A decadência que nos espera

Eu estava em Paris, engolindo aquele continental breakfast intragável que servem por lá e que só se salva pelo café, melhor que o bebido aqui.

Foi quando entrou no restaurante do hotel uma família de americanos: pai, mãe e casal de filhos adolescentes.

Eram brancos e louros, aquele branco-louro lavado e insosso. Eram feios, típicos americanos médios; e não sei se por terem acordado naquele instante ou por uma vida de tolerância compulsória, pareciam evitar dirigir a palavra uns aos outros. A menina, de seus 14 anos, eu só pude definir como “lambisgóia”: nunca uma palavra foi tão adequada a alguém.

Sentaram-se à mesa e começaram a comer. A menina pegou uma tigela e encheu de sucrilhos e leite. Até a borda.

Devem ter esquecido de lhe contar que talheres servem para levar a comida à boca, porque ela afundou a cara de cavalo na tigela e começou a comer. Segurava a colher como quem segura um facão, com firmeza, decidida a não perder a batalha contra aquela desconhecida. À essa altura eu já tinha deixado o meu café esfriar e olhava para ela sem conseguir controlar a queda progressiva de meu queixo.

Quando os sucrilhos acabaram, ela deve ter sentido uma imensa pena em desperdiçar todo aquele leite. E então levantou a tigela e, com a sem-cerimônia das pocilgas, bebeu sofregamente o leite.

A danada não deixou cair uma gota. Quando acabou limpou a boca com as costas da mão. Ela estava satisfeita. Esperei um arroto que não veio.

Pela primeira vez tive uma noção clara do que me esperava, eu vassalo de um império disfarçado e tosco. E pensei em ligar para minha mãe e reclamar que, em vez de ter me dado boas maneiras, ela devia era ter ido me parir nos Estados Unidos. Porque lá eu poderia ser um porco, mas não me incomodaria porque aos donos do mundo educação não é pedida.

Originalmente publicado em 27 de fevereiro de 2004.

Janaína e Valquíria

As valquírias descem do Valhalla em direção aos campos de batalha onde campeia a morte. Montadas em seus lobos, vão buscar os alemães e escandinavos que morreram bravamente. A glória que concedem é apenas àqueles que morreram ao ferir e matar outras pessoas. São uma recompensa ao ódio e à estupidez, e permanecerão imortais e invulneráveis enquanto se mantiverem virgens.

Iemanjá, mãe amorosa de cujos seios nasceram quinze deuses, se prepara no mar da Bahia para buscar aqueles que morreram tentando salvar outras pessoas. Esses ela leva consigo, a eles se dá como esposa, e é por isso que seus corpos jamais serão encontrados.

Eu sou baiano. Eu não gostaria de ser alemão.

Originalmente publicado em 17 de maio de 2004.

Ser baiano

Achando graça em um post da Dani, em que para dizer que ser recifense é ser isso e aquilo ela investe desnecessariamente contra a velha e boa baianidade, dizendo que ser recifense é “ter orgulho de dizer que o sonho do baiano é ser carioca e o do cearense é ser pernambucano”.

Pois é, Dani. A verdade é que não sabemos o que é ser baiano, porque normalmente temos outras coisas para adiar, e nossos próprios umbigos para admirar. Dizem que o Rio é lindo; mas em nossa sabedoria, sabemos que lindo mesmo é uma neguinha da bundinha empinadinha, quebrando numa roda de samba na Engomadeira.

Mas vamos lá, vamos tentar definir. Ser baiano é… Ser baiano é… Olha, minha preta, deita aqui do meu lado, faz um cafuné em mim e depois a gente pensa no assunto, tá?

Ou não.

Originalmente publicado em 6 de novembro de 2003

Pontos de vista

Deixa ver se entendi o caso da menina que vendeu a virgindade pela internet.

Quando você faz um leilão pela internet e encontra um otário capaz de pagar 8,400 libras pelo prazer duvidoso de arrebentar o seu hímen, você é uma celebridade.

Quando você dá a desconhecidos por quaisquer 20 reais num hotel de quinta, você é só uma puta.

Originalmente publicado em 23 de março de 2004

A lista incompleta de Schindler

Há alguns anos fiz uma lista dos 100 melhores filmes, na minha opinião. A lista, no entanto, tinha 101: eu fiz questão de incluir “A Lista de Schindler” como o 101o.

Só fiz isso por revolta. “A Lista de Schindler” é, para mim, a maior quase-obra prima da década de 1990.

A partir da abertura, eu fiquei maravilhado com o filme. Assim como Romário é o gênio da pequena área, Spielberg é o mestre dos primeiros 15 minutos de um filme — e se superaria depois com a incomparável seqüência inicial de “O Resgate do Soldado Ryan”.

Ao contrário do que aconteceria alguns anos mais tarde em Ryan, Spielberg não se perde ao conduzir Schindler. Nas próximas quase 3 horas, o que se vê nas telas é um filme quase absolutamente irreparável. Não há críticas a se fazer a ele, a nenhum aspecto — a não ser ao óbvio vestido vermelho da menininha, truque usado com mais pertinência e relevância em Rumble Fish por Coppola, 10 anos antes.

É então que Spielberg tem que lembrar que é o autor de “ET”.

Nos últimos 20 ou 30 minutos de filme, Oskar Schindler se transforma. Aquilo que começou como uma oportunidade única de ganhar um bom dinheiro passa a ser a razão de sua vida. Até então, a preservação dos judeus tinha sido apenas o cuidado que o senhor de escravos tem com sua senzala; ele apenas entendia que deveria cuidar do seu capital. Mas no final Schindler se torna um humanitário com uma missão.

Curioso é que, segundo todos os relatos dos sobreviventes daquela lista, Spielberg apenas retratou a verdade: Schindler foi mesmo tocado pela desumanidade de tudo aquilo que acontecia, e se tornou um defensor sincero de seus judeus e um pacifista, sabotando ou, o que é mais provável, ligando pouco para a sua produção bélica.

Mas não estou acusando Spielberg de mentiroso, e sim de ter prejudicado o seu filme. Ao retratar um Schindler que se tornou um herói da humanidade por motivos puramente egoístas, ele poderia ter criado um dos melhores personagens da história do cinema, alguém que se tornou grande a despeito de si próprio. Não importa que ele estivesse mistificando a realidade. O cinema faz isso todo o tempo, com todo mundo; às vezes chamam a isso de “compressão histórica”, às vezes de “licença poética”. Não estamos falando de história, mas de cinema. O Schindler que víamos até ali, um homem oportunista, eticamente flexível, podia se tornar um dos grandes anti-heróis do cinema: mas a partir do momento em que se “converte”, passa a ser só mais um herói, que diminuía sua própria importância humana ao se tornar extremamente maniqueísta.

E além disso nada justifica a cena em que Schindler, prestes a fugir, chora pelos judeus que não salvou: “Este casaco poderia pagar a vida de mais um judeu! Este anel!”. Primeiro porque ele não precisava de mais do que já tinha feito para se tornar um homem a quem a humanidade deve muito; segundo porque é uma cena absolutamente implausível dentro do contexto do filme e também diante do verdadeiro Schindler.

Spielberg até então tinha feito um filme cruel, cínico e cru: destruiu tudo para imprimir a sua marca de autor de melodramas. Se até então havia uma ambigüidade fascinante em Schindler, Spielberg finalmente consegue torná-lo óbvio e chato.

Ele ainda conseguiu piorar as coisas. Tinha feito um filme brilhante em preto e branco, a despeito de várias pressões. Mas resolveu fazer sua profissão e fé e incluiu uma espécie de coda em cores, com os sobreviventes indo colocar pedras no túmulo de Schindler. É absolutamente desnecessário. Torna o filme panfletário, o que ele não precisava ser.

“Schindler” ainda é um dos melhores filmes da década de 90. Mas poderia ser um dos melhores da história, e não é. E por isso a minha revolta.

Originalmente publicado em 16 de março de 2004

Saló ou 120 Dias de Tédio

Tinha uma boa farra para ir na sexta, mas desmarquei tudo quando soube que o Telecine ia exibir “Saló ou 120 Dias de Gomorra”, de Pasolini.

Embora eu não visse um filme seu há mais de 10 anos, sempre gostei de Pasolini. Talvez continuasse gostando porque não pude reavaliá-lo à medida que envelhecia e ia ficando cada vez mais conservador.

“Saló”, por sua vez, era um filme que eu devia a mim mesmo. Quando ele finalmente foi liberado no Brasil, em 1989, perdi a chance de assisti-lo porque ficou muito pouco tempo em cartaz.

Eu sabia o suficiente sobre o filme. De acordo com Pasolini era uma denúncia do domínio nazi-fascista sobre a Itália, livremente inspirada no livro homônimo do Marquês de Sade. Se pretende um filme libertário e intelectualmente instigante.

Então tá.

Logo nos créditos de abertura algo me assusta: Pasolini inclui uma “bibliografia essencial”. Ai, meu Deus. Lá vem. Eu não confio em filmes que pretendem discutir conceitos filosóficos. E confio ainda menos num filme que inclui nesse pretenso debate um livro de Roland Barthes — ele mesmo, o óbvio e obtuso. Para Pasolini o filme é mais que cinema, é um projeto político-intelectual-filosófico-metafísico ambicioso e multifacetado. Mas apesar de toda a sua vontade, um filme continua sendo só um filme. É necessariamente superficial, porque jamais terá a profundidade de um livro. Quem quer defender princípios filosóficos escreva uma tese, e deixe o cinema para quem quer contar uma história.

Durante as próximas horas me vejo em meio a um festival de taras e crueldade, curiosamente exibido com um pudor gráfico inusitado. A única exceção é a longa seqüência sobre coprofagia, o “círculo da merda”, extensa e longa. De resto, o filme não tem personagens, apenas situações sem sentido e ilógicas.

Foi com algum esforço que assisti ao filme até o fim. Que filme chato, chato, chato. Só consigo usar esse adjetivo, porque outros — ultrajante, ofensivo, radical — seriam grandes elogios a um filme que não merece mais que um levantar triste da poltrona e um abano negativo da cabeça.

O filme é inferior até mesmo à obra de Sade que lhe deu origem, porque o livro se restringe ao universo do sado-masoquismo, não se pretende uma parábola política. As parafilias de Sade são mais honestas, mais verdadeiras: sua satisfação é a única coisa que pedem. O filme é também tecnicamente — fotografia, som, cenografia — mal-feito, inferior ao que se fazia na Itália 20 anos antes; como se voltasse a um tempo em que Fellini e Visconti ainda não tinham nascido.

“Saló” deixa em mim uma impressão clara: é Pasolini subindo na mesa do bar e gritando “olhem para mim! Vejam como eu sou chocante! Vejam como eu sou maldito e brilhante!” E no entanto ele é apenas chato e bobo, e as pessoas olham indiferentes para ele e voltam a cuidar de suas vidas. Porque elas, por insignificantes que sejam, são mais interessantes que aquele filme infantil.

***

Lulu, não acho que vanguarda seja algo ruim em si, apesar de gostar muito da frase do Lennon pré-Yoko Ono em que ele a define com uma crueldade enorme: “Avant-garde é ‘merda’ em francês”.

Acontece que nem tudo que se pretende vanguarda é bom. Aliás, nem tudo que se diz vanguarda o é.

Pelo menos no meu conceito semântico da palavra, vanguarda é algo que vai à frente. Desbrava caminhos, abre picadas que mais tarde se tornam grandes estradas. Mas às vezes muitas coisas que se definem vanguarda na verdade estão pegando um caminho marginal e paralelo que não vai dar em lugar algum. Às vezes até isso pode ser bom; geralmente é só um exercício de vaidade fútil, de criatividade vazia.

Dentro desse conceito, “Cidadão Kane” era vanguarda. “O Anel dos Nibelungos” era vanguarda. “Ulysses” era vanguarda. “Saló”, definitivamente, não é. Se alguém me apontar uma obra sequer que tenha se inspirado no filme eu ficarei grato, porque embora faça força não consigo pensar em nenhuma.

E mesmo sob qualquer outro ponto de vista, daqueles mais amplos e generosos, tampouco sei se dá para chamar “Saló” de vanguarda. Por exemplo, Pasolini gostava de trabalhar com não-atores. Visconti também. Mas Visconti fazia isso na década de 50, e desistiu para fazer obras-primas como “Morte em Veneza”: a maravilhosa cena final jamais poderia ser interpretada por um não-ator, era preciso um Dirk Bogarde para isso. Aquele cinema engajado e pretensamente revolucionário já tinha tido seu tempo (e, cá para nós, tenho sérias dúvidas de que tenha funcionado de verdade algum dia). Ao utilizar a mesma técnica em 1975, Pasolini na verdade é a retaguarda.

Esse engajamento político em busca da transformação da arte cinematográfica através da utilização de não-atores me parece uma grande bobagem. É algo típico da década de 70, em que se vivia dos restos da revolução cultural dos anos 60. Há uma necessidade de quebrar parâmetros que nem sempre se concretiza — que geralmente não se concretiza.

Particularmente não vejo muita graça em Sade; de modo geral, acho literatura pornográfica chata, pouco mais que adolescentes desenhando genitais na porta do banheiro da escola. Abro uma exceção relativa para o marquês, ele é bem mais que isso; mas ainda assim o acho chato. De qualquer forma entendo seu livro, ao passo que não consigo entender direito a mistura mal feita de perversões e política que Pasolini tenta fazer, sem sucesso. Ele conseguiu tirar o sentido das duas áreas, sexo e política, fazendo um filme que é menor que os dois temas separados. Por exemplo, há um pudor curioso nas cenas de sexo que soa fora de contexto. E o aspecto político do filme só é óbvio quando você sabe de antemão. “Ah, aquilo é a burguesia fascista italiana fodendo o povo, né? Entendi…”

Eu não consigo sequer achar o filme ultrajante ou asqueroso. Acho só bobo, é esse o problema. Durante a seqüência do círculo da merda, em vez me enojar com aquilo, ficava apenas pensando que tudo aquilo era falso, porque a reação lógica de alguém obrigado a engolir fezes é vomitar, e não comer tudo e se lamentar da mala sorte. Se conseguisse me revoltar com ele provavelmente Pasolini teria alcançado pelo menos um de seus objetivos, e para mim o filme seria maior do que é. Mas eu o acho apenas frágil, um sujeito que acabou de fumar um baseado e desanda a falar besteiras achando que está sendo genial.

Para mim, “Saló” é apenas uma curiosidade histórica.

Voltando a Lennon, quando ele disse aquela frase nem fazia idéia de que, uma década depois, um italiano pretensioso iria aplicá-la de maneira literal. E com péssimos resultados.

Originalmente publicado em 10 e 11 de março de 2004

Igreja Rafaélica de Todos os Tostões

Eu tenho um sonho.

Não é um sonho onde as pessoas não sejam julgadas por sua cor, porque esses sonhos bonitinhos eu deixo para o Luther King.

Meu sonho é fundar uma igreja.

Ela já tem até nome. Igreja Rafaélica de Todos os Tostões. Tem também um slogan: “A salvação a preços módicos”.

E antes que as más línguas venham falar de eventuais semelhanças com a igreja do Bispo Macedo, vou avisando que não há nenhuma. Para começar, eu serei cardeal, o que demonstrará nossa superioridade em relação a essas igrejas mercenárias que pululam por aí. Cá para nós, “Cardeal Galvão” soa bem.

A obreiros e fiéis, a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões oferecerá a salvação. Você nos dá o seu dinheiro — inclusive aquele que você guardou na meia, pão duro safado; pensou que podia esconder dinheiro do Pai? — e nós lhe damos a salvação. É justo. A salvação de sua alma pecadora vale mais que o dízimo. E se você não aprendeu a dar, como espera receber?

É asim: primeiro a gente mete a mão no seu bolso, depois te mete no Paraíso.

Os céticos, essa raça ímpia incapaz de ver a pureza e a verdade d’alma, podem alegar que Jesus oferece a salvação de graça. É. Pode ser. Mas na Igreja Rafaélica de Todos os Tostões você fala com o dono, cara a cara, olho no olho. Você quer falar com Jesus pessoalmente, quer? Pois é. Achei que não. A Igreja Rafaélica de Todos os Tostões oferece a salvação com certificado de garantia — e se você não a conseguir, pode voltar do Além e falar com o Cardeal Galvão que ele te dá o dinheiro de volta.

Mas nem só dos assuntos de Deus a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões se ocupará. Porque somos evangélicos mas temos algo de católicos, e acreditamos que a obra do Senhor se realiza aqui, quando estendemos a mão aos nossos irmãos carentes e os ajudamos a seguir em frente com dignidade. As boas ações é que nos levam ao Paraíso.

A Igreja Rafaélica de Todos os Tostões se dedicará à santa obra de ajudar aqueles menos favorecidos pela Providência, aqueles a quem precisamos dar as mãos no esforço de criar um mundo mais solidário.

Nossa obra social começará por mim. Não venha alegar que é malandragem, porque não é. Como você espera que o Cardeal Galvão se dedique à evangelização se tem que se preocupar com coisas de somenos importância, como a sua sobrevivência com um padrão mínimo de dignidade?

A nossa obra social começará por mim porque eu ando carente.

Eu ando carente de um Jaguar, com motorista surdo-mudo.

Eu ando carente de um apartamento pequeno, coisa de 300 m2, no Faubourg Saint Germain. E de outro, ainda menor, na Via Vêneto.

Eu ando carente de um Lear Jet.

Eu ando carente de uma casa na Riviera Italiana (com vista panorâmica para o Mediterrâneo porque eu preciso de um ambiente bucólico para pensar em tão espinhosos assuntos teológicos; aquela que aparece em “A Condessa Descalça”, com sua praia particular, serve) e de um castelo no Vale do Loire, daqueles que já vêm com título de nobreza.

Cacete, eu ando carente de tantas coisas que só de pensar nelas dá vontade de chorar.

E é tão pouco.

Por isso a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões. Porque precisamos estender as mãos uns aos outros. Precisamos de um mundo mais justo, e o Cardeal Galvão é o líder que vai nos levar em direção à Luz — e, graças às suas contribuições, agora sem que a Light a corte por falta de pagamento.

Originalmente publicado em 28 de fevereiro de 2004.

Poema muito do enjoadinho

Falando sério
eu não gosto
de poesia moderna
As pessoas parecem pensar
que basta dividir frases
ao meio
e esquecer a pontuação
para automaticamente
criar um poema.

Poesia é outra coisa.

Poesia não é divã
de analista
não é competição
de domínio do vernáculo
poesia não é
nada disso.

E certamente, meu amigo
poesia não é isto aqui
Isto é apenas prosa
fatiada para tentar
mostrar o engodo
que é a maior parte
da poesia moderna.

Originalmente publicado em 20 de fevereiro de 2004.

O pequeno burguês

Salvador, praia de Stella Maris, 1993. Manhã cedo, aí pelas seis horas. No bar de um amigo, eu procuro alguma coisa para comer depois de uma noite meio agitada, quando aparece um sujeito que eu nunca tinha visto.

“Waltinho tá aí”?

Tá dormindo, eu acho. Procure em uma das redes na praia.

A única coisa que se podia comer era xinxim de galinha, e eu não sou filho de Oxum para gostar daquilo. Ora yeye o!, Oxum, mas vou morrer achando que galinha não vai bem com dendê. Volto à cerveja. E a gente começa a conversar.

O sujeito, um neguinho de seus 40 e alguns anos, magro, vesgo, dentes que sobraram apodrecendo, veste apenas um short azul, e traz no corpo corroído pela cachaça as marcas de uma vida de trabalho braçal. Ele se diz chamar Wilson, mas se eu quiser posso chamá-lo de Zoinho, é assim que todo mundo o chama. É alcoólatra, é claro que é alcoólatra.

Zoinho conta histórias, enquanto derruba uma garrafa de vodca. E então me conta o seu grande momento na vida. Ele se diz autor de “Canudo de papel”. “Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade é particular”.

A primeira coisa em que penso é que aquele bêbado está inventando histórias; pagando a vodca que eu graciosamente ofereço como se fosse minha. Mas ele fala com tanta certeza, e tão sem revolta, como se a miséria em que vive fosse tão natural como compor um samba numa mesa de boteco, que eu passo a acreditar nele. A única glória que reclama é ser reconhecido com o autor do samba, só isso. É tão pouco. Para mim, Zoinho é o autor de “Canudo de Papel”.

Algumas doses depois ele vai embora. Eu nunca mais veria Zoinho.

O samba na verdade se chama “O Pequeno Burguês”, e a autoria oficial pertence a Martinho da Vila. Se Zoinho é mesmo seu autor, eu nunca vou saber. E algum dia até essa dúvida sumirá, assim como Zoinho sumiu um dia em Stella Maris.

Originalmente publicado em 13 de novembro de 2003.

A difícil vida fácil da Irlanda

A Irlanda é a atual presidente da União Européia.

E acabou de avisar que vai lançar uma proposta para banir o pagamento por sexo em toda a Europa.

Pois é. Como se não bastassem os tantos empregos e profissões desaparecendo diante da revolução tecnológica, ainda aparece um país querendo acabar com a prostituição.

As associações de prostitutas de toda a Europa deveriam se unir para acabar com esse absurdo. Aqui vão algumas sugestões.

1 – Consigam o apoio de cidades como Hamburgo e Amsterdam. Sem a prostituição o turismo em Amsterdam vai ficar restrito aos freqüentadores dos bares de haxixe e maconha. Hamburgo, nem isso.

2 – Invoquem o respeito à história universal. A Europa é o berço da civilização ocidental. E a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. Combinam como pão e manteiga.

3 – Usem Maria Madalena como símbolo. Se Jesus a perdoou e talvez a tenha até amado, quem é a Irlanda para acabar com suas discípulas?

4 – Veiculem comerciais apocalípticos, racistas, o que for necessário. Por exemplo, mostrem um imigrante turco, de mãe judia e pai marroquino, negro, muçulmano, feio, pobre, desdentado e se possível em andrajos. Em off, o locutor avisa: “Sem putas, este homem vai comer a sua filha”.

5 – Lembrem à Irlanda que, durante a grande fome da década de 1840, as tataravós de muitos dos parlamentares faziam “pequenos serviços” do gênero para conseguir batatas e matar a fome.

6 – Apelem para seu senso de auto-preservação: se acabarem as putas, onde vão arranjar políticos?

7 – Utilizem a rede de organizações não-governamentais e distribuam camisas e adesivos num grande esforço de “buzz marketing”. Algumas sugestões: “Quer comer de graça, vá aos restaurantes do Garotinho”, “O que é bom custa caro”, “Mais barato que um divórcio”, “Sua mulher dá de graça. Vale a pena?”, “O mundo já tem manequins demais”.

8 – Mandem os irlandeses à puta que os pariu.

Originalmente publicado em 21 de janeiro de 2004.