Em Londres, praticamente todas as livrarias têm uma seção de história militar, têm até mesmo um número incomum de livrarias especializadas no assunto. Nelas a II Guerra Mundial ocupa lugar de destaque. A Inglaterra tem alguns dos maiores historiadores das grandes guerras do século XX, como Martin Gilbert — sem falar em Churchill, o sujeito que pelo menos no front ocidental definiu o que foi a II Guerra.
Uma parte importante dessa fixação vem, claro, da longa história de um império em que o sol nunca se punha, como eles gostavam de dizer. Os domínios ingleses abrangiam os cinco continentes, e eles podem se orgulhar até mesmo de terem sido pioneiros na exploração da Antártida e do Ártico. Além disso, durante séculos tiveram a mais importante marinha do mundo. É fascinante a história de como começaram como piratas e acabaram usurpando de Portugal, da Espanha e dos Países Baixos o posto de donos do mundo.
Em Paris essas seções não são tão facilmente encontradas nas livrarias. Em vez disso, pode-se passar o olho no passatempo preferido dos franceses, livros de filosofia em capas sóbrias e espartanas (estética aliás importada por Portugal), muitas vezes disfarçando um conteúdo medíocre e redundante, como é a maior parte da tal filosofia contemporânea. Ninguém pode acusar os franceses de desprezo à história — na Passage des Panoramas no Boulevard Montmartre, por exemplo, pode-se encontrar facilmente à venda moedas antigas que datam dos tempos do Império Romano, e alguns dos maiores especialistas em história européia, como Georges Duby e Paul Veyne, vêm de lá —, mas é como se eles achassem que não têm exatamente muitos motivos para celebrar aquela guerra. O que, num país de gente orgulhosa de sua história como os franceses, merece uma explicação.
Acho que ela pode ser encontrada nas ruas de Paris. Em boa parte delas encontram-se placas indicando que ali tombou um combatente da liberdade — em esquinas, pontes, marquises, sempre se pode achar um lembrete de que naquele local, durante a II Guerra, nazistas e colaboracionistas mataram um membro da Resistência Francesa. Muitas vezes a vítima sequer tem um nome, não passa de uma lembrança, quase um diz-que-diz. Mas a sua memória tem que ser lembrada, heróis anônimos também criam uma lenda, e por isso a Resistência Francesa alcançou, no imaginário mundial, uma importância muito maior do que a que realmente teve.
Por mais que tentem assumir um certo flair de vitoriosos de uma guerra perdida — como fez Clemenceau em 1918, por exemplo —, a França perdeu a II Guerra Mundial, e perdeu de maneira humilhante. Se com excesso de boa vontade a I Guerra pode ser vista como uma vitória, porque bem ou mal a França esteve do lado dos vencedores, se comportou com a bravura necessária e ainda levou seu quinhão do butim, a Alsácia-Lorena, a II foi a guerra em que se recusou a lutar, em que se rendeu quase instantaneamente e aceitou a ocupação e a palhaçada que foi o governo do Marechal Pétain em Vichy. Nessa guerra, o único ato francês realmente louvável foi declarar Paris cidade aberta e evitar a sua destruição.
Uns anos atrás, uma moça francesa veio a este blog defender seu país. Como poderia uma França despreparada, em crise desde a queda da III República, ousar enfrentar a Alemanha?, ela perguntou. A moça não sabia a diferença entre coragem e covardia, e certamente olhava para o exemplo da Polônia — que mesmo sabendo que não tinha a mínima chance lutou até onde pôde contra a invasão alemã, e ninguém poderá jamais desprezar a imagem da cavalaria polonesa investindo contra os Panzers alemães, quixotesca e bela — com desprezo pela sua burrice: como pôde um paisinho daquele resistir a uma potência como a Alemanha nazista?
O curioso é que Inglaterra tampouco poderia se orgulhar de ter vencido a guerra, objetivamente. É provável que o maior erro de Hitler tenha sido não tentar invadir a Grã Bretanha quando teve chance, preferindo invadir a União Soviética e entrando de cabeça no erro estratégico que é lutar uma guerra em dois fronts. Em 1941, a Inglaterra já estava de joelhos diante da máquina de guerra nazista. Não fosse o erro de Hitler, além do apoio posterior de Stálin e Roosevelt , o Reino Unido teria caído.
Mas a história da resistência inglesa à Alemanha é memorável. Londres e cidades portuárias como Liverpool sofreram bombardeios só superados pela destruição causada pela vingança — não há outra palavra que possa definir o bombardeio de Dresden, por exemplo — aliada na Alemanha. Ainda hoje se descobrem bombas que não explodiram. Se não podem dizer que ganharam a guerra por seus próprios méritos, como podem os soviéticos, os ingleses podem se orgulhar da sua postura e do seu orgulho. Durante a Blitz, resistiram com uma dignidade que ainda hoje impressiona, mesmo quando amontoados em estações de metrô ou em abrigos anti-aéreos. Filmes como o autobiográfico “Esperança e Glória”, de John Boorman, e livros como o recente Keepin’ Mum, de Brian Thompson, contam o que foi viver em um país sob ataques constantes.
Os franceses não passaram por essa experiência. Daí a insistência em glorificar a Resistência e os maquis que morreram combatendo Hitler. São o último fiapo de dignidade naquela guerra a que a França pode se agarrar, e por isso espalham placas por toda a cidade como uma tentativa de lembrar a todos que afinal a II Guerra Mundial não foi, para a França, apenas vergonha e humilhação. A Resistência Francesa, ainda que pouco eficiente, foi uma mostra do que gente com coragem pode fazer para defender seus ideais: são a diferença entre o espírito de Napoleão e a tibieza de Pétain. Acima de tudo, são uma lembrança mais digna do que o que se seguiu depois da libertação.
A postura francesa no pós-guerra é uma das coisas mais impressionantes daquela época. Se o país não foi bravo o bastante para resistir à Alemanha, coragem não lhe faltou para perseguir as mulheres que “colaboraram” com a Alemanha — ou seja, que tentaram sobreviver dormindo com o inimigo, como mais tarde milhares de alemãs ganhariam o chucrute de cada dia de pracinhas americanos. Deve ser algo na psique francesa: os alemães podiam estuprar o país, mas não podiam seduzir suas mulheres.
Um cronista mau-humorado poderia dizer que os franceses não foram homens o suficiente para enfrentar os alemães, mas o foram para raspar cabeças de mulheres cujo crime de guerra foi tentar sobreviver da única maneira que lhes era possível. Obviamente as coisas não são assim tão simples, e é razoavelmente fácil entender a revolta francesa contra colaboracionistas. Um observador mais imparcial poderia inclusive dizer que não há, necessariamente, uma relação entre os dois fatos, embora isso fosse um tanto difícil de provar.
Independente disso, o que se viu nos momentos que se seguiram à libertação francesa foi, no fundo, o extravasamento da frustração que todo francês deve ter sentido ao ver a Wermacht marchar na Champs Elysées, mas feito da maneira mais fácil. Talvez seja compreensível; mas é difícil perdoar sua indignidade. Porque é impossível olhar para as imagens de mulheres humilhadas das maneiras mais cruéis, uma humilhação completa a partir de sua nudez e da sua “emasculação” simbólica ao lhes cortarem os cabelos, e imaginar que, assim como a mancha causada pelo nazismo jamais será realmente apagada da história alemã, será difícil esquecer a vaga sensação de que a única hora em que os franceses pegaram em armas de maneira realmente efetiva na II Guerra Mundial foi para raspar as cabeças de suas mulheres.