Aí pela virada do ano assisti a Holyfield vs. Valuev, luta válida pelo título mundial de pesos pesados de uma dessas tantas federações mundiais do boxe.
De um lado um lutador de perfeita técnica, um boxeur velho embora ainda digno desse nome, mas sem a força que nunca teve, sem a capacidade de nocautear seu oponente. Do outro uma aberração tosca cujo único mérito é a sua estatura elevada, um sujeito que só é campeão porque é grande demais — Valuev me lembra uma antiga jogadora de basquete chinesa, lenta e com cara de retardada, que só estava no time porque era gigantesca. O resultado, vitória por pontos do ogro russo, para mim foi mais que isso: foi um — mais um — epitáfio.
É melancólica essa sensação de que o boxe morreu.
Até os meus 20 anos eu não gostava de pugilismo e subscrevia uma paródia do “If” de Kipling escrita por Stanislaw Ponte Preta, “se gostas de boxe és uma besta, meu filho”. Mas por causa do sucesso de Mike Tyson no final dos anos 80, quando o esporte se viu diante do seu primeiro fenômeno em 15 anos, para assistir a Twin Peaks nas noites de domingo da Globo eu tinha que passar por algumas lutas.
E então o caminho não tinha mais volta.
Assisti às últimas lutas de Sugar Ray Leonard, de Roberto “Mano de Piedra” Durán e de Julio César Chávez; vi Pernell Whitaker provocar seus adversários e vi George Foreman reconquistar um título aos 45 anos. Vi a ascensão de Oscar de La Hoya, de Lennox Lewis e do melhor boxeador dos anos 90, Roy Jones Jr. Era uma grande época para se gostar de pugilismo, essa é a verdade, e vi grandes lutas e aprendi o que é boxe.
Boxe é força e beleza. É a realização máxima das possibilidades do corpo humano em um campo específico. É a estilização de um dos mais básicos instintos humanos, o da agressão, da destruição do outro ainda sem a sofisticação social da guerra; e para dominá-lo é preciso técnica, é preciso a sistematização dos movimentos de ataque e de defesa. Boxe é a maneira como um corpo se move com graça e perfeição em busca do seu objetivo.
É por isso que quem escreve sobre pugilismo gosta de ressaltar questões técnicas e blá blá blá. Mas a verdade é que boxe é, acima de tudo, violência — e é a aceitação disso que torna possível a apreciação do esporte. Porque no fim do último round não importa se um lutador tem melhor jogo de pernas, boa esquiva e domínio perfeito dos fundamentos — se o outro lhe aplicar um bom direto no queixo e ele beijar a lona, nada daquilo lhe valeu de alguma coisa. Boxe é também o nocaute perfeito — o soco dado na hora certa e no lugar certo, que manda um sujeito inconsciente ou quase para o chão e então a platéia instintivamente se ergue e grita o nome do vencedor.
Grandes campeões tinham essa combinação de técnica e força. Joe Louis, George Foreman, Joe Frazier, em certa medida Rocky Marciano. E ninguém as teve mais do que Muhammad Ali. Float like a butterfly, sting like a bee, ele dizia; e até hoje há poucas coisas tão perfeitas quando Muhammad Ali no ringue, esquivando-se, jabeando, golpeando. É assombroso que ainda haja críticos de boxe afirmando que Joe Louis foi melhor que Ali — mas isso se pode creditar apenas ao seu medo da personalidade altiva de Ali, em contraste com a atitude de “bom neguinho” de Joe Louis.
Porque ninguém jamais lutou como Muhammad Ali. Ele foi o último grande gênio do boxe; foi também o maior de todos, aquele em que cada lutador deveria se espelhar, aquele de quem cada um deveria ter uma estátua em um altar sagrado e, toda manhã, se ajoelhar diante dela em respeito contrito. Com Ali, a violência adquiria a graciosidade de um balé — o mais perfeito em sua categoria a que o corpo humano pode chegar, um mestre absoluto daquilo que torna o boxe, mais que uma luta, uma arte.
Foi isso o que aprendi assistindo às lutas daqueles grandes lutadores de outrora. O que eu não entendia era que, a cada nova luta, via o declínio do boxe.
Desde a aposentadoria de Muhammad Ali, cada novo campeão era um pouco menor que o anterior; e foi isso, mais do que a roubalheira, mais do que Don King, que destruiu o boxe. O último boxeador peso pesado excepcional que vi lutar foi Mike Tyson — e mesmo ele era incompleto, um lutador limitado e de técnica banal que jamais seguraria os tantos rounds da melhor luta de todos os tempos, Ali vs. Frazier em Manila — luta que se pode achar facilmente no YouTube — ou fazer o que Ali fez contra Foreman no Zaire, se deixar espancar durante oito rounds para só então nocautear um dos maiores punchers de todos os tempos. Tyson batia, e batia como ninguém jamais bateu, mas não fazia muito mais que isso. Paradoxalmente foi um dos tantos responsáveis pela aceleração da decadência do boxe, com vexames como a luta contra Bruce Seldom ou a mordida na orelha de Holyfield.
Com a queda de Tyson, caiu junto o boxe. Um a um, campeões foram sendo sucedidos por lutadores inferiores, e o resultado é isso, um Valuev campeão apenas porque é grande, uma negação absoluta dos valores do boxe e um retrato da decadência de um esporte de beleza singular.
Isso não quer dizer que não existam grandes lutadores em atividade. Existem, sim. Mas é apenas na categoria dos pesos pesados que o boxe pode se realizar em sua plenitude, e ela hoje consiste em lutas com excesso de tática e clinches e pouca arte. Hoje os melhores lutadores estão nas categorias mais leves. Cerca de um ano atrás vi um grande lutador, franco-argelino cujo nome esqueço, dar uma aula de técnica e rapidez. Mas isso não muda nada, porque esses lutadores não passam muito de mosquitinhos brigando e zunindo. Nessas categorias inferiores o boxe não pode se realizar completamente — porque se nela sobra técnica e rapidez, falta a completa violência, a celebração absoluta da força. É isso que faz do boxe uma arte masculina por definição. E é por isso que ele está decaindo, esperando que surja novamente um grande campeão para lhe dar novo fôlego.
Para piorar as coisas, é também por isso que o vale-tudo está ocupando o espaço que deveria ser da nobre arte do Marquês de Queensberry.
O vale-tudo está para o boxe assim como a dança da galinha está para o balé, como o Bonde do Tigrão está para Mozart, ou como a vulgaridade da Mulher Melancia está para a elegância de Márcia Haydée. Um arremedo de dança do acasalamento homossexual, o vale-tudo é o retrato de uma época em que o que importa é sempre, e apenas, o resultado. Não importa que para isso seja necessário dar uma cotovelada no rosto do oponente ou uma joelhada em seu estômago. Se o boxe tem a beleza estética que decorre da sistematização e da limitação das possibilidades da agressão, o vale-tudo é apenas violência rasteira. E feia.
Badminton e peteca são esportes mais masculinos que esse vale-tudo. Até patinação no gelo é mais masculino, porque eventualmente o patinador com seus paetês e suas calças justas vai sentar a moça em seus ombros, os dois frente a frente, e vai lembrar a todos uma das melhores razões pelas quais é bom ser homem. Enquanto isso lutadores de vale-tudo fazem meia-noves intermináveis com a voracidade de um amor vespertino e urgente, cabeças enfiadas com sofreguidão nas virilhas dos seus parceiros, e na falta de outros fluidos se contentam com a urina em seus calções.
Vale-tudo é um sujeito dizendo para o outro “vem e me domina, meu homem”. Por baixo, o sujeito aperta com as pernas os quadris do seu amor com força, chama-o para si, e os abraços são fortes e esganados e desesperados, “diz que eu sou teu”. Não é à toa que um dos movimentos ali se chama submissão. É um sujeito meio depravado dizendo para o seu objeto de desejo “vem, cachorro, eu sou o teu senhor, faz a minha vontade”, variação sado-masoquista de uma relação de domínio. Vale-tudo é sexo selvagem, sem limites, em que o cheiro do sangue se torna o maior afrodisíaco imaginável. É por nunca ter conseguido enxergá-lo de outra forma que durante muito tempo brinquei com a idéia de fazer um curta-metragem sobre essa coisa bizarra a que chamam “esporte”, mostrando as cenas desses lutadores atracados em suas lides de amor enquanto, em BG, ouviríamos Serge Gainsbourg e Jane Birkin cantando Je t’Aime (Moi Non Plus). Mas uma moça já fez esse filme.
Eu me recuso a me contentar com o vale-tudo, eu que vi grandes lutadores darem o melhor de si nos ringues. Mas há uma esperança. Enquanto o vale-tudo é sublimação homoerótica de playboys de zona sul, que gostam de passear com seus pitbulls pelos calçadões da vida, o boxe ainda é praticado em academias de subúrbio. E é isso, essa fé meio boba na força do povo, que me faz acalentar a esperança de que um dia um novo Muhammad Ali apareça no ringue para dizer que é o rei do mundo. Esse dia vai chegar.