Vendo um comentário antigo do Leonardo Bernardes aqui, fico surpreso ao ver que pareço não gostar do passado.
Porque sou a pessoa mais nostálgica que eu conheço. Eu gosto de lembrar de tempos idos e tenho boa memória para essas coisas. E a internet tornou tudo isso muito mais fácil. Antes dela, eu era a única pessoa que gostava de “Daniel Boone”, a única que lembrava de um seriado chamado “Joe, o Fugitivo”. A internet aproximou as memórias, universalizou lembranças individuais, tornou o passado um pouco mais próximo.
Aqui você encontra até a programação diária de TVs nos anos 70; fotos antigas da sua cidade cobrindo todo o século passado, tempos que você viu ou não; no YouTube, encontra registros em vídeo ou áudio de virtualmente tudo o que foi exibido ao longo da história da TV. Intervalo comercial do horário nobre da Globo no início dos anos 80? Está lá.
A internet corrigiu muitas de minhas memórias, e tornou outras mais específicas. Agora esse tipo de coisa chegou também à TV porque os canais precisam de programação, e é tão estranho, mas me peguei assistindo ao Globo de Ouro e ao Cassino do Chacrinha nesses dias.
São coisas de 25 anos atrás, um quarto de século. Em outros tempos essas coisas tão velhas seriam esquecidas, pelo bem da humanidade; mas a TV e a internet não permitem que velhos pecados sejam perdoados e não permitem que você enterre os malfeitos do passado.
No Globo de Ouro a gente vê Fábio Júnior e Fagner novinhos, Lulu Santos em sua melhor época, Elba Ramalho dançando fricote, José Augusto — alguém lembra de José Augusto? Os anos 80 foram dele —, Kátia voltando dos mortos que ela não viu, Rosana como uma deusa absoluta das rádios, e o rock brasileiro em seu melhor momento, garimpando um espacinho aqui, outro ali nas paradas de sucesso.
Vê também que rock era coisa de menino rico, então como agora. É engraçado ver o Humberto Gessinger, em plenos anos 80 em que a guitarra Giannini ainda era rainha (a menos, claro, que você não tivesse nenhum resquício de amor próprio e fosse o dono envergonhado de uma Tonante), com um baixo Rickenbacker 4003 — caríssimo até hoje. É olhar as caras de quem fazia rock, numa época em que ele tinha se transformado na música unificadora da juventude brasileira, e notar as fisionomias de meninos que nasceram em meio à fartura — tão diferentes dos dançarinos e backing vocals da Banda Reflexu’s e dos integrantes do Placa Luminosa, uma típica banda de baile.
É chance de rever também a moda, tadinha. Eu não gostava na época — aquelas calças folgadonas (o nome era bag?), apertadas na cintura e nos calcanhares; camisas de manga comprida abotoadas até o pescoço; as moças com saias balonê e penteados de poodle malcriado; ombreiras quase universais fazendo lembrar os zoot suits dos anos 40; eram tempos estranhos. A moda dos anos 80 era brega, era feia, era um atentado aos olhos e ao bom gosto; mas comparando com o que se vê nas ruas neste século, é fácil perceber que ao mesmo tempo foi o último momento em que tentou ser ousada, mesmo que isso não tenha dado certo.
Pior que o Globo de Ouro, no entanto, era o Cassino do Chacrinha.
Rever o Cassino do Chacrinha me faz ter a certeza de que eu estava certo e os críticos de comunicação que falam maravilhas de Abelardo Barbosa estavam errados: pelo menos nos anos 80, o Chacrinha era lixo comercial, sem nenhum aspecto redentor. Nenhum. Chacrinha era lixo, ponto, uma caricatura de algo que talvez um dia tenha sido engraçado ou criativo. E eu nem mesmo me refiro ao jabá óbvio, aos acordos escusos (placas fazendo propaganda de Sarney e do governo do Maranhão, por exemplo). Me refiro ao tipo de programa que ele fazia, medíocre, rasteiro, pobre. Talvez o Chacrinha tenha sido revolucionário no rádio, ou no início da TV; mas em seu final, aquele que acompanhei, ele era apenas ruim. Aquilo não era um bom programa. Não era sequer uma boa estética. Além disso, o Globo de Ouro parecia ser mais controlado no jabá do que o Chacrinha. Talvez seja uma questão de ovo ou galinha, mas as músicas que apareciam ali, com raríssimas exceções, eram realmente as que tocavam no rádio. As do Chacrinha eram as que iam tocar.
Eu não via nenhum desses programas naquela época. Normalmente estava na rua, militando no grêmio estudantil ou na União da Juventude Socialista ou correndo atrás de alguma moça dadivosa o bastante para acabar com o meu sofrimento, e que nunca encontrava. Mas se estava em casa, eu não ia ver aquilo. Tinha mais o que fazer. O Globo de Ouro era apenas um repositório de música ruim a que eu assistia raramente; o Chacrinha, nem isso. Hoje vejo essas coisas com um sorriso nos lábios; lembro delas, e uma sensação de nostalgia é inevitável. Mas não por elas: por mim.
As coisas, no entanto, não são tão simples. Por mais que me doa admitir o que vou dizer agora, por mais que eu diga isso com o coração confrangido, a impressão é de que a música popular brasileira — a verdadeiramente popular, não a música de elite que sempre existiu — daquela época era melhor que a de hoje. Era mais variada, ao menos, e bebia em mais fontes. Se hoje a música brasileira está cada vez mais uniformizada, se o que chamam de sertanejo é basicamente música pop cantada em falsete e é cada vez menos diferente do resto da programação, se a música baiana degringolou no lixo que se ouve em trios elétricos e em micaretas, na época existia variedade. Do rock ao forró, do brega ao infantil, do axé à música romântica. A riqueza que sempre se apregoou acerca da música brasileira estava lá. Não está mais.
Imagino como era tão melhor para os artistas aqueles tempos. Devia ser mais fácil ganhar dinheiro. Hoje, sem o Chacrinha para ditar a programação das rádios, a coisa é mais complicada.
Mas não é só para eles. É também para nós, os queridos ouvintes, os caros telespectadores. Hoje, assistindo ao Globo de Ouro, eu consigo lembrar de praticamente todas as músicas. Tenho dúvidas de que lembraria de algo semelhante — músicas de que não gostava e que não ouvia intencionalmente — daqui a outro quarto de século (ainda que estivesse vivo, claro). Porque mesmo que eu não assistisse àquelas desgraças, essas músicas estavam no ar, em todo lugar. Era um mundo mais simples e menos fragmentado. Não era melhor; mas às vezes até chega a parecer que era.