Exercício de memória

Diante do meu cafofo surgiu um Karmann Ghia à venda. Azul, estacionado na frente do edifício. Pergunto ao porteiro de quem é aquele carro, é de um vizinho que recentemente escreveu um livro polêmico, e eu não conheço vizinho nenhum, mas agora gostaria de conhecer — e aí, vizinho, tem uma xícara de açúcar? –, porque acho o Karmann Ghia um carro belíssimo em seu tempo, bonito ainda hoje, e se tivesse dinheiro compraria o danado. Eu sou um saudosista e um nostálgico.

Ver o Karmann Ghia me lembrou que há mais de 30 anos, quando eu era criança, havia muito menos carros do que hoje.

Ainda peguei a Willys, que àquela altura já pertencia à Ford: vi na rua e andei em Gordinis, AeroWillys, em Rural e no Jeep, carros que já não eram fabricados. Havia também aqueles menos menos comuns, mas muitas vezes mais desejados, dos quais se viam um ou dois circulando por aí: Miúra, Puma, Lafer, Toyota Bandeirante. Havia também os Gurgel. Cheguei a dirigir um Gurgel Supermini. Foi o pior carro que já dirigi na vida.

A Chevrolet tinha a Veraneio, o Opala, o Chevette e a Caravan circulando nas ruas. A Fiat tinha apenas o 147, a não ser que se conte os Alfa Romeo que ainda circulavam por aí, e era montadora de péssima fama.

A Chrysler tinha o Dodge Dart e o Polara, pouquinhos, muito pouquinhos. Vi dia desses um Polara — olha, um Doginho!, como quem diz “olha, um iguanodonte!” — e eu nem sabia que esses carros com mais de 30 anos ainda circulavam.

A Ford tinha ainda o Galaxie, o Corcel I e II, o Jeep, a Belina e o Maverick. Que carro bonito era o Maverick. Minha última lembrança de um Maverick é a de estar pendurado no capô traseiro de um deles, o desgraçado do motorista a 100 por hora no caminho da praia, numa madrugada de carnaval de muito tempo atrás. Eu devia ter parado de beber então, mas não parei e olha só no que deu. E a F-10. Ou era C-10? Eu não lembro mais. E a Volkswagen, de longe a maior de todas, tinha o Fusca (ou simplesmente Volks), Kombi, Karmann-Ghia, o 1600, o TL, a Variant, o SP2, Brasília, e Passat. De todos esses carros, só a Kombi sobreviveu.

É triste conseguir lembrar de tudo isso, e talvez mais triste fazer uma lista assim, uma lista sem sentido. Não pelos carros, porque eu não gosto de carros, não gosto sequer de dirigir. Mas por mim.

House of Dolls

Uns anos atrás fiz este post dizendo que o House, aquele doutor do seriado, era entre outras coisas gay.

O resultado foi uma enxurrada de gente argumentando, reclamando ou simplesmente me xingando. Não, não, seu burro, House não é gay. O amor óbvio entre ele e Wilson é só amizade. Como pode alguém que eu admiro tanto ser gay? Não, Rafael, você entendeu tudo errado, você é um idiota que fica denegrindo as pessoas, viado é a mãe.

Em tantos anos de história deste blog juro que nunca vi tanta gente tão zelosa quanto às pregas dos outros. Pior: pregas fictícias.

Então o seriado acabou esta semana. Leio no jornal que, nele, House forja sua própria morte para poder passar os últimos meses de vida de um Wilson com câncer terminal ao seu lado.

Por isso retiro o que mais eu disse sobre House. Ele era um bom homem, no fim das contas, capaz de se sacrificar pela felicidade do seu grande amor. Não é todo mundo que é capaz de algo assim, de tamanho altruísmo. Só o amor verdadeiro é capaz de um gesto tão nobre, de se dar dessa forma.

E as pessoas que vieram aqui me contradizer e me xingar e negar a homossexualidade de House e o seu amor verdadeiro e feérico por Wilson deviam se envergonhar do que fizeram.

Os Três Mosqueteiros, assassinados mais uma vez

E daí que eu jurei que não ia ver, mas assisti a “Os Três Mosqueteiros” dia desses.

Eu tinha jurado que não assistiria ao filme porque há alguns anos perdi umas duas horas de minha vida, horas que não voltam mais, assistindo a uma coisa bizarra chamada “A Vingança do Mosqueteiro”, que deixo de descrever por falta de palavras suficientemente baixas. Certo, sou um velho cada vez mais velho e um chato cada vez mais chato, e paciência é artigo cada vez mais escasso; mas aquele era um filme tão ruim que mesmo minha ranhetice se viu sem palavras diante de tamanha barbaridade.

Esse novo filme é talvez ainda pior. E isso é assustador porque “Os Três Mosqueteiros”, o livro original, é literatura juvenil no que ela tem de melhor, tão bom que adultos podem ler com prazer. Ainda hoje passo de vez em quando os olhos por ele; e um dia ainda leio suas continuações inteiras.

Em princípio, um livro como o de Dumas deveria ser um roteiro pronto para o cinema. O trabalho necessário seria apenas o de enxugar a trama para fazer com que tudo caiba em hora e meia, duas horas de filme. Por alguma razão, no entanto, não é o que acontece. Assim como tem gente que acha que pode melhorar o que já está bom, ninguém parece conseguir deixar de tentar deixar sua marca em “Os Três Mosqueteiros”.

A esta altura do campeonato, já não tenho muito contra adaptações e licenças poéticas exageradas no cinema. Não é apenas questão de rendição; mas por entender, finalmente, que um meio diferente e sensibilidades diferentes às vezes demandam uma certa flexibilidade. Mudanças aqui e ali, alterações no roteiro para fazer com que fique tudo mais espetacular, a criação de razões para o uso de efeitos especiais, já fazem parte do cotidiano da gente. Reclamar contra isso é bobagem. Até mesmo quando se trata de personagens e tramas com quase 200 anos.

É isso o que me faria aceitar uma Constance Bonacieux que não morre, ou uma Milady que parece uma mistura de Aeon Flux e Viúva Negra, por exemplo. Essa nova Milady é muito pobre diante da intrigante original, certo, mas fazer o quê se os tempos são outros?

Mas “Os Três Mosqueteiros” tem tantos problemas que é difícil não desligar a TV sem xingar o idiota que o criou de nomes que deixariam São Cipriano ruborizado.

O primeiro problema do filme é o nível altíssimo de infantilização de seus personagens. O rei, para começar: que rei é aquele? D’Artagnan mata Rochefort no filme — para quê, se no livro eles terminam amigos, e isso reflete um pouco a compreensão da política real em Paris? Richelieu, mesmo interpretado por um grande ator como Christoph Waltz, não tem a sutileza dos grandes, resvala na caricatura e se torna óbvio; além disso, quem fez as legendas sequer sabe onde fica a Gasconha e o que é um gascão.

O excessivo nível de espetacularização é medonho. Uma esquadrilha de dirigíveis é provavelmente a idéia mais ridícula que alguém já teve desde que Ed Wood pendurou discos voadores em cordões, e não apenas porque é um impropério físico. Mas são as mudanças morais que incomodam e entristecem no filme.

É deprimente, e provavelmente a pior evidência contra a nossa sociedade, que uma obra do século XIX precise ser moralmente sanitizada em pleno século XXI. Constance (que na nova versão não tem sobrenome nem dorme com o homem que lho deu, o velho e frouxo Bonacieux) não passa de uma menina, em vez da senhora casada e mal amada que se apaixona por D’Artagnan. Milady não é a mulher promíscua e amoral que foi casada com Athos; e a rainha Ana não fez saliência com o Duque de Buckingham, porque rainhas nesses tempos novos devem ser moralmente inatacáveis, Pompéias modernas virtualmente castas e ascéticas (não só no cinema, porque até a princesa Diana virou moça decente depois que morreu). A Hollywood do início do século XXI tem vergonha e pudor do que era visto naturalmente há quase dois séculos; e agora ela não precisa mais de código Hays, basta tentar agradar seu público, e oferecer a ele aquilo que ela acha que ele pede.

O que fez “Os Três Mosqueteiros” sobreviverem por mais de século e meio foi justamente a qualidade de sua história. A trama rocambolesca mas fácil, a ação quase ininterrupta, os personagens bem definidos, a dubiedade moral inerente a praticamente todos os seus personagens, com exceção de D’Artagnan. É um livro que serve perfeitamente de argumento para um filme; e eu recomendaria a versão de 1948, dirigida por George Sidney, com Gene Kelly e Lana Turner. Nas Americanas ela pode ser encontrada em DVD por 13 reais. É mais barato que uma entrada de cinema, e certamente mais recompensador.

Teoria da reciprocidade

Encontro a moça num elevador.

Bom dia, os olhos para baixo como é praxe em elevadores, aquele o que é que eu faço com as mãos, e então a voz da moça na frente: Como está sicrana? Eu me surpreendo, como ela sabe?, faz tanto tempo, e então ela diz, Eu sou fulana, morei perto de você em tal lugar, Ah, sim, claro, Fulana, agora lembrei, como você vai?, vinte e tantos depois eu não lembraria de você nem mesmo se o tempo lhe tivesse sido mais generoso, mas sei que vou lembrar em minutos, então não estou mentindo, estou apenas me antecipando a mim mesmo, pronto, lembrei.

Tchau, legal te ver, entro no carro pensando que o Gama é que é um sábio e é quem tem razão, o tempo é um fazedor de monstros, e essa moça há vinte e tantos anos era tão gostosinha, o que aconteceu com você, moça?, como o tempo lhe foi ingrato.

E é só então que a ficha cai.

Nesse exato momento, ela deve estar pensando a mesma coisa, e com ainda mais razão.

Sobre esse pessoal que só gosta de matinho

Eu não gosto de militantes vegetarianos. Me dão preguiça, sempre deram. Mas de uns tempos para cá começam a incomodar.

A minha preguiça era principalmente estética, e obviamente não se aplica apenas aos militantes. Eu realmente não consigo compreender o que leva uma pessoa em sã consciência a abjurar o sabor do sangue que escorre de uma picanha mal passada, ou aquele fenômeno da natureza comparável à aurora boreal: aquilo que chamam de marmorização da carne de vitela. O bichinho, coitado, vai morrer de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde; que seja para vir parar na minha barriga. Eu sinceramente acho a vida dos vegetarianos mais pobre, e tenho pena deles por isso. É como se faltasse algo — uma costela, por exemplo. Vegetarianismo, para mim, não é consciência: é deformação de caráter.

Mas os militantes, aqueles que fazem de sua vida uma pregação constante, estão passando a me irritar. Talvez porque adquiriram mais e mais visibilidade; talvez porque, como acontece com virtualmente todo movimento, à medida que esse negócio de comer só mato vai se espalhando como metástase e tendo suas ideias mais aceitas, vai desenvolvendo também um certo tipo de proselitismo fundamentalista, uma certeza puritana de que só eles estão certos e que é dever sagrado de cada um levar a Boa Nova aos gentios, salvar o mundo dos meus pecados.

É basicamente a mesma certeza bovina de evangélicos e antitabagistas, sonhando com um mundo chato, sem sabor. A diferença está na aceitação e, principalmente, na composição social. Porque eu, pelo menos, não conheço vegetariano pobre: são sempre de classe média ou ricos. Não é à toa que esse negócio é mais forte na Europa, especialmente na sede do antigo Império Britânico. Vegetarianismo e suas variações são perversões de sociedade rica e autocomplacente, que acha que alimentos nascem em sacos de papel alumínio e que supermercados são chocadeiras de ovos orgânicos. Pobre — e aqui incluo a nova classe C — não pode se dar a esse luxo; precisa antes passar ao nível de comer aquilo que os vegetarianos, de barriga cheia, desprezam. Imagine o sujeito que mora no sertão do Piauí se dando ao desfrute de dispensar um bife de alcatra. Seria linchado pelos seus conterrâneos, e com razão.

Essas coisas — e as roupas feitas de fibras naturais, cultivadas no estilo príncipe Charles, em que se fala carinhosa e às vezes até libidinosamente com as plantas — são coisas de rico porque, se não fosse tudo isso a que esse pessoal hoje pode se dar ao luxo de virar as costas, a galinha de granja, a soja transgênica, mesmo os agrotóxicos que possibilitaram os aumentos constantes de safras e de áreas cultivadas, ao mesmo tempo em que barateavam os preços, a profecia de Malthus se teria cumprido já há algum tempo.

Que Deus abençoe as granjas e os frangos criados nelas. Antes delas, o Barão de Itararé dizia que quando pobre comia frango, um dos dois estava doente. Ou seja: foi esse frango criado em condições aparentemente desumanas, repleto de hormônios para que possa ser abatido o quanto antes, que possibilitou a inversão desse estado deletério das coisas. Sem isso, sem esse ganho de escala, frango continuaria sendo iguaria para poucos.

Talvez seja verdade o que dizem, que esses frangos fazem mal à saúde em longo prazo. Mas, se fazem, eu sou capaz de apostar que os pobres que hoje comem seu franguinho ensopado vão morrer mais felizes daqui a uns 30 anos do que aqueles que só tinham farinha e, eventualmente, jabá de jumento para comer e morreriam depois de amanhã.

Os militantes europeus que protestavam contra a soja transgênica no Brasil (num momento em que virtualmente todos os grandes produtores brasileiros já tinham aderido a ela, a propósito, e o processo já era irreversível) não ligam em subsidiar a sua agricultura cara e ineficiente em detrimento da agricultura dos países do terceiro mundo. São aqueles que podem dar mais de 25 euros num quilo de filé mignon (é o Allan quem me faz o favor de informar, e a ele sou eternamente grato; também me diz que a carne italiana não tem lá muito gosto, e minha admiração pela bota diminui um pouquinho). São os pobres coitados que, com paladar embotado e sustentados pela certeza messiânica de estarem sendo superiores à humanidade animalesca, já não sabem a diferença entre acém e filé mignon.

Dentre as perversões desse pessoal, uma em especial é curiosa: uma tendência tatibitate ao antropomorfismo, agregando emoções e qualidades humanas a animais, e tentando nos fazer crer que somos todos iguais, nós e os bichinhos. Vi há algum tempo uma dessas imagens de Facebook em que havia dois gráficos: uma com um desenho de um homem acima dos outros animais, outra com o homem no mesmo nível e uma pergunta, algo tipo “Dá para entender agora”?

É essa arrogância que é irritante (a única arrogância que toleramos é a nossa, afinal). Porque não é que a gente não entenda a maneira como eles pensam. A gente entende. Só que acha uma grande imbecilidade. É muito triste ter que dizer a um adulto que não, nós não somos iguais aos outros animais desde o momento em que amarramos uma lasca de sílex a um pedaço de pau, e passamos a transformar o mundo em que vivemos, em vez de apenas nos adaptarmos. Não é só uma questão de desejo. Ou melhor: somos diferentes desde a hora em que aprendemos a fazer fogo e cozinhamos a carne de um bichinho fofinho como um mamute para que ela ficasse mais macia.

Essa “superioridade” nos obriga a concessões, claro. Não se trata aqui de continuar a defender aquele modelo de consumo que viabilizou a evolução econômica do mundo e levou mais qualidade de vida para cada vez mais pessoas. O processo civilizatório custou caro ao planeta, claro; mas a questão não é voltar as costas a tudo isso, é saber como garantir essas conquistas. É saber se o mundo pode pagar de maneira permanente esses custos, e garantir as condições para isso.

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Há algumas semanas vi uma coisa no Facebook que me deixou meio bobo, meio descrente: o germe de uma campanha em prol da construção de um hospital veterinário público. É a classe média, velha e nova, sentindo o peso da ração e das vacinas no orçamento familiar. (Não duvido que daqui a pouco venham a pedir que as farmácias populares deem ração de graça.)

A saúde pública tem problemas muito graves: de gestão, de profissionais e de dinheiro. Vem melhorando nos últimos anos, universalizando-se aos poucos; mas só um gestor irresponsável e canalha teria a pachorra de dizer que ela funciona a contento. No entanto um grupo de gente doida acha que a situação dos cachorrinhos de madame e dos gatos que pouco a pouco vão se tornando os animais de estimação preferenciais de um mundo fragmentado, substituindo aos poucos as relações humanas, deve merecer a mesma atenção.

Eu gostaria de acreditar que esse pessoal que pede a um Estado problemático — que não consegue garantir saúde para todos os seus cidadãos — dinheiro para um hospital veterinário público jamais foi aos corredores de um pronto-socorro público de grande porte. Mas já há algum tempo acho que não faz diferença. Que é uma questão simples: é gente mais preocupada com os bichos bonitinhos que criam do que com pobres malcheirosos gemendo numa maca, no corredor de um hospital.

O que me assustou foi a tentativa de mobilização, a ideia imbecil de pressionar o Estado para que ele cuide dos seus poodles e yorkshires. É paradoxal que justamente essa capacidade de raciocínio, essa consciência de nossa existência e de nossa finitude que nos faz humanos traga dentro de si justamente o germe de sua autodestruição. É para isso que esse pessoal quer lutar? Por sorte o conceito de luta deles é diferente, consiste em dar likes em fotos no Facebook. Eu teria medo desse pessoal realmente organizado, porque algo neles me lembra o “Planeta dos Macacos”, com seus arremedos de civilização.