De como Heather McCartney destruiu os Beatles em apenas 9 minutos

E você aí falando besteira, dizendo que foi Yoko Ono quem acabou os Beatles.

Mentira, mentira canalha. Quem acabou a banda foi Heather McCartney, no dia em que algum insano deu um microfone para ela durante as gravações do Let it Be.

Um bebê que assim daria à sua mãe motivo real para infanticídio com requintes de crueldade, e seria absolvida por qualquer juiz do mundo, absolvida até pelo Papa Francisco. Ainda hoje não sei como George Harrison não se levantou e bateu em Heather com o seu guitarra até que restasse apenas uma papa ensanguentada no chão, gritando palavras incompreensíveis em chinês, babando com olhos vítreos.

Enquanto isso Lennon, que queria ver o circo pegar fogo, encorajava Heather: “Come on, Heather! Come on, Heather!” Ou talvez ele estivesse apenas chapado, ou então tenha visto na menina uma digna seguidora de Yoko. “Essa menina vai longe…”

Eu não sei. Mas tenho certeza de que foi ali, nesse dia, que os Beatles acabaram. E então a pobre Yoko, vítima de uma campanha canalha levou a pecha que deveria recair sobre aquela menina lourinha de 6 anos.

Armandinho, ou onde o humor vai para morrer

Tá, eu confesso: acho a tira do Armandinho, que tem feito certo sucesso recentemente, tão chata que de vez em quando me pego pensando que ela sintetiza tudo o que há de errado em uma certa maneira de ver o mundo atualmente, mesmo sabendo que essa ideia é talvez ambiciosa demais para quadrinho tão medíocre.

Armandinho tenta fazer passar por humor o que o mundo tem de pretensos bons sentimentos.

É uma espécie de sub-Mafalda, e essa parece ser sua inspiração óbvia, quase plagiária. Mas entre eles há um abismo de diferença não apenas de profundidade — é genuinamente assombrosa a capacidade do Armandinho de destilar platitude atrás de platitude —, mas de tempo e coragem: é fácil fazer Armandinho hoje, difícil era empurrar uma Mafalda nos tempos que precederam a ditadura militar argentina.

Mas não se trata apenas dos tempos. É a própria natureza da besta: comparado com a criação de Quino, Armandinho é raso e sacarino como um pires de água com açúcar. Enquanto Mafalda fazia perguntas, Armandinho apenas nos oferece respostas que parecem tiradas do “Minuto de Sabedoria”. Pior, diz isso sem sutileza alguma.

Não há inteligência em Armandinho. Há apenas o óbvio. Talvez seja isso o que irrita nele, a maneira quase redundante como diz as coisas, medíocre porque é a mediocridade que atinge o maior público. Como disse alguém, o Armandinho parece uma aula de Educação Moral e Cívica, aberração educacional que a redemocratização felizmente enterrou.

Basta perceber isso para lembrar também que não há uma gota sequer de coragem em Armandinho. É muito fácil fazer humor a favor, afetando uma superioridade moral imaginária sobre os demasiado humanos. Ninguém em sã consciência consegue ir de encontro ao que Armandinho diz: ninguém é, ao menos filosoficamente e em discurso, contra o amor, contra a tolerância, contra o respeito, contra a bondade.

Quando Edvaldo Nogueira, então presidente do PCdoB em Sergipe, me chamou oficialmente para entrar no partido num dia qualquer dos meus verdes e longínquos anos, o partido estava saindo da ilegalidade. Era muito diferente do que é hoje. Ainda eram muito presentes a cultura da clandestinidade, o respeito (ao menos teórico, no meu caso) aos mandamentos draconianos de Diógenes Arruda em “A Educação Revolucionária do Comunista”. Enquanto isso, ao meu redor, poucos, pouquíssimos eram socialistas, muito menos comunistas. Eu era o radical, na contramão.

Mesma época, eu era um beatlemaníaco fanático em uma cidade pequena com pouco acesso a informação e num tempo em que os Beatles estavam fora de moda. Se hoje você ouve uma banda pela primeira vez e duas horas depois já tem toda a discografia dela, eu demorei mais de dois anos para conseguir ouvir tudo o que os Beatles tinham lançado oficialmente, ainda que praticamente só pensasse nisso. Ao meu redor, ninguém ouvia os Fab Four. Eu era o velho, na contramão.

Se as duas coisas não parecem ter a ver uma com a outra, e menos ainda com Armandinho, elas têm. Me acostumei a achar que não existem “ideias certas” como as que o Armandinho defende. Que é necessário sempre o contraditório, que verdades não são absolutas (diacho, nem a Albânia era absoluta). E criei a convicção de que é muito fácil seguir adiante com as ideias da maioria. Não deveria ser essa a função do humor, se é que humor tem alguma função. Humor tem que provocar, mostrar o outro lado, expor o ridículo da vida e das coisas, principalmente do que é aceito como verdade sedimentada. Humor de qualidade instiga a pensar, lança uma luz nova sobre o mundo, não se esgota em um sorriso de auto-satisfação bovina. No mínimo, humor faz rir.

Armandinho não faz nada disso. Anestesia, no máximo. Está para o humor como a literatura de autoajuda está para Dostoiévski. Apenas nos reconforta com a sensação de que, nos nossos melhores momentos, somos boas pessoas porque tentamos nos reconhecer nele. Nos faz esquecer que no resto do tempo somos mesquinhos, vis, egoístas. E por isso ele não provoca, não faz pensar, não arranca sequer um sorriso de canto de boca. Uma tira engraçadinha que nos faz sentir melhor por sermos quem somos: o humor não podia pedir atestado de óbito mais claro. E triste.

Sem cenas do próximo capítulo

A essa altura, não tenho dúvidas de que a Rede Globo está morrendo. É uma agonia lenta, mas constante.

Em outro mundo, suas novelas chegavam a gerar quase 100% de audiência em seus últimos capítulos. O Jornal Nacional era a baliza da opinião brasileira. Hoje, a Globo briga com telespectadores que, se ainda expressivos, diminuem a cada ano; seu jornalismo é provavelmente menos respeitado que a vizinha fofoqueira do 701; e, pior, ela parece não saber para onde ir.

Olhando em retrospectiva, o início dessa decadência pode ter como marco inicial um momento qualquer em 1997, quando os sucessores de Roberto Marinho decidiram afastar o homem forte da TV por 20 anos, Boni, para consolidar o seu poder dentro da emissora. Defenestraram um homem de criação, responsável com Walter Clark pela consolidação da TV como a maior do país nos anos 70, e colocaram uma administradora. Foi um equívoco, e talvez se arrependam disso até hoje.

Mesmo que essa não seja a razão, o fato é que a Globo não soube lidar com um mundo em que novas tecnologias corroeram as bases sobre as quais o seu modelo de negócios se estruturou. Não foram apenas erros no processo de popularização de sua programação para se adequar a esses novos tempos. O problema é o seu apego a um modelo que o tempo superou.

É incrível, mas a Globo se sustenta sobre uma estrutura de grade criada há quase 50 anos. Programas infantis e femininos pela manhã, jornais e esporte ao meio dia, novela e filme à tarde. É um modelo criado para um país que já não existe, em que homens trabalhavam, mulheres cuidavam da casa e as crianças não tinham o que fazer à tarde, e à noite todos viam TV juntos enquanto jantavam e esperavam a hora de ir dormir.

É nesse horário, a faixa nobre, que o problema é mais grave. A grade é velha conhecida nossa: novela leve que crianças podem ver, jornal local, novela engraçada que todos podem ver, Jornal Nacional para estabelecer a pauta do país, novela para adultos; é aqui que a Globo ganha de verdade o leitinho das crianças.

A novela das oito é tão brasileira quanto o brigadeiro e a jabuticaba. Já foi referencial de tempo e condicionante social. Mas o século XXI não tem sido generoso com ela: ano após ano, sua audiência vem caindo. É um processo irreversível, e tem se acelerado em progressão geométrica nos últimos cinco anos. E a culpa não é apenas da qualidade cada vez mais baixa de suas tramas.

Quanto a esse aspecto, talvez secundário, a consolidação da TV por assinatura e a enchente de produções gringas disponíveis serviram para colocar algumas coisas em perspectiva. A revolução pela qual passou a TV americana nos últimos 20 anos, e que a faz gerar produtos de qualidade inquestionável como The Sopranos, Mad Men, Breaking Bad, Game of Thrones e muitos outros, põe em questão o tão decantado Padrão Globo de Qualidade.

Esse foi um dos mitos que sustentaram a hegemonia absoluta da Globo a partir do fim da TV Tupi, e dentro daquele ambiente insular era verdadeiro. É como aquela mulher que, em Marajá do Sena, achamos a mais linda do mundo, mas cuja beleza desaparece quando finalmente a TV chega e a gente vê que o mundo é um pouco variado. Hoje basta comparar as novelas da Globo com os seriados americanos para ver o abismo de qualidade que existe entre eles.

Claro que a insistência da Globo em suas novelas não é vaidade, nem apego de decadente quatrocentão a vestígios da glória passada. Elas são um produto incomparável. Uma novela custa em torno de 100 milhões de reais, mas tem potencial para faturar mais de 3 bilhões. Nem o tráfico de drogas é tão lucrativo.

Há apenas um detalhe: para dar esse lucro elas precisam dar audiência. Por enquanto, mesmo atraindo percentualmente muito menos telespectadores, elas ainda são uma aposta garantida para os anunciantes. O problema é que isso vai acabar mais cedo do que mesmo seus maiores críticos imaginavam. Hoje Malhação, num horário ingrato, gera quase tanta audiência quanto a novela das oito.

Para se adequar a um mundo novo, a Globo precisa primeiro entender que os tempos áureos passaram. É cada vez mais difícil conseguir o retorno financeiro que as novelas sempre deram. Por isso talvez seja a hora de repensar todo o horário nobre.

Seria preciso reimaginar o formato do jornalismo, adequar a um mundo em que a internet sempre chega primeiro. É preciso redefinir o que se diz, como se diz e quando se diz. Futebol é sempre uma aposta, e não custaria jogar o seu peso para pressionar a CBF para a definição de um calendário que lhe garantisse audiência regular. Shows também — por exemplo, um programa da Xuxa no estilo da Hebe nas noites de segunda-feira certamente garantiria mais audiência que a expectativa por um eventual beijo gay. Seria recomendável também tentar contemplar ao menos parte da diversidade cultural brasileira. E abrir um pouco mais de espaço à produção local, desde que com qualidade real.

Mas o mais importante seria repensar a sua dramaturgia.

Eu extinguiria a novela das 8 (ou das 9, como é chamada agora). As telenovelas fizeram muito sentido quando as pessoas só tinham uns poucos canais de TV como lazer doméstico, e a Globo não enfrentava concorrência real. A consolidação da TV por assinatura, o crescimento das outras redes e principalmente a chegada da internet tornaram o produto ultrapassado.

Seu modelo, com 150, 180 capítulos, funcionou graças à familiaridade do brasileiro com radionovelas e folhetins em revistas como a Cruzeiro, e ao fato de que a baixa oferta de entretenimento doméstico — fora as brigas dos vizinhos e a vida sexual da moça da casa em frente — oferecia as condições necessárias para que as pessoas acompanhassem seis, oito meses de uma série de tramas interligadas.

Isso cobrou um preço à qualidade, agora evidente. Tramas que duram 150 capítulos poderiam ser resolvidas em 20. Uma novela é uma coisa arrastada demais, com personagens demais, prolixa demais. Hoje é um mau produto.

Em vez de novelas, apostaria em um formato mais moderno: seriados e minisséries. Apenas como exemplo, poderia reviver seriados antigos que, modernizados, poderiam ter apelo popular: “Plantão de Polícia”, “Obrigado, Doutor”, até mesmo um novo “Carga Pesada”. Poderiam representar o tom certo de popularização, sem se tornar popularesco, algo que a Globo ainda não conseguiu.

Por mais que odeie a Globo — e não assista a ela há muitos, muitos anos, — ela faz parte da história do país. Tem um pedacinho lá no fundo que fica triste ao ver um referencial de vida ir desaparecendo assim, aos pouquinhos.