Luís Alberto se espatifou contra a marquise do Elevador Lacerda

Há três dias fez quarenta anos que Luís Alberto Sampaio Tranquile se suicidou.

Luís Alberto morava nos Barris, no número 9 da rua Dionísio Cerqueira, uma rua que, esquecida pelo progresso, ainda hoje é margeada por edifícios baixos dos anos 50 e 60 e casas em estilo art déco, quase centenárias, de uma classe média tranquila que já não existe mais. A casa onde ele morava talvez seja uma daquelas dos anos 30 que ainda sobrevivem na rua, talvez seja uma que está para alugar.

No comecinho da manhã daquele 27 de janeiro de 1979, Luís Alberto se aproximou da amurada do lado direito do Elevador Lacerda. A cidade ainda acordava, ele não pôde tomar um sorvete n’A Cubana. Dificilmente tomaria, é de se imaginar; Luís Alberto provavelmente havia passado a noite em claro, remoendo seu desespero, vendo apenas uma única saída para aquilo que o afligia.

Era mais ou menos 7:45 quando Luís Alberto se jogou da amurada e se espatifou, intermináveis segundos depois, contra a marquise do elevador na praça Cayru.

Luís Alberto morreu como o capitão da areia Sem-Pernas. Mas há uma diferença, definida pelo talento das pessoas que narraram as suas mortes. É belo o fim de Sem-Pernas. Ele “ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.” A morte de Sem-Pernas é antes de tudo um ato de rebeldia e de orgulho, ainda que amargo, e então o aleijado humilhado, mesquinho e cruel finalmente se torna grande. Luís Alberto teve destino diferente. Dele não se fala nada, apenas que se espatifou na marquise do elevador, uns tantos metros abaixo, na praça Cayru. Podemos adivinhar que ele chegou em silêncio à amurada, olhou para baixo durante tantos e tantos minutos, provavelmente tentando se convencer de que a decisão que tomara era a mais acertada, de que não havia outro jeito — talvez até tenha tentado se se libertar do langor mórbido da perspectiva da morte, do fim de tudo, de todos os problemas, tentando buscar em vão uma outra saída. Ficamos sabendo também que o delegado de plantão iria procurar os familiares.

Mas a principal diferença talvez seja o detalhe bobo de Luís Alberto ter ficado por uma hora ali, espatifado na marquise do elevador. Mesmo depois de morto, Luís Alberto estava sozinho e desamparado. A salvo dos curiosos amontoados na praça Cayru, mas sob os olhares dos populares que se amontoavam no paço municipal, embora talvez não tenham sido poucos aqueles que, sem nada para fazer na Cidade Alta, se dispuseram a pagar uns poucos centavos apenas para se debruçar na amurada e ver com seus próprios olhos o cadáver de Luís Alberto.

Luís Alberto Sampaio Tranquile tinha 28 anos no dia 27 de janeiro de 1979. Eu queria poder dizer que ele viveu mais tempo morto do que vivo, mas não posso.

Para viver mais tempo morto do que vivo é preciso que você permaneça na memória de alguém. De pessoas que contem histórias da sua vida, da impressão que você deixou nelas, casos bobos ou não que garantem que enquanto alguém lembrar deles, você continua vivo de alguma forma, e sua existência teve algum sentido.

A esta altura os pais de Luís Alberto já morreram. Na internet não há nenhuma família Sampaio Tranquile; então não é absurdo supor que ele não deixou irmãos, não deixou filhos. É possível que os Sampaio Tranquile tenham se espatifado com ele na marquise do Elevador Lacerda. Pelo sobrenome, Luís Alberto era filho ou neto de um dos tantos espanhóis que faziam da baiana a maior colônia espanhola do país, imigrantes como seu Manolo que tinha a melhor padaria da Graça naquela época e alguns casarões na Saúde. Mas sua família não prosperou, não existe nem na internet, e talvez tenha sido ali, espatifado na marquise do Elevador Lacerda, que Luís Alberto matou a si próprio, sim, mas matou também os Sampaio Tranquile.

E assim, tudo o que se pode fazer a respeito de Luís Alberto é imaginar a razão do seu suicídio. Motivos há ao gosto do freguês.

Talvez uma moça bonita, moça vulgar de Cajazeiras e um jeito de olhar fazendo promessas indizíveis, tivesse feito Luís Alberto perder a cabeça, largar tudo para se encaixar entre suas pernas, e agora ela tinha se cansado dele e lhe mandado ir embora e agora não valia mais a pena viver — mas não, talvez não seja cinismo demais achar que isso não seria jamais motivo para suicídio; é apenas motivo para uns desejos de morrer de mentirinha por uns tempos, para lágrimas que vão diminuindo à medida que os dias passam, até a próxima moça vulgar lhe sorrir novamente em um oferecimento mudo.

Talvez aquele cafetão da 28 de Dezembro estivesse ameaçando cobrar à sua família suas dívidas, e Luís Alberto sabia que sua mãe desmaiaria e seu pai o expulsaria de casa, e não, eles não mereciam a vergonha e o prejuízo, era melhor pular.

Talvez Luís Alberto tivesse dívidas de jogo e estivessem ameaçando quebrar suas pernas; talvez tivesse perdido tudo ali, no cassino que funcionava nos fundos da padaria de seu Manolo na Euclides da Cunha, e era uma dívida tão grande que ele jamais poderia pagar com seu salário de comerciário.

Talvez a sua colega comerciária estivesse grávida, e Luís Alberto via, naquela barriga a cada dia mais redonda, o fim de todos os seus sonhos — largar aquele emprego numa loja de sulanca da Baixa dos Sapateiros, estudar, ser alguém na vida, fazer valer a pena o esforço dos seus ancestrais imigrantes. Talvez a perspectiva de viver com a mulher que não amava e um filho indesejado, num quarto qualquer do Maciel de Baixo, o deixasse apavorado e certo de que qualquer destino era melhor do que aquele.

Ou talvez não, talvez naquela manhã ele tenha olhado para o filho que dormia no berço improvisado, saciado pelos peitos flácidos da mulher que Luís Alberto nunca tinha amado, e decidido que nada daquilo valia a pena; e a angústia que tornava pesado o seu viver desapareceria quando ele estivesse voando livre sobre a Ladeira da Montanha.

Talvez alguém tivesse descoberto que Luís Alberto gostava de rapazes, e pedia dinheiro para não contar para os seus pais; e ao fechar a loja na véspera daquele dia 29 — uma das tantas na rua Chile, então ainda resistindo galhardamente à decadência trazida pelo shopping da qual jamais se recuperaria — Luís Alberto não foi para casa como fazia todos os dias, vagou pelo centro onde as putas substituíam os comerciários como ele, foi para o Pax procurar um último rapaz, e esperou o sol nascer para encontrar o seu destino e se ver livre de sua dor.

O endereço à rua Dionísio Cerqueira, 9 torna improvável um dos meu cenários favoritos, o do rapaz que naquela manhã beijou pela última vez o seu filho bebê que dormia numa esteira, entre ele e sua mulher, num quarto de um cortiço qualquer na Visconde de Ouro Preto, e foi andando até o elevador Lacerda com a certeza de que a vida de todos estaria melhor sem ele.

Seja qual for a razão, quando se suicidou Luís Alberto não mereceu mais que uma matéria no alto da página 14 d’A Tarde, página par. Sua morte foi talvez um pouco menos insignificante do que sua vida. Sua grande proeza, no fim das contas, sua única reivindicação à imortalidade foi ter sido o primeiro suicida a se espatifar contra a marquise do Elevador Lacerda naquele ano da graça de 1979, Ano Internacional da Infância, ano da queda do Skylab — lembranças que, assim como Luís Alberto, se espatifaram no esquecimento.

Gourmet

A única coisa mais chata que essa nova subcultura “gourmet” é reclamar dela, admito.

Mas eu não tenho problemas em ser chato, e é quase impossível controlar minha profunda antipatia a essa moda, quase tão irritante quanto ver alguém chamar um gato ou cachorro de “serumaninho” ou “filhinho”. Uma porra de um gato.

Cresci achando que “gourmet” era substantivo. Transformá-lo em adjetivo, tascar um “gourmet” depois de qualquer palavra — “hambúrguer gourmet”, “self-service gourmet”, “podrão da esquina gourmet” — é, para mim, apenas garantia de comida pretensiosa com ágio excessivo, nada mais que isso. Ninguém jamais viu um “El Bulli Gourmet”, ou um “Ducasse Gourmet”. Eu poderia encerrar meus argumentos aí. E encerro, porque o que vem a seguir é basicamente a eterna arenga de um velho cansado da estupidez que tem virado a norma nos dias de hoje.

Essa coisa de gourmet é, em essência, contraditória: é profundamente antidemocrática, mas é também resultado de uma certa democratização. A princípio, me parece a convergência de dois fatores curiosos. Um é a proliferação dos cursos superiores de gastronomia, que fez com que um bocado de gente sem talento real para a coisa, como sói acontecer em qualquer profissão (e eu sou a prova viva disso), precise ganhar a vida de maneira digna, que pelo menos pague os dinheiros gastos nos anos de curso — embora, sem querer desmerecer ninguém, mas pouco me lixando se desmereço, me pareça desaforo alguém passar anos estudando técnicas gastronômicas para depois ganhar a vida como pouco mais que chapeiro de luxo. O outro, e certamente o mais importante, é a necessidade de uma sociedade perdida no labirinto de um interminável fin de siécle, cujo hedonismo crescente nunca deixa de me espantar, de se diferenciar individualmente através do que tem ou daquilo a que aspira ter. Comer todo mundo come; mas só uns poucos comem diferente, porque podem pagar mais por isso — e esse pagar é a garantia de superioridade da bobagem que estão comendo, da “experiência”.

Obviamente não posso fazer nada quanto a esse estado de coisas. É inútil e uma implicância extremamente pessoal. Junto minha antipatia às idiossincrasias daqueles que não gostam de, sei lá, Beatles ou suco de mangaba: reclamar é ainda mais chato, e no fundo não interessa a ninguém, ou pelo menos não interessava antes que virasse moda doirar a própria vida medíocre no Facebook ou no Instagram: o idílio com o marido que trai você, a viagem cuja foto no Instagram esconde a bolsinha da CVC, o filho horroroso que você diz ser lindo (você quer acreditar nos comentários, uma sucessão de lindo lindo lindo, sem maiúsculas nem pontos; saiba que eles estão mentindo) — tudo isso está umbilicalmente ligado a essa coisa de gourmetização.

O que posso fazer é me recusar, por princípio, a fazer algumas coisas.

Eu não como hambúrguer gourmet, ponto. Não como porque a ideia de hambúrguer gourmet é um contrassenso para mim, uma confissão abjeta do fracasso de uma civilização em processo acelerado de decadência. O hambúrguer foi inventado para tornar mais palatável e macia uma carne dura mas saborosa, e é coisa para ser combinada de maneira rápida e simples; na prática isso é, ou deveria ser, antitético à ideia de comer realmente bem, que pressupõe uma elaboração e riqueza de sabores impossível de ser alcançada por aquela mistura simples de pão, carne e otras cositas más em uma mordida só.

É uma razão diferente da que me faz não comer macarrão na rua — eu faço melhor, quase sempre —, e diferente também daquela que me faz olhar com reservas esse pessoal que tenta reinventar a comida do cotidiano, aquela comida entrincheirada na cultura e tradição de um povo e feita de maneira simples, quase automática, por quem não precisa sobrevalorizar o que faz com aquela conversa intragável e canalha de que “cozinhar é um ato de amor”. Por exemplo, há poucas coisas mais gostosas que sarapatel, do jeito que é feito. Inventar sobre isso é chover no molhado, e o resultado por ser justamente o contrário do que se pretendia.

Claro que em tese — embora eu duvide muito— seria possível fazer isso, reduzir o sarapatel à sua eventual essência (para entender melhor o que quero dizer, é só lembrar da ratatouille servida ao crítico gastronômico no desenho homônimo). Mas para isso é preciso um talento que as pessoas, em sua virtualmente absoluta totalidade, não têm. O resultado é garam masala na rabada.

Eu já vi hambúrguer de filé mignon, e custei a acreditar no que via. Porque o filé não é, nem de longe, a carne mais saborosa de um pobre boi. É a mais macia, apenas, e por isso os franceses inventaram tantos molhos para acompanhá-la. Um hambúrguer de filé mignon é uma confissão de estupidez como poucas outras no mundo culinário. Maior só a daquele infeliz que colocou pó de ouro em seus pratos, um sujeito que certamente merece os mais dantescos castigos que o inferno pode oferecer.

Da mesma forma, acho tão estranho essa mania de “degustar” cerveja cara. O sujeito compra uma cerveja de 50 reais, 300 ml apenas. Não. Está errado. Que me desculpem os aficcionados, mas isso é um desrespeito à cerveja, à sua história e à sua finalidade.

Cerveja é bebida de quantidade. É bebida social, feita para beber em grupo, em grandes quantidades. Você fica bêbado com uma cerveja? Se não, não vale a pena empurrar 60 reais numa cerveja artesanal feita por monges trapistas em Connard de Poche-Pleine, só porque é a última explosão da moda. Se vai me dizer que bebe apenas pelo gosto — por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado. Mais degradante que isso, só cerveja sem álcool.

Mas a cultura gourmet faz você sentir que precisa comprar coisas caras, singulares — mesmo que você precise fingir não perceber o paradoxo da singularidade na cultura de massa. Mais que isso, é a disposição em ser roubado que me incomoda. Tem pouca coisa como uma Guinness tirada na hora, ou uma Urquell preparando o seu apetite para seu joelho de porco que vem chegando. Não porque são boas, apenas, mas também porque são baratas em seus respectivos buracos. E no entanto as pessoas se esforçam para mostrar que estão bebendo uma cerveja cara. Estão se esforçando para serem otários.

Acontece algo semelhante com o vinho. Eu gosto muito de vinho. Muito, mesmo. Bebo mais que a média brasileira, o que não é grande coisa: no Brasil se bebe dois litros de vinho por cabeça ao ano, enquanto os padres do Vaticano bebem mais de 54 — embora não se saiba quanto disso é destinado a embebedar garotinhos inocentes. O desnível é muito maior porque a lista brasileira provavelmente inclui clássicos imorredouros como Dom Bosco, Canção e Sangue de Boi; se se restringir a vinhos minimamente decentes deve dar menos de uma garrafa por pessoa, e posso apostar que o grande campeão é aquele Reservado Concha y Toro — contra o qual, a propósito, eu não tenho nada. Só para comparar, cada brasileiro bebe 82 litros de cerveja por ano.

Eu bebia mais que os padres do Vaticano, e olha que nem gosto de menininhos. E sei que com 50 reais você compra uma garrafa de um vinho honesto, e com uns 100 compra um bem decente, naqueles dias em que você se sente muito rico. É o bastante para mim. Ainda é caro, e pode ser ainda mais — aqui você compra por 800 reais um bom Brunello di Montalcino que sai lá fora por uns 50 euros —, mas é o mercado, fazer o quê. No limite, não nego que se tivesse dinheiro eu seria capaz, uma vez na vida, de derramar 4 mil euros num Chateau Pétrus — se 4 mil euros equivalessem a uns 200 reais para mim —, apenas para saber por que é tão caro. Mas jamais, jamais, jamais jogaria fora 20 mil euros para comprar um Romanée-Conti, porque não acredito que alguém tenha papilas suficiente no diacho da boca para sentir a diferença desses 15 mil tostões. A cultura gourmet, no entanto, é a eterna busca pelo Romanée-Conti, e cada um vai se contentando com o mais próximo a que pode chegar dele, uma proximidade medida em reais.

É isso que essa conversa de “gourmet” significa para mim. É apenas um desvirtuamento do que significa prazer, comer e beber bem. Comida tem apenas duas funções reais: encher a barriga e, se possível, dar algum prazer sensorial. Vinho também, com o prazer sensorial tomando a dianteira. Mas a cultura gourmet os eleva acima disso, e por isso, para esse pessoal, qualquer chianti de 400 reais é por definição melhor que um portuga de 60, não interessa quais sejam.

É isso. Agora que as definições mudaram, que gourmet deixou de ser um sujeito que gosta de comer bem e variadamente, a palavra para mim passou a definir algo diferente: aquele sujeito mais interessado em espalhar aos quatro ventos que dormiu com uma mulher do que em fazer safadeza com ela.

Ser turista em Salvador

De vez em quando dá umas vontades esquisitas, e dia desses deu uma mais esquisita ainda, a de ser turista na Bahia. De pegar um grupo de gente e sair me oferecendo a todo vendedor de souvenirs e badulaques e informações meia-boca, donzela fácil para os tantos e tantos cafetões da baianidade.

O mais perto que cheguei disso foi há muito tempo. Adolescente, passava pelo Pelourinho e via os grupos de turistas ouvindo atentamente um guia repetindo as informações que tinha decorado. Então eu parava por perto, como quem não quer nada, e ouvia o que eles tinham a dizer. “Aqui era a Faculdade de Medicina”, essas coisas, apontando as estátuas daquele prédio bonito que minha avó tinha me dito ser apenas o Nina Rodrigues.

Engraçado que nunca vi esses grupos na Avenida Sete, nunca vi ninguém dizendo àquela gente branca avermelhada que a Igreja de São Pedro não ficava na Piedade, ficava no Relógio, e que a Igreja do Rosário teve quase toda a sua nave demolida mas ainda está lá, pequenininha e mutilada; tragédias que aconteceram na mesma época, quando as ruas do Rosário e de São Pedro deram lugar à avenida que deveria ter feito de Salvador uma cidade moderna, quase haussmaniana.

Mas não posso negar que aprendi com eles, e é por isso que tem horas que eu queria ser turista, para ouvir atento e embasbacado as informações básicas sobre uma cidade que, por mais que eu queira, nunca vou conhecer direito.

Não seria fácil. Há uns dois meses, vermelho-turista porque depois de quase 40 anos me abandonei novamente ao sol e à água morna de uma piscininha de pedras no Farol de Itapuã, diante da revoada de vendedores que se aproximavam de mim, adestrados para reconhecer em cada bobo avermelhado o seu ganha-pão, eu reagia instintivamente com irritação e enfado. “Eu sou baiano, rapaz”, frase mágica de eficiência taylorista; mas isso me parecia tão mentiroso, porque faz tempo que deixei de ser baiano.

O que importa é que o negócio funcionava e eles me deixavam em paz, porque não há tempo a perder nesse negócio de engrupir turista.

Mas há algumas semanas parei para olhar a dança de turistas e gaviões, e percebi que há algo ali que eu nunca pude saber o que é, a disposição para entrar naquela zona cinzenta, crepuscular, onde a diferença entre ser servido e ser esfolado quase não pode ser percebida. Foi do que senti falta, porque há nisso uma certa inocência, uma certa joie de vivre e um certo abandono tipo deixe-a-vida-me-levar que a minha empáfia arrogante não me deixa sentir.

Foi logo depois da festa de Santa Bárbara, o palco ainda estava montado no largo do Pelourinho. Parei para acender um cigarro e olhar para o vaivém das pessoas, encostado num umbral de porta como um malandro de Jorge Amado. Um grupo — ou vários, eu não sei — se deslumbrava diante da atenção obsequiosa e simpática daqueles baianos tão gentis. Pintando o corpo com uma tinta branca, fazendo tererê no cabelo, garantindo o pão de cada dia a partir da vontade dos turistas de se sentirem baianos e gastar um dinheiro que não gastariam em suas próprias cidades, eles se desdobravam para conquistar a sua simpatia gringa, sabedores atávicos da verdade que na cidade de Tomé de Souza simpatia é quase amor — ah, Sheslayne, você sabe disso —, e amor é dinheiro no bolso.

Na verdade eu olhava mesmo era as gringas branquinhas, esperando sua vez de serem pintadas como a Timbalada e depenadas como Barnabé teria sido. Devem ter aprendido, naquele filme em que o Lázaro Ramos pinta os peitos belos daquela moça, que para entrar no espírito das mais verdadeiras tradições da Bahia é preciso pintar o couro de branco, era assim que os baianos se vestiam quando iam comprar pão na padaria da esquina: pintavam os braços e as pernas e a cara como um aborígene australiano e saíam rebolando a dança da galinha, “Moça, me dá uma vara de milho”.

Uma mulher no final da casa dos 30 olhava a carteira semiaberta e respondia indignada a um sujeito: “Mais vinte? Mas eu não tenho mais dinheiro!”, e eu pensando que essa vítima já tinha pago caro por algo que não valia nada ou muito pouco, mas era esperta a ponto de entender o seu próprio limite. Nessa hora minha vontade de ser turista na cidade da Bahia arrefeceu um pouco, e lembrei das razões pelas quais nunca quis ser.

Mas então eu o vi.

Era um arremedo de pai de santo — ou, se o leitor tiver o coração pleno da generosidade que falta a este pobre ex-baiano, uma versão estilizada e alegórica —, o sujeito vestido de branco-presepeiro e um turbante que talvez fosse uma versão Goya Lopes do velho pano da costa, empunhando um punhado de galhos de arruda e um vidrinho de água de cheiro, tudo isso abrilhantado por óculos escuros aparentemente herdados de Elton John. Pai de santo “for English to see”, dava passes e, quem sabe, dizia alguma coisa que talvez soasse como iorubá — ou punjabi, ou suaíli, ou língua do P, tanto faz, ninguém ia entender mesmo.

Comentei com minha mãe que ia passar perto dele, esperar ele me abordar e responder algo que, pelo menos a mim, faria rir. Mas eu vacilei, e por alguma razão ele não veio atrás de mim, foi atrás da senhora minha mãe.

Que, mãe amorosa e desvelada que é, jamais deixaria o seu filho dileto na mão. Ela olhou com simpatia e comiseração pia para ele e respondeu o que eu ia responder:

“Ô, meu filho, eu sou evangélica…”

Ele sorriu um sorriso amarelo e falso e saiu virando os olhos com uma profunda expressão de enfado, talvez pensando que “Esses filhos da puta desses crentes ainda vão me matar de fome.” E saiu em busca de outra presa a quem pudesse oferecer a chance de experimentar uma verdadeira experiência baiana, e ter os seus caminhos abertos ali, no meio do Pelourinho, com a garantia de dinheiro e de amor, a pessoa amada de volta em três dias, o corpo finalmente fechado para a inveja dos outros.

Ao contrário dele, continuei a subir o Pelourinho rindo. Infelizmente, com o esprit d’escalier que sempre fez a minha desgraça, foi só ali pelo Terreiro que percebi que tinha feito tudo errado, ou melhor, que não tinha feito tudo certo, tinha feito um trabalho incompleto. Porque eu — eu, minha mãe, tanto faz, você não leu “As Aventuras de Tibicuera”? — não devia ter dito apenas que que era crente. Devia ter olhado para ele, com o rosto bem sério, talvez estupefato, talvez os olhos arregalados com aquele brilho insano dos que viram a luz extática de Deus e se espantam diante dessas artes de Satanás, e então perguntar:

“O senhor teria alguns minutos para ouvir a palavra de Jesus Cristo? São só 20 reais, para ajudar a divulgar a obra do Senhor.”