semana passada, por exemplo:

Após o fim da escravidão, em 1865, os americanos adotaram leis segregacionistas. Entre 1876 e 1956 vigoraram as leis conhecidas como “Jim Crow”.

Esse tipo de simplificação mostra que não é tão simples comparar a escravidão americana à brasileira. Por exemplo, “esquecem” de mencionar a Reconstrução antes disso, por exemplo, através da qual houve progressos significativos e até mesmo governadores negros; por omissão dão a entender que todos os Estados Unidos foram vítimas de leis de segregação racial, e não apenas alguns Estados no sul. Esquecem de ressaltar alguns aspectos que seriam importantes na definição das relações interraciais nos Estados Unidos, como o fato de desde o início os escravos africanos terem a competição de mão-de-obra livre e semi-livre, como os indentured servants, ou que mesmo nos estados escravagistas negros sempre foram minoria populacional. Ou então que a maior parte dos Estados Unidos estava livre da “instituição peculiar”, como às vezes era chamada.

São diferenças demais para permitirem um comparação simples. No entanto, há muito mais. Em um trecho de American Slavery — 1619-1877, Peter Kolchin fala sobre um estado curioso de espírito que acometia os escravos:

Traders noticed that the African captives were especially prone to a disease they labeled “fixed melancholy”, whose sufferers became morose, moody, and unresponsive, staring into space, refusing food, and in extreme cases committing suicide, usally by jumping overboard.

O que os anglo-saxões, em sua incapacidade de compreensão da cultura alheia, chamavam de “fixed melancholy“, os brasileiros com sua tradicional plasticidade portuguesa, como dizia Gilberto Freyre, chamam de banzo. É essa permeabilidade cultural, essa capacidade de absorver a cultura africana e misturá-la à sua própria, criando uma totalmente nova, que faz a singularidade da questão racial brasileira. Não é por outra razão que, enquanto a religiosidade dos negros americanos foi completamente substituída por um cristianismo pentecostal — com raras exceções, como o voodoo e o hoodoo da Louisianna, no Brasil houve um processo totalmente distinto, que culminou no sincretismo religioso e na permanência do candomblé.

Também não se deve deixar lado a forma como a resistência negra se deu nos dois países. Nos Estados Unidos quase não houve quilombos — se é que houve algum. Os negros fugiam para o Norte, onde estavam razoavelmente a salvo das leis escravagistas. No Brasil, ao contrário, grande parte dos quilombos se estabeleciam ao lado das cidades (como o Cabula, em Salvador, e o Leblon, no Rio), e não era raro que negociassem com a população. Não é preciso ler Sergio Buarque de Hollanda para lembrar que é própria da natureza brasileira a preferência pela negociação em vez do conflito. É também o que faz com que brasileiros, desde quase sempre, tenham vergonha de serem vistos ou se assumirem como racistas. Pode parecer piegas, mas nesse caso, a maneira como os brasileiros gostam de se ver é importante na definição de soluções para o problema do negro no país. Isso mostra que talvez a melhor forma de eliminar a desigualdade não seja ressaltando as diferenças raciais.

Se sou contra as cotas raciais é porque acredito, como Donald Pierson sugeriu em “Brancos e Pretos na Bahia”, que vivemos em uma “sociedade multirracial de classes” e que, ao contrário de outros países, o nosso preconceito não é exatamente racial, mas de cor.

O que torna as cotas raciais indesejáveis é, principalmente, essa singularidade cultural brasileira, aliada ao alto nível de miscigenação — um dos elementos que fazia Darcy Ribeiro dizer que o Brasil era “a mais bem sucedida civilização européia nos trópicos”, e que foi a razão de um dos episódios mais curiosos dos últimos, quando dois gêmeos da UnB foram classificados, por pessoas diferentes, como negro e como branco — o que dava a um ter o direito de entrar na universidade pelo sistema de cotas e ao outro não. A noção de negro no Brasil é mais fluida que em outros lugares, e é o que complica discursos elaborados, inteligentes mas definitivamente americanos como o do Alex.

As cotas sociais como as propostas atualmente, reservando vagas par alunos vindos de escolas públicas, podem ser uma boa solução. Porque oferece uma alternativa eficiente à definição racial, e porque podem vir a forçar a classe média a ir para a escola pública, o que possivelmente melhoraria o seu nível.

Mas é duro ter a mesma opinião de gente que diz, como o Demétrio Magnoli, que “a partir do momento em que o Estado cria a raça, passa a existir também o racismo”, ou que “O que o Estado vai fazer é dizer às pessoas que elas não são iguais, mas que são desiguais, e dar direitos diferentes a elas”. (O outro lado não é muito melhor. Frei David, do Educafro: “Não concordamos com essa opção de dar só as cotas sociais, que favorecem os que não estão lutando, e não as raciais, que favoreceriam os negros, que lutam há anos”, como se as cotas fossem uma questão de prêmio por luta.)

Não há dúvida de que há uma dívida grande do país em relação aos descendentes de escravos, e isso está fora de discussão. O problema é como essa dívida pode ser paga.

Ainda o diploma para jornalistas

É curioso que mesmo que o teor do post sobre o diploma de jornalismo fosse o de que a eventual revogação da obrigatoriedade não mudaria nada, gente boa como o Sergio Leo tenha partido para a defesa do diploma.

É uma discussão bizantina, essa. Inútil, na minha opinião, porque com diploma ou sem diploma novos jornalistas — pelo menos enquanto durarem os jornais — continuarão sendo recrutados nas faculdades e na prática nada deve mudar. Foi o que eu disse no primeiro post; continuo dizendo aqui.

Mas eu gosto de discussões inúteis.

O Sergio cometeu o mesmo erro da maioria dos defensores, na minha opinião. Condicionou a exigência do diploma à sobrevivência dos cursos superiores de jornalismo. E apareceu com um argumento curioso:

Só na escola de jornalismo você terá oportunidade de discutir criticamente o que se faz nos jornais, e preparar os garotos para enfrentar cacoetes e visões preconcebidas de jornal que só atendem ao interesse de quem manda na empresa

Talvez fosse o caso de perguntar: e o que se faz na blogoseira, por exemplo? Até mesmo aqui — em um blog que, a propósito, não tem nenhuma pretensão jornalística? Em toda a internet, há uma série de discussões sobre a mídia, com um nível crítico que aliás, não é comum na universidade em função dos seus compromissos. Ao contrário do que parece acreditar o Sergio, a universidade não é o único lugar onde se pode discutir algo. Se deu essa impressão até há algum tempo, foi porque não havia canais suficientes para essa discussão.

(Um pequeno parêntesis: é curioso como, na defesa de um princípio sagrado, a linguagem de pessoas normalmente ponderadas como o Sergio se torna parecida com a dos maluquinhos do PSTU ou do PSOL. “Algumas empresas adorariam ter um exército maior de mão de obra de reserva para expurgar mais facilmente das redações os jornalistas que aproveitaram direito seus cursos de jornalismo”, disse o Sergio. O problema é que as empresas já têm essa reserva. Chamam a ela “recém-formados”. Ou seja, o argumento “cripto-sindicalista” não vale mais.)

Talvez o problema desses argumentos esteja na sobrevalorização do curso de jornalismo. O Cássio pode ter dado a pista para entender por que o diploma, afinal, não é tão necessário assim: “Tentei buscar alguns exemplos de gente que fez bem seu trabalho sem diploma. Só achei em ciência sociais.”

Acho que dá para explicar por quê. Ciências humanas e sociais não exigem o nível de sistematização do aprendizado específico que, por exemplo, cursos como engenharia civil ou medicina exigem. É para isso que a universidade serve: para sistematizar e garantir o ensino e o aprendizado. E é por essa razão que para algumas profissões o diploma é necessário, como uma medida de proteção da sociedade. É uma proteção que não se exige do jornalista, em primeiro lugar, e que não esconde o fato de que qualquer pessoa pode aprender a ser jornalista sem passar por uma faculdade, como poderia, por exemplo, aprender economia, sociologia, história, letras, antropologia ou direito — até há relativamente pouco tempo não era necessário diploma para exercer a advocacia. E eu teria vergonha de me intitular “cientista político”. Um amigo político, e uma das pessoas cuja inteligência nessa área sempre respeitei em excesso, me dizia: “me mostre um cientista político e eu te mostro um picareta”.

De qualquer forma, toda e qualquer formação específica é recomendável (respondendo ao Cássio: eu não me desviei da pergunta. Mas já tinha dito no post que jornalistas formados são, em geral, mais bem qualificados que os antigos focas, por questões óbvias) — e é por isso que mesmo que a exigência do diploma caia, os novos jornalistas continuarão saindo dos bancos das universidades. O Sergio erra quando parece acreditar que, sem a obrigatoriedade do diploma, as escolas vão fechar. Para ser administrador, por exemplo, não é necessário diploma, e no entanto as escolas estão cheias (por sinal, se eu quisesse ser administrador faria um curso de engenharia, mas isso é outra discussão). Mas já que enveredamos no caminho das discussões sem sentido, vale a pena examinar a sobrevalorização do ensino superior de jornalismo mostrada aqui pelo Sergio.

Fui procurar a grade curricular da Cásper Líbero, que tem o mais antigo curso de jornalismo do país. Tirando as matérias encontráveis em qualquer curso universitário, eis a grade curricular específica:

  • SOCIOLOGIA GERAL E DA COMUNICAÇÃO
  • TEORIA DA COMUNICAÇÃO
  • FOTOJORNALISMO
  • TÉCNICAS E GÊNEROS JORNALÍSTICOS – JORNALISMO BÁSICO I, II e III
  • HISTÓRIA DA COMUNICAÇÃO
  • COMUNICAÇÃO COMPARADA
  • RADIOJORNALISMO I e II
  • COMPUTAÇÃO E PLANEJAMENTO GRÁFICO EM JORNALISMO
  • ADMINISTRAÇÃO DE PRODUTOS EDITORIAIS
  • JORNALISMO ESPECIALIZADO I e II
  • NOVAS TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO
  • TELEJORNALISMO I e II
  • TÉCNICA DE REDAÇÃO I e II
  • DESIGN GRÁFICO – JORNALISMO EM REVISTAS
  • ÉTICA JORNALÍSTICA
  • JORNALISMO OPINATIVO
  • PROJETOS EXPERIMENTAIS

Não é nada do outro mundo, e seguramente nada que justifique tanto ardor em sua defesa, ou os quatro anos gastos. No sistema de créditos, muitas dessas matérias poderiam entrar como matérias optativas — até porque um sujeito que ser diagramador, porque é essa a sua vocação e talvez o seu talento, não vai perder tempo com “jornalismo opinativo” (matéria estranha, essa) ou “radiojornalismo”. O Sergio que me desculpe, mas essa grade curricular não justifica uma defesa tão acalorada da obrigatoriedade do diploma.

Assim como o Cassio, eu não acho que jornalismo é apenas “escrever bem”. Isso somente é redação, e não consta que ainda haja muitos copidesques nos jornais brasileiros; quanto a opinião, o Sergio lembrou que jornais sempre tiveram esses espaços abertos. Por jornalismo eu entendo a reportagem, a fotografia e a produção do material jornalístico final, seja ele jornal, rádio, internet ou TV. E continuo assinando embaixo da definição de jornalismo pelo Claudio Abramo: é ver e explicar o que viu. Sobrevalorizar a formação acadêmica de jornalistas, como faz o Sergio Leo, é um erro. É isso que entra em discussão e é isso que eventualmente pode dispensar um diploma.

Voltando ao caso do Idelber, acho que o Sergio está errado. Eu acho que o Idelber daria um bom jornalista. O Sergio acha que não, citando a sua parcialidade.

O problema é que eu acho que o Idelber fez, na denúncia dos horrores cometidos por Israel em seu ataque à Palestina, bom jornalismo. Parcial? Sim. Como foi parcial a cobertura da imprensa brasileira, ignorando boa parte do que o Idelber mostrou e discutiu. Mesmo admitindo-se a agenda do Idelber, é necessário perguntar: ele mentiu? Ele trouxe informações novas? Acho que o Idelber foi o primeiro a falar, pelo menos em português, sobre as bombas de fósforo utilizadas por Israel, e mais que isso, contextualizou os ataques. Além disso, ele fez algo que o resto da imprensa brasileira não parece ter feito: mostrou o outro lado utilizando técnicas simples e que estavam ao alcance de qualquer um.

O Idelber fez isso no seu blog, sem nenhum compromisso com a idéia de “ouvir o outro lado”. Cá entre nós, seria muito fácil mostrar o lado israelense, usando as mesmas ferramentas. Mas o Idelber não tinha assumido esse compromisso. Seria diferente em um jornal, provavelmente.

(E o Hermenauta, hein? O sujeito é engenheiro. Mas quando se trata do Reinaldo Azevedo ou da Nariz Gelado, ele faz uma checagem de fatos de dar inveja a qualquer analista de jornal. Resumindo: muitas das coisas que se associa a jornalistas podem ser feitas por qualquer pessoa.)

O Sergio faz ainda uma pergunta:

Acabar com a obrigatoriedade do diploma não resolve nenhum dos problemas hoje apontados nos jornais. Cabe perguntar: a quem interessa, e por que o fim da exigência de formação específica universitária obrigatória para o jornalista?

Bem, foi o que eu disse desde o início: não muda nada, e a pergunta com jeito de teoria conspiratória soa meio fora de contexto. Mas eu acho que a lei tem um problema, o de excluir as eventuais exceções. Gente talentosa que cursou, sei lá, história e tarde nada descobre que tem vocação e talento para a reportagem. Assim como o Niemeyer citado pelo Sergio. Nesse caso, interessaria à sociedade.

E no fim das contas, a pergunta que nenhum dos defensores do diploma costuma responder é: se sem a exigência do diploma o mundo acaba, por que só acaba aqui no Brasil? Quer dizer que em outros países — e não vamos usar exemplos de sociedades mais avançadas, como os Estados Unidos, França ou Inglaterra; vamos pegar os da América do Sul, mesmo, bastante parecidos conosco — não existe jornalismo? Se o diploma é condição essencial para a sobrevivência do jornalismo, porque nesses outros países isso não acontece? Deixo aqui a deixa para os defensores finalmente responderem essa pergunta.

Bobagem em temperatura de fervura

“Presságio” é um dos piores filmes feitos por Hollywood nos últimos tempos.

Perto de “Presságio” “O Dia Depois de Amanhã” é um grande filme, “Eu Sou a Lenda” é um clássico e M. Night Shyamalan é Ingmar Bergman em “O Sétimo Selo”. “Presságio”, estrelado por Nicholas Cage, é uma grande bobagem criacionista, provavelmente escrita por alguém que cresceu assistindo aos programas de Jimmy Swaggart e Rex Hubbard nas manhãs de sábado e que tentou pegar uma caroninha nos filmes tipo The Mist ou aquele último do Shyamalan.

Oficialmente a sinopse do filme é a seguinte: astrofísico que perdeu a mulher há pouco tempo e cria sozinho o filho encontra um papel, escrito 50 anos atrás por uma menina que ouve vozes e colocado numa cápsula do tempo, em que estão previstas boa parte das grandes tragédias sofridas pelo mundo no último meio século. Ele decifra o código e tenta evitar que as últimas tragédias antecipadas ali aconteçam.

Essa é a versão que pessoas mal intencionadas passariam. Gente que não quer o seu bem e que, inconformada por terem caído nessa pegadinha, quer que você caia também. Mas o filme pode ser descrito de outra forma, mais verdadeira e mais caridosa com as pobres almas que porventura tenham a infelicidade de pensar em assisti-lo.

“Presságio” conta a história de um pé-frio que aonde vai leva destruição e morte. A desculpa para isso são as tais profecias — mas é mentira, o sujeito é que é agourento, mesmo. Depois que ele acha o papel, uns sujeitos com caras de fantasmas passam a seguir seu filho — um monte de tarados pedófilos que andam com umas pedrinhas pretas, talvez símbolo fálico disfarçado, eu não sei. Mas mesmo o medo do que possa vir a acontecer ao seu filho não o impede de causar acidentes onde passa: derruba um avião, descarrilha o metrô de Nova York — e o pior é que o desgraçado nunca morre. Em busca da verdade, ele vai atrás da filha da doidinha que escreveu as profecias meio século atrás, outra grande pé-frio que, pelo menos, tem a decência de morrer antes que todo mundo — mas que como praga se reproduz exponencialmente, deixa uma filha que também ouve vozes.

Nesse meio tempo Nicholas Cage faz o que faz melhor: aproveita cada chance disponível para ficar parado com as pernas abertas e com cara de sofredor meio atarantado.

Finalmente ele descobre que a última profecia se refere ao fim do mundo: uma explosão solar vai destruir o planeta e não há nada que se possa fazer para evitar isso. Então o mistério dos sujeitos com caras de fantasmas é revelado: eles são ETs que acompanham os escolhidos para serem salvos do fim do mundo. O filho de Cage e a filha da maluca são levados em uma nave espacial com seres de luz que parecem anjos para outro planeta, onde poderão recomeçar a humanidade. Levam consigo dois coelhinhos, símbolos pascais de fertilidade e indicativos do que aqueles dois meninos farão a partir dali. (Só por isso os autores do filme deveriam ser processados por pornografia infantil.)

Depois de entregar o filho aos ETs com jeito de anjos high-tech, Nicholas Cage vai para a casa dos pais, com quem não falava há anos, e enquanto grandes labaredas engolem Nova York eles se abraçam e morrem felizes e conformados, na melhor metáfora do churrasquinho familiar do fim de semana que o cinema já produziu.

A última cena, bastante onírica, mostra os dois meninos correndo em direção a uma grande árvore, a Árvore da Vida ou do Conhecimento, como preferir. Os coelhinhos já devem ter ficado cruzando em algum lugar, que coelho você sabe como é, né? Só não se sabe onde está o diabo da Serpente.

E aí o filme acaba e você vai correndo para a bilheteria, bater na moça que lhe vendeu o ingresso e exigir que aquela cachorra lhe devolva o dinheiro que você gastou.

Isso é tudo. Se você ficou com raiva por eu ter contado o final do filme, não fique. Eu prestei um serviço de utilidade pública, e um grande favor a você. Conhecendo o final, você pode se poupar o desprazer de assistir a uma imbecilidade confusa como essa. Em vez de gastar seu dinheiro nesse filme, vá às Lojas Americanas e compre um DVD qualquer de 12,99. Porque depois de ver tamanho amontoado de bobagens, a única lição que fica você provavelmente já sabia: use protetor solar.

Sobre o diploma para jornalistas

Vi num post compartilhado pelo Doni que o STF está julgando a continuidade ou não da Lei de Imprensa, esse pequeno absurdo jurídico perpetrado pela ditadura e que continua até hoje. É a lei que, entre outras coisas, tornou necessário o porte de diploma para o exercício do jornalismo.

Aqui e ali as pessoas se pronunciam contra ou a favor do diploma. O André Forastieri, por exemplo, usa o seu próprio exemplo para se posicionar contra. O Sergio Leo, por discussões antigas, eu sei que é a favor.

O grande problema dessa discussão é que ela é atrasada e ineficaz. Já há algum tempo, essa lei estúpida tinha sido tornada redundante pela própria evolução do capitalismo na Brasil. E isso não começou com a ascensão da internet e o surgimento, por enquanto ainda embrionário, do jornalismo cidadão. É um processo mais antigo e consistente, que vem da própria evolução da sociedade brasileira. Já há muito tempo esse aspecto da Lei de Imprensa havia sido superado pelas leis de mercado.

Mesmo assim sobram os equívocos na defesa da lei — e talvez não pudesse ser diferente, porque é difícil defender uma lei equivocada. Um dos mais comuns é justificar a exigência de diploma pelo caráter desejável do ensino superior de jornalismo. É um equívoco porque uma coisa não é sinônimo da outra. É tão simples que chega a doer: pode-se ter ensino universitário de jornalismo sem a exigência do diploma para o exercício da profissão — como aliás ocorre em praticamente o mundo inteiro. Um dos argumentos mais fracos em defesa dessa lei é aquele que prega que, sem a exigência do diploma, as escolas de jornalismo — e aqui não vai nenhum juízo de valor sobre sua qualidade — vão fechar.

A esta altura, não são exatamente comuns casos como o do Ancelmo Góis, que chegou ainda menino na redação da Gazeta de Sergipe e foi aprendendo com a prática e com a orientação de gente boa como Zé Rosa e o grande (e digo isso não apenas porque é um amigo) Ivan Valença. Os garotos hoje decidem que vão ser jornalistas muito antes de estarem aptos ao mercado de trabalho, e é natural que nesse meio tempo entrem em uma faculdade para irem aprendendo o que podem. Bem ou mal, o ensino universitário é hoje mais acessível do que há 40 anos, quando apenas 1% dos brasileiros chegava ao ensino superior.

Além disso, todo o discurso preparado em cima da questão do ensino universitário é exagerado. No fim das contas, reportagem é ver e contar o que viu. Não é preciso ler Deleuze de cabo a rabo para aprender como fazer isso — na verdade, e sem desmerecer (pelo menos não totalmente) o arcabouço teórico que os cursos de jornalismo utilizam para justificar sua existência, é a prática que forma os repórteres. Quanto à capacidade de interpretar e analisar a realidade, outra área do jornalismo, talvez um curso de história ou economia fosse tão válido quando o de jornalismo. Ou mais. E com franqueza: alguém tem visto no cotidiano dos jornais algo que dê ao menos um vislumbre de tanta erudição dos jornalistas?

Esse equívoco é generalizado. Numa discussão sobre mudanças no curso de jornalismo propostas pelo Ministro da Educação, o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, Sérgio Andrade, se perguntou: “Um advogado vai estudar cinco anos, se formar, estudar jornalismo por mais dois anos e entrar em uma redação para ganhar R$ 1,2 mil, subir morro e levar tapa de bandido?”

Não, não vai. Só vai ser jornalista quem acha que tem vocação para isso — e esses normalmente entram em um curso universitário aí pelos 17 anos de idade. E é esse o nível da competição que os jornalistas vão enfrentar. Pode-se citar como exemplo análogo a publicidade, atividade com algumas semelhanças com o jornalismo. Não se exige diploma nesse ramo. Mas hoje em dia não há mais novos publicitários que não tenham passado por um curso de publicidade. Não foi uma lei que fez isso: foi o tempo e o progresso. E a concorrência. Mercados costumam ser mais ágeis que leis, ainda mais quando empurradas goela abaixo de um povo por ditaduras. É isso que os defensores da obrigatoriedade do diploma não entendem, porque estão empenhados em cartorializar a sua profissão e defender de maneira boba uma lei que, em seu tempo, representou um golpe pesado na liberdade de expressão no país.

É simples: a Lei de Imprensa, nesse sentido, é redundante, obsoleta e desnecessária.

Ainda que se parta do princípio de que a Lei, em algum momento, defendeu a categoria dos jornalistas, seu grande problema hoje não é o que ela inclui e permite, é o que exclui e proíbe. Por exemplo — e usando o sujeito apenas como modelo hipotético, porque ele está bem satisfeito com sua cadeirinha lá em Nova Orleans —, não custa lembrar mais uma vez o trabalho brilhante que o Idelber Avelar, com formação em Letras, fez na cobertura dos ataques israelenses à Palestina, no final do ano passado. Pela inteligência, pela capacidade de análise, pela cultura geral, o Idelber seria certamente melhor jornalista do que 80% dos repórteres brasileiros — e duvido que qualquer defensor da Lei que conheça o cotidiano das redações diga o contrário. No entanto pessoas como ele não podem ser jornalistas. A essa altura do campeonato, isso não deveria mais importar. Do ponto de vista geral da profissão, não faz diferença se uma pessoa talentosa e capaz se torna jornalista sem ter passado por um curso.

Além de tudo isso, a Lei de Imprensa sempre foi uma grande estupidez. Pela sua origem ditatorial, para começar; pela sua singularidade em um mundo que não costuma exigir diploma de jornalismo porque não vê necessidade; pela cartorialização de uma atividade econômica; e pela sua sobrevalorização — diploma não é prêmio para ninguém: é uma defesa da sociedade e, sendo o mais sincero possível, algo desnecessário na atividade jornalística. Diploma é fundamental para médicos e engenheiros, sob cuja responsabilidade estão diretamente as vidas de pessoas, e não para repórteres que não vão publicar nada sem que seus editores e patrões permitam. A fraqueza desse tipo de argumento sempre esbarrou na inexigibilidade de diploma para outras funções importantes em jornais, revistas e TVs, como fotógrafos, cinegrafistas e diagramadores. Mas repórteres, talvez reflexo do bacharelismo que é um traço típico brasileiro, sempre se viram acima deles, mesmo quando a evolução da indústria jornalística aumentou a importância desses outros setores.

Há outros aspectos curiosos nas defesas que se fazia da exigibilidade do diploma. Sindicalistas me diziam que a exigência de diploma garantia melhores salários. Era mentira. Basta ver os salários de publicitários, que mesmo sem a exigência de diploma sempre foram consistentemente mais bem pagos que jornalistas. Além disso, jornalistas valorizavam sua própria profissão falando de qualidade e coisa e tal — mas o diploma, por si só, nunca garantiu isso. O Última Hora, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo formados por não-graduados, entre os anos 50 e 60, tiveram mais importância na história da imprensa brasileira do que qualquer um posterior à lei tão defendida por jornalistas. Claudio Abramo não era formado em jornalismo. Nem Mino Carta. Nem Alberto Dines. Nem Carlos Castelo Branco. Nem… Ah, já deu para entender.

Outro problema da lei é que ela já há muito tempo não garante vantagens para jornalistas, deixando mais claro o que sempre foi, um apêndice esdrúxulo de um regime de exceção. Não há reserva de mercado nem garantia de salários — nem mesmo de, vá lá, “qualidade” — quando acampadas às portas de cada redação neste país há legiões de recém-formados topando qualquer negócio em troca de uma primeira chance. Em Aracaju as universidades despejam, por ano, mais jornalistas do que há empregados em redações. Não deve ser diferente no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Claro que há o piso salarial dos jornalistas, mas se para conseguir isso um sindicato precisa de uma lei específica, então as coisas estão piores do que eu sempre imaginei. Agora só falta condicionarem a própria existência do sindicato a uma lei que os proteja. A múmia de Lênin, coitada, está se revirando em seu mausoléu.

Aliado a tudo isso, há a decadência do próprio jornalismo, em um processo que, agora sim, a internet acelerou. A grande diferença é que hoje a sociedade tem mais meios para fiscalizá-lo e corrigi-lo. E são esses meios que talvez estejam condenando a indústria jornalística ao seu fim.

É diante desse cenário que o STF resolve discutir uma lei que não faz sentido. Se decidir contra a exigência do diploma para o exercício do jornalismo, tomará uma decisão atrasada que não vai mudar em absolutamente nada a rotina das redações. A imprensa vai continuar a dar preferência a jornalistas formados porque eles em geral são mais bem qualificados para a profissão. E vai continuar enfrentando o possível fim de sua era, que começou há cerca de 150 anos e que agora parece estar sendo superada. O jornalismo como o conhecemos enfrenta hoje problemas muito maiores que a permanência ou não de uma lei que nasceu errada, e que hoje sequer funciona.

Sobre as manifestações em Londres

Durante toda a última semana, os tablóides de Londres — especialmente aqueles dados de graça no metrô, como o London Paper e o London Lite — se esforçaram ao máximo para criar um clima de caos na cidade, referente aos protestos anunciados durante a reunião de cúpula do G20, hoje.

Se referiam aos protestantes como anarquistas, anteviam tumultos e violência. As tentativas de instaurar um clima de terror chegaram ao ponto de interpretar literalmente as provocações — nitidamente exageradas, com ameaças demorte a banqueiros e etc. — de um professor universitário que faz parte de um grupo de ativistas chamado G20 Meltdown como gravíssimas ameaças. Londres é uma cidade que ainda não superou completamente os atentados terroristas de alguns anos atrás no metrô; a atitude dos jornais foi irresponsável e canalha.

No entanto a cidade, como qualquer cidade grande, seguia normalmente a sua vida.

Nos pasquins, o encontro dividia as atenções com a cobertura da morte de uma tal de Jade, que participou de um Big Brother, saiu depois de ter dito uma frase racista (como me informou a Carol) e então descobriu que tinha câncer, tornando-se uma espécie de namoradinha da Inglaterra e transformando os ingleses em uma nação de necrófilos; com Madonna querendo adotar uma criança em Malawi; e com Jaqui Smith, ministra que pagou umas contas de filmes pornô na TV por assinatura com dinheiro público. Enquanto isso, Gordon Brown tentava passar uma imagem de força dizendo que seria capaz de convencer os outros países a regularem melhor o sistema financeiro internacional, como se países como o Brasil precisassem disso e como se o Partido Trabalhista não estivesse no poder há 13 anos, sempre apoiando tudo o que Bush fazia.

Goste-se ou não, esses pasquins têm uma grande influência sobre a formação de opinião na cidade. Em resposta ao clima que tentaram criar, o prefeito de Londres, em entrevista à BBC anteontem, se viu forçado a reafirmar que a polícia de Londres não iria tolerar violência, mesmo deixando claro que esperava que as manifestações fossem pacíficas. Bancos e lojas no centro da cidade colocaram tapumes em suas portas e janelas — e a área em torno do Banco da Inglaterra, de repente, ficou parecendo Salvador no carnaval.

Um dos pontos de concentração seria a Torre de Londres. No entando, quando cheguei lá me senti transportado 40 anos no tempo e no espaço: uns maluquinhos dançavam ao som de Bob Marley, parecendo muito distantes de qualquer coisa relacionada ao credit crunch ou à globalização. Tudo aquilo parecia Haight-Ashbury no Verão do Amor.

Na verdade eu tinha chegado atrasado: os manifestantes já tinham ido para a região em volta do Banco da Inglaterra — provavelmente a região mais feia da cidade, a que mais lembra São Paulo. Quando cheguei lá, três fotógrafos editando suas fotos editavam suas fotos em computadores, numa das tantas Starbucks das proximidades. A manifestação já lhes tinha dado um bom material, mesmo apenas no seu início. Eram fotos de gente alegre, tipos que caberiam bem numa festa a fantasia.

A primeira coisa que se notava era o barulho dos dois helicópteros que se encontravam parados sobre área do Bank of England, filmando a manifestação e garantindo o trabalho dos policiais. Um barulho ininterrupto, urgente, que ajudava a criar um certo clima de tensão aliado ao gigantesco número de policiais que isolavam a entrada do banco.

No entanto a multidão parecia alheia a tudo isso. O que se via era um grande desfile de pessoas que estavam ali para se divertir e, se pudesse, marcar uma posição que não pareciam saber bem qual era. Mais que manifestação política, aquilo era no máximo um desabafo bem-humorado.

Uma equipe da NHK japonesa entrevistava uns garotos que carregavam uma bandeira da Itália com a incrição “Morte al capitalismo“. Lembrei dos domingos à noite e passei por trás dos entrevistados fazendo aquela dancinha do Pânico que fazia a tristeza da TV Globo. Um velhinho bêbado dançava com um punk. Meninos e meninas com roupas esquisitas e chamativas, e cabelo talvez ainda mais, passeavam para lá e para cá. Músicos tocavam jazz em uma esquina; na outra, um grupo cantava uma antiga música folk de protesto, dizendo não ia matar ninguém, enquanto se viam às voltas com um bêbado que, dançando entre eles e as câmeras fotográficas, atrapalhava a sua performance. Um garoto passava com a máscara de “V de Vingança” e uma camisa com uma foto de Che Guevara. Até Jesus Cristo apareceu por lá, prtestando contra os mercadores do templo — qer dizer, contra os agiotas.

E em meio a tudo isso, as pessoas tiravam fotografias. Talvez seja essa a mais forte impressão que fica da manifestação: esse foi um acontecimento absolutamente midiático. Praticamente todos estavam tirando fotos, com celulares, máquinas point and shoot como a minha e até mesmo máquinas SLR semi-profissionais. Tudo isso sem contar jornalistas. Todos queriam registrar a festa e a sua presença ali. A manifestação era, na verdade, um grande desfile.

Desde o início dava para perceber que havia algo de bizarro na manifestação. Em uma das cidades mais multiculturais do mundo, com pessoas vindas de praticamente todos os continentes — há uma exuberância de sotaques e línguas em toda cidade, normalmente, mas isso era ainda mais visível ali –, pessoas reclamando contra a globalização parecem fora de lugar. Também era curioso ver os punks com tênis da Van’s de Carnaby Street — não, ao menos não tinha ninguém usando nada da Regent’s Street — reclamando do capitalismo. Um deles brandia um cartaz: “Dear gov, get the hell out of the economy” — como se grande parte do problema não fosse justamente a ausência do Estado nos negócios dos banqueiros. De modo geral, a manifestação carecia de sentido, de consistência política.

Perguntei a uma policial se a manifestação estava sendo pacífica. Ela disse que sim. E imaginei que os policiais iriam sair dali decepcionados, sem ter batido em ninguém. Afinal, eu sou brasileiro e estou acostumado a isso.

Mas a coisas não continuaram nesse clima de parada gay durante muito tempo. De repente, pessoas começaram a ser presas, como um japonês com uma câmera de vídeo profissional. (Pude tirar as fotos que quis da prisão; em nenhum momento os policiais fizeram algum gesto para que parássemos. A única coisa que um deles pediu foi que desobstruíssemos a passagem do beco onde estávamos.) Os ânimos estavam começando a se alterar. Punks e anarquistas, mais organizados e motivados, começaram a provocar os policiais, a forçar um confronto que a maioria das pessoas ali não queria.

Eu já estava indo embora quando a multidão começou a gritar, como em uma palavra de ordem: “Shame on you, shame on you, shame on you!” Me voltei para ver um rapaz correndo do centro da multidão, amparado pelos amigos. Sua cabeça sangrava. Era o sinal de que a festa estava acabando.

E acabou. Logo depois começaram os atos de vandalismo. Alguns confrontos isolados entre manifestantes e polícia, e uns poucos marginais que depredaram e saquearam o Bank of Scotland — que todos já sabiam ser o alvo preferencial dos manifestantes. No entanto, a se acreditar na cobertura da BBC e do único jornal a circular até agora, o Evening Standard, o caos foi generalizado e se instalou por toda a Londres.

Se não é uma impressão errada da manifestação, essa abordagem é, no mínimo, um superdimensionamento de seus aspectos negativos. Para a maior parte dos manifestantes, esses acontecimentos não podiam sequer se vistos. Faltou também dizer que a cidade continuou seu ritmo como se nada estivesse acontecendo. Que duas ou três ruas depois do Bank of England, era impossível perceber que havia uma manifestação nas proximidades. Que tudo aquilo foi pequeno, e que a maior parte das pessoas estava ali se divertindo.

Mas a cobertura da imprensa não foi apenas negativa. Há algumas qualidades. Eu estava saindo da manifestação e indo em direção ao metrô quando vi o Evening Standard, fresquinho: trazia na capa uma foto de um manifestante no chão. A manifestação estava apenas começando. Para quem está acostumado ao ritmo lento da cobertura jornalística brasileira, foi um choque. Esse tipo de rapidez, de urgência, não existe no Brasil.

Assim que eu tiver tempo e um computador decente — ou seja, quando voltar para casa — eu coloco as fotos da manifestação aqui ou no Flickr.