Mulungu, que chamam por outro nome

Não sei se isso acontece com você, mas de vez em quando eu esqueço os nomes de coisas simples.

Dia desses esqueci o nome de uma árvore. Eu sabia que em algum momento soube o nome da dita, lembrava que era um nome estrangeiro, acho que francês. E a ignorância do nome outrora conhecido passou a me incomodar e exasperar.

Me vinham dois nomes à cabeça. O primeiro era buganvília. Mas eu sabia que não era, sabia que buganvília era outra coisa, era uma plantinha vagabundinha dessas miudinhas, uma primavera. A árvore de que eu falava não, era uma árvore de tronco quase liso, frondosa, folhas esquisitinhas, flores vermelhas, que dava uns frutos que pareciam umas espadas largas com umas favas redondas, parecidas com moedas — quando essa árvore floria era uma beleza, e eu costumava ver tantas delas antigamente.

O outro nome que me vinha à memória era mulungu. Na verdade era uma árvore até que bem parecida, mas não era ela. Mas lembrei que durante muito tempo achei que aquele pequeno enigma desimportante era um mulungu, porque Monteiro Lobato falava dessas árvores em algum dos seus livros — os mulungus que floriam no sítio, algo assim.

Mas alguém tinha me corrigido com o tal nome gringo, exatamente esse nome que eu tinha conseguido esquecer.

(Não podiam ter me deixado na minha ignorância, chamando a árvore de mulungu? Se eu achasse que era um mulungu não tinha esquecido o seu nome. E que mal faria eu achar que a tal árvore era um mulungu, me diga? Isso ia mudar a vida de alguém? Não ia.)

Durante muitas semanas tentei descobrir que árvore era aquela. Não consegui. Aumentei minha cultura inútil, no entanto; aquelas folhas esquisitinhas, na minha busca infrutífera, descobri que eram bipinadas, com vários pares de folíolos. Só não descobri o diabo do nome da árvore que eu procurava.

Lembrei também que antigamente eu via mais dessas árvores pelas cidades, mas elas parecem cada vez mais raras. Hoje sei que minha impressão estava correta: não é só um caso de sair de moda, é uma necessidade objetiva, porque as raízes são e superficiais (o que faz delas árvores mais bonitas, por sinal), invasivas e pouco adequadas à infraestrutura urbana.

Muitos anos atrás, quando moramos em Itapuã, cada um de nós, crianças, ganhou uma das árvores do quintal. Eu tomei posse de um cajueiro que nunca deu caju, ao menos que eu lembre, e minha irmã ganhou uma dessas árvores.

Necessidade besta, essa de saber o nome das coisas. Mas sem isso eu não poderia reconstruir meu passado, e então vem a consciência aguda da importância de um nome; por que você acha que não se podia falar o nome de Deus? O Velho sabia a importância dos nomes próprios. Se algo não tem um nome todo seu, essa coisa não existe. Se ela não existe, meu passado também não — e isso coloca em risco, pelo menos de um ponto de vista bem metafísico, a minha própria existência.

Por isso saí perguntando a quem podia: que árvore é aquela? E ninguém sabia. Curioso: quando o homem vai deixando de ser nômade ele desaprende o nome de muitas das plantas que conhecia. Mas agora era demais, não é possível que sejamos tão urbanos ao ponto de esquecer o nome de uma árvore comum. Isso não pode ser admitido, em nenhuma hipótese. Porque, se se admitir uma coisa dessas, se isso deixar de incomodar, daqui a pouco a gente esquece o nome das coisas mais comuns. “Qual é mesmo o nome desse negócio preto aqui embaixo, Zé?” “Asfalto, Rafael-seu-idiota”.

Perguntei a todo mundo. E descobri que a ignorância acerca do nome de uma árvore comum independe de classe social ou de nível cultural: ninguém sabia. Alguns amigos, mais sofisticados, soltaram umas hipóteses: aquilo era um ipê. Mas ipê é árvore brasileira, e essa árvore se não me engano tinha nome estrangeiro e não era brasileira, era daquelas plantas exóticas que faziam o desgosto de Gilberto Freyre.

Eu desisti.

É feio desistir das coisas, principalmente de uma bobagem como essas. É um paradoxo: desistir de escalar o Everest não envergonha ninguém, por difícil que é; desistir de algo bobo é um atestado de incompetência à vigésima nona potência. Ao mesmo tempo, ressalta o atestado de incompetência passado por quem, em plena era do Google, não consegue descobrir o nome de uma árvore comum e vagabunda. Dane-se. Não me importava mais, não depois de tantas semanas sem conseguir descobrir o nome daquela árvore. E por ser bobagem eu me dou o direito de desistir do que quer que seja.

Aí, na fazenda de um amigo eu vi uma árvore dessas, recém-plantada. O coração bateu mais forte, se me permitem a licença poética. Ele havia de saber que caralho era aquilo, uma árvore tão comum.

E ele respondeu com aquela simplicidade que as pessoas que desconhecem a sua grande angústia existencial: “Tá falando do flamboyant aí da frente?”

A delonix regia. O flamboyant. Árvore vagabunda e comum, dessas que você encontra a três por quatro por aí; e no entanto bateu a minha memória. É, flamboyant — você conhece esse nome, eu conheço esse nome, e ele certamente jamais poderia ser dado a qualquer outra árvore. Se a ordem das coisas fosse invertida, nada isso teria acontecido. Se alguém me perguntasse que árvore é o flamboyant eu diria — é aquela árvore de tronco liso, folhinhas esquisitinhas, e que quando floresce é uma belezura.

Descobri que chamam também de pau-rosa. Eu gosto do nome. Pau-rosa é um nome meio erótico — “Vai sentar num pau-rosa” devia ser ofensa corrente neste país de tantas árvores. Mas isso não importa mais para mim. O fato é que eu não quero mais esquecer o nome do flamboyant. E por isso a partir de agora eu só vou chamá-lo de “mulungu, que os outros chamam flamboyant.”

Literatura, coisa supérflua

Roger Ebert, crítico americano de cinema, escreveu há alguns meses um post no seu blog no Chicago Sun-Times desancando uma adaptação literária de “O Grande Gatsby” para um vocabulário intermediário. Vale a pena ler.

E eu concordo com Ebert.

Essa é provavelmente uma das adaptações menos necessárias de que já tive notícia. Isso não é, claro, uma condenação a todas as adaptações. Li muitas na infância, e não acho que tenham me feito mal, nem me emburreceram. Como “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield”, versões razoavelmente saneadas de clássicos antigos. No caso de “Copperfield”, por exemplo, é omitido o fato de que Steerforth seduz Emily e indiretamente a leva à prostituição. É por isso que não tenho queixas deles, porque não acho que precisasse saber disso aos oito anos.

Mas “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield” são acima de tudo grandes histórias, que valem a pena conhecer. Depois de ver o comentário de Ebert passei os olhos na minha edição adaptada do livro de Dickens. Ainda é fascinante. A adaptação de Oswaldo Waddington mantém um bocado da ironia e do humor dickensianos. E, acima de tudo, mantém o espírito dos grandes tipos como Micawber e o meu preferido, Uriah Heep. Desde os oito anos de idade, quando vejo um hipócrita fingindo humildade, é a imagem untuosa, reptiliana de Heep que me vem à cabeça. E quantos Micawbers conheci na vida, gente que apesar de tudo admirei sinceramente.

Infelizmente esse não é o caso de “O Grande Gatsby”. O que Ebert acha é simples e corretíssimo: “O que importa no romance de Fitzgerald não é a história em si. É como a história é contada.” Ele tem razão ao lembrar que é a maneira como o velho cachaceiro conta um pequeno retrato da saga americana que faz o valor do livro, algo que acontece com basicamente toda a literatura moderna. Já faz tempo que o “grande romance” deixou de fazer sentido; de certa forma, ele foi esgotado no século XIX — “Em Busca do Tempo Perdido”, por exemplo, já é outra coisa, já não é Balzac. O que Ebert diz de “Gatsby” se aplica, quase sem exceções, a toda a literatura que veio depois dos modernistas.

Ou seja, a história de “O Grande Gatsby”, em si, não é tão importante que valha a pena ser resumida e reescrita em inglês medíocre para estrangeiros. Ao destruir a prosa de Fitzgerald, eles resumiram a obra a pouco mais que nada e tiram a sua razão de ser. Contada dessa forma simplória, “O Grande Gatsby” é pouco mais que a sinopse de um melodrama oitocentista. Reescrito, perde seu valor literário, e os estrangeiros fariam melhor lendo a tradução em sua língua; para o simples aprendizado da língua do bardo o Google oferece milhões de alternativas mais adequadas. Tampouco é adaptação necessária para crianças: Gatsby não conta uma história para elas, se não estão preparadas para ler o livro original. Elas ganhariam mais lendo “Harry Potter” ou “Crônicas de Nárnia”. (Li o livro pela primeira vez aos 13 anos. E o que me marcou mesmo foi a lista de atividades do jovem Gatsby que Carraway descobre no final. Aquilo me inspirou a fazer listas semelhantes pelos dois anos seguintes. Foi preciso reler o livro alguns anos mais tarde para entendê-lo de verdade e entrever o seu gênio; e, finalmente, castigar o original para ver a beleza da prosa de Fitzgerald, escritor de quem gosto muito mais que Hemingway, por exemplo.)

Mas isso lembra outra coisa, mais incômoda que uma adaptação que as pessoas podem simplesmente ignorar: o valor desproporcional que se parece dar à literatura e à ficção.

Isso vai além da mitificação da leitura em si. A impressão que tenho é que leitura é sobrevalorizada como poucas coisas na sociedade moderna. E o pior é que ler não é nada. A escrita é só o jeito que a humanidade encontrou de preservar e compartilhar conhecimento. Só isso. Mais nada. Uma mosca faz isso imprimindo informações no seu código genético. A gente faz isso nascendo com menos sinapses e utilizando meios externos de preservação do conhecimento.

A partir do momento em que a tecnologia possibilita outras formas de transmissão de conhecimento, a escrita se torna apenas mais um deles. Só isso. Nada que justifique esse fetichismo.

A coisa se torna mais grave quando se fala de literatura. Literatura — mais especificamente ficção — não é necessária, e isso é algo que as pessoas parecem entender cada vez menos. O fato é que, para todo e qualquer efeito prático, ninguém precisa ler ficção, de qualquer tipo. Se você é advogado, do que precisa é de livros de doutrina escritos em português embolorado e da última versão do código de qualquer coisa. Se você é engenheiro, “O Velho e o Mar” dificilmente vai lhe ajudar a fazer o cálculo estrutural de um edifício de 20 andares. Literatura é produto supérfluo de uma civilização cujas elites descobriram há uns cinco mil anos que a escrita era o melhor meio de fixar e transmitir conhecimento e acumular poder. Literatura é coca-cola.

Mas milênios de existência e associação ao poder continuam a mitificá-la. O ato de ler se tornou um valor desejável há tanto tempo que passou a ser um daqueles valores presumidos, inquestionáveis. Ou seja: se eu leio, eu sou melhor que você. Não importa o que eu leio; importa o ato em si. E essa espécie de fetiche parece tanto maior quanto menos lê o fetichista. Ou seja, se eu disser que li 50 “Júlias”, “Sabrinas” ou “Biancas” ano passado, para muita gente vai parecer que li muito mais do que se disser que li apenas um, um tal de “A Montanha Mágica” de um alemão meio viado.

O que faz a ficção importante não é o ato de ler, em si. É o que você lê, e como isso enriquece sua vida. Assim como a literatura moderna diz respeito menos à trama do que à maneira como ela é contada. E ler por ler não quer dizer absolutamente nada. As pessoas dizem que estão lendo um cocozinho qualquer como se estivessem fazendo a hermenêutica de Finnnegan’s Wake; para quê? Isso não tem valor real. Não acrescenta nada. Não é melhor do que ver um bom filme ou ouvir um bom disco.

A melhor evidência da superfluidade da literatura é o fato de que desde o século passado não é sequer preciso ler um livro para saber com bom nível de detalhes o que ele conta. Muita gente que jamais leu “Moby Dick” sabe do que ele trata, sabe que sua primeira frase é “Call me Ishmael”, sabe quem é Ahab, sabe qual o caso que inspirou o livro, sabe como ele termina e sabe que pode ser visto como uma batalha do bem contra o mal, entre tantas outras coisas; sabe até quem fez o caixão que salva a vida de Ismael. Para muita gente isso é suficiente; e talvez seja assim que deve ser. Se a questão aqui é saber o básico da história, em vez de ler uma versão adaptada para “1600 palavras ou menos” é melhor ver o filme com Gregory Peck.

As pessoas, em seu apego a valores antigos, esquecem que o século XX inventou vários outros meios de transmissão do conhecimento, como o gramofone e o cinema. Obviamente eles não podem ter, por sua natureza, a riqueza que a literatura pode alcançar; mas quando se tiram os elementos que fazem essa riqueza, como fizeram com “O Grande Gatsby”, o que sobra é só a história, muitas vezes menor, e para isso esses novos meios são perfeitamente adequados.

Eu, pessoalmente, não levo muito em consideração sequer a idéia de que a gente começa a ler com coisas bobas e vai evoluindo aos poucos. A experiência mostra que muita gente que começa com coisas bobas para por aí, nas coisas bobas, e são muito felizes assim, obrigado. Assim como maconha não leva necessariamente a drogas mais pesadas, Harry Potter não leva necessariamente a James Joyce. É o hábito, o estímulo que fazem uma criança ler. E certamente, em idade adequada, a capacidade de discernir entre o que vale a pena e o que não vale. Por exemplo, minha filha lê e escreve em um nível superior à média das crianças de sua idade. Mas tenho minhas dúvidas de que isso se deva aos livros de Harry Potter que devorou aos oito anos; é mais provável que o fato de se ver às voltas com centenas de livros em casa, livros que ela via o pai lendo, assim como eu via o meu, tenha exercido o mesmo efeito, ou maior.

A essa altura da vida, essa conversa de literatura como um valor absoluto não me empolga mais.

Au revoir, les photogrammes

O André Setaro fez um post falando da experiência moribunda de ir ao cinema.

O saudosismo do Setaro é o meu (e o tal senhor que vendia fotogramas de filmes na Piedade — acho que lembro dele também; se não, lembro de um bem semelhante). Embora mais novo, e certamente menos hostil à televisão, sou outro que sinto essa decadência da experiência coletiva, e lamento por isso.

Um dos poucos filmes a que assisti no cinema durante o ano passado foi “Meia Noite em Paris”. Não é sempre que o Cinemark, esse grande carrinho de pipoca, exibe um Woody Allen assim, na lata; e os meses longos sem ir ao cinema cobravam sua tarifa à minha consciência.

O cinema cheirava a mofo, um cheiro mais forte do que o habitual. E o filme seria exibido com a imagem levemente desfocada.

A menina na poltrona ao meu lado mandava mensagens de texto para alguém. Enquanto ela ria retardadamente durante os trailers, tudo bem; mas fazer isso durante o filme é sinônimo não apenas de má educação, mas de falta de respeito absoluta e grau elevando de cretinice fisiológica. Eu me mostrava desconfortável, olhava feio, encarava, e a idiotinha não percebia. Tive que falar, com toda a doçura que mamãe me deu, que aquilo estava incomodando para que ela se controlasse.

Eu não entendo. Se é para prestar atenção a uma conversa qualquer em vez de ao que se desenrola na tela, por que ir ao cinema? Por que não ficar em casa? Por que não se jogar da ponte?

Mas essas são as novas gerações, e é com elas que temos que dividir as salas de exibição.

Eu me recuso a passar por isso, não tenho mais idade para essas coisas. Nem idade nem paciência. Antigamente, com TVs de 20 polegadas em formato 4:3, a gente tinha que se submeter a esses vexames para conseguir assistir à obra cinematográfica em sua plenitude — tem coisa mais bizarra que assistir a filmes originalmente em Cinemascope ou Vistavision numa tela pequena, quadradinha? Mas nada isso é necessário, agora. As novas TVs têm formato, tamanho e resolução suficientes para apresentar um filme como ele foi concebido, ou quase. E assim oferecem uma experiência melhor do que o cinema tem oferecido para mim; sem falar na possibilidade parar o filme e desmoralizar para sempre o velho e bom Hitchcock, que dizia que um filme deveria ter a duração da resistência da bexiga humana.

A decisão de evitar ir ao cinema vai me poupar de coisas tão ruins. As gentes ao meu lado fazendo barulhos desagradáveis. Projecionistas incompetentes. Os ruídos de pipoca sendo mastigada. Os risos de boca cheia. Os barulhos de sacos de plástico — jujubas, as inevitáveis jujubas — sendo rasgados. As conversinhas bobas de gente sem noção. Adeus. Adeus. Nada disso vai fazer falta.

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Mas isso implica a deterioração da experiência coletiva. É um sinal ruim de um mundo novo normalmente admirável: o isolamento, a ausência de uma sensação difusa mas reconfortante de pertencimento.

Fico imaginando como era viver 30 e 70 anos atrás, pelo menos no que diz respeito ao cinema.

Há 70 anos ver um filme era experiência relativamente incomum — uma, duas vezes por semana, no máximo. Os filmes ficavam em cartaz durante meses, às vezes anos. Havia circuitos inteiros de primeira e de segunda exibições. Cada grande estúdio produzia uns 50 filmes por ano, e havia espaço para tudo isso. E havia os pequenos, que faziam outro tipo de filme.

Talvez as gerações mais novas não consigam entender o que isso significava. Mas a relação com a obra cinematográfica era diferente. Muitas vezes, se você não via um filme que, por alguma razão, não alcançava muito sucesso de bilheteria, nunca mais teria uma chance de vê-lo. Não havia TV, TV a cabo, DVD. E por isso os grandes sucessos eram reprisados periodicamente. Os filmes da Disney cumpriam um ciclo de cerca de 7 anos. Cheguei a ver “…E o Vento Levou” em cartaz em 1982, um ano antes de estrear na TV.

30 anos atrás — e essa época eu peguei — já havia filmes na TV. Você podia assistir a uns dois longas por dia, talvez três; e ainda tinha acesso a novidades como telenovelas e seriados. Mas o espaço para filmes novos ainda era restrito, eles demoravam a chegar às TVs, e fora delas não havia alternativas. Por isso os filmes ainda ficavam meses em cartaz — alguém lembra dos anúncios nos jornais?, miniaturas dos cartazes em preto e branco e os dizeres: “9a semana de sucesso!” Eu lembro. Lembro de muita coisa.

Ir ao cinema era bom, e era uma experiência rica. Meninos debilóides mastigando de boca aberta e teclando mensagens em seus celulares acabaram com isso.

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Também lembro que faço parte da geração que descobriu o cinema na televisão. Antes do DVD, antes mesmo do videocassete, o que existia era a TV. Foi nela que assisti a dezenas dos filmes que hoje considero entre os melhores da história. E vem daí a minha devoção a um certo crítico de cinema.

Costumamos falar de grandes críticos como Moniz Viana, Paulo Emilio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles. Mas há um que nem sempre é lembrado: Paulo Perdigão.

O problema é que, de todos eles, para mim Perdigão foi certamente o mais influente. Não pelo que escreveu — acho que nunca li nada dele, e sei basicamente que fez parte da geração brilhante do Correio da Manhã e é o autor de um livro sobre “Os Brutos Também Amam” –, mas pelo que nos fez assistir.

Perdigão era o responsável pela programação cinematográfica da TV Globo. Era ele quem decidia que filmes seriam exibidos. E por isso a Globo sempre tinha um horário na semana para os grandes clássicos.

Nos anos 70 era talvez mais fácil, porque os filmes demoravam muitos anos para chegar à TV, até esgotar o circuito cinematográfico, e então se trabalhava com o estoque das décadas anteriores. E nos anos 80 ainda havia uma lei curiosa, que obrigava as TVs a exibirem pelo menos um filme legendado por semana, para atender aos deficientes auditivos. O SBT exibia lixo, claro (foi assim que assisti a boa parte de “El Neurosurgeano Loco“, um filme mais que trash, piorado ainda mais pelas circunstâncias: era americano, dublado em espanhol e com legendas em português. Juro por Deus.) Mas o Perdigão aproveitava esse horário para exibir clássicos de altíssima qualidade. Era a sessão Cineclube. E onde mais você veria “Em Cada Coração Um Pecado” num domingo à noite, com a melhor atuação da carreira de Ronald Reagan (“Where’s the rest of me?!“)? Ou “Paixão dos Fortes”?

Perdigão ensinou, a mim e à minha geração, a ver cinema. E isso faz dele um dos maiores, se não o maior, crítico do país, pelo menos em sua função social.

***

Tudo isso para lembrar a mim mesmo, e talvez me convencer, de que cinema não é tão necessário assim.

Essa gente que bota gosto ruim no nosso amor

Assim que vim morar em Sergipe, no começo dos anos 80, um comercial da Telebrás falava de Canindé do São Francisco — cidade onde hoje está a Usina Hidrelétrica de Xingó. O município sergipano mais distante da capital, situado no alto sertão, na esquina com a Bahia e Alagoas, finalmente ganhava acesso à telefonia, pouco mais de 100 anos depois de sua invenção. Esse era o nível do desenvolvimento da região.

Passaram-se dez anos e então, aí pelo começo dos anos 90, eu costumava ir regularmente à cidade, passar fins de semana na fazenda de um amigo. Aprendi a reconhecer a região e a caatinga. Mas depois fui embora de Sergipe, não vi mais Canindé, não vi mais caatinga e nem essas coisas de sertão.

Passei pela cidade novamente no começo de 2004, e mencionei o fato neste blog para fazer um agradecimento extemporâneo. Aquele sertão que eu conhecia razoavelmente continuava basicamente o mesmo, apenas com as melhorias naturais do tempo. Ao longo das estradas que hoje compõem a Rota do Sertão, e cortam boa parte do sertão sergipano, as paisagens urbanas se mantinham mais ou menos as mesmas de 1992. Cidade após cidade, a mesma miséria, a mesma sensação de fim de mundo. Claro que naqueles 11, 12 anos a região tinha crescido. Mas era um crescimento inercial, o crescimento natural e mínimo de todo lugar abandonado por Deus. Lembro de estar parado num povoado de Canindé e observar um homem forte passando na rua. Era o meio do dia. Fiquei impressionado ao perceber o que a falta de oportunidades fazia com aquelas pessoas: gente que pela constituição física estava acostumada ao trabalho duro, mas condenada a vagar pelo meio do povoado por falta do que fazer.

Agora vejo um artigo da jornalista Eliane Cantanhêde falando da ascensão do Brasil à posição de sexta potência econômica do mundo. Falando mal, obviamente: ela se pergunta que desenvolvimento é esse, se a pobreza está em todo lugar, e usa o Nordeste como exemplo da miséria que esses governos incompetentes não conseguiram resolver.

É um padrão de comportamento típico de certos setores da imprensa: a notícia é boa, não traz nada negativo, mas há que fazer um pequeno esforço e ver como se pode falar mal; com jeitinho sempre se descobre que é possível fazer um comentário desagradável, e se a gente procurar vai ver que o país continua a mesma merda de antes, na verdade até pior. Jornalistas de oposição — e o termo é usado aqui propositalmente — parecem ter complexo de viralata, e se o copo não estiver completamente cheio tem que estar totalmente vazio.

De qualquer forma, eu não sei o quanto a Cantanhêde conhece o Nordeste, para falar assim com propriedade da evolução da região. Mas ao usá-lo como exemplo para questionar a qualidade e mesmo a veracidade do desenvolvimento brasileiro, ela mostra desconhecer, se não a realidade, a história recente do torrão natal do ex-presidente Lula.

O artigo da Cantanhêde me fez lembrar que passei por Canindé e por aquele povoado novamente há umas duas semanas. E para isso precisei atravessar outras cidades — aquelas mesmas que até cerca de oito anos atrás pareciam paradas no tempo.

Eu não impressiono com muita coisa, porque já me acostumei a fingir que a idade me dá o direito de ter uma atitude blasé diante da vida. Mas eu fiquei bobo, genuinamente embasbacado. Em menos de sete anos construiu-se um mundo completamente diferente. As cidades cresceram absurdamente, a ponto de algumas delas se tornarem praticamente irreconhecíveis para mim. Os sinais de desenvolvimento se espalham por elas: lojas de material agropecuário, redes locais de lojas de móveis — o comércio floresceu de uma maneira que me deixou de boca aberta. É outro lugar. O que antigamente eram variedades indistintas do fim do mundo, hoje são lugares possíveis de se morar. Além disso um detalhe curioso: assentamentos de Sem-Terra — Sergipe tem um dos melhores programas de reforma agrária do país, se não o melhor — estão dando origem a novas cidades.

Muito desse desenvolvimento se deve à ação do governo de Sergipe, que inverteu o mecanismo político ao intervir diretamente nos municípios e levando para o interior um tipo de desenvolvimento que, até pouco tempo atrás, estava restrito à capital. Mas o principal elemento de transformação do sertão foi o Bolsa Família, o Luz para Todos, os investimentos federais.

Ver as cidades do Alto Sertão sergipano me lembrou que costumamos — eu inclusive — falar do Bolsa Família e de outros programas do Governo Federal a partir de um ponto de vista urbano. Se isso não é um erro, agora estou convencido de que é insuficiente. Por mais benefícios que o BF tenha trazido para as cidades médias e grandes, não é nada que se compare ao efeito redentor alcançado nos lugares mais miseráveis como o sertão. É imensurável, mas estapafurdiamente óbvio.

É por isso que é tão estranho o parágrafo final da Cantanhêde:

O que está em pauta não é (só) o ritmo da economia e o complexo equilíbrio entre crescimento mais baixo e inflação debochada, mas principalmente a qualidade do desenvolvimento. Há que se discutir por que, para que e para quem o Brasil assume ares de potência.

Então, dona Cantanhêde, deixa eu explicar uma coisinha para a senhora: o que fez a diferença nesses anos — e agora, depois de ver o que aconteceu com o sertão nesses últimos anos, tenho mais certeza do que nunca — foi justamente a qualidade do desenvolvimento promovido pelos governos Lula e Dilma Rousseff. Não há novidade nisso, mas jornalistas de oposição como a senhora parecem se recusar a entender, não importa quantas vezes isso lhes seja repetido e demonstrado. Foi justamente porque a qualidade do desenvolvimento mudou que nossa economia conseguiu aguentar os trancos da crise econômica mundial e ultrapassar a inglesa. É, aquela mesma que por sua vez continua recitando o ideário que a senhora acha bonito.

O artigo da Eliane Cantanhêde me lembrou algo mais legitimamente nordestino do que suas impressões: um trecho de “Karolina com K”, uma das obras primas de Luiz Gonzaga. Mais especificamente o trecho em que Karolina, doidinha para ir embora do forró e ficar sozinha com o seu sanfoneiro, vê o pessoal indo atrás deles e comenta: “Olha, Gonzaga! Puxa mesmo que a cabrueira vem aí atrás, parece que eles tão querendo botar gosto ruim no nosso amor!”

Karolina não sabe, mas a cabrueira continua agoniada, botando gosto ruim nas coisas que não consegue compreender nem aceitar.