A essa altura, não tenho dúvidas de que a Rede Globo está morrendo. É uma agonia lenta, mas constante.
Em outro mundo, suas novelas chegavam a gerar quase 100% de audiência em seus últimos capítulos. O Jornal Nacional era a baliza da opinião brasileira. Hoje, a Globo briga com telespectadores que, se ainda expressivos, diminuem a cada ano; seu jornalismo é provavelmente menos respeitado que a vizinha fofoqueira do 701; e, pior, ela parece não saber para onde ir.
Olhando em retrospectiva, o início dessa decadência pode ter como marco inicial um momento qualquer em 1997, quando os sucessores de Roberto Marinho decidiram afastar o homem forte da TV por 20 anos, Boni, para consolidar o seu poder dentro da emissora. Defenestraram um homem de criação, responsável com Walter Clark pela consolidação da TV como a maior do país nos anos 70, e colocaram uma administradora. Foi um equívoco, e talvez se arrependam disso até hoje.
Mesmo que essa não seja a razão, o fato é que a Globo não soube lidar com um mundo em que novas tecnologias corroeram as bases sobre as quais o seu modelo de negócios se estruturou. Não foram apenas erros no processo de popularização de sua programação para se adequar a esses novos tempos. O problema é o seu apego a um modelo que o tempo superou.
É incrível, mas a Globo se sustenta sobre uma estrutura de grade criada há quase 50 anos. Programas infantis e femininos pela manhã, jornais e esporte ao meio dia, novela e filme à tarde. É um modelo criado para um país que já não existe, em que homens trabalhavam, mulheres cuidavam da casa e as crianças não tinham o que fazer à tarde, e à noite todos viam TV juntos enquanto jantavam e esperavam a hora de ir dormir.
É nesse horário, a faixa nobre, que o problema é mais grave. A grade é velha conhecida nossa: novela leve que crianças podem ver, jornal local, novela engraçada que todos podem ver, Jornal Nacional para estabelecer a pauta do país, novela para adultos; é aqui que a Globo ganha de verdade o leitinho das crianças.
A novela das oito é tão brasileira quanto o brigadeiro e a jabuticaba. Já foi referencial de tempo e condicionante social. Mas o século XXI não tem sido generoso com ela: ano após ano, sua audiência vem caindo. É um processo irreversível, e tem se acelerado em progressão geométrica nos últimos cinco anos. E a culpa não é apenas da qualidade cada vez mais baixa de suas tramas.
Quanto a esse aspecto, talvez secundário, a consolidação da TV por assinatura e a enchente de produções gringas disponíveis serviram para colocar algumas coisas em perspectiva. A revolução pela qual passou a TV americana nos últimos 20 anos, e que a faz gerar produtos de qualidade inquestionável como The Sopranos, Mad Men, Breaking Bad, Game of Thrones e muitos outros, põe em questão o tão decantado Padrão Globo de Qualidade.
Esse foi um dos mitos que sustentaram a hegemonia absoluta da Globo a partir do fim da TV Tupi, e dentro daquele ambiente insular era verdadeiro. É como aquela mulher que, em Marajá do Sena, achamos a mais linda do mundo, mas cuja beleza desaparece quando finalmente a TV chega e a gente vê que o mundo é um pouco variado. Hoje basta comparar as novelas da Globo com os seriados americanos para ver o abismo de qualidade que existe entre eles.
Claro que a insistência da Globo em suas novelas não é vaidade, nem apego de decadente quatrocentão a vestígios da glória passada. Elas são um produto incomparável. Uma novela custa em torno de 100 milhões de reais, mas tem potencial para faturar mais de 3 bilhões. Nem o tráfico de drogas é tão lucrativo.
Há apenas um detalhe: para dar esse lucro elas precisam dar audiência. Por enquanto, mesmo atraindo percentualmente muito menos telespectadores, elas ainda são uma aposta garantida para os anunciantes. O problema é que isso vai acabar mais cedo do que mesmo seus maiores críticos imaginavam. Hoje Malhação, num horário ingrato, gera quase tanta audiência quanto a novela das oito.
Para se adequar a um mundo novo, a Globo precisa primeiro entender que os tempos áureos passaram. É cada vez mais difícil conseguir o retorno financeiro que as novelas sempre deram. Por isso talvez seja a hora de repensar todo o horário nobre.
Seria preciso reimaginar o formato do jornalismo, adequar a um mundo em que a internet sempre chega primeiro. É preciso redefinir o que se diz, como se diz e quando se diz. Futebol é sempre uma aposta, e não custaria jogar o seu peso para pressionar a CBF para a definição de um calendário que lhe garantisse audiência regular. Shows também — por exemplo, um programa da Xuxa no estilo da Hebe nas noites de segunda-feira certamente garantiria mais audiência que a expectativa por um eventual beijo gay. Seria recomendável também tentar contemplar ao menos parte da diversidade cultural brasileira. E abrir um pouco mais de espaço à produção local, desde que com qualidade real.
Mas o mais importante seria repensar a sua dramaturgia.
Eu extinguiria a novela das 8 (ou das 9, como é chamada agora). As telenovelas fizeram muito sentido quando as pessoas só tinham uns poucos canais de TV como lazer doméstico, e a Globo não enfrentava concorrência real. A consolidação da TV por assinatura, o crescimento das outras redes e principalmente a chegada da internet tornaram o produto ultrapassado.
Seu modelo, com 150, 180 capítulos, funcionou graças à familiaridade do brasileiro com radionovelas e folhetins em revistas como a Cruzeiro, e ao fato de que a baixa oferta de entretenimento doméstico — fora as brigas dos vizinhos e a vida sexual da moça da casa em frente — oferecia as condições necessárias para que as pessoas acompanhassem seis, oito meses de uma série de tramas interligadas.
Isso cobrou um preço à qualidade, agora evidente. Tramas que duram 150 capítulos poderiam ser resolvidas em 20. Uma novela é uma coisa arrastada demais, com personagens demais, prolixa demais. Hoje é um mau produto.
Em vez de novelas, apostaria em um formato mais moderno: seriados e minisséries. Apenas como exemplo, poderia reviver seriados antigos que, modernizados, poderiam ter apelo popular: “Plantão de Polícia”, “Obrigado, Doutor”, até mesmo um novo “Carga Pesada”. Poderiam representar o tom certo de popularização, sem se tornar popularesco, algo que a Globo ainda não conseguiu.
Por mais que odeie a Globo — e não assista a ela há muitos, muitos anos, — ela faz parte da história do país. Tem um pedacinho lá no fundo que fica triste ao ver um referencial de vida ir desaparecendo assim, aos pouquinhos.