Os vãos e desvãos do amor livre, parte I

Rafael says:
E cadê seu namorado?

Fulana says:
Que namorado?

Rafael says:
Ué?
Já terminou?
Mesmo com toda aquela liberdade?

Fulana says:
Diz que não é namorado, é AMOR LIVRE
Embora que…
eu já te disse a minha teoria a respeito do amor livre?

Rafael says:
Qual é?

Fulana says:
1. O amor só é livre enquanto os alternativos agarram CATIROBAS
(Sim, porque toda mulher alternativa é feia de doer. a coitada sai do sistema porque não consegue ser aceita nele)

2. O amor só é livre quando a mulher NÃO QUER SER LIVRE, e por isso se mantém monogâmica enquanto ele come todo mundo

Fulana says:
No meu caso, que sou ajeitadinha e que botava era quente na LIBERDADE, num instante ele desistiu da IDEOLOGIA

Rafael says:
Ah, desistiu, foi?

Fulana says:
Meu filho
Foi engraçado, ó?
quer que eu te conte como foi EM DETALHES?

Rafael says:
Precisa perguntar?

Fulana says:
a lenda é que o contrato era de AMORLIVRE
Aí a gente estava num show do zé ramalho
o zé cantou uma música e ele comentou que ouviu essa música no dia que descobriu que uma namorada que ele teve o chifrou por 6 meses
Não 5, não 4, estou falando SEIS
Aí disse que mesmo assim, continuou com ela por mais de dois anos
Aí se virou pra mim e disse assim:
NÃO QUER DIZER QUE VOCÊ VÁ FAZER A MESMA COISA COMIGO
Aí eu pensei: COMO ASSIM????
Não falei nada
No dia seguinte perguntei: QUAL É O CONTRATO???
Ele veio com uma conversa MUITO TORTA
Que, em suma, caía na velha monogamia
e o pior…
ele acredita que aquele tempo todo que estavamos juntos eu nunca tinha ficado com ninguém…
Mais ou menos assim:
que ele era tão bom, tão bom, que realmente acreditava que eu não tinha ficado com ninguém

Rafael says:
E você ficou com quantas pessoas?

Fulana says:
só 8 🙂
Aí eu pensei: FUDEU!!!
Bem, espero que ele nunca me pergunte

Grandeza e decadência de um forrozeiro

O Forró Caju é hoje um dos maiores festejos juninos do país, se já não for o maior. São 16 noites com público médio de 100 mil pessoas. Só hoje, véspera de São João, a lista de atrações inclui Dominguinhos, Alceu Valença, Zé Ramalho e Calcinha Preta, com shows completos. Espera-se um pico de bem mais de 150 mil pessoas na praça, nesta madrugada.

Hoje também o Forró Caju vai me lembrar mais uma vez, com a falta de piedade dos velhos deuses pagãos que inspiraram o São João, que houve um tempo em que eu era um grande dançarino de forró, e que hoje sou apenas uma ruína decadente, sombra pálida do homem que fui.

Não é que “eu me virasse” dançando forró. Não é que eu “quebrasse o galho”. Eu era bom. Excessivamente bom. Não apenas a ponto de poder ser esnobe, mas bom a ponto de transcender até o esnobismo, e diante de um elogio já ouvido tantas vezes dar um sorriso de canto de boca e balançar a cabeça condescendentemente, sem precisar falar nada por redundante que seria.

Eu era bom porque precisava. Adolescente, sem dinheiro e sem carro, não me restavam muitas alternativas. Entre ficar trancado em casa vendo mulheres pela televisão e ir atrás delas na rua — nem que isso significasse quilômetros a pé ou de ônibus, com o dinheiro contado para uma coca-cola e para a volta, nem que isso significasse quase uma hora esperando o corujão de madrugada –, eu ficava com a segunda opção. Se ia para a rua, tinha que saber alguma coisa, porque eu sempre fui pragmático, nunca me acostumei a viagens perdidas. E então dançar bem, saber levar uma dama ao longo de uma música e outra e mais outra era fundamental.

Forró era chamar a moça na chincha e deixá-la com o corpo bem colado ao seu. Era encaixar a sua coxa entre as coxas dela, e com um pouco de prática já se podia adivinhar ali a sua consistência e sua rijeza, e com os seios apertados contra o seu peito se podia também sentir o seu real volume e firmeza, porque não há sutiã com bojo, armação ou enchimento que consiga cumprir a sua função de logro enquanto se dança forró.

Era dançando que se descobria tantas coisas de importância fundamental. Era no requebrar e no menear de seus quadris que você sabia o que poderia esperar da moça à sua frente. E então, se ela valesse a pena, você tirava a mão esquerda que guia a dança e colocava em sua cintura, e a apertava um pouco mais, e se ela recostasse a cabeça em seu peito você saberia que ela poderia muito bem estar dizendo em silêncio, como a boa Karolina com K, “é hoje!”, e hoje seria.

Era por saber que era bom que eu me horrorizava quando via cearenses dançando forró. Porque eles dançavam de maneira tão diferente. Afastados, fazendo figuras como um baile qualquer do século XIX, voltas e reviravoltas como se estivessem se apresentando para uma platéia. Aquilo não era dançar forró. Aquilo era teatro, diria Luiz Gonzaga. Exibicionismo bobo, mais adequado a uma gafieira do que a uma sala de reboco sob a luz de um candeeiro.

Forró era outra coisa, era coisa para se dançar a dois, só dois, esquecendo que pudesse existir outra coisa no mundo. Forró era ciência, arte e negociação, um jogo a ser jogado com um sorriso, suor e a determinação firme de fazer daquilo o prólogo de algo melhor. Aquele forró que os cearenses dançavam podia muito bem ser dançado com sua irmã, e ainda não inventaram nada mais sem graça do que dançar com irmã. Eles dançam para os outros; nós, forrozeiros da velha guarda, dançávamos para que a mulher apertada ali continuasse em seus braços depois que o sanfoneiro calasse o seu acordeon.

Aqui, percebo hoje com a sabedoria presenteada a mim pela velhice, está a semente de minha ruína. Para muita gente, dançar é algo que se basta em si mesmo. Pessoas gostam de dançar, como gostam de comer. E eu nunca gostei. A dança não existia por si só, mas apenas como um meio de chegar a algum lugar. Para mim, dançar forró não era “a frustração vertical de um desejo horizontal”, como diz uma boa frase. Era um instrumento, uma ferramenta como um garfo ou uma passagem de avião. Por isso nunca dancei sozinho.

Talvez tenha sido isso, esse desprezo pela dança como um valor intrínseco, como bastante em si própria, que causou minha decadência e minha desgraça. O talento desperdiçado é devida e inexoravelmente castigado pelas Parcas, disso eu sempre soube. E neste Forró Caju vi que não sabia mais dançar como antigamente.

A dor nas coxas sedentárias que, por tantos quilos a mais, já não agüentam muitas músicas seguidas é o de menos, porque isso se resolve em uns poucos dias de volta à prática. Tampouco é problema o fôlego mais curto pelos dois maços diários, isso também é mazela a se resolver em poucos dias. O que dói é a hesitação ante o início, é a falta de certeza e de confiança em levar a moça à sua frente para onde você quiser levá-la.

Não serve de consolo saber que mesmo velho e alquebrado, mesmo desgraçado pelas Musas eu ainda sou um bom dançarino de bolero, porque bolero é diferente, não permite aquele bater de coxas e apertos na cintura, mal permite a mistura de suores. É triste saber que desonrei a herança da família, do meu avô melhor dançarino de tango do Rio de Janeiro, de mim mesmo consciente da felicidade que dava a uma mulher numa pista de dança. É triste saber que se está velho, velho e decadente.

***

A doida estava na praça, ontem, dançando sozinha. Tinha tirado as sandálias e colocado o guarda-chuva do lado, e esquecida de tudo rodopiava contente.

Quer dizer, diziam que ela era doida. Eu não sei. O que eu via era uma mulher feliz e abandonada ao prazer de dançar, despreocupada do que os outros poderiam pensar. Alguém que gostava de dançar por dançar. Disseram que anteontem ela também estava lá, dançando sozinha, fazendo suas piruetas. Mas anteontem não choveu, e todo mundo pode dançar quando chove; ontem, debaixo do temporal, só ela estava ali, dançando sozinha sem precisar do seu guarda-chuvas.

Hoje, tendo que relembrar o passado em busca de momentos de uma glória esvanecida, posso compreender melhor a doida que se entregava à chuva apenas pelo prazer de dançar.

A Mônica apontou a moça e fez o desafio: “Cem reais para você dançar com aquela doida ali embaixo”. A Mônica, mesmo depois de quase um ano, não me conhece. Não sabe que poderia ter me oferecido muito menos, não sabe que só o desafio talvez fosse motivo suficiente para eu me abalar lá embaixo e dançar com a mulher que ela chamava de doida. A Mônica descobriu apenas agora que sou barato, sempre fui barato, e por cem reais eu dançaria até com o diabo, e esqueceria a minha decadência e a minha tristeza.

Lá fui eu. Enfrentei a chuva também, não me importei em me molhar como a moça que dançava. E assim dançamos, ela e eu, ela feliz por estar dançando com alguém, eu feliz por estar ganhando cem reais.

A Mônica fez questão de pedir para  o Sílvio Rocha tirar fotos. Não sei exatamente quais os seus motivos, prefiro não perguntar. Porque independente do que será feito delas, essas fotos servem como um troféu, uma mostra de que no dia 22 de junho um homem que não sabia mais dançar desceu e novamente fez uma mulher feliz, ainda que de maneira insípida, lembrança distante de outros tempos em que, entre as coxas delas, estaria venturosa a sua.

Eu não sou mais um grande dançarino de forró como fui um dia, e esse destino é triste para mim. Mas talvez por um gesto de piedade temporária das Musas, o forró ainda pode me render cem reais, e isso faz de mim um homem um pouco menos triste na véspera de São João.

Santa Dulce da Bahia

Se eu fosse católico — ou melhor, se eu fosse pelo menos cristão —, eu teria um retrato na parede e um escapulário com uma foto de Irmã Dulce.

Bondade é uma virtude que anda meio em baixa em um mundo laico, onde as relações de troca são o principal motor da sociedade e cada dia mais aceitas como padrão. Bondade é vista com desconfiança, muitas vezes como disfarce de um egoísmo profundo — e as pessoas que se recusam a dar esmolas dizem que quem dá é apenas para aliviar a sua própria consciência, para se sentir melhor consigo mesmo.

E no entanto basta um olhar de relance para os olhos da Irmã Dulce, mesmo em fotos, para descobrir o que bondade significa.

Existe pouca gente que eu admire tanto quanto ela. E é na comparação com Madre Teresa de Calcutá que a sua grandeza é reforçada.

Há alguns anos vi um filme sobre Madre Teresa na TV. Um desses telefilmes de fim de noite. E o que mais me impressionou foi a falta de bondade naquela mulher. Ela fazia um serviço social importante, sem dúvida — mas faltava carinho, humanidade, amor. O que em Irmã Dulce era a materialização de uma bondade e misericórdia absolutas, em Madre Teresa parecia ser apenas o cumprimento de um dever amargo. Madre Teresa lutou para conseguir apoio oficial à sua obra — mas a Irmã Dulce fazia o mesmo sem apoio nenhum, fazia ainda que tivesse que invadir casas abandonadas ou ocupar o mercado de peixe.

Christopher Hitchens, que serviu de advogado do diabo no processo de beatificação da albanesa, diz que o buraco é ainda mais embaixo. Acha que ela gostava da pobreza, e não dos pobres: dizia às pessoas para aceitarem seus infortúnios com prazer, enquanto se opunha a políticas de planejamento familiar. Lembra a sua proximidade a gente como os Duvalier do Haiti. E era hipócrita ao atuar politicamente contra um referendo sobre o divórcio na Irlanda, enquanto dizia que sua amiga Lady Diana deveria se divorciar do príncipe Charles porque era infeliz. Acima de tudo, Hitchens diz que o famoso hospital de Madre Teresa não passava de “um manicômio primitivo — um lugar para as pessoas morrerem, e um lugar onde o tratamento médico era mínimo ou inexistente. (Quando ela mesma ficou doente, voou de primeira classe para uma clínica particular na Califórnia.)”

E em assim sendo, é tão diferente do Hospital Santo Antônio, que a Irmã Dulce construiu lutando contra tudo e que hoje é o mais importante hospital gratuito do país. O Hospital Santo Antônio sempre foi um reflexo da personalidade de sua criadora. Uma mulher decidida, dona de força insuspeita, mas em cujos olhos podia-se ver uma imagem quase aterradora de doçura e humildade. O Hospital Santo Antônio não era o que “os pobres mereciam”. Era o melhor que se podia oferecer, e foi lá que a Irmã Dulce foi cuidada quando sua saúde, que nunca tinha sido grande coisa, finalmente deu sinais de que ia embora de uma vez. O hospital era bom o suficiente para ela, como era para os pobres. “Ama ao próximo como a ti mesmo”, dizem que Jesus dizia, e foi o que ela fez.

Seu processo de canonização está avançando. O Vaticano já reconheceu a possibilidade de um milagre. Comprovado, será um passo importante para a beatificação e reconhecimento canônico do que um país inteiro já sabe: que a mulher que nasceu Maria Rita, foi ordenada freira no Convento das Carmelitas em São Cristóvão, Sergipe, e rebatizada Dulce em homenagem à sua mãe, era uma santa.

Mas o Vaticano erra duas vezes, e são erros imperdoáveis.

Erra ao nomeá-la “Serva de Deus” (o primeiro passo no processo de canonização). Sim, isso ela era, não é algo que se discuta, e sua fé é motivo de admiração. Mas não é por isso que ela é santa, a única que este blog reconhece. Sua santidade não vem da religião, porque religiosos os padres de Boston também são, como são aqueles que colocam grades em torno de suas igrejas para evitar que os mendigos durmam ali; sua santidade vem do fato de que, antes de qualquer coisa, ela era uma “Serva do Homem”, talvez a maior que a Bahia já conheceu. É a sua humanidade que a santifica.

O Vaticano erra novamente, e esse é o seu pecado mais grave, ao condicionar o reconhecimento da santidade de uma mulher que morreu há quase 20 anos a um “milagre” póstumo. Não é apenas prudência; é desrespeito e menosprezo à sua obra. Porque Irmã Dulce realizou o seu milagre ainda em vida, e isso a torna maior que quase todos os outros santos da Igreja; e se o Vaticano que endossa alucinações de beatas mirins que vêm a Virgem precisa de testemunhas, estão aí milhares e milhares de baianos que passaram pelas mãos de Irmã Dulce, e devem suas vidas a elas, à sua bondade, ao seu amor incondicional, e milagre maior não pode ser feito por nenhum santo.

Esse título a Bahia, sempre sábia em suas ladeiras, já deu ao seu Anjo Bom. Deu há muito tempo, porque não precisava de nenhuma outra prova. É a mesma Bahia que, como intermediário entre ela e as coisas do desconhecido, prefere Exu a qualquer papa, tanto o antigo com cara de bom avô como o novo com cara de velho sibarita. Decida o Vaticano o que quiser, isso não vai importar. A Bahia já canonizou a Irmã Dulce há muito tempo, ainda em vida. E deu a ela o nome de Santa Dulce da Bahia.

O fim da crítica de cinema

Tenho a impressão de que a principal função dos críticos de cinema será avisar aos espectadores se eles devem ou não ficar no cinema até o fim dos créditos de encerramento, para ver ou não aquelas pequenas codas que viraram mania nos filmes e principalmente nos desenhos animados. Será uma função nobre e honrosa, e vai dar a única informação realmente útil em suas resenhas.

Porque o estado da crítica de cinema nunca foi tão ruim. E quando falo em crítica não me refiro sequer a artigos de fôlego médio — tenho em mente um ensaio antológico de Robert Warshow sobre “Luzes da Ribalta”, de Chaplin, ou ainda a belíssima e sensível resenha de “Hiroshima Mon Amour”, por Moniz Vianna, como exemplos. Em vez disso, falo de crítica leve, a resenha diária a ser entregue no prazo de fechamento do jornal, como as pequenas obras-primas de simplicidade e argúcia de Francisco Luiz de Almeida Salles.

Quando a Folha de S. Paulo dedicou duas ou três páginas a “Onde Os Fracos Não Têm Vez”, trouxe entrevistas com o diretor e o ator, valores investidos na produção, repercussão na mídia, o diabo. Talvez aquele não fosse um grande publieditorial, talvez fosse mesmo um bom trabalho de reportagem — mas faltava a ele uma avaliação aprofundada do filme, que se apoiasse numa boa análise da obra em vez de apenas reverberar a opinião da mídia em geral, inclusive usando os mesmos clichês, ou falar do “impacto” social da obra.

É um tipo de abordagem cada vez mais comum, que pouco a pouco veio substituindo a crítica cinematográfica como se entendia. De crítica, mesmo, fica apenas o nome. Se assemelha mais aos resultados de uma campanha de marketing do que à apreciação racional de uma nova obra.

Parece ter havido uma contaminação irreversível e completa do exercício da crítica pelos press releases. É cada vez mais difícil achar uma resenha realmente boa, que permita um olhar adequado ou novo sobre o filme — um exercício de criação sobre uma obra de arte. Todos parecem trabalhar a partir do que a máquina de relações públicas da indústria quer que se diga. Não é implicância minha: pegue qualquer lançamento e procure o que se diz dele. Há sempre referências à indústria, ao mercado — tudo isso mascarando uma profunda indigência crítica.

(Nos Estados Unidos a situação é marginalmente melhor. Ainda há bons criticos como A. O. Scott e Manohla Dargis no New York Times, e o Roger Ebert [de quem nunca consegui saber se gosto ou não] está voltando para a crítica de jornal. Mas lá também a síndrome do press release parece ter tomado conta do cenário.)

Hoje estamos mais para Dulce Damasceno de Brito do que para Moniz Vianna. Ou, para usar figuras mais recentes, e ressalvadas as diferenças e dimensões, mais para Ana Maria Bahiana do que para Inácio Araújo.

Talvez o baixo nível geral do cinema no século XXI contribua para isso. Nunca, no pouco mais de um século do cinema, a produção cinematográfica foi tão homogeneamente medíocre, tão repleta de pequenos nadas repetitivos. Talvez a indústria em si seja mais interessante do que seus produtos. Talvez a formação de grandes estruturas de comunicação e entretenimento tenha feito de nossos críticos seres menos criativos, menos aplicados, menos corajosos. Mas a isso se alia também o baixo nível cultural dos jornalistas, um estado que tende a se espalhar cada vez mais, sem perspectivas de quimioterapia eficiente.

Cinema é uma arte derivada. Para interpretá-lo, é necessário levar em consideração outras artes e disciplinas. Não basta se trancar numa sala com uma pilha de DVDs durante semanas a fio para entendê-lo realmente (embora o conhecimento estritamente cinematográfico seja indispensável, e mesmo esse anda em falta). Não dá para avaliar, por exemplo, “Era Uma Vez no Oeste” tendo em vista apenas a evolução do western, de Tom Mix a John Wayne a Clint Eastwood, embora esse seja o ponto principal: é preciso entender o que era o mundo em 1969, ver por que a abordagem ideológica do processo de colonização do oeste americano sofria, ali, uma mudança importante e sutil.

E no entanto, quando se vê uma resenha de cinema em uma revista ou jornal, não parece haver nada a mais que a simples copidescagem do material de divulgação do filme — quando muito referências aqui e ali a opiniões emitidas lá fora e antes, nem sempre creditadas. Não há idéias, muito menos novas idéias, e o empréstimo de linhas inteiras de pensamento parece ter se tornado a norma. Por exemplo, a crítica a Superman Returns na Veja tinha sido inspirada, nitidamente, na resenha do New York Times — um exemplo de pobreza intelectual ainda pior que a original, que já não era muito boa.

No fim das contas, o único lugar onde ainda se encontra algo aprofundado é na crítica acadêmica — e essa costuma ser chata, pedante, com seus “signos” e “paradigmas”. Apesar de sua pretensão, não costuma formar um público melhor, porque é necessariamente restrita, elitista e inacessível a boa parte das pessas. É a crítica de jornal e revista, aquela mais simples e despretensiosa, que forma bons espectadores, por exercer um papel social mais importante e efetivo. Crítica de cinema não precisa de semiótica e quejandos. Precisa apenas de inteligência e talento. E é da falta disso que quem gosta de cinema tem todo o direito de reclamar.

Republicado em 09 de outubro de 2010

As alegrias que o Google me dá (XXXIV)

filmes de sexo mostrando mulher casada perdendo a virgindade
Por que uma mulher que se manteve virgem até o casamento iria soltar a franga dessa forma e fazer um filminho à la Paris Hilton justamente na noite de núpcias é um mistério. E por que há tanta gente fazendo esse tipo de pergunta que se equilibra entre o doentio e o idiota é um mistério maior ainda.

qual a mulher da bunda mais feia do mundo
Isso não existe. Cada bunda tem lá seus encantos, se não estéticos, ao menos práticos. Reconhecer o valor absoluto da bunda como acima de questões menores como essa é o que nos difere dos outros animais.

o homem se apaixona depois de fazer sexo
Sinto destruir suas ilusões, minha filha. Sinto também estragar os planos do cafajeste que está tentando comer você com essa conversa mole, porque não há nada que eu respeite mais que uma boa cafajestada. Mas depois que ele comer, a coisa vai mudar de figura. De qualquer forma, posso te dar um conselho: dê para ele. Um homem capaz de tamanho cinismo, dono de tamanha cara de pau, merece que você lhe dê uma chance.

redator publicitario o que faz
Um redator publicitário não faz. Refaz. Essa é a triste sina dos coitados. Minha teoria é que existe nas trevas uma Seita da Refação que ilude jovens universitários com promessas de uma carreira glamourosa, apenas para condená-los a uma existência triste refazendo textos.

fundo 157 herdeiros
A pobreza é uma coisa tão triste. Mal enterraram o sujeito e lá vem a família correndo atrás de cada centavo que o coitado possa ter deixado de gastar na vida, inclusive de um tal fundo que ninguém mais lembrava que existia.

rafinha era pobre
E continua sendo, amigo. Você acha que minha dor vem de onde? Eu vivo tentando, mas não consigo ficar rico. Desse jeito vou acabar tendo que trabalhar.

é pecado a mulher evangélica fazer boquete
Como é duro ser evangélico. O sujeito está lá, com seus desejos queimando sua carne e turvando seus pensamentos, e fica se perguntando se é pecado aquilo que ele queria pedir à sua mulher. E eu não sei o que responder. Não apenas por não entender de teologia. Mas porque se disser que não é, o sujeito pode pedir à mulher que caia de boca nele, e se depois descobrir que é pecado vai me amaldiçoar para todo o sempre e eu vou para o inferno. Por outro lado, se eu disser que é, o sujeito vai acabar arranjando uma gentia qualquer, que satisfaça de bom grado seus desejos orais. É melhor não mexer nisso.

associação dos corno de alagoas
Ninguém me contou, eu vi. Em Pajuçara, Maceió, uma academia de ginástica faz questão de alardear: só para mulheres. Me disseram que isso vem do machismo dos alagoanos, que não gostam muito da idéia de ver homens sarados e fortões perto de suas mulheres. Mas já que existe uma associação dos cornos de Alagoas — gente que faz reuniões com outros homens enquanto sua mulher se diverte no aiaiai –, isso quer dizer que independente das maneiras com as quais os másculos alagoanos cerceiam suas mulheres, suas testas continuam a ser enfeitadas. O que me leva a levantar a hipótese de que nessas academias só para mulheres grassam as mais devassas, mais depravadas orgias lésbicas do país. Os alagoanos, coitados, andam perdendo suas mulheres para outras mulheres saradas e fortonas.

foto de como fica a vagina depois do estupro
Estragadinha.

clitoris cabeludos
Diz aí, amiguinho: tu nunca viu um clitoris antes em sua vida, viu?

frase perfeita pra ganhar qualquer mulher numa balada
Eu tenho as minhas preferidas, e se você segui-las vai se dar bem. Se aproxime da moça e pergunte: “E então, gata, tamos aí nessas carnes?” Ela vai ficar surpresa por um instante. Aí você, rapidamente, dá uma porrada nos cornos dela e arrasta para casa.

video – cavalo tarado batendo punheta
Ei, mané… Cavalo não tem mão. Tem pata. Com casco. Um dedo só. Não dá. Não dá.

homens que chupam o proprio pau
São os famosos auto-viados.

frases pra garota endesisa com o namoro
Minha filha, decida-se logo, por favor. Porque uma chance dessas não aparece todo dia. Não é todo mundo que quer namorar uma anta como você.

eu tenho penis pequeno
Vai desculpando, amigo, mas isso aqui não é reunião do PPA — Pintos Pequenos Anônimos: “Oi, meu nome é José e eu tenho pinto pequeno.” Aqui você não vai achar um ombro amigo, não vai achar consolo. Só um escroto fazendo graça fácil das misérias dos outros.

penis pequeno e ruim
eu tenho um penis grande
E depois tem gente que ainda vem aqui dizer que este não é um blog democrático. Este blog é procurado pelos bem e pelos mal dotados. Mais democrático, impossível.

guerra dos civis pagando boquete
Eu não sabia que tinha gente nesse mundo fazendo guerra para pagar um boquete. Para você ver a que ponto a coisa chegou. Pior para os militares que, por pagarem um boquete, acabaram se ferrando. A vida dos civis é tão melhor.

jabour no manhattan connection porque ele saiu?
Sei lá. Vergonha, talvez.

ensinar a fazer sexo e a bater punheta
Bicho, até entendo que você precise de ajuda para aprender a fazer sexo. Eu pensava que as pessoas já nasciam sabendo, mas a vida e este blog me mostram a cada dia que esse não é o caso. Se você precisa aprender a se masturbar você tem problemas mais sérios do que imagina. De qualquer forma, melhor que te ensinem masturbação em vez de sexo, porque neste caso você pode dar cria, e o mundo não precisa de mais gente assim, se é que você me perdoa o laivo eugênico.

o traido conformado
O rapaz ainda está sob choque, se recusa a pronunciar a palavra “corno”, como se isso acabasse com a galhada que enfeita sua testa. Mas já sabe que não vai fazer nada, então quer saber como fazem aqueles que se conformam com o destino cruel. Pelo menos é um rapaz sensato. Admirável. Não é tão melhor que sair por aí com um revólver atrás do sujeito que apenas deu um pouquinho de felicidade à sua mulher?

mulheres da região de limeira para transar
Se não achar, e se pagar bem, eu conheço um baixinho narigudo aí que até topa.

quantas pessoas há em goiânia
Depende. Agora que estão proibindo a entrada de brasileiras de fino trato na Espanha, a população deve aumentar consideravelmente.

ver o caso da mulher que colocou fogo no penis do parceiro em goiania
Ela achava que a relação estava muito fria. E o babaca do marido — goiano, né? — se dizendo o máximo, que era o maior michê das paradas, que era “quente”. Aí ela resolveu esquentar mesmo a coisa. E depois fugiu com uma caravana de Uruaçu para a Espanha.

meu vento sera tua herança
“O Vento Será Tua Herança” é um filme antigo, baseado em um episódio real sobre o ensino do evolucionismo nos EUA do começo do século. Dizem que é um filme fraco. Foi refilmado há alguns anos, e esse eu posso dizer que é fraco do ponto de vista cinematográfico, mas além de certo interesse sociológico tem o duelo de dois grandes atores: Jack Lemmon e George C. Scott. Já “Meu Vento Será Tua Herança” deve ser a autobiografia do peidão que fez essa busca aí.

o que é que farias para que os seus alunos aprendesse a ler correctamente
Em primeiro lugar, ensinaria concordância verbal. Porque ler eles talvez já saibam, mas não têm como aprender a escrever.

o que aconteceu co adof ritler
Adof Ritler era o filho de Zé de Rita, agricultor de uma cidadezinha no interior de Sergipe. Zé de Rita era cafuzo, pequenininho, cabeça grande e testa estreita, mas por alguma razão achava que aquele tal de Hitler era um cabra macho admirável, hômi que enfrentou os americanos e os russos. E assim batizou o seu primogênito. O cartório reclamou, disse que não podia, mas ele insistiu. O tabelião corrigiu a grafia, ele perguntou se o tabelião era viado. Ficou Adof Ritler mesmo, o que facilitou a vida de milhares de analfabetos depois. Adof teve uma vida difícil, se acabou na cachaça, e então abandonou a mulher e sumiu no mundo. Ninguém sabe por que ele agiu assim, por que era tão confuso. Dizem que porque tinha um testículo só, mas isso é fofoca, sabe como é.

cartas de amor para uma pessoa presa
Presidente Prudente, 10/03/2007
Meu grande amor,
Desde que a juíza proferiu a sentença que lhe tirou de mim, minha vida tem sido um eterno morrer de saudades. A dor que sua ausência me causa é tão grande que me faltam palavras para descrevê-la. Espero ansiosamente pelos dias de visita, em que terei você novamente em meus braços. Eu não consigo viver sem você. E no dia em que você finalmente cumprir seus 30 anos de sentença, eu estarei lá fora esperando por você. Eu te amo para sempre, sempre, sempre, sempre.

Presidente Prudente, 05/08/2007
Caro Fernandinho,
Muitas saudades. Não deu para ir aí nos dois últimos finais de semana porque estava muito ocupada. As coisas aqui fora têm melhorado, apesar da falta que você me faz. Mas o Carlinhos, que você não conhece, tem me ajudado muito. Tem sido um grande amigo, me oferecendo o ombro quando preciso, com todo o respeito. Vou aí no próximo dia de visita, se possível.

Presidente Prudente, 10/03/2008
Fernando,
Adeus. Conheci um outro alguém. Vou ser feliz com o Carlinhos. Não me procure mais. Me esqueça. De qualquer forma dizem que você é a mulherzinha do xerife aí da sua cela, não vai mesmo sentir a minha falta.

Uma velha caixa de correio

A gente se acostuma a tudo, às coisas boas e às coisas ruins — verdade que mais facilmente às boas; mas se acostuma também às coisas ruins, e convive e sobrevive a elas, porque no fundo todos nós somos isso: sobreviventes.

De vez em quando preciso lembrar que vivo em uma era de maravilhas, que essas coisas boas e ruins a que já me acostumei não me acompanharam sempre, que já vivi sem elas e não senti falta, nenhuma necessidade premente. Mas também preciso lembrar de quando em vez que a cada nova maravilha corresponde uma transformação, e algo se vai para nunca mais voltar.

Eu preciso lembrar que nasci e vivi em uma era sem celular, sem internet, sem computador, um mundo em que havia apenas dois canais de televisão, TV Aratu/Globo e TV Itapoã/Tupi, e a maior parte dos programas de TV era ainda produzida em preto e branco, principalmente os telejornais locais, e que alguns programas eram orgulhosamente transmitidos “via satélite pela Embratel”; preciso até lembrar que a Embratel era estatal, então.

E mesmo o meu mundo já era diferente daquele de 200, 300 anos atrás, quando ainda girava mais devagar, muito mais. Era um mundo que não mudava para as pessoas. Certo, havia uma guerra aqui, outra ali, mas as coisas não mudavam, e o mundo que o rodeava quando nasceu continuava o mesmo quando finalmente fechava os olhos para sempre. Já era um mundo em transformação rápida, mas ainda parecia que então tudo tinha um caráter mais permanente, ou pelo menos estável.

De qualquer forma o problema não é esse. É perceber que a cada nova maravilha que aparece e se imiscui em nossas vidas, outra desaparece.

Nasci em um tempo em que ainda se escreviam cartas. Os mais velhos que eu podem dizer que mesmo então já não era como antes, quando o telefone não existia ou, se existia, era caro demais e inacessível para a maioria, mas eu sei — e as memórias deles não vão diminuir as minhas — que as pessoas ainda escreviam cartas. Escreviam para contar as novidades, para declarar amor, para romper amizades. E ao escrever elas fixavam para sempre a sua história, sua existência deixava de ser efêmera e transitória para existir de verdade; passava a ser mais que uma memória nos corações e mentes dos outros e então se materializava.

Uma carta era mais pessoal que um livro, porque ali estava sua letra, única, individual, algo que não poderiam refazer ao interpretar o que estava escrito. Algo que sequer tinha interferência de outra pessoa, como tem por exemplo um filme ou uma fotografia. Porque ali não está só você, está você e o olhar de outra pessoa. Colocar sua letra no papel quase significava tornar-se imortal como as pedras de Stonehenge.

Em 1983, voltando da escola, achei na rua um pacote de cartas datadas de 1946. Um homem e uma mulher se correspondiam porque tinham um assunto em comum, espiritismo e a organização do movimento espírita, embora ali estivessem apenas algumas das cartas dele. As cartas eram escritas em bela caligrafia — outro item que vai desaparecendo à medida que vamos nos tornando mais rápidos nos teclados de computador — por uma caneta tinteiro que deixava a letra mais elegante, sutil, engrossando seu traço nos lugares adequados e dando uma personalidade que esferográfica alguma jamais vai conseguir dar.

Não eram cartas de amantes, mas de colegas, talvez amigos. O que os unia não era uma afinidade pessoal, e sim o mesmo objetivo de vida. Tinham o tom respeitoso do seu tempo, quando beijar a mão de uma senhora não era ainda sinal de afetação, quando uma grande honra que você poderia prestar a um amigo era pedir que ele dançasse com a sua mulher, e ele saberia se comportar à altura de tão grande distinção.

O e-mail, as mensagens instantâneas e o celular acabaram de vez com cartas pessoais como essas. E caixas de correio como a da foto vão se extinguindo, porque cartas agora apenas de propaganda ou de cobrança, e essas são colocadas às toneladas diretamente nas agências de correio, impessoais como os traços de uma Garamond ou Helvética na tela do computador. Por isso tirei essa foto, porque um dia quero me lembrar delas e dos tantos aerogramas que mandei para minha avó e que ela guardou até o fim de sua vida, e que agora voltaram a mim. Quero poder explicar à minha filha o mundo que conheci, contar como mandávamos cartas para as pessoas que amávamos, e poder mostrar exatamente como elas eram; talvez até mostrar a esquina em que uma delas ficava, e explicar a longa trajetória por que um sentimento passava até poder ser decodificado a quilômetros dali.

Dez anos atrás, um anúncio para Shreve, Crump & Low dizia que “Daqui a cem anos, ninguém vai encontrar seu e-mail carinhosamente envolto em fita e escondido debaixo da cama”. O anúncio tem razão, e foi isso que nós perdemos junto com as caixas de correio.

Republicado em 07 de outubro de 2010

Minutos de sabedoria

Don’t let anybody kid you. It’s all personal, every bit of business. Every piece of shit every man has to eat every day of his life is personal. They call it business. OK. But it’s personal as hell. You know where I learned that from? The Don. My old man. The Godfather. If a bolt of lightning hit a friend of his the old man would take it personal. He took my going into the Marines personal. That’s what makes him great. The Great Don. He takes everything personal. Like God. He knows every feather that falls from the tail of a sparrow or however the hell it goes. Right? And you know something? Accidents don’t happen to people who take accidents as a personal insult.

Michael Corleone

É verdade que há palavras e imagens em excesso aqui para que se possa chamar isso de alta literatura. E daí?

Tem gente que decora a Bíblia. Eu decoro “O Poderoso Chefão”.

A névoa cinza-azulada da vingança

Não entendo como há tanta gente que insiste em ser desagradável, gratuitamente.

Eu fumo. Fumo porque a fumaça é gasosa, porque se fosse líquida seria coca-cola e eu beberia. Fumo muito. Mas procuro respeitar os não fumantes. Isso quer dizer nunca fumar onde não é permitido e evitar fumar em lugares fechados. É a única forma de chegarmos a uma convivência sem muitos sobressaltos.

Ao mesmo tempo espero que respeitem os meus direitos, apesar da propaganda maciça que busca nos tornar cidadãos de segunda classe. Se fumar não é proibido — ainda — neste país, eu tenho o direito de fumar onde não é interditado. É simples assim, e é impressionante como os zelotes anti-tabagistas se dispõem alegremente a passar por cima de um conceito tão simples de liberdade em nome de sua própria paranóia.

Domingo, em Maceió. Eu tinha acabado de tomar o café da manhã numa pousadinha e estava lá fora com a Mônica, fumando. Aparentemente eu poderia fumar no hall, mas por que incomodar desnecessariamente os não fumantes? Lá fora era mais sensato e respeitoso.

Eu estava de costas para a entrada; foi a Mônica quem viu a velha primeiro. Ela chegou na porta, nos viu fumando e fez o gesto de quem abana o ar à sua frente, de quem afasta a fedentina dos seu nariz delicado — embora o rosto da velha não tivesse nada de delicado, apenas ventas largas e rugas crestadas de sol que devem ter vindo não da idade, mas do azedume do seu espírito. Ela ainda não tinha sentido o cheiro de fumaça; mas o seu espírito de porco, a sua chatice de velha ranheta precisava se manifestar. Ela viu alguém fumando e, com a certeza estúpida que a idade provecta dá a algumas criaturas, resolveu manifestar o seu desagrado — essas coisas que quem não está satisfeito com a vida que leva faz ao ver outras pessoas felizes.

Então ela passou por nós abanando o ar, carregando uma sacola para um táxi estacionado em frente. Voltou do táxi fazendo o mesmo gesto, a mesma cara de fedor, mas agora soprando o ar com força pelas narinas, mais ou menos como faz um cavalo cansado — e aquela égua devia mesmo estar cansada da vida ruim que deve levar.

A velha desgraçada queria se fazer notar, estava dando o recado que achava necessário. Eu não entendi recado nenhum, sou meio estúpido para essas coisas, mas fiquei pensando que ela tinha cara de peidona — parecia ser daquelas velhas que passam as tardes de domingo sentadas numa cadeira de balanço assistindo ao Sílvio Santos e soltando flatos em tons e sons diferentes até a hora de dormir, indiferente ao som e ao mau cheiro. Era essa velha que fazia questão de insultar dois fumantes pacatos que se tinham recolhido para poder fumar em paz seus cigarros.

“Mônica, me avise quando ela estiver voltando.”

Não demorou muito. Daí a pouco ela passou de novo, as duas mãos ocupadas com pacotes — talvez renda de bilros, talvez artesanato alagoano, talvez remédios para a sua artrite, quem sabe até receitas de algum charlatão para curar os seus maus bofes.

Enchi os pulmões com a maior quantidade de fumaça que pude armazenar.

Esperei os passos se aproximarem.

E então, com a sincronia perfeita que só se vê em boas equipes de nado sincronizado, soltei em sua direção a maior baforada que já dei em todas as minhas décadas como fumante. Densa, concentrada — o tipo que se pode soltar abrindo bem a glote. E a velha atravessou galhardamente a belíssima nuvem de fumaça cinza-azulada, sem poder dar tapas no ar porque suas mãos estavam ocupadas, e fez uma expressão de raiva e desespero, e começou a tossir, e eu a acompanhei com os olhos até o táxi, onde ela entrou ainda tossindo.

E nesse instante eu me senti bem e me senti em paz, e você precisava ter visto o meu sorriso, e se fosse noite eu teria dormido com a consciência de que a justiça tinha sido feita, teria dormido o sono das crianças tranqüilas.

Talvez a velha esteja tossindo ainda hoje, e esse pensamento, embora improvável, me faz sentir melhor.

Republicado em 05 de outubro de 2010