Disney na Culturama

Quando a Culturama, uma editora pequena do Rio Grande do Sul, anunciou que tinha conquistado os direitos de publicação das revistas Disney no Brasil após a derrocada da Abril, recebi a notícia com um pé atrás: independente de qualquer coisa, duvidei que ela conseguisse distribuir as revistas em algum nível minimamente comparável ao que a Abril tinha alcançado.

É claro que não faço ideia das razões que fizeram a Disney escolher uma editora pequena do extremo sul de um país continental para editar e distribuir suas revistas. Eu não entendo do mercado editorial e não sei como funcionam suas razões. Mas não precisava ser Sir Lock Holmes para ver que isso tinha tudo para não dar certo. Achava difícil que a Culturama conseguisse colocar suas revistas no Amapá, por exemplo, ao menos de maneira regular. Essa era a grande diferença: durante quase setenta anos, sempre houve uma revista Disney nas bancas de todo o Brasil. Isso não aconteceu nem nos Estados Unidos, e era em grande parte mérito da impressionante sistema de distribuição da editora dos Civita. Eu duvidava que a Culturama fosse capaz de conseguir algo remotamente parecido.

Mas foi pior que isso. As novas revistas foram lançadas com algum estardalhaço, ao menos nas redes sociais, em março. Desde então, procurei por elas em quatro estados: Sergipe, Bahia, Pará e Ceará. Em nenhum deles consegui achá-las; nem nas bancas, nem em lugar algum. Finalmente achei as número zero na Bienal do Livro em Fortaleza, em agosto, cinco meses depois de terem sido lançadas. Basicamente, eram encalhe em busca de uma segunda chance. Agora, em outubro, achei algumas revistas em Aracaju, números que aparentemente foram lançados há alguns meses. No site dizem que estão distribuindo as revistas em todo o Brasil. É uma meia mentira. A Culturama parece ser incapaz de ao menos estabelecer uma estrutura de distribuição sistematizada, distribuindo suas tiragens e datas de lançamento de modo a minimizar o encalhe, coisa que a Abril fazia desde sempre com algumas publicações.

Agora que li as revistas, posso dar uma opinião sobre os quadrinhos Disney nestes tempos pós-Abril. É preciso lembrar que li essas revistas em seu auge e acompanhei o início de sua decadência, e é esse padrão, defasado por décadas de ignorância quanto à sua evolução, que ainda hoje define para mim o que deve ser uma revistinha Disney.

São cinco novos títulos: Pato Donald, Tio Patinhas, Mickey, Pateta e Aventuras Disney. São todas muito parecidas: 64 páginas, papel offset. A impressão é excelente, mas para mim o papel é estranho. É culpa minha: para mim, que tenho lembranças demais, lembram as revistas da EBAL, de que não gostava muito. As capas são de uma mediocridade assombrosa, como já eram na Abril nos últimos anos. Vão longe os tempos em que, com exceção da Almanaque Disney, cada capa trazia uma gag visual, sendo quase uma outra historinha. Para piorar, uniformizaram os logos, tirando das revistas a identidade própria que carregaram em seus tempos áureos no Brasil.

A uniformidade mediocrizante não se restringe ao logo, no entanto. A Abril buscava ocupar faixas diferentes de mercado. Das mais baratas, como a Pato Donald e a Zé Carioca, às mais caras, como as Disney Especial, havia sempre uma revista para cada bolso, o que provavelmente ampliava sua penetração de mercado. Mas as revistas da Culturama, independente do título que carregam no alto de suas capas, parecem ser a mesma revista, apenas com personagens diferentes. Pelo visto, só existe um tipo de leitor padrão para elas — e imagino que sejam velhos caquéticos semi-esclerosados, saudosos de outros tempos. Gente como eu.

A falta de variedade é outra deficiência. Cada revista traz apenas os personagens que lhes dão título, com exceção da Aventuras Disney, que parece tentar ocupar mais ou menos o lugar da antiga Almanaque Disney, embora seja muito mais pobre que o original: é só uma coletânea com os mesmos personagens das outras revistas. Infelizmente, ainda lembro que uma revista Disney, em outros tempos, tinha um universo absurdamente diversificado: além dos Donalds e Mickeys da vida, traziam também personagens variados como Quincas, Bambi, Havita, Banzé e personagens originados nos longas da Disney — além de quadrinizações dos filmes que ela lançava —, e tornavam a experiência de leitura algo muito mais rico do que é hoje.

As histórias publicadas agora vêm da Dinamarca e da Itália. Desde sempre eu não gosto das histórias italianas, cujo histrionismo e exagero gráfico mais parecem uma caricatura do italiano médio. Para mim elas nunca tiveram a universalidade simples e cosmopolita das histórias de Carl Barks, nem a sofisticação narrativa de Don Rosa, e sempre achei que elas foram um dos ingredientes da decadência da Disney no Brasil. Ninguém com bom gosto podia gostar daquilo.

Mesmo assim as histórias apresentadas me surpreenderam. Talvez por estar esperando uma tragédia total, medo que se aliava ao absoluto desconhecimento do que se andou fazendo nos últimos tempos, o que vi me deixou satisfeito. Há boas histórias sendo produzidas mundo afora, mesmo na bota. E a edição da Culturama é boa, cuidadosa, embora se note uma falta de criatividade impressionante — basta lembrar dos nomes dos personagens de décadas atrás, sempre com trocadilhos que faziam a delícia das crianças e que agora estão ausentes. O único grande defeito que consegui ver foi o fato de as histórias estarem longas demais agora. Nos tempos áureos da Disney no Brasil, mesmo a Pato Donald e a Zé Carioca traziam um número grande de histórias em cada edição, sempre variadas. Essa variedade não existe mais.

A maior deficiência nesse relançamento da Disney, no entanto, ainda maior que a distribuição abaixo do medíocre, não é exatamente culpa da Culturama.

Uma das melhores coisas da Disney no Brasil, principalmente a partir dos anos 70, eram as histórias produzidas no Brasil, especialmente as do Zé Carioca. Elas tinham um elemento que falta a todas essas novas revistas: uma brasilidade que tornava as histórias mais atraentes, mais próximas do leitor por lidarem com os mesmos padrões culturais. Se a Turma da Mônica continua firme e forte não é apenas porque tem uma estrutura de distribuição muito superior; é porque suas histórias são criadas por brasileiros, respeitando as características culturais do país. São como sempre foram, imensamente inferiores ao que a Disney publicou de melhor no país, como as histórias de Carl Barks e as do Zé Carioca. (Na verdade são inferiores mesmo ao que Maurício de Souza fazia no final dos anos 70.) Mas são mais adequadas, sentem melhor o pulso dos seus leitores. O material exclusivamente global que a Culturama disponibiliza se ressente da ausência desses pontos de identificação.

Sei que não podem publicar histórias do Zé Carioca porque as antigas pertencem também à Abril, e já há décadas não se produz mais histórias dos personagens Disney no Brasil. Mas o fato de saber não torna as revistas da Culturama melhores.

O  grande problema é que, no longo prazo, nada disso importa.

Ler essas revistas me deixou, acima de tudo, com uma certeza: os quadrinhos Disney não têm futuro no país. Não estou rogando praga, eu que também lamentei o fim das revistas na Abril. Mas a única maneira deles terem alguma esperança seria a retomada da produção de quadrinhos brasileiros, como a Abril fez durante os anos 70 e, principalmente, 80. E nada indica que isso vá acontecer. Na verdade, talvez nem isso fosse garantia de que elas tivessem alguma sobrevida.

No livro “O Homem Abril”, Gonçalo Júnior conta que Roberto Civita sabia exatamente em que momento as revistas em quadrinhos iniciaram a sua decadência no Brasil: o dia em que a Censura Federal liberou as revistas com nu feminino total no país. Naquele instante, os quadrinhos Disney perdiam os leitores adultos — caminhoneiros e quetais em uma população majoritariamente analfabeta ou semiletrada. O efeito foi imediato: a partir dali, as revistas que vendiam centenas de milhares de exemplares a cada edição — a Tio Patinhas chegou a vender mais de 500 mil todo mês — passaram a vender cada vez menos. Jamais voltariam a vender o que vendiam antes. Mas as consequências foram ainda piores que a simples queda nas vendas. Quando os adultos deixaram de ler essas revistas, elas perderam um espaço importante no imaginário das pessoas. Passaram a ser exclusivamente coisa de criança, e portanto menores.

Mas ali era só o começo. Causas mais importantes vieram depois. A internet é a maior delas, mas no Brasil até a violência urbana (que impede as crianças de irem sozinhas às bancas, como eu ia tanto) contribuiu para a decadência. No entanto, na minha opinião a razão mais grave é o simples passar do tempo, a mudança de sensibilidades. As crianças não querem mais ler essas historinhas, ponto final. O mundo que as cerca lhes oferece atrativos mais adequados, como desenhos, jogos, filmes. Revistinhas em quadrinhos pertencem a outros tempos, em que nem todos tinham TV com apenas dois ou quatro canais, em que as relações sociais se davam de maneira diferente e menos intermediada pela tecnologia. A queda da Abril não mudou nenhum desses fatores, e não será a Culturama que irá revertê-los.

Por isso não dá para levar muita fé no futuro desses quadrinhos. É até chato escrever um vaticínio desses porque imagino que para o pessoal que edita essas revistas este é principalmente um ato de amor, e o trabalho que realizam é bom. Há algo de heróico, embora talvez quixotesco, em sua tentativa de manter esse universo vivo, um universo que definiu o imaginário de pelo menos dez gerações de crianças.

Mas não adianta brigar com o tempo. As revistas em quadrinhos acabaram. Sua era está chegando ao fim, assim como as bancas de jornais em que eram vendidas. Eles fizeram a alegria de outras gerações, que envelheceram e trazem consigo as lembranças de sua própria juventude.

Uma das coisas que me impressionam hoje em dia é que tantos dos personagens com que cresci, quase todos, se tornaram anacrônicos, até ridículos. Como levar a sério o Mandrake, hoje? Um mágico de cartola? Como levar a sério uma Princesa Narda quarenta anos depois de Stephanie de Mônaco arrepiar o jet set europeu? Como respeitar a mera ideia de Lothar, o príncipe africano que, como bom neguinho, se permite ser o capacho de um mágico, por poderoso que ele seja?

Ainda pior é o fato de que esse anacronismo vai muito além do simples choque de realidade. É verdade que a minha ignorância permitia o nascimento da magia e de um mistério que só crianças podem criar, mas mesmo hoje o Fantasma, para mim, pode viver numa floresta equatorial tipo as do Congo. Eu sei que isso é teoricamente possível. Mas para a menininha que cresceu assistindo ao Discovery e ao National Geographic, a África deve ser um grande Serengeti, e algo como a Floresta Negra é absolutamente irreal para ela. Mais irreal que jedis derrubando impérios com seus sabres de luz.

São os novos tempos. Não dá para brigar com eles.

A destruição do mundo pelos cristãos

Toda religião é deletéria e nociva. As religiões monoteístas derivadas do judaísmo são ainda piores. Mas nenhuma gerou tanta destruição quanto o cristianismo em seus primeiros séculos.

Da primeira vez que fui à Itália, uma das visões que mais me impressionaram foi, no caminho entre Fiumicino e Roma, uma velha igreja católica construída sobre um templo romano. As colunas de mármore em estilo coríntio estavam lá, mas sobre elas tinham erigido uma nova besta, tijolos de argila assentados por uma civilização mais atrasada, uma cultura nitidamente inferior se sobrepondo a algo mais belo. Ali se podia entender como o cristianismo se impôs à cultura romana: através da destruição de todo um mundo e da construção sobre suas ruínas.

A maneira como se deu essa destruição é o tema de The Darkening Age, da inglesa Catherine Nixey, livro interessante que vale a pena por ser lido.

A história que Nixey conta é aterrorizante. Começando pela destruição do Templo de Atena em Palmira, passando pelos mais diversos exemplos de mutilação e destruição de estátuas, ideias e, quando necessário, pessoas, mostrando sua origem doutrinária e terminando com o fechamento da Academia de Atenas (é, aquela de Sócrates e Platão) pelo Código Justiniano, em 532 D.C., ela narra a trajetória da consolidação do cristianismo a partir da tentativa de obliteração não apenas das religiões pagãs, mas também de seus marcos e de seus fiéis.

Nixey não está no patamar de um Paul Veyne ou mesmo de uma Mary Beard. Seu livro é limitado, com foco excessivamente estreito na crônica da destruição causada pelo cristianismo nos séculos IV e V. Ela não quer ou não pode escrever um livro que tente esgotar o assunto, que aborde com mais profundidade a variedade de fatores que geraram essa destruição. Essa é a grande falha de The Darkening Age: a falta de contextualização e de aprofundamento no processo histórico que possibilitou a consolidação do cristianismo e sua radicalização absoluta e totalitária.

São muitas lacunas, muitas delas no mínimo úteis para que se compreenda apropriadamente o fenômeno da ascensão destruidora do cristianismo. Por exemplo, para um livro que fala tanto em demônios, especialmente em sua primeira parte, não custava lembrar que eles não são um conceito judaico introduzido pelos cristãos na cultura ocidental, mas a vilificação dos daemons que já estavam presentes no cotidiano de cada romano. Ao cristianismo nunca bastou mostrar a opção de um mundo diferente: cumpria também dizer que o mundo ao qual forçavam uma alternativa era maléfico, seus valores e crenças eram intrinsecamente perversos. Era necessário destruir o outro para validar-se.

Nixey gasta páginas demais para contar histórias escabrosas de Nero sem nenhum critério, mais ou menos como a fofoqueira que comenta o “mau passo” da filha da vizinha sem se responsabilizar por isso. Há muito tempo nenhum historiador que se dê ao respeito leva ao pé da letra as histórias fantásticas contadas sobre Nero por historiadores como Suetônio e Tácito. Entendem o viés de classe, ou a menos a luta política entre facções, na formação da lenda negativa do sujeito da lira ardente e sua inserção no contexto histórico de um período turbulento de Roma. Mais importante, levam em consideração outras evidências para perceber que há um problema inerente à imagem de Nero quando entendemos que ele foi um imperador tão popular que, depois de sua morte, pipocaram impostores dizendo ser ele em vários cantos do império. Nixey não quer contexto, no entanto: ela apenas apresenta as estórias sem nenhuma ressalva historiográfica, porque fazem leitura saborosa. Nixey é professora de história, mas é também jornalista — o que talvez tenha lhe angariado uma boa vontade excessiva nas resenhas publicadas na imprensa inglesa —, e quem quer que conheça o mau estado atual dos jornais da velha Albion pode entender os padrões narrativos a que ela obedece.

Mas há falhas mais graves do que o deleite em mostrar Nero prestando serviços sexuais a todo um pelotão de soldados. Por exemplo, Nixey se abstém de lembrar que o processo de afirmação do cristianismo foi acompanhado também por vários níveis de negociação e de acomodação com a cultura pagã. O processo de evolução cultural nunca se dá por via única, nem de maneira absoluta. O cristianismo não se impôs de modo tão puro como o registro de suas atrocidades faz parecer. Absorveu muitas das estruturas religiosas do mundo romano — a começar pela criação de uma hierarquia de santos que guarda semelhança quase xerográfica com a lógica da multidão de deuses romanos —, buscou pontos de convergência entre suas culturas, e com o tempo acomodou muitas das práticas que, antes que religiosas, representavam o modo de vida dos romanos.

É a aparente opção por ignorar aspectos mais complexos desse processo, talvez para reforçar a monstruosidade cristã, que introduz a falha mais grave nesse livro: não colocar o triunfo do cristianismo dentro do contexto do Império Romano.

No século V, o Império Romano estava implodindo. A partir de Trajano, havia se expandido muito além dos limites definidos no testamento de Augusto, menos em razão da busca da glória apontada por Gibbon do que pela necessidade objetiva de sustentar Roma, e agora sucumbia ao seu tamanho. Pressões migratórias enfraqueciam o império por todos os lados, e a sua descentralização cobrava um preço alto. As legiões romanas, antes temíveis e uma das mais fantásticas unidades bélicas da história, agora eram compostas pelos povos que ajudavam a dominar, o que fazia mais difícil e complexa a imposição da pax romana. Se tornara impossível impedir as convulsões sociais causadas pelas necessidades de tantos povos diferentes — cidadãos romanos desde o Édito de Caracala —, e que levariam ao melancólico destino do pobre Rômulo Augusto. Não custa lembrar que Odoacro era cristão.

Aquela era uma civilização em crise, tanto material quanto ética. E nesse contexto, a mensagem cristã — milenarista, salvacionista, austera, fortalecendo-se sobre a ideia de culpa e de negação de qualquer tipo de prazer — encontrou um campo fértil. As pessoas viam o seu mundo ameaçado e tinham medo. Jesus Cristo e sua mensagem de auto-justificativa e perdão a si mesmo se tornavam, cada vez mais, uma opção atraente.

O cristianismo cresceu utilizando a seu favor o medo e a intolerância: o momento histórico ajudava a tornar suas ameaças e promessas mais eficientes, até desejáveis. Explicar esse contexto ajudaria os leitores a compreender melhor como a cristianismo gerou a Idade Média.

Talvez fosse recomendável, também, lembrar que a ascensão do cristianismo se deu de baixo para cima. Cresceu primeiro entre a rafameia, entre os mais ignorantes, desesperados e crédulos, e certamente carregou em si muito da visão de mundo e dos preconceitos dessa camada social. É difícil não ver na ascensão do cristianismo também uma resposta de classe, com seus ressentimentos, seu desejo de vingança e de acerto de contas, seus recalques e a vontade de impor uma visão de mundo condicionada pela escassez material e pela indigência intelectual. Qualquer brasileiro que tenha passado pelas eleições de 2018 poderia compreender o que isso significa.

Mas esse não é o livro que Nixey quis escrever. Seu escopo é muito mais modesto, e ela se concentrou na crônica da destruição. Delineados os seus limites, o que resta é um relato competente e bem escrito de uma história fascinante, ainda que aterradora.

É uma história de fanatismo, ódio, ressentimento, de crueldade pia.

A fúria destruidora dos cristãos dificilmente encontraria paralelos hoje em dia; mesmo o Talibã e o Estado Islâmico, adeptos entusiasmados da destruição de monumentos heréticos, não chegam sequer perto do nível de destruição alcançado pelos cristãos a partir do momento em que tiveram respaldo estatal, com a conversão de Constantino. O linchamento de Hipácia de Alexandria é contado aqui com detalhes, e serve como símbolo do ódio misógino do cristianismo ao conhecimento e à liberdade.

Uma após a outra, Nixey nos apresenta as ideias e ensinamentos assustadores dos primeiros grandes doutrinadores cristãos. São João Crisóstomo, Orígenes, Santo Agostinho e São Jerônimo têm seus textos citados como o que também eram, anúncios e chamados a um mundo diferente: sombrio, odiento, negativo. Aqueles que tentam convencer o mundo de que as tragédias causadas pelos cristãos são obras de indivíduos, e não resultado da religião em si, encontrariam dificuldades em justificar as palavras de seus pensadores. “Não há crime para quem está com Cristo”, disse São Shenoute, e nisso pode-se resumir sua filosofia. Para salvar almas, era válido destruir os corpos dos infiéis; o cristianismo se tornou exatamente o que seus doutrinadores queriam que ele se tornasse.

Nixey dedica ainda alguns capítulos aos ascetas e eremitas que formaram a lenda cristã. São trechos saborosos, em que ela demonstra que grande parte das tentações e das visões desse pessoal se devia basicamente a coisas tão prosaicas como a fome auto-inflingida, e que se tornam ainda mais pitorescos em um tempo em que a humanidade recuperou alguns dos valores hedonísticos que eles tentavam destruir. Para um pobre eremita que não come direito há semanas, é quase inevitável dizer que ele só pensa em enfiar os dentes num pernil de cordeiro, aquela imagem desgraçada que não lhe sai do pensamento e atrapalha cada Pai Nosso que ele tenta repetir, por causa das tentações do diabo. Nixey fala de gente que passou a vida se vestindo com andrajos e abdicando de qualquer noção de higiene, gente que realmente acreditava que não tomar banho lhe colocava mais perto de Deus Nosso Senhor — um ser tão superior que sequer tem olfato. Fala de gente que fez da hipocrisia um modo de vida, que acreditava nas mentiras que contava, de gente que encontrou na religião uma maneira fácil de justificar a sua existência e sublimar sua vaidade apostando na conquista de algum tipo de reconhecimento em outra vida. E que eventualmente transformava isso em perseguição ao resto da humanidade. Afinal, “a perseguição pela Igreja é um ato de amor”, dizia Santo Agostinho.

A negação do prazer e do desejo, o ódio à tolerância — exemplificados na instituição da pena de morte a todos os que fizessem sacrifícios religiosos, na rejeição à boa cozinha ou na criminalização do homossexualismo no século V por Justiniano —, o ódio à arte e a disposição para matar e torturar em nome da piedade definiram o cristianismo e pautaram a existência de seus seguidores e a civilização que eles criaram. Santo Agostinho é o pai carinhoso de São Tomás de Torquemada.

No fim das contas, tudo isso geraria um período de atraso que o Ocidente precisaria de mais de mil anos para superar.

Nixey ajuda ainda a derrubar um mito antigo mas persistente. Ela lembra que embora a Igreja seja louvada pela preservação de tantos textos da Antiguidade, o fato é que ela é responsável, ainda mais, pela obliteração de um volume muito maior. A censura eclesiástica condenou ao esquecimento e à destruição boa parte da produção filosófica e literária da cultura greco-romana, ao escolher preservar essencialmente o que estava de acordo com os preceitos da Santa Madre, ou ao menos não a ofendia em demasia. Foi graças às escolhas discricionárias de monges progressivamente mais ignorantes que o mundo se viu privado de 90% do que o mundo clássico produziu de mais notável. Essa dívida o cristianismo jamais poderá pagar.

The Darkening Age serve também para lembrar que a queda do império romano não é a mesma coisa que a obliteração da cultura clássica. Não é a mesma coisa que, por exemplo, a substituição da Inglaterra pelos Estados Unidos como grande potência mundial. É o fim de uma era e de uma civilização. Roma implodiu, os cristãos destruíram templos e mutilaram estátuas, celtas e pictos botaram os romanos para correr da Britânia; mas os reinos que os substituíram eram cristãos. Foi no campo das ideias que os cristãos levaram o mundo ocidental a um retrocesso cultural sem precedentes na história mundial.  E para que isso fosse possível, primeiro foi necessário destruir o pensamento e os símbolos romanos — que, por sua vez, sintetizavam tudo o que de bom e ruim o Ocidente tinha produzido até então.

Ultimamente tem aparecido gente para dizer que a Idade Média, afinal de contas, não foi uma era tão sombria. Com todas as suas limitações, o livro de Catherine Nixey serve para colocar as coisas em seu lugar: foi, sim, uma era de trevas e de retrocesso inédito. Não foi o resultado de uma hecatombe, como a destruição da Biblioteca de Alexandria, ou as mudanças climáticas que aparentemente causaram o fim da civilização maia, ou os 168 espanhóis de Pizarro chacinando 20 mil soldados do império inca; foi o resultado de um processo lento, constante e consciente de obliteração de uma série de conquistas da humanidade. Tudo isso em nome de Deus. O maior mérito de The Darkening Age é justamente mostrar que o advento do cristianismo interrompeu o processo civilizatório no Ocidente. Pagamos por isso até hoje.