Monthly Archives: September 2005
Salve a Hello Kitty!
A Associação Blogoseira de Proteção à Hello Kitty, indignada com os maus-tratos a que ela foi submetida pelo senhor Bia Jones, está lançando uma campanha em defesa da pobre gatinha que não tem boca, mas fala e faz outras coisas com o coração.
Não podemos nos calar diante de uma barbaridade tão grande. Não podemos deixar que esses monstros ludófilos continuem à solta.
Participe. Você é importante nessa luta.
A sobrevivência da Hello Kitty depende de você.
E se você não tem medo do Biajoni… Você não sabe nada.
Pedala, Hello Kitty
Só mesmo o Bia para descobrir o que mais a Hello Kitty pode fazer com o coração.
Sobre a descriminação do aborto
Evite uma gravidez indesejada.
Faça sexo anal.
Canções de amor e ódio
Rafael diz:
Que nada.
Rafael diz:
Se eu morresse hoje, muita gente ia dizer “O filho da puta morreu!”
Carol diz:
“Até que enfim!”
Rafael diz:
É.
Carol diz:
Mas antes
Carol diz:
Assina um papel deixando os seus livros pra mim.
Carol diz:
Senão eu vou te xingar.
Rafael diz:
Ué, pode xingar.
Rafael diz:
Você acha mesmo que eu vou ouvir debaixo de sete palmos?
Carol diz:
Eu não vou deixar a tua alma em paz
Carol diz:
Você acha que vela e galinha preta servem pra quê?
Rafael diz:
Minha alma vai estar muito ocupada xingando o filho da puta do médico que me deixou morrer.
(…)
Carol diz:
Nós temos mesmo umas conversas super produtivas…
Rafael diz:
É.
Rafael diz:
Se os sem-terra me descobrem, me desapropriam.
Já me elogiaram e já me xingaram. Já falaram que sou quase-lindo e que sou muito feio. Já se apaixonaram pela minha boca e já me odiaram pelos meus olhos.
Mas nunca, em todas essas décadas de vidinha mais ou menos, alguém tinha se apaixonado pelas minhas gônadas a ponto de fazer poeminhas para elas.
Um dia na vida
Foi assim, ó:
Primeiro entra a banda, desencontrada no primeiro compasso, mas a bateria de Osie Johnson faz com que ela se encontre rápido; eles sabem como, quando e o que tocar. São todos grandes músicos: Roy Eldridge, Doc Cheatham, Vic Dickenson, Mal Waldron, Danny Barker e Milt Hinton. Principalmente, ali estão Lester Young, Ben Webster, Gerry Mulligan e Coleman Hawkins.
Da apoteose inicial em que estabelecem a cadência da música eles se acalmam, em expectativa mal disfarçada. Eles sabem que agora é a hora dela entrar, e que mesmo heróis mitológicos, cujas lendas são contadas de pai para filho por gerações, sabem quando se calar diante de deuses.
My man don’t love me, he treats me oh so mean
My man he don’t love me, he treats me awfully mean
He’s the lowest man that I’ve ever seen
E é uma deusa tão incomum, com seu rabo de cavalo, a voz que já tinha sido de menina agora rascante e profunda.
Ela se cala e espera que seus devotos façam suas orações. O primeiro é Ben Webster. Suave. Tranqüilo. Ele tenta fazer o seu saxofone soar no mesmo timbre de abandono da voz da deusa diante dele, e consegue. As notas que produz vão do melancólico ao angustiado, e pode-se sentir a agonia que o possui. Se você não sente olhe à direita de Webster, ali está Gerry Mulligan balançando-se de olhos fechados, em transe, e você vai saber, embora deva se lamentar por não sentir.
Agora é a vez de Lester Young. O presidente está doente, não come mais, apenas bebe; ele não agüenta ficar em pé muito tempo, mas ainda não sabe que morrerá em pouco mais de um ano. Até aqui ele assistiu a tudo sentado, talvez uma concessão que a deusa lhe fez. Mas é sua hora, e ele se levanta e encara a câmera que filma tudo aquilo. O presidente tem olhos tristes e cínicos, mas o jeito como trata o seu sax é outro, é o som de quem conhece cada curva daquilo quem tem em suas mãos e em sua boca, sabe onde deve tocar. Por isso o som é macio, suave, doce, como uma mão descendo desapercebida das costas para a cintura, e então aperta as suas ancas. Diante do presidente a deusa balança a cabeça, primeiro em um sim, depois em um não que quer dizer sim, mas o que ela pensa pode ser visto no seu sorriso satisfeito.
Ela volta. Ela tem que voltar. E se aquela primeira estrofe parecia algo do outro mundo, ah, nós ainda não sabíamos de nada, porque algo acontece quando ela canta o segundo really yellow, e estende a palavra até além dos limites do possível.
He wears high trimmed pans, stripes are really yellow
He wears high trimmed pans, stripes are really yellow
But when he starts into love me, he is so fine and mellow
Vic Dickenson apresenta o seu trombone. Não, ele não é Satchmo, nem Dizzy Gillespie, nem Miles Davis. Mas assim como Ben Webster ele sabe transformar em ausência de palavras tudo o que a deusa cantou antes dele, e mais não se pode pedir de ninguém.
Gerry Mulligan passa à frente, cabelo louro cortado à escovinha, terno xadrez. Ele sabe que seu sax barítono é gordo, é pesado, é grave, mas que se não pode subir às alturas de um trumpete pode descer às fundações daquilo que estão construindo sem planta, apenas sob os olhares de uma mestre de obras, sabe que pode dar a solidez de que todos os outros precisam.
Agora é a vez dela, novamente, e ela sabe o que vai cantar. Vai lembrar a sua história: puta, bêbada, viciada em heroína, uma cirrose lhe corroendo o fígado naquele exato instante — e uma vida inteira de amores complicados. E enquanto ela canta Doc Cheatham vai cantar também, mas a voz do seu trumpete é outra, é generosa e apenas ilumina o lamento da deusa.
Love will make you drink and gamble, make you stay out all night long
Love will make you drink and gamble, make you stay out all night long
Love will make you do things that you know is wrong
Coleman Hawkins, agora. À sua esquerda se vê novamente Gerry Mulligan, generoso, balançando ao ritmo sincopado da música, tendo tanto prazer em tocar quanto de simplesmente ouvir um dos grandes, como ele. Hawkins também sabe que não precisa dizer mais nada, que não precisa inventar palavras. Diz o que já foi dito, mas do seu jeito, sob os olhos dela e sob o seu sorriso.
Por isso agora, na vez de Roy Eldridge, não há mais palavras. Mas Eldridge nunca precisou delas, não vai ser agora que vai precisar. Então o seu trumpete grita, esquece de tudo, apenas grita. E depois que solta o grito que está dentro de cada grande trumpetista, ele volta às orações que todos estão dizendo.
A deusa está de volta, e finalizará o seu sermão com uma prece para que seus devotos continuem adorando-a, e ameaçando eventual abandono porque ela sabe o que é o amor, a fé e a devoção.
Treat me right baby, and I’ll stay home everyday
Just treat me right baby, and I’ll stay home night and day
But you’re mean to me, baby, I know you’re gonna drive me away
Love is just like a faucet, it turns off and on
Love is like a faucet, it turns off and on
Sometimes when you think it’s on, baby, it has turned off and gone
E agora não há mais nada a dizer, resta à banda fazer seus cumprimentos finais e se despedir, apenas colocar o ponto final em um lembrete de que, de vez em quando, deuses cantam e se juntam aos seus fiéis. E que essa obra divina é tão superior aos pássaros.
Era a noite de 8 de dezembro de 1957. Foram apenas 8 minutos no programa The Sound of Jazz, transmitido ao vivo pela CBS. E nos últimos 16 anos eu não consigo pensar em outro instante em que o jazz tenha alcançado esse nível absolutamente divino, em que Deus cantou para mortais com um olhar inocente que jamais conseguiria trair todo o sofrimento que continha, ainda sem saber que era mulher, que era negra, que morreria em menos de dois anos e que se chamava Billie Holiday.
Billie Holiday cantando Fine and Mellow em The Sound of Jazz.
Histórias
O tempo nunca passa de repente, passa com a regularidade que faz as noites sucederem os dias, a gente é que não percebe. As pessoas crescem aos poucos.
Dizem que quando se é adolescente, quando se tem 15 anos, você se acha imortal. Não é bem assim, nunca foi: você só considera algumas coisas tão distantes que não consegue pensar nelas, estão longe de você, não fazem parte do seu universo. E quando por acaso acontece um acidente, é só isso, um acidente.
Então você cresce, e quem cresceu antes de você envelhece. Também aos poucos, ninguém presta atenção a uma nova ruga em um rosto conhecido, a um novo fio de cabelo branco.
Sem que você perceba, sua imortalidade acaba. Não é na primeira morte de um amigo. Não é na segunda. Mas chega uma hora — é isso que vem de repente — em que você se vira para trás e a vida lhe aparece como uma seqüência de retratos de festa de reunião de turma, em que as pessoas que envelheceram antes de você vão sumindo aos poucos, e de cinqüenta restam trinta, e depois vinte, e então você olha para os quatro ou cinco miseráveis que sobraram e sabe que não foram esquecidos pelo tempo, e se pergunta quem vai ser o próximo.
A cada pessoa que some da foto é como se você fosse desaparecendo também, um pouco de cada vez. Porque você não é muito mais que isso, não é mais que as lembranças que deixa nas pessoas, os casos que contam de você vinte, trinta anos depois. É por isso que cada figura que desaparece representa um pedaço do seu próprio desaparecimento: porque elas levam consigo histórias suas, que agora não serão mais contadas e que sobrevivem apenas em você.
Um velório é isso, uma última celebração. É uma conversa em voz baixa em que as lembranças de alguém são evocadas coletivamente pela última vez, e isso acontece diante de círios, de velas, de flores que cheiram a morbidez, objetos que sequer pertencem ao cadáver deitado diante deles; talvez nem a isso, agora, ele tenha direito.
Isso acontece diante de jovens que ainda tentam entender o que é isso, que às vezes riem sob luzes mortiças porque, por sábios que pensem ser, ainda são inocentes, ainda não conseguem entender de verdade o que vêem, mesmo que uma sensação nova e ruim tenha se entranhado em suas almas. E acontece diante de velhos que já viram a mesma cena tantas vezes, e naquele momento talvez disfarcem o medo sob uma expressão de resignação; então você se pergunta se aqueles olhares vazios e aquelas vozes baixas e respeitosas são medo de um futuro cada vez mais próximo ou simples tristeza pelo que sabem que começou a se perder.
Depois as histórias se calarão, viverão por breves momentos quando um amigo encontrar o outro, ou em lembranças inventadas de netos que ainda não nasceram, e finalmente deixarão de existir, de uma vez por todas, e nada fará com que elas voltem.
Mas isso você pensa em casa, sozinho, mesmo depois de jurar a si mesmo nunca mais fumar na cama. Antes você não pensa isso, não pensa nada. Porque quando as figuras da sua foto de 20 anos atrás começam a sumir, fica apenas uma sensação de vazio.
Das leis dos blogs
Às vezes, os xingamentos que lhe dirigem e os chiliques que dão na sua caixa de comentários são os melhores elogios que você poderia receber.
Fin-de-siècle
Seculozinho cansativo, aquele.
O que dizer de um período de tempo que começou com 14 anos de atraso, foi definido por apenas cinco homens — Darwin, Freud, Marx, Einstein e Hitler — e terminou numa noite qualquer de novembro de 1989? E que, pior, deixou um limbo de 12 anos, em que as coisas simplesmente não foram a lugar nenhum, até que o século XXI começasse no dia 11 de setembro de 2001?
Seculozinho de merda, aquele.
Como foi gostoso o meu cinema
Nos anos 70, enquanto o Brasil perdia tempo discutindo Neville d’Almeida e os crimes que ele cometia contra a obra de Nélson Rodrigues, as pornochanchadas eram o que se produzia de mais verdadeiro neste país.
Hoje, olhando em retrospecto, é fácil ver isso, como talvez não fosse na época. Uma parte dos órfãos do cinema novo continuava com aquela visão polianística de “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, tradução tupi para cinema autoral de pobre, que combinada com a Embrafilme resultou na quase destruição do cinema brasileiro.
A parte “respeitável” do kinemanacional era composta de intelectuais, como ainda é, como sempre será. Mas se os de hoje têm mais senso prático, aqueles ainda viviam imersos da idéia de utopia, fosse ela qual fosse — da revolução popular, da revolução estética, de qualquer revolução. A face mais visível era aquela idiotice de “seja marginal, seja herói”, proferida por desbundados que, enquanto mamavam nas tetas fartas da Embrafilme, tentavam passar uma visão esquisitamente romântica e completamente equivocada da situação nacional, misturando Marx, Freud e o bebum da esquina num samba do crioulo doido que fazia os poucos valentes saírem do cinema ou do cineclube dizendo que o filme era uma merda, mas o diretor era genial.
Enquanto isso as produções populares como as pornochanchadas, que levavam muito mais gente aos cinemas, eram olhadas de cima, com desprezo.
Já tinham feito isso antes. Deram um nome derrogatório às chanchadas da Atlântida e similares, provavelmente o cinema mais genuinamente nacional — e de melhor qualidade média — que já foi feito. A idéia é sempre a mesma: pseudo-intelectuais com uma visão colonizada ou, no mínimo, extremamente elitista do cinema, dizendo que não, que aquilo de que o povo gosta não pode prestar. Que bons são aqueles filmes chatos do Godard, que a frieza alemã é boa e o calor brasileiro é ruim.
O nome dado às pornochanchadas dos anos 70 é extremamente enganador. Não há nada de realmente pornô neles, embora tenham sido a matriz para o cinema pornô brasileiro. São eróticos, sim, embora às vezes de um erotismo quase inocente e com aquele sorriso malandro no canto da boca, mas não pornográficos. São essencialmente cariocas, de um tempo em que o Rio tinha o que dizer, além de ser o melhor lugar do país para se viver.
Assim como Carlos Mossy, talvez o principal rosto dessa época — e muito mais importante do que parecia — sumiu no mundo sem avisar, a pornochanchada desapareceu ao longo dos anos 80. Deixou um trauma tão grande no cinema nacional que durante muito tempo um filme que realmente se respeitasse não podia conter uma cena sequer de nudez — embora eu suspeite desde sempre que esse pudor se deve muito mais ao efeito causado pelos filmes “intelectuais” e sua visão desvairada do sexo como o resultado de uma série de neuroses e sociopatias do que às pornochanchadas.
Muita gente já deve ter percebido o mesmo que eu: se alguém pegasse muitos daqueles roteiros, desse uma recauchutada nos diálogos — sempre a parte mais fraca do cinema nacional — e regravasse tudo com as melhores condições de fotografia, iluminação e som que se tem hoje, teriam nas mãos excelentes comédias, despretensiosas mas profundamente brasileiras.
Mas aí eu tenho que admitir: não demorararia muito até que alguém levantasse a voz e falasse dessas comédias como idiotas, alienantes, e que o cinema basileiro precisa de consistência. A história, dizem, só se repete como farsa.
(O Ina tem uma série de posts sobre o cinema brasileiro. Vale a pena ler.)
(O Canal Brasil, de madrugada, exibe muitos desses filmes, na sessão “Como Era Gostoso o Meu Cinema”. Vale a pena ver.)
(Os cartazes que ilustram esse post são, todos, daquele que talvez seja o maior ilustrador que o Brasil já teve, Benício.)