Ao longo dos quase quatro anos em que este blog está no ar, muitas pessoas, de maneira consistente e regular, deixaram comentários a um post antigo sobre “Daniel Boone”, que está perdido em algum lugar (seriado sobre o qual devo falar novamente, quando a preguiça deixar).
Ninguém, no entanto, deixa comentários no único post sobre Married With Children. Ninguém procura no Google por ele. As pessoas parecem ignorar esse seriado, mesmo que ele tenha sido um dos que passaram mais tempo no ar, recorde batido depois pelos Simpsons, e que o canal Sony tenha exibido reprises até pouco tempo atrás.
Married With Children foi o melhor seriado que a TV americana produziu em toda a sua história — e isso inclui unanimidades como “Os Simpsons” ou “Seinfeld”. Contava o dia-a-dia de uma família típica americana, os Bundy: pai, mãe, filho, filha, cachorro. Poderia ser igual a tantos outros seriados — qualquer um pode citar pelo menos cinco feitos dessa matriz, o american way of life soletrado para simplórios — não fosse por um pequeno detalhe: em Marrried With Children não havia amor, felicidade, não havia redenção, não havia nada. Havia esperança, sim; mas ela nunca conseguia chegar ao final do episódio. E por isso os Bundy eram uma família tão típica quanto, por exemplo, as pessoas felizes de “Cosby”; só que era mais verdadeira.
Foi talvez o seriado mais vulgar feito pela TV americana. E também o mais selvagemente engraçado, o mais cínico, o mais insolente. Principalmente, foi o mais cruel seriado americano já feito.
O cinismo começava pela música de abertura, Love and Marriage de Frank Sinatra, talvez a maior antítese possível ao que o seriado mostrava (“Love and marriage, love and marriage / Go together like a horse and carriage“); passava pelo nome da família, Bundy, que não lembra coisas boas a nenhum americano. E terminava no prazer sádico com que humilhava todos eles. Apresentava uma visão das instituições mais sagradas americanas, o casamento, a família e o tal sonho americano, como eles realmente são para milhões de pessoas — respectivamente o fim de qualquer esperança de felicidade, uma ilusão que não passa muito do primeiro orgasmo (dele, não dela), e um grande, interminável e mesquinho pesadelo.
O modelo familiar era subvertido: Al Bundy era um fracassado na escala mais baixa da cadeia alimentar masculina (vendedor de sapatos femininos, o que o fazia ter pesadelos à noite com senhoras imensamente gordas de pernas abertas diante dele); Peggy Bundy era uma dona de casa preguiçosa e mal amada; Bud Bundy era um bobo que não comia ninguém e cuja única companhia feminina era uma boneca inflável; e Kelly Bundy era uma adolescente promíscua e indefensavelmente burra.
Com esses ingredientes Married With Children foi capaz de fornecer um dos mais acurados retratos da família típica americana. Não há concórdia, há raiva, inveja, despeito, desprezo mútuo; não existe amor, existe apenas o fracasso que os mantém juntos. De uma forma torta, eles são, sim, uma família; mas apenas porque não podem aspirar a nada melhor que isso.
Walter Mosley é, na minha opinião, o melhor autor policial da atualidade. As pessoas devem conhecer pelo menos um livro dele, porque virou filme: “O Diabo Veste Azul“, com Denzel Washington no papel de Easy Rawlins. Desgraçadamente, há apenas outro livro seu publicado em português, Little Scartlet, com o título estúpido de “Quem Matou Nola Payne?” porque editores brasileiros parecem não conseguir perceber que, na velha e boa tradição do hard boiled, quem matou quem é o que menos importa. Essas perguntas ficam para farsantes como Agatha Christie. E com apenas esses dois livros em português os leitores brasileiros perdem a chance de ler bons romances noir como Black Betty e A Red Death.
Há quatro anos, quando a Fox, canal que exibia originalmente o seriado, fez um especial de reunião do elenco de Married With Children, Mosley escreveu um artigo para o New York Times que o definia com perfeição. Ele lembra que Al Bundy era o seu herói porque era um sobrevivente, no único seriado que não sentia a necessidade adulatória de redimir a classe trabalhadora com uma visão rósea e falseada de sua realidade. Era um artigo tão bom que eu guardei, e que agora disponibilizo aqui.
Porque Al Bundy também era o meu herói. Havia algo de tremendamente familiar em sua estupidez, no jeito como chegava em casa todas as noites, enfiava a mão dentro das calças e assistia ao seu seriado preferido, Psycho Dad, que sublimava o que podiam ser suas maiores vontades.
Como eu disse, ninguém deixa comentários no post sobre Married With Children, enquanto enchem regularmente a caixa do post sobre “Daniel Boone”. Mas “Daniel Boone” é um seriado que deixou de ser exibido há pouco mais de vinte e cinco anos. Talvez daqui a umas duas décadas as pessoas consigam lembrar de Married With Children. Mas é improvável. Se “Daniel Boone” impressiona pelos sentimentos nobres e pelos bons exemplos, Married with Children só pode impressionar pelo retrato feio que faz da família e dos bons costumes. E disso ninguém gosta de lembrar.
Republicado em 27 de julho de 2010