Eu não gosto de militantes vegetarianos. Me dão preguiça, sempre deram. Mas de uns tempos para cá começam a incomodar.
A minha preguiça era principalmente estética, e obviamente não se aplica apenas aos militantes. Eu realmente não consigo compreender o que leva uma pessoa em sã consciência a abjurar o sabor do sangue que escorre de uma picanha mal passada, ou aquele fenômeno da natureza comparável à aurora boreal: aquilo que chamam de marmorização da carne de vitela. O bichinho, coitado, vai morrer de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde; que seja para vir parar na minha barriga. Eu sinceramente acho a vida dos vegetarianos mais pobre, e tenho pena deles por isso. É como se faltasse algo — uma costela, por exemplo. Vegetarianismo, para mim, não é consciência: é deformação de caráter.
Mas os militantes, aqueles que fazem de sua vida uma pregação constante, estão passando a me irritar. Talvez porque adquiriram mais e mais visibilidade; talvez porque, como acontece com virtualmente todo movimento, à medida que esse negócio de comer só mato vai se espalhando como metástase e tendo suas ideias mais aceitas, vai desenvolvendo também um certo tipo de proselitismo fundamentalista, uma certeza puritana de que só eles estão certos e que é dever sagrado de cada um levar a Boa Nova aos gentios, salvar o mundo dos meus pecados.
É basicamente a mesma certeza bovina de evangélicos e antitabagistas, sonhando com um mundo chato, sem sabor. A diferença está na aceitação e, principalmente, na composição social. Porque eu, pelo menos, não conheço vegetariano pobre: são sempre de classe média ou ricos. Não é à toa que esse negócio é mais forte na Europa, especialmente na sede do antigo Império Britânico. Vegetarianismo e suas variações são perversões de sociedade rica e autocomplacente, que acha que alimentos nascem em sacos de papel alumínio e que supermercados são chocadeiras de ovos orgânicos. Pobre — e aqui incluo a nova classe C — não pode se dar a esse luxo; precisa antes passar ao nível de comer aquilo que os vegetarianos, de barriga cheia, desprezam. Imagine o sujeito que mora no sertão do Piauí se dando ao desfrute de dispensar um bife de alcatra. Seria linchado pelos seus conterrâneos, e com razão.
Essas coisas — e as roupas feitas de fibras naturais, cultivadas no estilo príncipe Charles, em que se fala carinhosa e às vezes até libidinosamente com as plantas — são coisas de rico porque, se não fosse tudo isso a que esse pessoal hoje pode se dar ao luxo de virar as costas, a galinha de granja, a soja transgênica, mesmo os agrotóxicos que possibilitaram os aumentos constantes de safras e de áreas cultivadas, ao mesmo tempo em que barateavam os preços, a profecia de Malthus se teria cumprido já há algum tempo.
Que Deus abençoe as granjas e os frangos criados nelas. Antes delas, o Barão de Itararé dizia que quando pobre comia frango, um dos dois estava doente. Ou seja: foi esse frango criado em condições aparentemente desumanas, repleto de hormônios para que possa ser abatido o quanto antes, que possibilitou a inversão desse estado deletério das coisas. Sem isso, sem esse ganho de escala, frango continuaria sendo iguaria para poucos.
Talvez seja verdade o que dizem, que esses frangos fazem mal à saúde em longo prazo. Mas, se fazem, eu sou capaz de apostar que os pobres que hoje comem seu franguinho ensopado vão morrer mais felizes daqui a uns 30 anos do que aqueles que só tinham farinha e, eventualmente, jabá de jumento para comer e morreriam depois de amanhã.
Os militantes europeus que protestavam contra a soja transgênica no Brasil (num momento em que virtualmente todos os grandes produtores brasileiros já tinham aderido a ela, a propósito, e o processo já era irreversível) não ligam em subsidiar a sua agricultura cara e ineficiente em detrimento da agricultura dos países do terceiro mundo. São aqueles que podem dar mais de 25 euros num quilo de filé mignon (é o Allan quem me faz o favor de informar, e a ele sou eternamente grato; também me diz que a carne italiana não tem lá muito gosto, e minha admiração pela bota diminui um pouquinho). São os pobres coitados que, com paladar embotado e sustentados pela certeza messiânica de estarem sendo superiores à humanidade animalesca, já não sabem a diferença entre acém e filé mignon.
Dentre as perversões desse pessoal, uma em especial é curiosa: uma tendência tatibitate ao antropomorfismo, agregando emoções e qualidades humanas a animais, e tentando nos fazer crer que somos todos iguais, nós e os bichinhos. Vi há algum tempo uma dessas imagens de Facebook em que havia dois gráficos: uma com um desenho de um homem acima dos outros animais, outra com o homem no mesmo nível e uma pergunta, algo tipo “Dá para entender agora”?
É essa arrogância que é irritante (a única arrogância que toleramos é a nossa, afinal). Porque não é que a gente não entenda a maneira como eles pensam. A gente entende. Só que acha uma grande imbecilidade. É muito triste ter que dizer a um adulto que não, nós não somos iguais aos outros animais desde o momento em que amarramos uma lasca de sílex a um pedaço de pau, e passamos a transformar o mundo em que vivemos, em vez de apenas nos adaptarmos. Não é só uma questão de desejo. Ou melhor: somos diferentes desde a hora em que aprendemos a fazer fogo e cozinhamos a carne de um bichinho fofinho como um mamute para que ela ficasse mais macia.
Essa “superioridade” nos obriga a concessões, claro. Não se trata aqui de continuar a defender aquele modelo de consumo que viabilizou a evolução econômica do mundo e levou mais qualidade de vida para cada vez mais pessoas. O processo civilizatório custou caro ao planeta, claro; mas a questão não é voltar as costas a tudo isso, é saber como garantir essas conquistas. É saber se o mundo pode pagar de maneira permanente esses custos, e garantir as condições para isso.
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Há algumas semanas vi uma coisa no Facebook que me deixou meio bobo, meio descrente: o germe de uma campanha em prol da construção de um hospital veterinário público. É a classe média, velha e nova, sentindo o peso da ração e das vacinas no orçamento familiar. (Não duvido que daqui a pouco venham a pedir que as farmácias populares deem ração de graça.)
A saúde pública tem problemas muito graves: de gestão, de profissionais e de dinheiro. Vem melhorando nos últimos anos, universalizando-se aos poucos; mas só um gestor irresponsável e canalha teria a pachorra de dizer que ela funciona a contento. No entanto um grupo de gente doida acha que a situação dos cachorrinhos de madame e dos gatos que pouco a pouco vão se tornando os animais de estimação preferenciais de um mundo fragmentado, substituindo aos poucos as relações humanas, deve merecer a mesma atenção.
Eu gostaria de acreditar que esse pessoal que pede a um Estado problemático — que não consegue garantir saúde para todos os seus cidadãos — dinheiro para um hospital veterinário público jamais foi aos corredores de um pronto-socorro público de grande porte. Mas já há algum tempo acho que não faz diferença. Que é uma questão simples: é gente mais preocupada com os bichos bonitinhos que criam do que com pobres malcheirosos gemendo numa maca, no corredor de um hospital.
O que me assustou foi a tentativa de mobilização, a ideia imbecil de pressionar o Estado para que ele cuide dos seus poodles e yorkshires. É paradoxal que justamente essa capacidade de raciocínio, essa consciência de nossa existência e de nossa finitude que nos faz humanos traga dentro de si justamente o germe de sua autodestruição. É para isso que esse pessoal quer lutar? Por sorte o conceito de luta deles é diferente, consiste em dar likes em fotos no Facebook. Eu teria medo desse pessoal realmente organizado, porque algo neles me lembra o “Planeta dos Macacos”, com seus arremedos de civilização.