Este post tem uma missão nobre: iluminar um pouco a indigência direitista no debate social. É um esforço mínimo, claro, dentro das possibilidades de um blogueiro que prefere falar de sacanagem a falar de política. Mas bem intencionado, ainda assim.
Sua razão de ser são alguns dos comentários ao post sobre os canalhas da ditadura militar. Gente que, não contente em defender o indefensável, apela para um argumento raso de desqualificação pessoal: como alguém que defende Stálin pode reclamar de uma ditadura?
Não parecem ter entendido a parte em que se diz “de sacanagem”. ‘Stalinistas” é como trotsquistas barbudinhos do PT, saudosos da picareta no cocoruto de um exilado no México, se referem aos “verdadeiros leninistas” que militaram no glorioso Partido Comunista do Brasil. Não quer dizer que eles ainda defendam Stálin incondicionalmente.
Reconhecer e abjurar os crimes de Stálin contra o seu povo não significa voltar as costas aos grandes avanços sociais naqueles 30 anos. Quem fez isso foi o PPS — e olha só no que deu. Esse tipo de abordagem não é apenas inane, mas enganosa e burra.
A utilização desse argumento simplório incomoda por ser notícia velha e batida. Os crimes de Stálin são utilizado por todo mané de direita para justificar crimes cometidos por suas próprias ditaduras.
É preciso ser completamente idiota para fazer isso. É como justificar os erros de Bush apelando para Hitler. O que me impressiona é o seguinte: ainda que eu fosse um defensor incondicional de Stálin e de seus expurgos, o que isso teria a ver com o caráter malsão da ditadura militar no Brasil? Os fatos mudariam em função da opinião de um pobre blogueiro sem eira nem beira? Torturadores deixariam de ter torturado centenas de brasileiros porque A acredita que Stálin era gente boa? O golpe deixou de levar o Brasil para um longuíssimo período de trevas porque B consegue justificar os expurgos stalinistas?
Conduzir qualquer discussão para esse lado é confissão cabal de idiotice, que me perdoem aqueles que tentaram. Os expurgos stalinistas podem ser compreendidos e discutidos dentro do contexto russo, embora jamais justificados. Pessoalmente, acho que Stálin tem outros problemas também; se a direita fosse mais inteligente e um pouco menos infensa a argumentos fáceis demais poderia apelar a eles e, pelo menos, começar um debate razoável. A “traição” aos comunistas alemães em 1927 (sem certeza da data), por exemplo, na minha opinião foi um fator importante na viabilização do nazismo e condenou a revolução russa. Isso é imperdoável.
Diante de uma situação dessas começo a achar que é meu dever colaborar para o desenvolvimento cultural desse pessoal. A indigência intelectual da direita cansa. Eu fico cansado de ver esse mesmo discurso dos expurgos de Stálin, porque é ineficaz: ninguém mais justifica os erros de Stálin. É difícil para eles ganhar um debate porque eles têm argumentos pobres demais, velhos demais, desgastados demais.
Por isso este blogueiro, com a doçura que mamãe me deu, vou lhes fazer um favor. Está declarada aberta a “Oficina Rafael Galvão de Como Sacanear Comunistas”.
Para começar, me parece exemplo fino de puerilidade e ignorância qualquer bobo de direita apelar para Stálin contra um militante ou ex-militante do PCdoB. Puerilidade e ignorância, porque muito mais grave que ter apoiado Stálin — algo de que nenhum comunista se arrepende, geralmente porque sabe um pouquinho de história — foi ter acreditado que Enver Hoxha era gente boa. Essa, sim, não tem desculpa. A maioria dos comunistas do mundo repudiou Stálin logo após o XX Congresso do PCUS; mas Enver Hoxha continuou sendo admirado pelo PCdoB até bem depois de sua morte.
Quer bater em um militante do PCdoB? Larga um Enver Hoxha nas fuças dele. Dói. Machuca. Magoa. O problema é que 90% dos bobos de direita que acenam com os expurgos stalinistas não fazem idéia de quem diabos foi Hoxha.
Mas isso ainda é muito pouco. Não combina com a direita elitista deste país, que se pretende tão sofisticada e europeia (embora eu ache que ela está mais é para Miami, mesmo). São vocês que, na falta de argumentos concretos, gozam o “analfabetismo” de Lula, não são? São vocês os esnobes que gostam de alardear superioridade cultural, não são?
No reino das discussões bizantinas, se você puder dar uma luz nova a um debate antigo — ou seja, concordando com todo mundo mas de uma maneira ligeiramente diferente — você fará sucesso.
E isso a gente faz assim, ó: quando alguém quiser justificar as atrocidades da ditadura militar mencionando o nome Stálin, e todo mundo estiver fazendo aquela pose típica de intelectual em mesa de bar, você faz a de quem comeu merda e não gostou (a outra pose típica), olha em volta fingindo que é inteligente e larga:
— Jdanov.
E as pessoas em volta vão perguntar: cumé?
— Jdanov. O grande crime de Stálin foi Jdanov.
Pronto. Você acrescentou algo ao debate. 9 entre 10 pessoas na mesa não farão a mínima ideia de quem foi Jdanov. E aí você tem a sua chance.
A essa altura eu deveria sugerir que você, meu caro mané de direita que apela para os crimes de Stálin para tentar desqualificar críticas à ditadura, fosse procurar uma enciclopédia, mas como estou imbuído do senso messiânico de melhorar o seu parco repertório, vai aqui uma explicação sucinta do que estou falando.
Uma das noções mais deletérias instituídas durante a luta pelo socialismo foi o realismo socialista — a ideia de que a obra de arte deve apontar, necessariamente, a solução socialista. Na verdade, o realismo socialista não é algo intrinsecamente nocivo: é apenas uma escola artística, como milhares de outras. É tão válida quanto o naturalismo ou o romantismo ou o barroco, e deu grandes obras como “A Mãe” de Górki ou, aqui no Brasil, “Capitães de Areia” de Jorge, o Amado.
O problema começa quando o Estado passa a defender essa escola como a única admissível e utiliza seus meios de coerção para garantir isso.
Uma revolução se dá em vários campos, e o cultural é um deles. O combate a ela também, e foi por isso que o ocidente promoveu mediocridades como Soljenitsyn. Em um dos tantos desvios do ideário leninista, Stálin resolveu que seria necessário fazer da cultura um campo de combate praticamente militar.
Se o ambiente político russo era propício ao autoritarismo assassino que se tornou uma das marcas de Stálin, por outro lado a cena cultural russa, na virada do século XX, era virtualmente tão intensa quando a francesa. Não é preciso retroceder no tempo em direção a Puchkin ou Gogol, ou mesmo a Dostoiévski ou Tchekov. Naquele momento, a Rússia borbulhava em ideias diferentes, brilhantes e conflitantes.
Um exemplo do que se faria já nos tempos da Revolução, e um dos meus preferidos da virada do século:
À nossa volta floresciam campos vermelhos de papoulas, a brisa da tarde brincava sobre campos de centeio amarelecido e, no horizonte, erguia-se alto o virginal trigo mourisco, como a muralha de um mosteiro longínquo. O plácido Volin ziguezagueava, afastava-se de nós, sinuoso, e perdia-se no bosque de faias, envolvido numa névoa cor de pérola e entre colinas floridas. Depois serpeava lentamente entre plantações de lúpulo. Um sol alaranjado descia no horizonte, parecendo uma cabeça decepada; uma luz suave filtrava-se entre as nuvens, os estandartes do poente ondeavam sobre nossas cabeças. No frescor da tarde era forte o cheiro do sangue dos cavalos mortos na véspera.
Esse é o segundo parágrafo de “O Caminho do Sbruch”, de Isaac Bábel (“Cruzando o rio Zbrucz” na tradução de Cecília Prado, mas eu prefiro esta, de Roniwalter Jatobá). Foi esse ambiente vivo e vibrante que Stálin destruiu ao instituir a política cultural que seria conhecida como Jdanovismo. Ao permitir, grosso modo, que apenas as obras realistas socialistas laudatórias ao regime fossem reconhecidas, Stálin fez com que as artes russas agonizassem e morressem, virtualmente todas elas. Privilegiando a mediocridade apenas porque ela condizia com a sua visão autoritária de mundo, o Jdanovismo destruiu a cultura russa. Um país que tinha dado ao mundo gênios em virtualmente todas as áreas, mas especialmente a literatura, de repente se calou porque a única voz permitida e incentivada era aquela que louvasse o socialismo e o Grande Guia dos Povos.
A União Soviética se recuperou dos expurgos stalinistas — na verdade, saiu deles como uma das duas únicas superpotências do mundo. No entanto, jamais conseguiria se recuperar do Jdanovismo.
É possível apenas imaginar quantos Dostoiévskis e Tolstóis deixaram de aparecer porque o Jdanovismo não permitia visões distintas do mundo; Babel, pelo menos, foi executado por Beria em 1941. E eu consigo pensar em poucos crimes tão grandes — e tão admiravelmente adequados ao discurso elitista da direita — como esse, o de destruir a cultura de um povo.
No fim das contas, é o seguinte: ninguém em sã consciência justifica hoje os expurgos stalinistas. Apelar para eles denota burrice e ignorância, e não apenas porque os crimes de Stálin não justificam os crimes da ditadura militar no Brasil, mas porque há argumentos melhores para tentar essa besteira. Este blog, que pode ser canalha e chauvinista mas tem lá seus parcos conhecimentos de história, cumpre o seu papel de bom samaritano e tenta ajudar as antas de direita a calibrar melhor seus discursos retardados oferecendo alguns subsídios básicos para o seu crescimento espiritual.
Em vez de me xingar, me agradeçam. Se chamei vocês de burros e ignorantes é porque vocês são — mas também porque quero fazer com que vocês melhorem. E voltem na próxima — porque eu e vocês temos certeza de que vai haver próxima — com um discurso melhorzinho.
Espero ter ajudado. E lembrem-se: da próxima vez tentem apelar para a desqualificação pessoal através de Enver Hoxha e Jdanov, em vez dos expurgos stalinistas. O debate fica mais interessante, tipo assim, esteticamente highbrow. Olha que chique.