A história de Oliver

Caro Alex,

Como você sabe, eu não sou exatamente um cinófilo. O mais próximo que chego disso é uma preferência doce e indelével por cachorras que miam. Mas do canis lupus familiaris, o original, eu não gosto, nunca gostei, não pretendo gostar.

De qualquer forma, quando vi esse post no Gizmodo não pude deixar de pensar no seu Oliver.

Você já fez a crueldade de dar um nome canalha para o seu cachorro. Oliver. Tantos nomes por aí — Rex, Duque, Rambo –, e você escolhe um nome desses para o coitado. Não bastava ele ser um poodle: você tinha que agravar a injúria. Por isso ele ficou assim. Foi vergonha. Eu tenho certeza de que esse jeitinho meio esquisito do Oliver se deve ao nome que você deu ao pobre desgraçado. O Oliver ama você e resolveu fazer o que achou que seu amado esperava dele. Sabe como é. Tudo por amor. E assim, com um suspiro, o Oliver definiu a sua personalidade meio estranha.

O problema é que, por mais detestáveis que sejam os cães, nenhum deles merece uma maldade dessas. É uma questão de humanidade. O Oliver merecia um descanso, um adeus digno a essa vida humilhante de cachorro que você o fez levar. Então faça a caridade de tentar consertar isso e resgatar a masculinidade perdida do seu cão.

Sua chance chegou agora.

Bonecas infláveis para cachorros.

Essa é uma idéia brilhante que vai dar um descanso às pernas de tantos seres humanos, mas que especificamente pode salvar a dignidade do seu cachorro. Aquele pobre cão que tem cor de Nescau, mas que você insiste em dizer que é champanhe, vai ter a chance de mostrar que sabe fazer mais do que sobreviver a um furacão.

Vamos apenas esperar que o Oliver não resolva ficar por baixo da cachorra inflável. Infelizmente, sou obrigado a confessar que não tenho muitas esperanças. O vício é uma coisa terrível, você sabe.

Mas você tem a obrigação moral de tentar. Faça isso pelo Oliver. Compre a cachorra inflável e reze para que o seu cão recupere a masculinidade perdida.

Só há um porém: como tudo nesta vida cachorra, as coisas não são tão simples assim. Há um pequeno problema que você vai ser obrigado a resolver: você vai ter que lavar o brinquedinho do Oliver depois que ele o usar. Mas o amor é isso, é sacrifício e abandono. Não é nada para quem ama cachorros.

Gizmodo: the sex doll for dogs

Catecismo

A Raquel não quer ir para o céu porque o céu é chato e cheio de anjinhos assexuados e eles tocam harpa e tudo é branco imaculado.

Ela quer ir para o inferno. Destino que a Renata também espera merecer, alegando não conhecer ninguém que vá para o céu. A Renata não quer passar a eternidade sozinha, diz. Erro da Renata. Ela conhece alguém que vai para o céu.

Eu.

Eu não quero e não vou para o inferno. Eu quero ir para o céu.

Uma namorada dizia que eu era o demônio. Ela estava enganada: eu tenho cara de anjo e tenho nome de anjo. Melhor: nome de arcanjo, que se é pra ser anjo que seja um de categoria, respeitável, daqueles que dão carteirada em São Pedro. Ela sabe disso, sabe do anjo que sou — infelizmente sem asas e, confesso, sem muita vergonha. É por essa razão que, mais que qualquer outra pessoa, eu mereço o céu. Mereço por um direito concedido pelo nome que me foi dado, e pela simples justiça das coisas.

A Raquel me explicou que quer ir para o inferno porque lá as coisas não são chatas. Que só queima naqueles círculos quem fez por merecer, e pecou, e não passou em brancas nuvens por este vale de lágrimas.

A Raquel não entende.

Eu quero ir para o céu porque não tem graça ir para o inferno. Não há nenhum desafio. Ir para o inferno é encontrar a comida pronta e a mesa posta. Não há beleza nisso.

Eu quero ir para o céu e perverter as santas de vida casta.

Republicado em 16 de agosto de 2010

Aquele que aponta o caminho

Eu ainda morava em Aracaju quando ele começou a pregar nas ruas do centro da cidade, de preferência em frente ao Palácio do Governo, na mesma praça onde Fausto Cardoso foi morto em 1906.

Ele vestia ternos baratos e velhos, e trazia sempre uma Bíblia evangélica nas mãos. Gritava, fazia gestos largos e dramáticos, batia na Bíblia como a prova irrefutável de tudo o que dizia; a saliva se acumulava branca no canto de sua boca, aquela que não era expelida enquanto ele nos advertia contra o fogo do inferno mas nos oferecia a salvação eterna. Fui embora e voltei, e ele continua ali.

Até hoje, quando vejo algum católico falar do fanatismo dos evangélicos, eu lembro dele. Por sua vez, ele me lembra que os católicos de antigamente eram exatamente assim: a mesma loucura, o mesmo proselitismo descontrolado, a mesma vontade de mostrar aos outros a Luz que o salvou. É homem de uma única certeza: a de que sua fé o faz melhor, e que é seu dever retribuir à altura guiando este rebanho de cordeiros insensatos no caminho do Senhor. Quando o vêem gritando sobre o Senhor e se afastam quase inconscientemente, como virariam os olhos a um menino com hidrocefalia, as pessoas esquecem que o termo evangélico se aplica também aos católicos, e que o que fez a força dessa religião foi justamente essa mesma loucura evangelizadora, a mesma vontade de impor ao mundo a sua verdade. Aqueles que o acham ridículo deveriam saber que ao entrar em suas igrejas para a missa do domingo carregam a mesma herança de grotesco, de loucura, que aquilo que lhes justifica vem da mesma matriz torta que gerou o pregador das ruas do centro de Aracaju.

Eu gostava de imaginar o seu passado; se se converteu depois de uma vida de pecados semelhante à minha ou se foi criado por pais evangélicos e pios. Prefiro achar que sua vida foi aventurosa e difícil; que ele foi mau e fez mal, que foi apontado na rua como péssimo exemplo e criatura perigosa, mas que de repente descobriu Deus. Só uma mudança tão radical justificaria o seu furor evangélico, a disposição de pregar para ouvidos moucos por tantas centenas de tardes.

Ele se joga ao sacrifício da humilhação pública como cristãos igualmente enlouquecidos se jogavam aos leões e às fogueiras romanas. Para que alguém se torne capaz de tanto abandono de si mesmo é preciso que saiba, no fundo do peito, o que significa a certeza da salvação, e esse conhecimento só tem quem conhece a verdadeira danação, aquela que se paga aqui e não no inferno. Eu, que apenas me converto todo dia a mim mesmo, seria incapaz disso. Ao contrário de mim, que acumulo pecados capitais que pretendo continuar acumulando enquanto o bom Deus me der saúde, ele modelou sua vida nas dos apóstolos, e quer que sejamos salvos também, como ele foi. Ele é um bom homem.

Perto do Natal do ano passado consegui tirar uma foto sua. Era uma vontade antiga, mas raramente ando com uma câmera pelo centro, nossos horários não se batiam. Um dia eu o achei. Ele estava no cruzamento de dois calçadões, perto da igreja católica mais antiga da cidade e diante de uma casinha de Papai Noel, daquelas onde desempregados vestem uma roupa vermelha no calor de dezembro e colocam uma barba postiça para tirar fotos com meninos enjoados.

(Eu sempre imaginei que Papai Noel fosse a profissão dos sonhos de um pedófilo, sempre imaginei seus olhos brilhando enquanto um menininho de quatro anos senta em seu colo e ele pergunta, trêmulo, “o que você quer ganhar, meu filho? Seja um bom menino…”)

Me escondi para tirar as fotos. Eu tinha certeza de que ele não gostaria que um sujeito que não conhece o fotografasse — e ficaria ainda mais revoltado se soubesse quem eu sou, se soubesse dos meus esforços para tirar tantas ovelhas do bom caminho do Senhor, esforços ditos baixinho em pescoços perfumados. Foram fotos ruins, as pessoas passavam na frente, o foco nunca estava correto.

Aí ele me viu.

O meu pregador então se transformou em um artista. Ou, se artista ele já é, em um artista ainda melhor, iluminado por sua musa divina. Olhou para mim e tudo nele indicava aprovação, quase gratidão. E ele foi mais veemente em sua peroração, seus gestos se tornaram ainda mais largos, sua voz se tornou mais confiante. De repente ele não estava mais diante da multidão de passantes que o ignoravam: o calçadão havia se transformado num púlpito de verdade, agora ele tinha alguém que prestava atenção em suas palavras. E coroou a sessão apontando teatralmente para o céu — como Agnes indicando que Dora havia morrido, ou Moisés enganando alguns milhares de hebreus e os metendo na grande fria de suas vidas. Minha lente, ele talvez tenha achado, lhe daria a chance de apontar o caminho para mais pecadores. Baixei a câmera e ele me fez sinal de positivo. E voltou o olhar e a fala para a multidão triste de materialistas que não tinham Deus em seus corações.

Foi quando entendi. Eu só teria vergonha de ser fotografado porque fé, mesmo, eu tenho apenas em mim mesmo. A minha fé tem o meu tamanho, e Deus é muito menor que eu. Mas ele, não: ele acredita em algo muito maior que ele, e essa é a sua desculpa e a sua razão.

Republicado em 14 de agosto de 2010

O mundo que nos rodeia

As pessoas não estão prestando atenção ao Vidas e Imagens, do Ricardo Montero? Numa blogoseira que costuma ser alienada em relação ao país em que vive ou extremamente elitista, preferindo temas fáceis como literatura, cinema, política de Kuala Lumpur ou sei-lá-o-quê e refletindo uma postura tranqüila de classe média (pecado do qual este blog não está isento, a propósito), o Ricardo Montero aparece com um mosaico fascinante de vidas comuns, daquelas que a gente vê passar na nossa frente todo dia e não percebe.

A propósito, o filho da puta andou pelos cantos de cá e não avisou.

***

Devo ser o último a comentar, mas tudo bem: poucas iniciativas deram tanto o que falar quanto o Interney Blogs, portal capitaneado pelo Edney e pelo Inagaki.

Diferente dos condomínios de blogs como o Gardenal e o Verbeat, a proposta do Interney Blogs é eminentemente comercial. E essa diferença deve ser aplaudida, porque acena com a possibilidade de profissionalização dos blogueiros brasileiros.

Isso é importante: 9 entre 10 blogueiros que gostam disso gostariam de ganhar dinheiro com blogs. E pela maneira como foi concebido, o Interney Blogs tem condições se tornar um veículo significativo e um marco na história da blogoseira brasileira.

O Interney Blogs já tem gente de calibre excelente: o Marmota, o Donizetti (que escreve cada dia melhor), o Cintaliga, o Enloucrescendo.

Daqui a pouco, em maio, tem início a segunda fase, com mais algumas dezenas de blogs se juntando aos que já existiam. Entre eles o Alex, que deu uma entrevista muito interessante ao Digestivo Cultural. Muito, muito boa — talvez porque o doente não falou de pés. Outro blog que também vai se mudar para lá é o melhor de todos: o Kit Básico da Mulher Moderna. Ela não me ama mais, mas eu a amo mesmo assim.

A propósito, nesta entrevista ao Guilherme Felitti, o Ina citou este blogueiro como um outsider. E embora eu fique grato por ser considerado assim (imagino um sujeito com a cara de Clint Eastwood quando ainda era bonito, um revólver fumegante na mão direita, o poncho virado para trás e o cadáver do establishment estendido adiante com as tripas para fora), sou forçado a confessar que consigo conceber poucas pessoas tão bem integradas ao sistema quanto eu. Eu bebo coca-cola e como carne vermelha. Tento pagar minhas contas em dia. E, como sabe qualquer pessoa que leia este blog há mais de 5 meses, eu sou governista até a medula, oras. Como diz o Maurício Vivas, este é um blog chapa branca.

Eu não sou um outsider. Eu sou só implicante.

***

Se eu fosse o Reinaldo Azevedo eu arranjaria uns cabras para dar um jeito no Hermenauta. Nenhum tribunal no mundo o condenaria, nem mesmo a Santa Inquisição. Porque há limites que não se deve ultrapassar. Não se bate na cara de um homem, Hermê. Nem mesmo na de um coroinha de aluguel.

Caixa-preta

O Alexandre Pinheiro fez um post sobre o episódio da caixa-preta do avião da TAM que caiu em Sumpaulo há 11 anos (e que deu a fama da qual a TAM não conseguirá se livrar enquanto não substituir todos os seus Fokker 100).

O texto fala sobre um erro grosseiro de jornalismo da Globo, segundo o qual o piloto teria tentado desviar de uma escola cheia de bacuris. É uma mentira e uma impossibilidade, como lembra o Alexandre, mas um diálogo hipotético entre o piloto e o co-piloto poderia ter sido uma gracinha.

“Vou desviar da escola. Vamos salvar as criancinhas!”

“Mira naquela véia ali à esquerda, então!”

“Porra nenhuma, eu vou tentar é levar o avião até a casa daquele filho da puta que me deve uma grana e agora não vai mais precisar pagar!”

“Ah, caralho, se é assim então leva pra casa da minha sogra!”

Se você vai mentir, que minta com estilo.

Sobre a falta de foco

Semana passada o mundo ficou sabendo que existe uma certa Associação dos Desempregados de Sergipe. Uma multidão imensa, como se pode ver na foto, foi para a frente da Prefeitura de Aracaju e fez uma manifestação para pedir coisas como passe livre nos ônibus.

O sol estava muito forte e eles, naturalmente, preferiram ficar sob a sombra.

Este blog tem a impressão de que esse pessoal ganharia mais se, em vez de passar uma manhã agradável ouvindo música na frente da Prefeitura, eles fossem procurar emprego.

O aiaiai da vergonha

Desde que me mudei, há uns seis meses, uma coisa me incomodava no meu edifício.

Acontece entre meia noite e uma da manhã, pouco antes de eu ir dormir. Umas duas vezes por semana. Não consigo esquecer da primeira vez que escutei o sujeito, que quase certamente mora num apartamento em cima do meu. Primeiro o silêncio da madrugada em que as pessoas decentes dormem. Aí os sons.

É assim: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…” Coisa de três, quatro segundos. O homem grita muito alto. E então volta o silêncio calmo da madrugada.

Da primeira vez fiquei feliz pelo sujeito. Ali estava alguém que, ao contrário deste pobre e inconformado leigo no assunto, estava fazendo aquilo para o que a humanidade realmente nasce, aquilo que dá sentido à vida. Houve até um sábado em que, às oito da manhã, eu ainda na cama olhando para o teto, o aiaiai se revelou em toda a sua força — e eu estava no quarto fechado, ainda com o ar-condicionado ligado. O aiaiai já tinha tomado conta do condomínio na noite anterior, e lá estava o rapaz novamente. “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”. Ele era bom, pelo menos disposto. Ou tinha lá suas razões: “Namorada nova”, o despeitado aqui pensou.

O fato é que tudo o que sei do sujeito é que faz saliência com a janela aberta e faz barulho, muito barulho. Sei também que não devo ser o único a ouvi-lo, porque o rapaz é, digamos, muito vocal.

Mas então isso começou a se repetir (nas madrugadas, nunca mais durante a manhã). De engraçado, o aiaiai passou a ser tedioso. Porque só então percebi uma coisa importante, tão importante que não entendo como não tinha notado antes.

Eu não ouvia a moça.

Havia algo errado. Embates amorosos devem ser acompanhados de gemidos mútuos — mas os dele são dispensáveis, enquanto os dela são a razão mesmo de viver. É simples assim. Alguns conseguem isso com esforço; outros, mais abençoados por Deus e pela atenção, obtêm melhores resultados.

No entanto, ali só quem se divertia era ele. Talvez não houvesse mulher. Talvez o sujeito gritasse assim porque estava sendo servido por um rapaz guapo e musculoso. Talvez fosse o amante do sexo solitário mais ruidoso de que se teve notícia. De qualquer forma, eu já tinha desistido de entender. Já começava a achar que o meu vizinho escandaloso tinha um caso com uma boneca inflável.

Até que, numa dessas madrugadas, eu a ouvi.

Estava na janela da sala fumando o último cigarro do dia, olhando para a lua — profética, a lua estava em seu quarto minguante. Uns sons vieram do andar de cima. Não era o escandaloso, não ainda. Pelo contrário, eram os sons mais bonitos que um homem pode ouvir, os ais e uhns de uma mulher. Ela se empolgava um pouco. Dizia palavrinhas de mulher que trepa mal: “Ai, amor, ui, meu bem, assim”. Palavras maravilhosas, certamente, boas de se ouvir em tantas horas, mas que não se sustentam diante da análise fria daqueles que não estão entre suas pernas. Eram quase burocráticas: indicavam menos a amante feliz do que a mulher que se esforça em agradar o homem que ama. Ela gemia baixinho, e eu só ouvia porque sua janela estava aberta e eu estava debruçado na minha, pensando na morte da bezerra.

Exatamente nessa hora, o momento maravilhoso em que os gemidos dela aumentavam de intensidade, e se sentia mais verdade neles, a paz da noite foi cortada pelo som tenebroso de sempre: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”

E fui tomado por uma vergonha imensurável, que me fez baixar os olhos e me esconder em meu quarto. Eu tinha percebido o que acontecia, e a visão que se descortinava em minha mente era tenebrosa.

A mulher até que se divertia. Mas quando o sujeito percebia que ela estava gostando, se soltava. Julgava encerrado o seu dever e corria enlouquecido em busca do seu aiaiai, e a mulher embaixo dele — embaixo, com certeza — que se virasse como podia.

O resultado, em poucos segundos, era um sujeito feliz, satisfeito, provavelmente deitado na cama olhando para o outro lado, e uma mulher decepcionada, talvez ainda se contorcendo por ter sido interrompida em sua caminhada, talvez com a sensação de que lhe prometeram o paraíso e tudo o que recebeu foi São João do Meriti.

Não é possível explicar o arrependimento que tomou conta de mim por ter me mudado para aquele condomínio. De repente, eu tinha passado a morar no cafofo da humilhação. Esse era o meu vizinho, e o seu opróbrio me amaldiçoava também. “Você mora no condomínio tal?”, alguém me perguntaria, e eu desviaria os olhos e responderia “Não, eu moro com dois travestis, um traficante, uma prostituta de 20 reais, um alcagüete da polícia viciado em crack e um torcedor do Botafogo num barraco de 10 metros quadrados no Morro do Péla Porco”. “Não, ali quem mora é o meu irmão. É a ovelha negra da família, ele bebe, coitado, olha onde ele foi parar.” Eu não hesitaria em mentir para salvar o que restava de minha honra: honra para a qual nunca dei nada, que nunca valeu um tostão furado e que eu trocaria por qualquer bunda grande com dois peitos em cima, mas para a qual há limites abaixo dos quais não se pode descer.

Pensei até em andar com um coração amarelo no peito, sinal de minha vergonha, e uma confissão de que eu deveria ser desprezado por todos porque morava no mesmo condomínio que o sujeito do aiaiai.

A vergonha, no entanto, não eliminava a revolta. Aquele sujeito era uma vergonha para a classe e para os homens que se julgam dignos desse nome. Houvesse uma assembléia dos homens machos do sexo masculino e ele seria execrado publicamente, e seu corpo coberto com piche e penas, e nós o faríamos desfilar pela rua em sinal de execração. E espalharíamos as fofocas mais vis, e diríamos que o aiaiai desvairado do sujeito se devia ao fato de ele estar mordendo fronha, mas diríamos isso apenas por picuinha: porque sabemos que bastaria dizer a alguém o que esse abominável faz — em voz muito baixa, como se dizia há 50 anos que fulana deu um mau passo — para que as pessoas fizessem expressões horrorizadas e fingissem não acreditar nisso. “Não! Jura?”

Eu já estava olhando os classificados em busca de um novo lugar para morar, um lugar que não me envergonhasse e cuja mácula não fosse transferida a mim por associação. “Coitado… Mora tão mal… No prédio do Doente do Aiaiai…” Eu sabia exatamente como se sentia, como o favelado que não quer ser confundido com um traficante.

Mas bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.

Um outro sábado. Três da manhã. Eu chegava em casa e estava tirando os sapatos no escritório. Como está virado para outro lado, de lá não se costuma ouvir o Doente do Aiaiai.

E então eu a ouvi.

Era outra mulher, em outro apartamento. Mora em um apartamento abaixo de mim. E a sua existência redime a nossa.

O que eu posso dizer — porque dessas coisas não guardo os detalhes, nunca guardo, sei apenas da sensação que nunca se repete, que nunca é a mesma — é que a moça estava sendo bem cuidada. Muito bem cuidada. E deixava claro, a todos os que quisessem ouvir, que a sua noite estava terminando da melhor forma que se podia imaginar, um final estendido em meio a pequenos gritos e muitos gemidos. Ali estava uma mulher feliz, e isso, por um vício terrível de personalidade (ou mero condicionamento pavloviano), me deixava também feliz.

Até aí nada demais. Moças se divertindo são relativamente comuns. Lembro de outro prédio em que morei, no Ceará, onde de vez em quando se ouvia uma mulher fazendo “Ungh! Ungh! Ungh!”, e se sabia exatamente qual o ritmo seguido pelo seu amado. Nada demais, eu já disse. Mas havia um detalhe que não podia passar despercebido, e Deus está nos detalhes como dizia o Van der Rohe.

Só se ouvia a moça.

A redenção, afinal. Depois de meses ouvindo eventualmente um sujeito escandaloso e ruim de cama dar o seu showzinho mambembe e vergonhoso, a honra do meu prédio era resgatada por um rapaz cujo nome e semblante desconheço, mas que reconheço como irmão espiritual.

Porque em vez de gritar aiaiai, como se estivessem enfiando uma trolha sarracena no seu rabo, o sujeito preferia fazer o seu trabalho comme il faut. Um trabalhador honesto, dedicado. Um homem.

E nesse sábado eu fui dormir feliz, porque a vergonha que maculava o meu edifício tinha sido lavada em suor e em saliva.

Republicado em 12 de agosto de 2010