Um post antigo sobre a Coleção Vagalume é daqueles que recebem poucos comentários, mas constantes. Quase todos discordando, claro, que concórdia não é o subtítulo deste blog. Para uma sociedade que respeita o livro como um crente respeita a religião dos outros, mas que encara o exercício de ler como uma dieta, ação adiada sempre para a próxima segunda-feira, dizer que a coleção é medíocre e imprópria para ser adotada como padrão escolar é quase como xingar a mãe do sujeito de coisas piores do que ela já é. É ignorar que, para muita gente, ler alguns livrinhos de cerca de 50 páginas, por aí, lhes traz legitimidade e a devida inserção na sociedade.
O que não parecem ter entendido é que não há nada de mau em ler aqueles livros. Eu li muitos; eram bom passatempo, livrinhos que se lia em meia hora. Mas poderia dizer que também li Sabrina, Júlia, Bianca, Tex, Mônica, Sidney Sheldon, Harold Robbins, Tio Patinhas; e daí? A questão nunca foi essa. O problema não são os livros, bons ou ruins, e sim o fato de o sistema educacional brasileiro ter feito uma escolha mediocrizante ao priorizar essa coleção como padrão literário para os estudantes. Goste-se ou não dela, para todos os efeitos a Coleção Vagalume é sub-literatura.
A outra questão que o post defendia era simples: a Coleção Vagalume não formou mais (ou melhores) leitores que livros de autores de nível muito superior. Continuamos sendo um país de analfabetos e iletrados; mas agora com cada vez menos referenciais. Talvez venha daí o antagonismo que os comentaristas criaram entre os vagalumes e Machado de Assis (que não foi citado no post mas que as pessoas parecem ter como sinônimo de boa literatura em língua portuguesa. Preferiram passar batido pelo Eça que citei; daquele pelo menos ouviram falar).
Essa comparação quase automática com o bruxo do Cosme Velho talvez seja o maior indicativo de que a coleção Vagalume não cria leitores. Eles sequer compreendem que Machado pode ter livros densos como “Quincas Borba”, mas também bobagenzinhas românticas como “Iaiá Garcia”; não compreendem porque, pelo visto, depois de “E Escaravelho do Diabo” nunca mais leram nada. Talvez por isso, por colocarem tudo em um balaio só, eles façam como o Fábio Lopes e digam que não se pode “fomentar o gosto pela leitura com Machado de Assis”. Não apenas criam um antagonismo que não existe, como fazem supor uma questão muito interessante: para esses comentaristas, antes da Coleção Vagalume ninguém neste país lia qualquer coisa. Porque não se pode fomentar, etc.
Nos anos 80, claro, o Brasil virou um paraíso de literatos. Patrícia:
Não há uma só pessoa que tenha sido alfabetizado na década de 80 que não se lembre de um livro da coleção vaga-lume. E ainda se lembrar dos titulos e das historias… Só por este motivo já esta provado a importância e a influência dos livros da coleção vaga-lume.
Lembrar não é o problema. Eu lembro daquela banda que cantava Vamos a La Playa, ô ô ô ô ô. Mas isso não faz deles algo minimamente importante. Falar nisso, lembro também da topada desgraçada que me arrancou um naco de dedo em 1983.
Se alguém conseguir me mostrar qual a vantagem de, por exemplo, (inserir aqui qualquer título da coleção Vagalume) sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, eu ficaria muito grato. Eu não consigo ver nenhuma. Porque, independente do seu nível de compreensão, o livro do defunto autor é sempre adequado a qualquer nível — já a partir da ideia do defunto autor, que se não lhe parece insólita e instigante é porque você leu mais livros demais da Coleção Vagalumes do que recomendou o doutor. Não é necessário que se compreenda Machado no nível de um Harold Bloom. Basta ler e gostar. Ninguém está pedindo que se discuta aspectos sociológicos ou psicológicos do sujeito da ABL como numa aula de mestrado.
Se alguém consegue entender um livro qualquer daquela coleção — por exemplo, os policiais para retardados de Marcos Rey — consegue entender também “A Mão e a Luva”. Consegue entender, até, “Memorial de Aires”, o livro mais superestimado da literatura brasileira. Mas as crias dos vagalumes que não acendem o rabo, criadas com o vocabulário reduzido e os raciocínios simplórios desses livros, parecem esbarrar nas dificuldades intransponíveis criadas por uma mesóclise. Não conseguem entender que Machado é fácil, é de uma simplicidade enganadora; e que não há nada de mau em ser enganado dessa forma.
Mas mesmo agora acabo enveredando por aspectos acessórios do texto. O ponto central daquele post era o de que a intenção das escolas, ao adotarem como prato principal a Coleção Vagalume, não tinha sido realizada. Ela não formou leitores. As livrarias não estão mais cheias hoje por causa dela. O resultado é que continuamos analfabetos — mas agora com mais orgulho e auto-condescendência, porque em algum momento da vida conseguimos ler, sei lá, “O Caso dos Meninos Estupefatos na Ilha do Girassol”.
Emanuelle:
Jamais uma criança de 10 anos vai se interessar por um chatíssimo José de Alencar, com sua linguagem incompreensível até para pessoas acima de 20 anos…
Jamais é tempo de menos. Eu tinha 10 anos quando saí da Graça, onde morava, e fui andando até a Ediouro que ficava na esquina da Av. Sete com a Politeama para comprar “O Guarani” (junto com “As Viagens de Tom Sawyer” e “Winnetou”). Tinha lido “Iracema” no ano anterior e gostado. Crianças de 10 anos se interessam por Alencar, sim, até porque heróis épicos como Peri e mocinhas louras e virginais como Ceci falam mais alto para essa idade; mais velhos, o que a gente quer é vida fácil e mulheres mais fáceis ainda.
Difícil é entender que uma pessoa de 20 anos ainda corra atrás do cearense. De qualquer forma, o conceito de linguagem incompreensível só é justificado quando as pessoas, além de não serem expostas a boa literatura, também são alijadas da boa gramática por professores analfabetos certos de que, assim como eles, crianças não conseguem entender nada.
É o exemplo do Diogo Basso:
Li Memórias Póstumas de Brás Cubas aos 21 anos, e a muito custo. Se eu me deparasse com esse livro aos 12 tenho certeza que não passaria nem da primeira página (quem já o leu sabe porque). Aos 12 eu lia a série Vaga-Lume, e até pouco tempo tinha pra mim que o melhor livro que eu já tinha lido era um justamente dessa coleção (Açúcar Amargo).
Se aos 21 você não consegue ler nada melhor que o que lia aos 12, você tem problemas sérios. Está explicada a dificuldade em entender um livro tão absurdamente genial. “Açúcar Amargo” deve realmente ser melhor que os outros três livros que o Diogo leu.
Diogo é um exemplo vivo de um dos problemas mais graves da sub-literatura ensinada nas escolas: ela baixa o nível e acostuma ao que é menor. É como o sujeito que toma Canção a vida inteira e estranha o gosto de um Almaviva. As pessoas parecem criar uma ojeriza instintiva a literatura um pouco mais elaborada. Jamais leriam um Osman Lins, por exemplo, para citar um de que a imensa maioria deles jamais ouviu falar.
Mesmo assim, gente como o Mauro Cesar se irrita:
Rafael, percebe-se que você não entende absolutamente nada sobre formação de leitores e é graças a gente como você que o Brasil patina nos indicadores de leitura. Leia esse artigo aqui e aprenda um pouco:
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1244
Eu pensava que o Brasil patinava nos indicadores de leitura porque, além de questões sociais mais graves e mais decisivas, professores preguiçosos e mal-formados ajudaram a baixar o nível do ensino. Porque o que sobra neste mundo é gente que adota a demagogia burra como modelo de vida, e se irrita com quem acha os seus valores e suas idéias inadequados. Mas o Mauro, com a arrogância da ignorância que é peculiar em quem tem orgulho de cada livro ruim que leu, viu neste pobre blogueiro um ser nocivo à sociedade. Preciso agradecer a ele.
O Alexandre Franco mostra outra conseqüência:
Infelismente , nao concordo com vc , se hoje eu me interesso, pela leitura ,é porque tive uma introduçao gostosa, sem pressao
O Alexandre tem razão. Eu, concordo, que, pressão, nessas, horas, torna, tudo, mais, traumático. Carinho e paciência, em momento tão importante, são fundamentais. Ouvi falar de mulheres que se tornaram frígidas por isso, pela pressão na hora da introdução. Tem uns escritores por aí que são uns cavalos. Mas acho que agora entendi. Alguns preferem a Coleção Vagalume para evitar esses traumas: porque são pequenos e fininhos.
No fim das contas, eu fico é com o comentário do Elton:
Acho que entendi o seu ponto de vista: nada contra a molecada ir na biblioteca e ler os livros da coleção vaga-lumes por diversão, mas o uso destes livros pelos professores como a base de cursos de literatura, ou melhor, de leitura, não é adequado. Não duvido que tenha gente por ai usando Paulo Coelho com o mesmo intuito. Nada contra os que voluntariamente se prestam a ler este tipo de porcaria, mas existem coisas mais adequadas de se colocar em uma sala da aula. E vamos parar com essa estória de que ler qualquer coisa aumenta o nível intelectual, como se passar os olhos sobre letras pretas em fundo branco tivesse alguma propriedade mágica. Muitas vezes o efeito de certas leituras é exatamente o contrário, como não me deixa mentir a imprensa nacional.
Eu não escreveria com mais concisão e simplicidade. E por isso continuo afirmando que, se é para ser analfabeto, que se seja analfabeto em algo realmente bom. Pelo menos é uma ignorância mais nobre, se é que há alguma nobreza nisso.
Republicado em 06 de agosto de 2010