Estamos bem mesmo sem você

Ultimamente, ir ao cinema tem sido basicamente uma boa experiência de lazer. Filmes no máximo razoáveis se sucedem, precedidos por elogios hiperbólicos da crítica que parecem emergir de um grande lago de baixos padrões. Oferecem hora e meia, duas horas de suspensão da descrença, como produtos eficientes da indústria cultural que são — e quase todos eles vão se diluindo na memória a partir do momento em que saímos do cinema.

Uns poucos nos últimos tempos, nos últimos dois anos, por exemplo, conseguiram o contrário, crescer à medida em que se pensa neles. Coloque-se aí nessa pequena lista “A Professora de Piano”, uma tour de force de Isabelle Huppert dirigida por Peter Haneke, e “Medos Públicos em Lugares Privados”, de Alain Resnais; talvez mais um ou dois. O resto é esquecível — e aqui incluo mesmo filmes elogiadíssimos como WALL-E e The Dark Knight.

Mas quanto mais penso em “Estamos Bem Mesmo Sem Você” (Anche Libero Va Bene, 2006), mais ele revolve na minha cabeça.

O filme, estréia do ator Kim Rossi Stuart na direção, conta a história de Renato (o próprio Stuart) e seus filhos, Viola (Marta Nobili) e Tommaso (Alessandro Morace). A mãe das crianças, Stefania (Barbara Bobulova), os abandonou. Mais tarde ficaremos sabendo que esse é um comportamento recorrente dela, sempre abandonando a família quando conhece um homem rico — e sempre voltando arrependida para eles, depois do término de sua aventura.

Sem a figura materna, aquela pequena família se ajustou perfeitamente. É uma família moderna comum, como tantas outras, longe do ideal clássico familiar mas, de certa forma, perfeita em suas imperfeições.

Então Stefania volta, no que é uma das cenas mais competentes do filme: a surpresa de Renato ao encontrá-la em casa com os filhos não é mostrada imediatamente. Um diretor menos competente mostraria o susto no rosto do marido abandonado. No entanto, Stuart mostra apenas a ansiedade de Stefania e dos filhos, angustiados diante da expectativa sobre a reação de Reanato.

A decisão de aceitá-la de volta é conturbada, mas pertence a toda a família. Aceitar Stefania de volta é um peso que Renato não quer carregar sozinho. Viola a aceita sem reservas, feliz por ter a mãe novamente ao seu lado, algo perfeitamente compreensível em uma pré-adolescente. Mas Tommaso se retrai. Ele sabe o que vai acontecer: “Ela vai embora de novo”, diz para o pai, e no fundo todos sabem disso.

Agora estamos diante de uma pequena tragédia anunciada, mas em função do bem-estar da família, e da sua adequação ao modelo que eles julgam ideal, a esperança daquela pequena família precisa vencer a certeza da derrocada certa; e esse comportamento é mais claro em Viola. Há aí uma pequena inversão do modelo familiar tradicional: é a presença materna que se transforma em um elemento de desagregação familiar. Mas, ao mesmo tempo, essa nova situação deixa perceber que aquela tranqüilidade do início talvez não fosse tão tranqüila, que no quebra-cabeças que parecia harmonioso havia uma peça faltando, ainda que não se notassse claramente.

Mais tarde, Tommaso vê a mãe conversando com um homem numa festa, e o espectador percebe sua angústia crescente. Tommaso sabe o que vai acontecer, sabe que ela vai embora novamente. E isso acontece quando pai e filhos estão voltando para casa. Da rua, Tommaso vê as luzes do apartamento apagadas. Já no elevador ele fala para o pai e a irmã: “As luzes estão apagadas”. A pergunta a ser feita não é dita. Sobra apenas agonia, medo. E ali estão eles, na porta de um apartamento escuro, com medo de entrar para descobrir o que já sabem. É uma das mais belas cenas do filme.

O diretor Stuart não cai no erro de condenar explicitamente Barbara por seu comportamento. Mostra o seu esforço sincero em se adaptar à vida familiar. Seu amor por seus filhos é legítimo, e talvez também seja legítimo o seu amor por Renato. Stuart se revela um diretor competente e sensível, embora sem muitos arroubos estilísticos. Talvez por isso, por deixar que a história se conte por si mesma, ele permita que o grande trunfo do filme acabe sendo o desempenho fantástico de Alessandro Morace no papel de Tommaso. Morace consegue transmitir as emoções de Tommaso com facilidade e economia, e acima de tudo com uma verdade e naturalidade raras em atores infantis.

Um dos poucos críticos a reclamar do filme classificou-o como melodrama. Como se melodrama fosse algo ruim — alguém pode classificar, por exemplo, “Rocco e Seus Irmãos” como mais que isso, com suas mulheres se jogando aos pés de filhos mortos, com amantes se matando? A tradição operística italiana não pode prescindir do melodrama. Mas mesmo essa crítica é injusta com o filme. Dono de uma sensibilidade rara nos dias de hoje, em que o bombardeio dos sentidos se tornou a norma no cinema — mesmo em filmes inteligentes como “Onde os Fracos Não Têm Vez” –, “Estamos Bem Mesmo Sem Você” consegue ser delicado sem ser afetado, e tirar de momentos grosseiros a poesia necessária. Isso o ergue acima do melodrama comum.

É essa relação entre o menino e o seu universo que faz o filme. O esforço em contemporizar, em agradar o pai ao mesmo tempo em que tenta levar adiante a sua vida da maneira mais normal possível — um dilema expresso pelo título original do filme — acaba se tornando o cerne do filme. “Estamos Bem Mesmo Sem Você” é uma história de compromissos: consigo e com a família.

***

E é isso. Feliz Natal e um grande Ano Novo para todos.

The Beatles Virtual Museum

Durante muito tempo, imaginei escrever uma série de posts sobre cada álbum dos Beatles.

Teria um texto sobre cada um, incluindo seu contexto histórico, a descrição de cada canção com datas de gravação e mixagem, autor, lista de músicos, letras e cifras, e eventualmente um link para um arquivo qualquer — no caso dos covers, para as gravações orginais, apenas para mostrar como os Beatles conseguiam, na maior parte dos casos, recriar de maneira surpreendente cada canção; no caso das composições próprias, links para versões piratas diferentes, essas coisas.

Nunca fiz isso porque nunca tive muito tempo vago, nem paciência para compilar esses dados ou para escrever algo decente.

Só que agora eu não preciso mais. O The Beatles Virtual Museum é um belo site sobre os Beatles. Dados, imagens e, acima de tudo, links para muitos discos piratas.

Os 10 melhores westerns

O western é o mais puro gênero cinematográfico. Todos os outros tinham tradições anteriores respeitáveis na literatura ou até mesmo no teatro: drama, comédia, épico, aventura, romance, ficção científica. O faroeste, por sua vez, só tinha as dime novels do fim do século XIX, puro lixo literário; quando muito, teve o show de Buffalo Bill. Foi apenas no cinema que o gênero pôde se realizar completamente; provavelmente porque, nele, o lugar é personagem fundamental da trama. Só ali, naquele momento histórico e naquele ambiente amplo, o faroeste tem sua razão de ser; e isso só poderia ser mostrado adequadamente no cinema.

O western cumpriu um papel importante na formação americana. Ajudou o país a mitificar sua própria história, emprestando a ela a tradição e respeitabilidade que sua trajetória ainda curta lhe negava. Mais de uma pessoa já falou em como os EUA recriaram, na saga da conquista do oeste, as histórias medievais européias de cavaleiros galantes e nobres. Em vez de escudo, um chapéu; em vez de espada, um Colt Peacemaker.

Por isso resolvi fazer uma listinha dos 10 melhores faroestes da história, por ordem cronológica:

No Tempo das Diligências (Stagecoach, John Ford, 1939)
É o início de tudo. Em um momento em que o western primitivo de Tom Mix e Roy Rogers tinha entrado em decadência, Stagecoach marca a estréia, em sua forma definitiva, de praticamente todos os elementos constitutivos do faroeste moderno: o primeiro grande filme de John Wayne e de John Ford, o primeiro filmado em Monument Valley, e todos os recursos dramáticos que mais tarde seriam usados à exaustão no gênero que chegou a ser o mais popular no mundo inteiro. Stagecoach é o marco inicial do faroeste, e isso não é pouco.

Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1948)
Talvez o maior faroeste de um diretor que os fez em quantidade e com qualidade, Red River é um retrato de um fenômeno efêmero da história do oeste: os verdadeiros cowboys originais, tropeiros que levavam gado de um canto a outro nos primórdios das ferrovias e que, na verdade, tiveram vida bastante curta. É esse o cenário que emoldura uma disputa ao mesmo tempo grosseira e sutil entre pai e filho, vividos por John Wayne e Montgomery Clift, perfeitamente conduzida por Hawks.

Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952)
Embora tenha sido concebido como metáfora e denúncia do mccarthismo, o que realmente interessa em High Noon é a parábola densa sobre coragem e sobre o valor do indivíduo diante daquilo que a vida lhe cobra. É um faroeste um tanto atípico, mas que acaba reforçando os valores intrínsecos do gênero, como o heroísmo diante da adversidade. É também cheio de detalhes sobre o perfil psicológico dos protagonistas, bem ao gosto de Zinnemann. Talvez um dos faroestes mais inteligentes — do tipo novaiorquino de inteligência.

Os Brutos Também Amam (Shane, George Stevens, 1953)
Tem gente que acha esse o maior western de todos os tempos, como o Paulo Perdigão, que antes de morrer até escreveu um livro inteiro sobre ele. Tem gente que não, como o Bia. Independente disso é um filme brilhante, inquestionável. Shane é propositadamente arquetípico e esquemático, narrado através dos olhos de uma criança. É um faroeste definitivo, que consolida as convenções do gênero de maneira singularmente bela.

Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1956)
Quanto mais vejo este filme, mais deslumbrado fico com a maestria absoluta de John Ford. Da seqüência inicial, com Dorothy Jordan abrindo a porta — a porta pela qual John Wayne está condenado a jamais entrar, metaforicamente —, à última cena, em que outra porta se fecha, o que John Ford entrega é provavelmente um dos mais perfeitos westerns de todos os tempos, em que tudo se casa à perfeição: roteiro, fotografia, atuações — é, provavelmente, a melhor atuação de John Wayne em toda a sua carreira. Uma obra prima absoluta.

Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959)
Concebido como uma resposta direitista a High Noon, “Onde Começa o Inferno” é provavelmente o último grande filme de Howard Hawks. Tão bom que ele meio que o refilmaria alguns anos mais tarde em Eldorado, com Robert Mitchum no lugar de Dean Martin e James Caan no lugar de Ricky Nelson. Um faroeste clássico, com a divisão entre bons e maus extremamente clara, e uma performance inesquecível de Dean Martin.

Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John Sturges, 1960)
Refilmagem de um filme de Akira Kurosawa, “Sete Homens e um Destino” incidentalmente definiu um padrão que vários filmes de ação dos anos 60 seguiriam: uma espécie de versão em celulóide do jogo de tabuleiro “resta um”: depois de uma longa preparação, boa parte dos protagonistas morre um a um, no clímax do filme. O modelo foi seguido por filmes como “Os Doze Condenados”, de Robert Aldrich, e “Fugindo do Inferno”, do mesmo Sturges.

O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962)
É filme que marca o fim do ciclo americano do western. Uma visão mais madura de sua lenda, em retrospecto, que poderia ser resumida por uma das frases finais do filme: “Entre o fato e a lenda, imprima-se a lenda” (ou algo parecido). É a redenção tranqüila da formação da mitologia americana, em um filme absolutamente brilhante e sensível.

Três Homens em Conflito (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, Sergio Leone, 1966)
Depois do esgotamento total no início dos anos 60, quando praticamente todas as possibilidades criativas do western tradicional foram exploradas, coube ao italiano Sergio Leone renovar o gênero com a “Trilogia do Dólar” que este filme encerra. (Os outros filmes são “Por Um Punhado de Dólares” e “O Dólar Furado” “Por Uns Dólares a Mais”). Transportando a ação da grandiosidade de Monument Valley para a aridez da região de Almería, na Espanha, o spaghetti western transformou o gênero definitivamente e o levou um pouco mais além, dando-lhe uma sobrevida que seria impossível nos Estados Unidos. De versão americana dos contos de cavaleiros andantes na recriação de sua história, o faroeste passou a ser a visão européia da moral dúbia da vida na fronteira. Leone acrescentou a tudo isso um certo tom operístico, que levou o western ao seu último estágio.

Era Uma Vez no Oeste (C’era Una Volta Il West, Sergio Leone, 1968)
Mas é em “Era Uma Vez no Oeste” que Leone eleva ao ápice sua visão da conquista do oeste como pedra fundamental da civilização americana — uma visão amorosa, reverente, mas ainda assim extremamente crítica. É um dos poucos faroestes a ter como personagem central uma mulher, e é ainda melhor que Johnny Guitar, por exemplo. E a música de Ennio Morricone sedimenta, de maneira inigualável, esta grande “ópera da morte”, como já definiram este filme.

Os Imperdoáveis (Unforgiven, Clint Eastwood, 1992)
Foi Eastwood quem retirou o western de sua tumba e conseguiu dar-lhe um último grande filme, sobre velhos pistoleiros cumprindo uma última missão. O tom amargo e niilista do filme não se refere apenas a velhos pistoleiros imperdoados em seus finais de vida; mas a todo um gênero. “Os Imperdoáveis” é um epitáfio adequado a um gênero que nasceu com o cinema e, de certa forma, se tornou maior do que ele.

(É, eu sei que tem 11 filmes aí. Acontece. Eu nunca fui bom em matemática.)

O entardecer do fauno

Confesso que ando muito preocupado com o Hermenauta. Um post deu o sinal de que algo está muito errado com o meu amigo:

My own private Cicero
“Velhice” é quando aquelas limitações que você imagina provisórias se revelam mais permanentes do que você gostaria.

É de uma tristeza pungente esse pequeno post do Hermenauta. Ali está, em tons contidos e quase cartesianos, como convém a um engenheiro, toda a dor da velhice. No começo dava para agüentar. Uma falha aqui, outra ali, isso poderia acontecer de vez em quando. Sim, ele diria “Isso nunca me aconteceu antes, querida”, e ela fingiria que acreditaria; mas quando tal limitação se revela permanente não há mais espaço para desculpas; apenas um olhar triste e desconsolado, nada mais que isso, e então palavras são desnecessárias. A tristeza absoluta dispensa explicações.

Em outros tempos, voando para Paris, o Hermenauta procuraria os banheiros do avião para seguir o exemplo de Emanuelle. (Se você não sabe quem foi Emanuelle, não se preocupe. É do tempo do Hermenauta.). Hoje ele apenas se contenta em observar o vaivém de passageiros dispostos a alguma diversão em uma longa e tediosa viagem transatlântica, e a consciência de que o seu tempo não é mais aquele o faz filosofar e lembrar de Cícero.

Velhice é uma coisa medonha, porque embora nunca venha de repente, ninguém está preparado para ela. Ninguém sabe, de verdade, o que são as dores crônicas, a sucessão de problemas, as impossibilidades tantas antes de vivê-las. Velhice é pior que a morte, porque depois da morte você não fica mais pensando no que deixou de fazer, ou no que não pode mais fazer. Na velhice, não. Na velhice o sujeito se alimenta de suas próprias memórias. O Hermenauta, por exemplo, fica relembrando os bons tempos no Posto 9.

Pior do que as falhas, pior do que nervos e vasos cavernosos que se recusam a obedecer as ordens do cérebro e seguir os conselhos das mãos, é citar Cícero. Só os antigos citam Cícero. O velho professor de latim: “Os romanos, senhor! Os romanos eram batutas!” Mas Cícero não era tudo isso que dizem dele. É só lembrar que Marco Antônio teve mais trabalho para domar Cleópatra do que para dar cabo do velhote. Quando alguém em meio à tristeza da impossibilidade lembra de Cïcero, é porque não há mais jeito. Está velho, irremediavelmente velho, e tudo o que seu corpo cansado e dolorido pede é uma cadeira de balanço, onde possa acalentar lembranças gloriosas de um passado cada dia mais distante.

Ao mesmo tempo, velhice por si só não é o grande problema. Todos nós, se tivermos sorte, ficaremos velhos. O problema é quando o coração continua jovem, e sente desejos com os quais seu corpo não é mais compatível. Nesses casos a gente cita Cícero. E às vezes, como no caso do Hermenauta, uma certa angústia se manifesta. “Por quê?”, ele se pergunta, “Por que o Grande Designer me deu a experiência necessária somente agora, quando este velho corpo já não responde aos meus desejos?

Resta afirmar então que o círculo da vida (imagine agora a trilha de “O Rei Leão” enquanto lê isso) é sábio. Adolescentes correm atrás de mulheres mais velhas porque elas são mais experientes e normalmente financeiramente independentes, o que torna tudo mais fácil; velhos babam por ninfetas como Scarlett Johansson, peitos enormes que sublimam de maneira profana todo e qualquer complexo de Édipo porque a experiência lhes ensinou que a juventude e a firmeza de carnes são um valor tão desejável quanto efêmero. Mas se é sábia, a natureza não é justa; e por isso o Hermenauta hoje lamenta a sua sina.

Sabe, há histórias que a gente pode contar sempre para dourar essa pílula indigesta. Eu sempre lembro de Rossano Brazzi em “A Condessa Descalça”, vítima de um tenebroso acidente de guerra (e obviamente corno, que capado nenhum casa impunemente com a Ava Gardner). Há uma certa dignidade senil nesses casos — era Aristóteles quem dizia dar graças pelo arrefecimento de seus desejos? Por isso, da próxima vez em que o Hermenauta se vir compelido a inventar uma justificativa, ao invés de desfiar a velha ladainha do “isso nunca me aconteceu antes”, bem poderia colocar a culpa no Bush. “Foi em Mosul. Uma patrulha nos escoltava até o lugar onde iríamos construir uma torre de celular quando…” Irromperia então em lágrimas, soluçaria, mas cuidando em manter a dignidade masculina. Ele vai dar, assim, uma história de que a moça se lembrará pelo resto da vida — e que se tenha a certeza de que ela vai contar essa história ao seu novo namorado, suada e arfante, daqui a alguns dias. Por isso, recomendo ao Hermenauta apenas pegar moças burrinhas — porque uma mulher inteligente vai entender tudo, e a história que ela contará ao namorado será diferente: “Mô, peguei um velho broxa uma vez, tu não imagina o caô que ele tentou jogar em cima de mim”.

Uma vez, ouvi um velhinho no ônibus falar ao cobrador: “Meu filho, no dia que o pau cair, os dedos entrevarem e a língua enrolar, eu dou a bunda, mas da sacanagem eu não saio.” E já que a velhice despertou no Hermenauta todo o seu latinório, não custa lembrá-lo de que outro grande romano, um romano maior que Cícero, o Adriano original, arranjou para si um Antínoo. É nisso que dá andar com esses romanos.

Oitenta anos de esquecimento

A data passou em branco, como sempre. No último sábado, um dos acontecimentos mais trágicos da história da América Latina completou 80 anos. Ninguém lembrou.

Depois da missa dominical do dia 6 de dezembro de 1928, os trabalhadores da United Fruit em Ciénaga, Colômbia, aglomeraram-se na praça principal da cidade, acompanhados de suas famílias — velhos, mulheres, crianças. Estavam em greve.

A United Fruit era uma das principais multinacionais americanas, e tinha construído seu império produzindo e exportando bananas a partir dos países da América Central. Nos 40 anos anteriores, ela já tinha transformado quase toda a região em um amontoado de repúblicas de bananas, todas sob o seu controle. O termo tinha sido criado no início do século por O. Henry no romance Cabbages and Kings, abertamente inspirado no modus operandi da United Fruit, e se referia a todos aqueles países em que a empresa tinha influência tão grande que definia seus governos em função de seus próprios interesses. Com a conivência do governo dos Estados Unidos, a United Fruit já tinha patrocinado vários golpes de Estado em países como a Nicarágua, tinha invadido Honduras, e quase conseguiu fazer com que Honduras e Guatemala entrassem em guerra por uma questão de terras em suas fronteiras — pertencentes à empresa, claro.

Todo esse poder era possível porque a United Fruit se apropriava de boa parte da economia dos países onde estava presente — sem contar, claro, um alto nível de corrupção e chantagem. Se aliava a ditaduras, controlava porções imensas de terras. Com o discurso do desenvolvimento nacional, construía ferrovias com dinheiro público mas sob sua propriedade, e controlava boa parte da infra-estrutura desses países desgraçados.

No dez anos anteriores, as greves dos empregados da United Fruit tinham mudado de caráter. Das reivindicações puramente salariais do início, tinham evoluído para abranger também propostas políticas, incluindo a nacionalização das suas ferrovias. Os americanos viam nisso uma grave influência bolchevique, porque apenas comunistas ferrenhos poderiam ser contra um modelo que só trazia benefícios para paisinhos como aqueles.

Entre os benefícios trazidos pela United Fruit estavam os empregos de milhares de trabalhadores centro-americanos. Recebendo salários de fome e vivendo em condições sub-humanas, os trabalhadores não recebiam seu pagamento em dinheiro: em vez disso, a empresa os pagava com vales, que só podiam ser trocados nas suas próprias lojas. Esse sistema, no Brasil, é conhecido por “barracão”; no resto do mundo é chamado simplesmente de semi-escravidão.

É fácil imaginar o discurso da elite colombiana naqueles bons tempos. Aquilo era desenvolvimento, era livre-iniciativa, a United Fruit trazia a modernidade. Mesmo em países fora da esfera de controle da United Fruit, como o Brasil — que nunca pôde ser considerado uma “república de bananas” –, esse era o discurso prevalente; em grande medida, é até hoje. Infelizmente ele não era compartilhado pelos empregados da United Fruit, que trabalhavam de sol a sol, com o perdão do trocadilho, a preço de banana. Nem seria compartilhado por quem via na ação nociva de multinacionais como a United Fruit a destruição institucional de países inteiros, seu empobrecimento, o fim de sua soberania e sua desmoralização mais que absoluta.

Naquela greve em Ciénaga as reivindicações dos trabalhadores deviam ser mesmo coisa de comunista: um dia de folga por semana, tratamento médico médico gratuito e, finalmente, banheiros de verdade, que só existiam nas casas dos supervisores — quase todos americanos. Queiram também jornadas um pouco menores de trabalho, absurdas oito horas. E queriam o supremo ultraje de receber seus salários em dinheiro de verdade.

O problema da United Fruit era, obviamente, também problema do governo colombiano. Bogotá enviou tropas para Ciénaga.

Naquela noite de 6 de dezembro, com os trabalhadores e suas famílias na praça principal de Ciénaga, os soldados se posicionaram nos telhados dos edifícios dos cantos da praça, com metralhadoras. Abriram fogo. A ordem expressa era de não economizar munição.

O primeiro relato sobre o número de vítimas dizia que cerca de 50 trabalhadores haviam sido assassinados. O segundo aumentava esse número para algo em torno de 600. O relatório enviado pela embaixada americana na Colômbia, em janeiro de 1929, estimava em mais de mil o número de mortos. A fonte desses dados era a própria United Fruit. É possível imaginar que o número de vítimas tenha sido muito maior.

Governo, imprensa e United Fruit puseram uma pedra nesse assunto, e ele raramente voltou à tona novamente. O povo colombiano especulava sobre o destino dos corpos. Uns diziam que a United Fruit os tinha enterrado em valas comuns na floresta; outros, que ela tinha colocado os cadáveres em navios da companhia e os jogado ao mar. Criou-se uma lenda em torno do assunto, ainda mais persistente quanto mais proibido era.

No ano seguinte, numa cidade vizinha, Aracataca, nasceria um homem que, mais tarde, contaria essa história em seu principal livro. Seu avô, parlamentar, tinha sido um dos poucos a denunciar os horrores de Ciénaga. O menino cresceu ouvindo histórias sobre o massacre. Mudaria o nome da cidade para Macondo, e seu livro se chamaria “Cem Anos de Solidão”.

Mas ninguém mais lembra disso. Não foram necessários cem anos; bastaram oitenta para o seu esquecimento.

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Uns anos atrás publiquei aqui uma pequena bibliografia dos Beatles. Alguns anos e alguns livros depois, chegou a hora de atualizar a lista.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewinsohn
Comissionado pela EMI como parte das comemorações do seu centenário, em 1988, acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são até hoje. The Complete Beatles Recordings é um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou a bíblia dos beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas, e mesmo alguns erros pequenos. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia-a-dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos. Nunca foi lançado no Brasil.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewinsohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda. Nunca foi lançado no Brasil e passou um bom tempo fora de catálogo, mas vale a pena comprar via Amazon.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil), é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É aceitável, apesar deles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar. Há pouca coisa realmente nova, mas serve como um resumo definitivo do que cada um deles tem a dizer sobre sua história, a sua versão para a posteridade. Independente disso, é um livro fantástico como objeto.

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko). Portanto este é um relato de insider — cheio de todas as fofocas imagináveis. Foi o primeiro livro a revelar, de forma razoavelmente confiável, o lado negro da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. As chantagens sexuais sofridas por Brian Epstein, os maus negócios feitos por ele em nome da banda, a promiscuidade da banda, os problemas graves de Lennon com heroína, os processos de paternidade sofridos por McCartney, as picuinhas internas. Longe de ser o melhor livro para se ter, se você vai ter um só, é um daqueles livros necessários para que se tenha uma visão mais completa da história da banda.

The Lives of Lennon
Albert Goldman
Lançado em 1988 pelo sujeito que mostrou ao mundo a ruína drogada e inadequada que era Elvis Presley, The Lives of Lennon foi recebido como um exemplar particularmente imaginativo do Notícias Populares. Mas o fato é que esse é um livro excelente. Goldman se mostra, acima de tudo, um excelente pesquisador. Sem demonstrar simpatia ou compaixão por nenhum dos seus personagens, o autor revelou alguns detalhes sujos sobre a banda que, apesar de inicialmente descartados como pura fofoca maldosa, foram mais tarde comprovados. É um grande mergulho sobre a personalidade de Lennon; e Goldman foi o sujeito que deixou claro a todos que Lennon era uma mistura de carisma impressionante e personalidade complexa e detestável. O lado negativo do livro é que, às vezes, Goldman parece excessivamente iconoclasta, o que pode levar a alguns erros de avaliação e algumas presunções equivocadas.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles. Mas isso não ilude ninguém. O livro é, na verdade, a autobiografia de Paul McCartney até o fim dos Beatles; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca se sentisse mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. De qualquer forma, é um daqueles livros fundamentais para a compreensão da história dos Fab Four. A versão brasileira é melhor que a minha, porque tem alguns acréscimos feitos depois da morte de Linda McCartney.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
Spitz se beneficiou da passagem do tempo e da abundância de material biográfico a respeito da banda para escrever um livro abrangente e equilibrado, que tenta fugir dos mitos sem explorar em excesso aspectos sensacionalistas. O resultado é a biografia mais completa dos Beatles, com um excelente grau de neutralidade. De modo geral Spitz tenta sempre ver todos os lados de uma questão, e mostra um bom entendimento do que era a dinâmica interna da banda. Consegue ter os fatos em boa perspectiva e evita dourar pílulas. Aqui e ali erros aparecem — alguns gravíssimos, como antecipar em um ano a reunião em que Lennon “pediu o divórcio” ao resto da banda, e outros menores; mas com exceção de Many Years From Now e do Anthology, que não contam, é o único traduzido para o português, que faz dele a melhor biografia dos Beatles disponível no Brasil.

***

Mas o livro definitivo sobre a banda ainda não foi publicado — está sendo escrito neste exato momento. Há alguns anos, Mark Lewisohn anunciou que estava escrevendo uma biografia da banda que deverá se estender por alguns volumes. Se ele mantiver nessa obra o mesmo nível de excelência demonstrado nas outras, o que se pode esperar é, finalmente, a biografia definitiva dos Beatles.

Carta aberta aos jogadores do meu Flamengo

Oi, gentes.

Eu sei que não sou um torcedor fanático, e que vocês nunca ouviram falar de mim. Para falar a verdade, não assisto a um jogo inteiro de futebol desde aquele fatídico Brasil x França, e mesmo então estava mais interessado na bunda enorme à minha frente do que em Ronaldo se arrastando pelo campo.

Mas hoje eu tenho um pedido muito sério a fazer a vocês.

Sabe, eu estava acordado vendo o Flamengo ser campeão da Libertadores debaixo das pancadas do Cobreloa; campeão mundial dando aquele baile no Liverpool; pentacapeão brasileiro em cima de times como o Atlético Mineiro (o que deixou o Idelber traumatizado e meio tantã pelo resto da vida, coitado) e Santos. Obina não pode ser meu ídolo porque vi Zico, Leandro, Júnior, Adílio, Andrade e Mozer tratando a bola como quem trata a mulher amada.

Eu tenho lembranças que a maior parte dos flamenguistas hoje vivos não tem; são elas que me dão o direito de escrever esta carta a vocês.

Neste século, passei grande parte do tempo relegado a apenas torcer contra o rebaixamento do Flamengo. Já estava até acostumado a passar as últimas rodadas do Brasileirão angustiado a cada novo jogo, porque o fantasma do rebaixamento estava sempre presente.

Foi com uma certa surpresa que vi vocês melhorarem este ano, quando pela primeira vez em muito, muito tempo tiveram chance real de ser campeões. Eu fico feliz por vocês. Parabéns pela campanha valorosa. Parabéns por terem feito do Flamengo novamente um time de que seus torcedores não têm vergonha.

Mas agora vocês têm um dever cívico a cumprir. Algo que é maior do que vocês, maior que suas carreiras, maior que qualquer coisa em que vocês possam pensar.

Vocês precisam perder o próximo jogo contra o Atlético Paranaense. Abram as pernas. Deixem que o Atlético ganhe de vocês. Admitimos até uma goleada.

Porque perdendo vocês vão ajudar o Vasco da Gama a ser rebaixado, e esse é um prêmio indiscutível, um troféu quase tão grande e importante quanto o primeiro título brasileiro.

Vocês já perderam tanto quando não podiam. Já nos deram tantas tristezas — como agora mesmo, cedendo um empate bobo ao Goiás. Agora vocês precisam perder novamente, porque com esta derrota vocês vão mandar o Vasco para o lugar que lhe é direito, e nada pode ser tão bom quanto isso.

Vocês têm a obrigação moral de perder o próximo jogo. Esse será a sua grande contribuição para a imensa torcida flamenguista espalhada por este país tão grande.

Eu sei que para os cartolas do Flamengo a vitória agora é importante, e eles devem estar fazendo uma enorme pressão sobre vocês. Com a Libertadores eles poderão ganhar mais dinheiro, pouco importando se vocês serão campeões ou não.

Mas a disputa pela Libertadores é efêmera — ainda mais efêmera porque nós sabemos que vocês não vão longe. O rebaixamento do Vasco é eterno. Não importa que ele volte à primeira divisão no ano que vem, o que é bem provável: esse estigma vai estar sempre presente, e pelo menos por mais alguns anos nós vamos continuar sendo o único time carioca a nunca ter ido para a Segundona.

A gente sabe que, depois das quartas-de-final da Libertadores, quando provavelmente seremos desclassificados, vocês serão esquecidos pela eternidade. Mas se vocês perderem o próximo jogo, poderão ser lembrados eternamente como o time que deixou o Vasco da Gama ser rebaixado. E terão conquistado um título inédito para o Flamengo: o único time carioca a não ser rebaixado para a Segundona.

Isso é mais do que vocês poderiam sonhar.

Sim, eu sei que pelo bem do futebol carioca talvez fosse melhor que o Vasco não fosse rebaixado. Que o fantasma malfazejo do Eurico Miranda espreita um homem decente como Roberto Dinamite. Que pessoas de quem gosto muito, mas muito mesmo — como o Bruno — vão ficar tristes. Sei também que a derrota do nosso Flamengo no próximo jogo não é garantia do rebaixamento do Vasco. E espero sinceramente que eles voltem à primeira no ano que vem, porque Roberto Dinamite merece isso. Mas agora vocês têm que perder, têm que fazer sua parte no rebaixamento do time de São Januário, e ao perder vocês serão ovacionados por todos nós, porque nós que tínhamos perdido as esperanças de ter uma grande alegria com vocês vemos agora que estávamos errados, que vocês podem entrar para a história do Flamengo, porque terão mandado o Vasco da Gama para a segunda divisão.