Na telinha

Alex, você está enganado.

Nos anos 70 e 80 havia excelentes programas nacionais. Sempre houve.

Programas como os que você citou sempre existiram — e aí a gente pode citar, além dos humorísticos como “Chico City”, “Viva o Gordo”, “Planeta dos Homens” e “Família Trapo”, casos especiais que levavam o melhor da literatura à telinha, uma infinidade de minisséries como “Mad Maria” e um bocado de outros que não lembro agora. E a Paula Saldanha, paixão de infância.

A “nacionalização” a que você se refere diz mais respeito à necessidade de empurrar programação de baixa qualidade para uma platéia cada vez menos qualificada do ponto de vista do anunciante.

É claro que eu aplaudo os que você citou, embora não assista a nenhum deles. Mas deveria aplaudir também Big Brother, Casa dos Artistas, Linha Direta, Ratinho, Gugu, Faustão, João Kleber, Luciano Huck e Datena?

Eu só aplaudo Márcia Goldschmidt. Porque mexeu comigo, mexeu com ela.

Às cinco da manhã

A Globo está exibindo o seriado “Monk”.

(Monk valeria um post inteirinho para ele. É um dos melhores seriados feitos nos últimos tempos. Pela graça de ser um bom seriado de detetive, pela comédia, mas principalmente pela riqueza triste do personagem-título.)

Talvez você não soubesse, porque a Globo exibe o seriado no horário mais ingrato possível, os finais de madrugada.

É engraçado como a TV brasileira mudou nos últimos anos, e principalmente a Globo. Há uns poucos anos — ou sou eu que estou envelhecendo e não percebo? — isso seria impensável.

Nos seus primeiros 30, quase 40 anos, seriados americanos fizeram parte do creme da programação da TV. Ocupavam um dos horários mais nobres, aquele que vinha que depois da novela das oito. Dividiam esse horário com o que foi o seu sustentáculo nos primeiros anos, os programas de humor. Era só para eles que perdiam em importância. Herança dos tempos em que a TV Rio batia todas as concorrentes com programas baseados nas duas pedras fundamentais da TV brasileira: o humor radiofônico e o teatro de revista. E por isso o horário era definido como pertencente à “linha de shows”.

Para quem cresceu nos anos 70 e 80, os seriados americanos representaram uma parte importante da cultura da idade. Fazíamos (em câmera lenta, claro) os sons dos órgãos biônicos de Steve Austin, o Homem de Seis Milhões de Dólares. Éramos Zorro e arranjávamos algum bobo para ser o Tonto — mas poderia pior se arranjássemos alguém para ser o Silver. Nadávamos feito peixe, imitando Mark Harris, o Homem do Fundo do Mar.

Mas o tempo passa. Esses seriados, que de várias formas acrescentavam ingredientes ao caldeirão cultural brasileiro, agora estão restritos à TV por assinatura ou a horários ingratos nas televisões abertas. Por incrível que pareça, acabam criando um novo fosso cultural, em que a juventude de classe média assiste a seriados e o povão se empanturra de, no máximo, Malhação.

De certa forma, a TV brasileira sempre foi democrática, porque oferecia a mesma coisa a todos. Isso acabou. Agora, o lado de cima faz expressão de adolescente idiota americano enquanto balança a cabeça fingindo o retardo que deveras tem, dizendo: “Hello-o!”. E o andar de baixo aprende que “vamos quebrar tudo”.

Numa tarde em Fortaleza

Eu morava em Fortaleza e minha casa ficava perto da agência onde trabalhava, uns três ou quatro quarteirões.

Eu voltava do almoço (almoço era a hora em que eu ia tocar guitarra para minha filha), subindo a Rui Barbosa, quando encontrei um cego no cruzamento com a Torres Câmara. As pessoas passavam por ele sem se deter, atravessavam sozinhas a rua porque, afinal de contas, atravessar a rua era problema dele. Ofereci o braço, ele segurou e atravessamos a rua.

Fomos conversando pelos próximos dois quarteirões. Acho que fui eu a iniciar a conversa, e reclamei daquele sol miserável de Fortaleza, daquele calor miserável de Fortaleza. E ele disse que sim, estava muito quente, mas então lembrou que era pior quando chovia.

Em uma mão ele segurava sua bengala, na outra uma pasta: ele era vendedor. E me disse que quando chovia tudo ficava mais complicado para ele, porque tinha que segurar o guarda-chuva com uma das mãos e dar um jeito de levar a pasta e a bengala na outra.

“Ué”, eu disse, “uma capa de chuva é mais prático.”

E então ele disse que não, que uma capa de chuva era uma verdadeira tragédia, porque cobria seus ouvidos e sem ouvidos ele não podia se localizar. Sem ouvidos ele se tornava um inútil. Nos poucos metros que restavam ele me contou que não podia se dar ao luxo de não trabalhar, porque tinha responsabilidades, mulher e filhos para sustentar.

Ele se despediu de mim em outro cruzamento.

Alguns quarteirões antes, eu tinha parado para fazer uma boa ação. Uma que fizesse Deus, na hora da morte, contrabalançar um pouco as tantas más e me garantir, com um pouco de boa vontade, um lugarzinho no purgatório. Acabei recebendo uma lição de vida, uma espécie de recado para nunca mais reclamar de bobagens. Eu saía de um apartamento ventilado e ia para uma agência onde o ar-condicionado estava ligado no máximo, e reclamava de cinco minutos de sol e calor. Enquanto isso aquele sujeito agradecia pelo sol que o mesmo Deus que lhe tinha tirado os olhos lhe dava.

De vez em quando eu vejo as pessoas reclamando do quão difícil é a sua vida.

Já estou velho o suficiente para saber que não dá para comparar as pessoas, que a cruz de cada um parece às vezes pesada demais independente do tamanho, e elas sempre têm razão porque cada um sabe o quanto ela lhes pesa. Mas hoje, antes de reclamar das coisas, eu tento lembrar daquele cego que dobrou à esquerda na Santos Dumont, bengala branca em uma mão e uma pasta velha e batida em outra, e que se afastou enquanto eu ouvia o ruído de sua bengala batendo na calçada.

Reencarnação

Se alguém ainda não viu “Reencarnação”, o filme com a Nicole Kidman atualmente em cartaz, não veja. É perda de tempo. O filme é uma droga.

É tão ruim que a toda hora vaza um microfone na tela. É o tipo de coisa que se corrige facilmente na pós-produção, e a permanência de um erro tão desgraçadamente primário no filme apenas mostra a incompetência generalizada. Da primeira vez você diz “epa”. Da segunda se pergunta se aquilo, afinal, não é uma espécie de meta qualquer coisa. Da terceira percebe que não tem jeito. E ainda tem mais uma ou duas aparições do microfone entrão.

A única coisa boa no filme é a Kidman deitadinha de costas, perninha (só uma) levantada, enquanto seu noivo encarrega-se de, entre ais e uis, fazê-la esquecer o primeiro marido. A cena é desnecessária, e ainda que se considere os braços dela em posição de defesa como uma necessidade narrativa, é o tipo de cena que podia ser feita de várias formas; no mínimo mais curta.

Mas quem sou eu para reclamar da Kidman sendo delicadamente bombada. Não, eu não.

É engraçado ver Nicole Kidman se esforçando para ser mais sexy. Ela é provavelmente a única atriz hollywoodiana do primeiro time que tira a roupa regularmente (os últimos foram The Human Stain e este Birth). E em entrevista recente para a Playboy disse que gosta de “cheiro de homem”.

Tudo isso, claro, é uma medida bem pensada de marketing pessoal. Ela é considerada “a atriz mais bonita com quem ninguém tem sonhos eróticos”, e esse é um dos únicos defeitos de Kidman, em termos mercadológicos. O que é uma pena. Eu acho a Kidman absurdamente linda; e se no geral lhe falta um pouquinho de carne, a única coisa de que realmente não gosto nela são as costas.

São costas tão sem graça que, quando ela fez “As Horas”, não precisava ter usado aquela prótese no nariz. Bastava mostrar as costas. Aquelas são as costas de Virginia Woolf, sem dúvida alguma, e todos iam acreditar.

A outra coisa boa do filme é o personagem do menino. Virou o meu herói. Por tomar banhozinho de banheira com a Nicole Kidman. E por conseguir estragar tantas vidas. É preciso ser muito bom para fazer tanto mal.

Ainda o IMDb

Inagaki:

Pô Rafael, olha a injustiça que você está cometendo. Howard Hawks dirigiu “Jejum de Amor”, “O Inventor da Mocidade”, “Scarface”, “À Beira do Abismo”, “Rio Vermelho”, “Hatari”… Hawks É brilhante, sim, e jamais poderia ser equiparado ao Burton, que fez o belo “Edward Mãos-de-Tesoura”, mas depois alinhavou uma série de equívocos, como os dois Batmans, a refilmagem canhestra de “Planeta dos Macacos”, “Marte Ataca” e o supervalorizado “Peixe Grande”.

Quanto aos filmes japoneses da lista, vai por mim. Se você botou fé na minha recomendação das histórias de Don Rosa, bote mais fé ainda no que vou lhe dizer: alugue, o quanto antes, os desenhos de Hayao Miyazaki. Todos, sem exceção, são de uma beleza simplesmente embasbacante, com roteiros que fazem a gente ter inveja de tanto poder imaginativo: “A Viagem de Chihiro” (não à toa foi o primeiro desenho animado a ganhar Urso de Ouro em Berlim), “A Princesa Mononoke” (cujos diálogos foram traduzidos nos EUA por Neil Gaiman), “Meu Amigo Totoro”. Você pode ter certeza: se todos eles emplacaram o top 250 do IMDB, não foi só por causa dos japoneses – Miyazaki é admirado no mundo inteiro.

Quanto a Howard Hawks, o Ina tem toda a razão. Na verdade, foi um exemplo crasso de texto mal escrito. Misturei em uma frase só alhos e bugalhos. A idéia original era dizer que Burton era tão superestimado quanto Hawks era genial; e acabei escrevendo uma grande besteira confusa. Hawks é um dos meus diretores preferidos, embora eu não ache “Hatari!” grandes coisas e considere “O Inventor da Mocidade” bobinho. Mas Scarface é genial, e “À Beira do Abismo” e “Rio Vermelho” estão entre os meus filmes preferidos.

Eu não vejo graça em Burton; para mim lhe falta consistência — e por favor, ele destruiu o Batman, que foi transformado em uma mistura de Robocop com Jack Torrance. Vi “O Planeta dos Macacos” há pouco tempo, na TV; não tive coragem de assistir no cinema. Achava que ia ser uma tragédia total, mas ele tem pontos positivos: achei excelente a transformação da sociedade símia em uma mistura de república romana e III Reich. Mas ele consegue fazer só besteira a partir daí.

Como eu devo ao Ina a descoberta da maravilha que é o Don Rosa (e o seu próprio blog), vou dar um jeito de ver os filmes que ele recomendou. Mas tem um problema: eu não gosto da estética dos mangás. De qualquer forma, vou dar uma conferida, assim que puder. Nem que seja para falar mal depois.

Resumindo a Veja

Deve ter sido o espírito pascal, eu acho.

É a única explicação que eu encontro para ter comprado a Veja desta semana. Esse espírito de renascimento, de renovação.

Eu cresci numa época em que a Veja era imprescindível. Mas eu fiquei velho e a Veja ficou velha, e agora ela é apenas mais uma revista, uma entre muitas. Eu não costumo ler, e não sinto falta. Mas ontem, com Deus no meu coração e o coelhinho da páscoa me espiando, resolvi comprar a revista.

A primeira impressão que tive foi a de que ela está cada vez mais parecida com a Manchete. Fotos grandes, menos texto. Pode ser só impressão.

Depois vem a matéria sobre a chantagem severínica. Numa matéria superficial como a cobertura do Jornal Nacional, a revista aponta o erro petista que levou à eleição daquela coisa chamada Severino; mas não lembra que a responsabilidade maior é do PSDB e do PFL.

Uma matéria rapidinha sobre a palhaçada das FARC, para não perder de vez a credibilidade, e continua com uma matéria importantíssima sobre o peso do presidente.

Depois, uma matéria de auto-ajuda, “Idéias que paralisam”. Agora está explicada a capa da semana passada. E eu, este injusto, creditando aquilo ao velho e bom jabá de uma boa assessoria de relações públicas.

O resto é bobagem, é a pauta da semana. Mas para mim, que já vi essas notícias e análises na imprensa estrangeira e na blogosfera, muitas vezes ditas com mais inteligência, a revista se torna apenas redundante.

Aí vem a seção cultural.

A revista tece loas ao novo livro de poesias de Nelson Ascher. Nelson Ascher, para quem não sabe, é só um idiota, capaz de versinhos como “Direitos humanos já não perturbam /tirano algum, pois os slogans dos seus / guardiães agora são como o de Durban: / Abaixo o racismo e morte aos judeus”. Como não é demais repetir, Nelson Ascher é um idiota.

A coluna do Diogo Mainardi desta semana é um primor. Sem assunto, convencido e deslumbrado pela idéia grandiosa de que é o iconoclasta messiânico brasileiro por definição, agora ele diz que brasileiro não sabe fazer música, que o melhor que temos a fazer é macaquear a música estrangeira. O pior é que tem gente que vai engolir a provocação idiota.

E então chegamos ao que mais me impressiona.

O Roberto Pompeu de Toledo escreve na última página da Veja há uns 10 anos. Seu texto é elegantíssimo, seus raciocínios são excelentes. Seu último artigo é perfeito.

Mas o Pompeu de Toledo tem um defeito: ele é sensato. E eu aposto com quem quiser que ninguém vai escrever uma linha sequer sobre ele. Vão preferir falar sobre o Diogo Mainardi, que escreveu algo em que sequer acredita.

Pensando bem, não foi o espírito pascal que me fez comprar a Veja. Foi o espírito da Sexta-Feira da Paixão. Aquela coisa de expiação, pagamento de pecados, sabe como é.

Comentando a lista

Aquela lista do IMDb é feita pela votação popular. Isso explica um monte de coisas. Por exemplo, a presença de filmes que nenhum crítico sério coloca em qualquer lista.

O outro aspecto que determina a lista é a demografia. A dominância de americanos na casa dos 20 anos explica a inclusão de um bocado de bobagens. A forte presença de japoneses também explica os vários filmes nipônicos recentes de que jamais tinha ouvido falar. Isso é normal. Por exemplo, “Central do Brasil” estava nessa lista. Mas o tempo passou, e junto passou o filme do Waltinho.

Entre os primeiros colocados eu nunca soube explicar The Shawshank Redemption. Ele está em segundo há muito, muito tempo, pelo menos desde o fim da década de 90. Não sei se entendo a razão dessa preferência mundial. Acho que a saga do Tim Robbins, aceitando todo tipo de humilhações enquanto persegue o seu sonho, faz com que as pessoas se identifiquem além da medida com ele. A vidinha cotidiana tem dessas coisas.

E os filmes bons que eu não vi são uma falha grave no meu currículo. Dos que o Bia citou os que realmente me incomodam são “Testemunha de Acusação” e “A Grande Ilusão”, filmes que eu gostaria muito de ver, nem que fosse para ratificar a opinião geral de que são geniais, etc.

Mas as pessoas não sentiram a falta de alguns grandes. Buñuel é ignorado. Griffith também. É por isso que este velho stalinista tem tantas ressalvas à democracia.

E Bia e Cipy, Tim Burton, para mim, é o diretor mais hyped desde que a Cahiers du Cinèma descobriu que Howard Hawks era um gênio.

A Anna acha que é a única pessoa do mundo que não gostou de “Casablanca”. Não é verdade. Uma ex-namorada não gosta até hoje, nem comigo lhe enchendo o saco e explicando cena por cena ou estabelecendo a escala de valores do filme.

Mas se é que eu posso contar um segredo, da primeira vez que vi não consegui entender porque idolatravam tanto aquele filme. Até que vi uma segunda vez, uns cinco anos depois, e desde então minha vida tem sido um enorme mea culpa, porque pecados como esse precisam de muito tempo e muitas penitências para serem expiados.