Married with Children

Ao longo dos quase quatro anos em que este blog está no ar, muitas pessoas, de maneira consistente e regular, deixaram comentários a um post antigo sobre “Daniel Boone”, que está perdido em algum lugar (seriado sobre o qual devo falar novamente, quando a preguiça deixar).

Ninguém, no entanto, deixa comentários no único post sobre Married With Children. Ninguém procura no Google por ele. As pessoas parecem ignorar esse seriado, mesmo que ele tenha sido um dos que passaram mais tempo no ar, recorde batido depois pelos Simpsons, e que o canal Sony tenha exibido reprises até pouco tempo atrás.

Married With Children foi o melhor seriado que a TV americana produziu em toda a sua história — e isso inclui unanimidades como “Os Simpsons” ou “Seinfeld”. Contava o dia-a-dia de uma família típica americana, os Bundy: pai, mãe, filho, filha, cachorro. Poderia ser igual a tantos outros seriados — qualquer um pode citar pelo menos cinco feitos dessa matriz, o american way of life soletrado para simplórios — não fosse por um pequeno detalhe: em Marrried With Children não havia amor, felicidade, não havia redenção, não havia nada. Havia esperança, sim; mas ela nunca conseguia chegar ao final do episódio. E por isso os Bundy eram uma família tão típica quanto, por exemplo, as pessoas felizes de “Cosby”; só que era mais verdadeira.

Foi talvez o seriado mais vulgar feito pela TV americana. E também o mais selvagemente engraçado, o mais cínico, o mais insolente. Principalmente, foi o mais cruel seriado americano já feito.

O cinismo começava pela música de abertura, Love and Marriage de Frank Sinatra, talvez a maior antítese possível ao que o seriado mostrava (“Love and marriage, love and marriage / Go together like a horse and carriage“); passava pelo nome da família, Bundy, que não lembra coisas boas a nenhum americano. E terminava no prazer sádico com que humilhava todos eles. Apresentava uma visão das instituições mais sagradas americanas, o casamento, a família e o tal sonho americano, como eles realmente são para milhões de pessoas — respectivamente o fim de qualquer esperança de felicidade, uma ilusão que não passa muito do primeiro orgasmo (dele, não dela), e um grande, interminável e mesquinho pesadelo.

O modelo familiar era subvertido: Al Bundy era um fracassado na escala mais baixa da cadeia alimentar masculina (vendedor de sapatos femininos, o que o fazia ter pesadelos à noite com senhoras imensamente gordas de pernas abertas diante dele); Peggy Bundy era uma dona de casa preguiçosa e mal amada; Bud Bundy era um bobo que não comia ninguém e cuja única companhia feminina era uma boneca inflável; e Kelly Bundy era uma adolescente promíscua e indefensavelmente burra.

Com esses ingredientes Married With Children foi capaz de fornecer um dos mais acurados retratos da família típica americana. Não há concórdia, há raiva, inveja, despeito, desprezo mútuo; não existe amor, existe apenas o fracasso que os mantém juntos. De uma forma torta, eles são, sim, uma família; mas apenas porque não podem aspirar a nada melhor que isso.

Walter Mosley é, na minha opinião, o melhor autor policial da atualidade. As pessoas devem conhecer pelo menos um livro dele, porque virou filme: “O Diabo Veste Azul“, com Denzel Washington no papel de Easy Rawlins. Desgraçadamente, há apenas outro livro seu publicado em português, Little Scartlet, com o título estúpido de “Quem Matou Nola Payne?” porque editores brasileiros parecem não conseguir perceber que, na velha e boa tradição do hard boiled, quem matou quem é o que menos importa. Essas perguntas ficam para farsantes como Agatha Christie. E com apenas esses dois livros em português os leitores brasileiros perdem a chance de ler bons romances noir como Black Betty e A Red Death.

Há quatro anos, quando a Fox, canal que exibia originalmente o seriado, fez um especial de reunião do elenco de Married With Children, Mosley escreveu um artigo para o New York Times que o definia com perfeição. Ele lembra que Al Bundy era o seu herói porque era um sobrevivente, no único seriado que não sentia a necessidade adulatória de redimir a classe trabalhadora com uma visão rósea e falseada de sua realidade. Era um artigo tão bom que eu guardei, e que agora disponibilizo aqui.

Porque Al Bundy também era o meu herói. Havia algo de tremendamente familiar em sua estupidez, no jeito como chegava em casa todas as noites, enfiava a mão dentro das calças e assistia ao seu seriado preferido, Psycho Dad, que sublimava o que podiam ser suas maiores vontades.

Como eu disse, ninguém deixa comentários no post sobre Married With Children, enquanto enchem regularmente a caixa do post sobre “Daniel Boone”. Mas “Daniel Boone” é um seriado que deixou de ser exibido há pouco mais de vinte e cinco anos. Talvez daqui a umas duas décadas as pessoas consigam lembrar de Married With Children. Mas é improvável. Se “Daniel Boone” impressiona pelos sentimentos nobres e pelos bons exemplos, Married with Children só pode impressionar pelo retrato feio que faz da família e dos bons costumes. E disso ninguém gosta de lembrar.

Republicado em 27 de julho de 2010

Umas duas palavrinhas sobre os Beatles

Não é comum ver matérias sobre os Beatles escritas por quem realmente entende do assunto. E o Marcelo O. Dantas entende. Publicou um belo artigo na Piauí de dezembro (que já tinha sido mostrado em parte no material de divulgação do primeiro número da revista, há alguns meses). Dantas cria, para começar, um trocadilho que define à perfeição o arquétipo da dupla Lennon & McCartney: apaulíneo e johnisíaco. Normalmente não gosto de trocadalhos do carilho, mas esses fazem sentido.

Como descobri agora que o artigo está disponível online, vale a pena linkar o danado.

É definitivamente um grande texto sobre os Fab Four. Por exemplo, ele lembra que os Beatles eram uma grande banda cover. Gravavam canções de outros artistas como ninguém, e muitas vezes faziam das suas as versões definitivas (é só pensar em Twist and Shout, Long Tall Sally e Words of Love, em que a mudança de acordes — C, F e G para A, D e E — muda completamente a canção). Normalmente esse fato é um pouco obscurecido pela concepção geral de que os Stones eram uma banda infinitamente superior ao vivo. Um equívoco baseado na percepção do esquema da beatlemania: shows de meia hora repetindo sempre a mesma performance, para um público histérico cujos gritos tornavam impossível ouvir qualquer coisa. Para entender o que foram os Beatles ao vivo, o melhor é ouvir as gravações semi-oficiais feitas no Star Club, em Hamburgo, 1962. A qualidade de som é deplorável, mas ali está a prova definitiva: como Lennon sempre disse, os Beatles eram uma pequena grande banda de rock and roll.

No entanto discordo da grande influência negra apontada pelo Dantas. É mais fácil encontrar a influência de Buddy Holly, que tem origens claras no country & western, embora Chuck Berry e Little Richard sejam fundamentais também. Essas influências, aliás, são as mais divulgadas. Mas há outra na qual se fala um pouco menos: os Everly Brothers. Brancos e caipiras até a medula. É impressionante como Lennon e McCartney se esforçavam para soar como Phil e Don. Até o final.

O Marcelo Dantas também analisa com muita propriedade a dialética entre a dupla e as razões de sua permanência. Aquilo que faz uma garotada que sequer viu Lennon vivo se apaixonar por uma banda que acabou há quase 40 anos. Faltou apenas lembrar que um dos principais fatores para a permanência da banda é a sua dedicação absoluta à canção.

Numa banda comum — e isso vale para qualquer uma, dos Rolling Stones ao Led Zeppelin — uma canção normalmente tem que se adaptar à banda. Ou seja: precisa deixar espaço para o vocalista, para os solos do guitarrista, para os desvarios do baterista. Nos Beatles acontecia o contrário: a banda tinha que se adaptar à canção. Se ela precisava que Paul McCartney, um dos melhores, mais melódicos e certamente o mais influente baixista em sua época, tocasse apenas tumtumtum (ou seja, ficasse apenas nas root notes), ele tocava. Se ela dispensava a bateria, Ringo esperava lá fora.

É isso que faz dos Beatles a banda com o maior número de canções eternas, que resistem ao tempo e se tornam atemporais.

O artigo só tem um erro factual:

Get Back — o melhor rocker de toda a obra dos Beatles — nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.

Na verdade, Get Back foi criada aos poucos em janeiro de 1969, durante as gravações do que seria o filme Let it Be (e quanto a ser o melhor rock, bem, isso é questão de opinião; não é a minha). Nasceu como um comentário à crescente resistência dos ingleses aos paquistaneses que chegavam à Inglaterra em busca de sub-empregos. Suas versões iniciais são conhecidas como “Commonwealth“.

Numa das primeiras versões gravadas, quando a canção não era mais que um rock and roll no estilo de Elvis, Paul, ainda improvisando a letra, ataca o refrão: “Commonwealth ” — e Lennon, em falsete, responde: “Yes?“. McCartney não segura a risada, e a brincadeira dá o tom da música dali em diante. (Isso ajuda a confundir um pouco o mito da banda que não se suportava durante as gravações do Let it Be. No mínimo mostra o quanto todos os dois ficavam felizes quando viam que agradaram ao parceiro.)

As versões seguintes — melodicamente já Get Back, mas ainda sem letra além do refrão — são conhecidas por No Pakistanis; uma das gravações começa com Paul dizendo: “Don’t dig no Pakistanis, taking all they people’s jobs“,

Finalmente, a canção se transforma em Get Back, sem nenhuma referência à questão dos imigrantes — e dela há uma infinidade de versões, como uma cantada por Lennon e outra, por McCartney, em alemão.

Claro que é bem possível que McCartney, em algum momento, tenha aproveitado a chance para dar um recado a Yoko. Lennon dizia que McCartney olhava para Yoko enquanto gravava a canção, o que é, no mínimo, discutível. Mas isso não quer dizer que ela foi concebida como uma alfinetada na senhora Lennon.

De qualquer forma, essa implicância minha é bobagem. Há um erro na minha opinião mais grave, por ser de avaliação — porque o artigo impressiona pela sua altíssima qualidade justamente nesse quesito: é quando Dantas diz que Lennon e McCartney se tornaram compositores com altos e baixos após o fim da banda.

Não, não. Eles continuaram os compositores geniais que sempre foram. Mas agora tinham que publicar também a sua produção menor, aquela que não conseguia sobreviver à concorrência com o parceiro e ao crivo do resto da banda. Se antes brigavam para emplacar 5 ou 6 canções, sozinhos tinham que encher um álbum inteiro. É mais adequado dizer que tanto Lennon quanto McCartney lançaram bons e maus discos depois do fim da banda. Ainda assim, é impressionante que álbuns como Imagine ou Band on the Run tenham qualidade comparável à da maior banda de todos os tempos.

Finalmente, há uma lacuna na interpretação da dialética da parceria Lennon/McCartney. Dantas repete a interpretação dominante: que Lennon instigava McCartney a escrever letras melhores, e que como letrista, ainda que pelo exemplo, dava um tom mais sóbrio, às vezes sombrio, às canções de McCartney.

Isso é absolutamente correto, mas não é tudo. Nessa definição falta um entendimento um pouco mais amplo da dialética, e subestima-se a capacidade de Lennon como músico.

McCartney sempre foi um compositor de criatividade melódica extrema, mas que muitas vezes encontrava dificuldade para dar coesão às suas canções. Por exemplo, é só ver as últimas três canções de seu álbum Ram, de 1971. São oito temas musicais distintos, e todos brilhantes. Na verdade, eram pequenos trechos que ele não desenvolvia e tentava costurar em um lugar só, mais ou menos na linha do lado B do Abbey Road.

Lennon atuava muitas vezes como editor das músicas, dando consistência ao trabalho de McCartney. Obrigava-o a se esforçar um pouco mais e polia as músicas do parceiro. E esse papel é muitas vezes subestimado, porque vêm Lennon prioritariamente como letrista e quando eles se referem ao “edge” dado por ele, pensam imediatamente nas letras. Não era só isso. Isso dizia respeito à música, também. Ou melhor, principalmente à música. Afinal, como lembrou brilhantemente o Dantas, é isso, a música, o que conta nos Beatles.

Republicado em 25 de julho de 2010

Os companheiros de Rock Hunter

O André Setaro, crítico baiano de cinema, comentou no seu blog uma lista feito pelo Paulo Perdigão (morto na virada do ano) dos 20 melhores filmes, na sua opinião.

A lista é de 40 anos atrás, e o que impressiona é que, se feita hoje, não haveria muitas modificações, como lembra o Setaro. Não há muito o que inventar nessa área.

Por mais que pessoas generosas como o Bia vejam grandes filmes saindo de vez em quando, a verdade é que as obras primas feitas na era de ouro do cinema (que segundo Bogdnavich e Hitchcock foi de 1912 a 1962) resistem impressionantemente ao passar do tempo. Não apenas em gêneros esgotados como o western, mas em virtualmente todos os outros. Eles estabeleceram o padrão; o resto é derivação.

O que quer dizer que, com os 30% ou 35% de diferenças compulsórias, idiossincráticas, a lista é bem semelhante a de todo mundo que goste um pouco de cinema. Shane, por exemplo, costuma estar em todas as listas. The Searchers também. Eu, por exemplo, discordaria apenas da ausência de um cineasta fundamental, Billy Wilder. E apontaria na lista uma certa influência da atmosfera daqueles tempos específicos, os anos 60.

Mas Perdigão incluiu entre os 20 um filme de que pouca gente lembra, até porque pouca gente viu: Will Success Spoil Rock Hunter?

Esse filme também estava na minha lista. Não conheço outras em que ele esteja. Essa coincidência me lembra que, fosse o meu talento maior, eu seria uma criatura semelhante ao Perdigão, autor do que talvez seja o melhor livro dedicado a Shane. É uma boa sensação. Eu também me pergunto se o sucesso vai estragar Rock Hunter.

O filme de Frank Tashlin (diretor terrivelmente subestimado e mais conhecido pelo seu trabalho com Jerry Lewis, de quem burilou o talento e a quem fez muita falta nos anos 60) é uma sátira extremamente sarcástica à mídia, ou melhor, às relações da sociedade com a mídia. É brilhante; talvez um pouco datado, mas ainda assim brilhante. Absolutamente nada sai ileso do filme, que em vários aspectos é até reacionário ao atacar a cultura de comunicação de massa que se solidificava definitivamente nos anos 50, com a televisão, o rádio e a publicidade.

Pouca gente viu o filme porque ele quase não era exibido. Apareceu uma vez na Globo, tarde da noite, quando a Globo ainda passava filmes decentes. Depois, só durante uma época no Telecine. E então o filme voltou aos arquivos, de onde relutam em tirá-lo.

Saber que o Perdigão também admirava um filme que tão pouca gente viu é um consolo.

Os velhos tempos é que eram bons

Sou só eu, que por alguma razão obscura não consigo deter a passagem do tempo, ou as coisas estão ficando sem gosto?

O presunto, por exemplo. Hoje é uma coisa aguada, insossa. Para se ter algo próximo do sabor antigo do presunto comum, aquele cozido que se compra fatiado no supermercado, é preciso apelar para o tender — que ainda tem gosto agradavelmente forte demais, mas que do jeito que as coisas andam em uns 10 anos terá o gosto exato do presunto de 15 anos atrás.

O queijo, também. O queijo do reino de antigamente continua com sabor forte — mas, por alguma razão, deteriorado. É, no mínimo, diferente. E o queijo prato, aquele queijinho barato, o queijo sempre comum nas mesas de qualquer pessoa de classe média, não ficou apenas cada vez mais borrachudo — está cada vez mais sem gosto. A impressão que se tem é a de que, se as coisas continuarem assim, daqui a alguns anos, para se ter um sabor parecido com o queijo prato de antigamente, será preciso apelar para o gosto de xixi do camembert.

O que eu não sei é se o meu paladar está decaindo, por causa de todos esses excessos que vão se acumulando vida afora, ou se as coisas estão realmente ficando sem gosto. Sou só eu? Eu estou ficando irremediavelmente velho, reclamando dos tempos modernos, achando que as coisas só eram boas mesmo em tempos idos — uma das maiores fraudes que a mente prega nas pessoas, porque as coisas nunca eram melhores antigamente — ou o mundo (pelo menos o mundo da comida industrializada) está ficando mais insosso?

A diferença entre marketing político e projeto político

Para a Criss, a eleição ainda não acabou.

Ela deixou um comentário interessante ao último post. Num comentário anterior, eu tinha mencionado erros de campanha do PSDB/PFL. Ela interpretou como erros de marketing político. Não era bem isso. Por erros de campanha eu me referia, basicamente, a erros de conceituação política e mesmo programática.

Por exemplo, a Criss identificou uma disputa de publicitários se sobrepondo ao conteúdo de campanha. Sobre isso já escrevi algumas coisas. Basicamente, eu dizia o seguinte: a classe média se acha esperta porque sabe que são publicitários que fazem os programas eleitorais. Enquanto isso, o velho e bom proletariado, alheio a isso, presta atenção ao programa como obra do político — como, aliás, deve ser, porque ninguém vota em publicitários. No fim das contas essa consciência, especificamente, não altera em nada a percepção dos programas. Mesmo assim, talvez por vaidade, de modo geral a classe média incorre no erro de achar que a política é definida pelos publicitários. Não é. Nunca foi. Nunca será.

Mas o mais grave é que, justamente em relação à campanha passada, esse tipo de avaliação está mais equivocado do que nunca.

Avaliar que erros de marketing político foram o que houve de mais grave na campanha do PSDB/PFL é reduzir demais as coisas, e pior: é subestimar o papel do confronto ideológico nessas eleições.

Erro de marketing político, para o PSDB, foi cair na armadilha da discussão sobre privatizações; talvez também tenha sido um erro negar o seu carinho atávico pelo escambo do aparato estatal. O problema é que a questão realmente existia; mais que isso, o PSDB reconhecia a antipatia que a privatização gerava e estava disposto a simplesmente mentir. O caso serve para ilustrar um fato simples: no final das contas, a eleição girou em torno da escolha entre um projeto historicamente privatista e o de Lula.

Quando eu soube que haveria segundo turno para presidente — ao mesmo tempo em que, em compensação, soube que o Jacques Wagner tinha vencido na Bahia –, confesso que fiquei assustado. Um jornalista amigo meu disse na hora: “Lula perdeu a eleição.” Porque muitas vezes, quando uma candidatura que tinha tudo para vencer no primeiro turno cede um segundo, indica que está caindo enquanto a outra está subindo. É por isso que viradas são relativamente comuns no segundo turno.

(Pouco antes das eleições o Marcos Coimbra fez uma análise perfeita do mecanismo eleitoral em turnos na Carta Capital. Derrubou o mito de que segundo turno é outra eleição, e deu uma aula de leitura de pesquisas.)

Mas essa eleição foi diferente. Por um lado, a ascensão momentânea de Alckmin foi um fenômeno localizado, criado por razões muito simples: a idiotice do PT paulista e a oposição cerrada e extremamente desleal da grande mídia. O resultado é que, passado o efeito do tal dossiê, conseguiu-se um feito inédito na história das eleições brasileiras: um segundo turno em que o desafiante teve ainda menos votos que no primeiro turno. Houvesse um terceiro turno e o Alckmin ficaria devendo votos.

Isso a Criss admitiria sem dificuldade. Ela erra, no entanto, é ao colocar a política em segundo plano.

É difícil lembrar de alguma eleição, na história do Brasil redemocratizado, com um caráter ideológico tão marcado como este. Nem mesmo a de Collor. Graças ao segundo turno, ficou bem claro que o que estava em jogo eram dois projetos políticos bem diferentes. E o que parecia ser uma tragédia acabou sendo a mais absoluta legitimação de Lula e do seu projeto de governo.

Se as eleições serviram para apagar alguns mitos sobre o primeiro governo Lula — como a sua “traição” ao projeto social da esquerda — o segundo turno, especificamente, derrubou de uma vez o mito de que eram apenas os pobres que sustentavam a candidatura de Lula. A virada no sudeste, o crescimento na classe média e os resultantes 1,5 milhão de votos a menos para Alckmin deram uma força que Lula dificilmente teria vencendo no primeiro turno. Uniu o projeto das esquerdas em torno do seu nome, mais uma vez. Os eleitores da Gralha das Alagoas, por exemplo, não foram para Alckmin (com exceção da mãe da moça, ainda magoada). Os de Cristovam Buarque também não. Lula podia não ser sua primeira opção, mas ainda representava um projeto mais palatável que o do PSDB/PFL. Pior: muita gente que tinha votado em Alckmin no primeiro turno pensou melhor e decidiu voltar para os braços de Lula. E a principal responsabilidade sobre isso está, justamente, no fato de que graças ao segundo turno a diferença entre os dois projetos ficou clara. Se o PSDB/PFL engoliu a isca da privatização, foi porque não podia negar, consistentemente, a sua história.

A eleição se transformou também em mais que um referendo sobre o bom ou mau desempenho de Lula presidente: se tornou uma decisão entre visões diferentes de Estado. E, paradoxalmente, levou a uma situação em que a oposição estaria hoje mais forte se não conseguisse chegar ao segundo turno. Para o governo, o segundo turno acabou sendo uma bênção.

Em vez de ficar repetindo os bordões de campanha, a oposição deveria catar seus cacos e repensar sua estratégia. Hoje têm dois bons candidatos em potencial, o Aécio e o Serra, com chances reais de trazer de volta o PSDB ao poder — embora aqueles que já os vêm como candidatos virtualmente eleitos sejam muito, muito, muito precipitados. Deveriam entender que, nas próximas eleições, terão se passado 8 anos desde a era FHC. Deveriam aprender com o governo Lula. Por exemplo, deveriam deixar de lado sua visão elitista de mundo e falar de crescimento do PIB quando o povo descobre que está comendo melhor.

No fim das contas, enquanto a oposição continuar sem admitir que a derrota foi do seu projeto político, e não apenas do picolé de chuchu diet, e que esse projeto precisa ser revisto, ela vai continuar a perder. Se conseguirem, em vez de ficar tapando o sol — ou melhor, a estrela — com a peneira, talvez tenham melhor sorte no futuro.

Republicado em 23 de julho de 2010

Resoluções de Ano Novo

Fui convocado para responder a um même pelo Mauro e pelo Rodrigo.

Vamos lá: é uma listinha de resoluções de ano novo. Eu nunca faço essas resoluções. Fora a festa, o Ano Novo é só o dia seguinte ao 31 de dezembro. Mas eu pensei, pensei e resolvi arranjar algumas coisas que gostaria de fazer em 2007. Não são propriamente resoluções porque se eu não cumpri-las, não vou ficar mais triste por isso. Mas valem a intenção.

1 – Colocar no ar, novamente, o site sobre os 100 melhores filmes de acordo comigo mesmo. No ano passado o blog começou a sair do ar quando bateu nas 3000 visitas diárias e eu tive que apagar o coitado, junto com os arquivos por categoria deste blog. Se ele voltar, vem diferente: em vez da lista pura e simples e algumas linhas sobre cada filme, o site se transformaria em um blog, com posts de verdade e informação de verdade sobre os filmes, cada filme um post, e com espaço para comentários (obviamente moderados, que eu detesto quem cobra democracia na casa dos outros). Além disso, seria a hora de tirar alguns fimes e colocar outros.

2 – Começar a fazer neste blog um projeto que já tem anos: uma série de posts sobre a discografia dos Beatles, colocando em um lugar só informações como compositor solo ou principal, datas e circunstâncias de gravação e mixagem, letras, acordes, quem toca e canta o quê, comentários gerais sobre cada canção dos Beatles, arquivos MP3 dos orginais de covers gravados pela banda, do Please Please Me ao Let it Be. A discografia póstuma não me interessa; talvez apenas um último post com as canções inéditas compostas por eles e lançadas ao longo dos anos, como as do projeto Anthology. Precisaria também do espaço para os arquivos MP3.

3 – Parar de mudar o layout do blog o tempo todo.

4 – Fazer layouts melhores para o blog (o que entra em contradição com o item anterior, mas tem uma razão de ser: pelo menos uma dessas resoluções vai se cumprir).

5 – Finalmente comer a Kidman e a Zeta-Jones. Essa tá empacada há tempo demais. Mas este ano a coisa anda.

Uma pequena piadinha pseudo-feminista

Houve, há alguns anos, um importante Congresso Feminista. Com maiúsculas e tudo.

Foi realizado em Genebra, o lugar onde as grandes discussões pela paz mundial são realizadas. As participantes saíram de lá com uma firme resolução: elas voltariam para seus países e comunicariam a seus companheiros que, a partir daquele dia, eles iriam fazer os seus cafés da manhã. Seria o primeiro passo de uma revolução importante nas relações entre os sexos. E elas combinaram que, no ano seguinte, voltariam para contar suas experiências e, enquanto se chamavam mutuamente de adjetivos laudatórios, definir novas estratégias de ação.

No ano seguinte estavam todas lá.

— Bem, como acertamos no ano passado, hoje vamos começar com a nossa amiga Mary Jane, de Winsconsin, Estados Unidos. Por favor, companheira Mary, a palavra é sua.

— Companheiras, no ano passado, quando cheguei em casa, eu dizer ao Jack: “Jack, a partir de hoje você vai fazer os seus scrambled eggs”.

— E o que aconteceu?

— Bem, no primeira dia eu não verr nada. No segundo, eu também não verr nada. No terceira, eu cheguei em casa e lá estava o Jack, fazendo os seus ovos com bacon…

Aplausos ensurdecedores. “Linda, linda, linda!”

— Agora, vamos chamar para dar seu testemunho de luta feminista a companheira Frida, de Berlim, na Alemanha.

— Meus amigas. Na ano passada, quando eu sair da congrresso, eu chegar em Berlim e dizer parra Hans: “Hans, a partir de agorra focê fazer o sua chucrute”.

— E aí?

— Bem, na primeiro dia eu non fer nada. Na segundo dia, eu também non fer nada. Na terceiro dia, eu chegar em casa e o Hans estar lá, fazendo o sua salsichón.

E a mulherada veio abaixo: “Linda! Poderosa!”

— Agora, minhas amigas, vamos convidar a Severina, direto de Crateús, Ceará!

— Ói, ano passado, quando eu cheguei lá em Crateús, eu disse pro Zé: “Zé, a partir de hoje é você quem vai fazer o seu baião de dois”.

— E então?

— Bem, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, eu também não vi nada. No terceiro os óio começaram a desinchar um pouquinho e eu já conseguia ver umas sombra, lá longe…