O tempora, o mores

No dia 4 de novembro de 1963, a apresentação dos Beatles diante da família real inglesa no Royal Variety Performance entrou para a história por uma frase dita por Lennon antes de introduzir Twist and Shout: “Para o próximo número, gostaríamos de pedir a sua ajuda. As pessoas nos lugares mais baratos, batam palmas. Ao resto de vocês, basta chacoalhar as joias”.

A frase entrou para a mitologia do rock and roll. Todo mundo conhece.

Mas isso foi há quase sessenta anos. Os tempora passaram e os mores mudaram muito.

Hoje a frase de Lennon seria vista como uma brincadeirinha de roqueiros inconsequentes e superficiais que apenas querem aparecer, que afinal de contas a família real não merece muito respeito desde Charles e Diana, e sua repercussão se daria apenas em pequenas bolhas na internet. Os tempora não perdoam.

Não é nada que mereça muita atenção, no fundo. Falar sobre isso é apenas repetir as platitudes que recheiam virtualmente tudo o que se fala sobre essas coisas na internet. Mas dia desses, revendo a apresentação, um detalhe me chamou a atenção. E esse detalhe diz mais sobre estes tempos estranhos que vivemos que a boutade pseudo-operária de Lennon.

Na introdução a uma canção anterior, a maneira como McCartney apresentou Till There Was You hoje seria amaldiçoada, e geraria protestos ainda mais fortes.

Durante esse mais de meio século ela passou despercebida, porque naquele tempo foi vista apenas como uma piadinha boba e trivial, e a importância política e simbólica da frase de Lennon era muito maior naquele contexto.

Mas, repito, os tempora mudaram. Mas é o tipo de piada que hoje não é mais permitida, porque as sensibilidades mudaram.

E então é possível entender o escândalo que nasceria quando lá foi McCartney para o microfone dizer que a próxima canção “é do musical The Music Man e também foi gravada pelo nosso grupo americano preferido, Sophie Tucker.”

Ah, se isso fosse hoje. O mundo das redes cairia. E aí, aí nem a cara de menino doce criado por vó de Paul o salvaria da ira justa do mundo.

As críticas mais suaves falariam da sua gordofobia ou da sua gerontofobia e da sua indelicadeza.

Milhares de pessoas iriam teorizar sobre isso em posts lacradores. Bolsominions, moristas, olavistas e outras variedades de simplórios acusariam os Beatles de comunistas, abortistas, satanistas, beneficiários canalhas da Lei Rouanet.

Negros reclamariam que não se sentiram representados e que os Beatles representavam a branquitude de uma classe opressora há 300 anos e que não percebe seus privilégios.

LBGTs, ou seja qual for a sigla atualmente utilizada, diriam que a atitude dos Beatles era francamente homófoba.

Feministas fariam passeatas chacoalhando não banha nem peitos gelatinosamente balouçantes — a não ser que fossem as maluquinhas do FEMEN, que disfarçam peitos belos sob ataques de histeria neonazista —, mas cartazes pitados ‘a mão: “Gordo é o seu preconceito, Paul”.

Pessoas com deficiência diriam que aquilo não mascararia a atitude canalha e ofensiva dos Beatles, especialmente Lennon, diante do que chamavam derrogatoriamente de aleijados.

Sophie Tucker, por sua vez, ganharia os jornais se dizendo muito abalada. Contaria a história de dias de sofrimento, a luta contra a depressão que essa frase a fez empreender. A velha gorda podre de rica falaria do seu sofrimento. Talvez processasse os Beatles e destinaria o dinheiro para o Retiro dos Artistas.

E quando tudo estivesse prestes a amainar, quando outro escândalo de igual importância surgisse, apareceria alguém para dizer que, ao chamar Tucker de gorda, McCartney estava ofendendo os vegetarianos; para isso, um raciocínio tortuoso que me vejo absolutamente incapaz de formular seria construído.

Talvez McCartney tentasse se desculpar. Diria que Tucker era um grupo pela dimensão do seu talento, não por ocupar duas poltronas no avião. Diria que não foi sua intenção magoar ninguém — nunca é.

E em duas semanas, claro, tudo isso desapareceria.

Ninguém lembraria mais, com exceção daqueles mais rancorosos que, a cada menção sobre os Beatles, tiraria esse evento de sua gaveta mental e escreveria um texto lacrador no Facebook — ou, pior, aquelas sequências odiosas de tweets, mais ou menos como hoje lembram que dona Elizabeth Bishop um dia elogiou o regime militar de 1964.

Depois disso, os Beatles gravariam Revolver e Sgt. Pepper’s, mas ninguém ouviria. Sua música desapareceria, ficaria restrita a alguns guetos, até ser resgatada como influência por uma banda cool dos anos 2030. Talvez até seguissem a sina abjeta do Ultraje a Rigor, ser o Caçulinha do Danilo Gentili — e certamente John Lennon teria que antecipar a sua frase sobre os Beatles serem mais famosos que Jesus, para ver se conseguiam ainda algum espaço na mídia. Mas ele não teria sucesso, e os Beatles entrariam para história como uma nota de rodapé.