Não ser Flamengo

A geração de Zico tinha ódio ao Botafogo. Ela viu vezes Garrinha humilhar o Mais Querido no gramado do Maracanã — tortura que se estendeu por mais alguns anos, com Gérson, Jairzinho, uns tantos aí. Minha mãe ainda me conta da tristeza que era ir ao Maracanã nesse tempo.

A geração seguinte, encarnada por Leandro (o maior lateral direito da história do futebol, é sempre bom lembrar), por sua vez odiava o Fluminense. Ela viu a “Máquina” de Rivelino e Edinho e Paulo César moer o Flamengo costumeiramente.

Eu faço parte de uma geração que não passou por nada disso e que se dá ao luxo de só ter amor no coração. O Flamengo do meu tempo é aquele cujo marco inicial é o gol de cabeça marcado por Rondinelli sobre o Vasco da Gama na final do Carioca de 1978. Começava ali uma hegemonia estadual que dura até hoje. É claro, aqui e ali uns percalços acontecem — grandes fases do Fluminense no meio dos anos 80 e do Vasco no final do século XX, o gol de barriga de Renato em 1995, o chocolate do Vasco na Páscoa de 2000 —, mas o Flamengo dos últimos 40 anos é aquele que ganhou quase metade dos campeonatos cariocas e todos os seus títulos nacionais e internacionais. Nesse período os outros times passaram por altos e baixos, foram todos rebaixados para a série B onde filho chora e a mãe não vê, e uns até para a série C, onde filho chora e a mãe nem liga. Mais importante ainda, nesse período os campeonatos nacionais e internacionais ganharam mais importância que os estaduais. Hoje, um time grande brasileiro enfrenta rivais de outros estados muito mais vezes do que enfrenta a maioria dos adversários locais.

Por tudo isso, nunca consegui entender o ódio que torcedores têm contra outros times. Entendia, um pouco, a raiva que todos parecem ter do Flamengo, mas ela sempre me pareceu semelhante aos latidos de um chihuahua, que late para tudo porque tudo é maior que ele. Os times pequenos precisam odiar os grandes para justificar sua existência.

Talvez seja essa a razão pela qual eu sempre tenha tido alguma simpatia por alguns desses times pequenos. O Fluminense ainda tem em sua alma um resto daquela elegância esnobe que os fazia espalhar pó de arroz nas arquibancadas do Mário Filho. A torcida do Glorioso sempre me pareceu valorosa em sua persistência, porque ao fastígio dos anos 50 e 60 se sucederam 21 anos sem ganhar nem um Carioca, e uma existência que se baseava essencialmente numa nostalgia simpática — o que, claro, não me impediu de, ao ouvir Bebeto de Freitas dizer que “o Botafogo é um estado de espírito…”, completar sua frase com um “…também conhecido como depressão”; ele não riu. E hoje, o único sentimento que se pode ter em relação a um time como o Vasco é pena, talvez uma torcida genuína para que não se apequene demais, porque ele está se tornando o que o América era nos anos 70, o quase grande, o maior dos pequenos, o gigante da colina abaixo, e sinceramente espero que ele não se transforme no São Cristóvão.

Mas domingo passado eu finalmente entendi o que significa o ódio a que me referi no início deste post, e ainda estou assustado, e fui dormir com a luz acesa naquela noite.

O Botafogo tem tudo para ser o campeão brasileiro deste ano. Naquele momento tinha 11 pontos à frente do segundo colocado e enfrentava um Flamengo em crise, que talvez não ganhe absolutamente nada este ano, 14 pontos atrás. Tinha tudo para um jogo tranquilo — disputado, honrado, mas tranquilo.

O que finalmente entendi é que nada disso importa quando o ódio é o que lhe move. Pontos, chances, campeonatos, tudo isso é bobagem. Para o Botafogo, aquele jogo parecia ser outra coisa. Um desavisado que visse o jogo pensaria que ali estava em disputa a final do certame, jogo de vida e morte que significaria a glória imorredoura do campeão ou o opróbrio do rebaixamento.

Foi ao ver o goleiro do Botafogo no ataque, no campo do Flamengo, desesperado para fazer o gol que lhes garantiria ao menos o empate, e então perderem a bola que foi para os pés de Cebolinha, mas para a sorte do Glorioso nós temos o Cebolinha, é, nós temos o Cebolinha, e mesmo assim o goleiro voltou para o ataque, arriscando tudo no desespero dos decaídos, foi só aí que entendi o que significa não ser flamenguista neste mundo.

***

Eu sei que falei, há alguns anos, que não gostava mais de futebol e não pretendia mais falar sobre isso. Mas acontece que logo depois, naquele ano da graça de 2019, encontrei Jesus, e o resto é história.

Pela nacionalização da Seleção Brasileira

Anteontem a Seleção Brasileira conseguiu o feito monumental de levar apenas um gol desse potentado do futebol mundial que é a Guiné. Ontem combinou de esperar um ano por Ancelotti, dando mais uma mostra de quão pequena se tornou.

Já faz muito tempo que o Brasil é apenas uma seleção mediana, que em Copas do Mundo consegue passar por times pequenos nas fases eliminatórias para cair nas quartas-de-final, quando finalmente enfrenta a elite do futebol. Em 2026 completará 24 anos sem ganhar uma Copa, o mesmo período que passou entre 1970 e 1994. A diferença é que, enquanto naqueles tempos ela poderia ter sido campeã em 1978 (e o Coutinho morreu dizendo que tinha sido) e encantou o mundo em 1982, agora é só uma seleção que sofre para passar as oitavas. Como tantas e tantas outras mundo afora, agora alegando que “não existe mais bobo no futebol”.

A Seleção Brasileira vive, já há muito tempo de sua história, do peso de sua camisa e do talento de um ou outro craque com lampejos de qualidade em uma seleção medíocre e sem identidade.

Se os cinco jogos da última Copa não são suficientes para admitir essa obviedade, uma lista dos times que o Brasil conseguiu vencer em Copas dos últimos 20 anos deve ajudar: Croácia (pré-Modric), Austrália, Japão, Gana, Coreia do Norte, Costa do Marfim, Chile, Camarões, Colômbia, Costa Rica, Sérvia, México, Suíça e Coreia do Sul.

Por isso defendo a total nacionalização do futebol. Minha tese é muito simples, baseada em dois pilares. O primeiro é a reestruturação dos campeonatos estaduais e regionais, algo com que quase todo mundo concorda. O segundo é fechar a Seleção para os jogadores que jogam fora do país.

Quem me ouve falar isso diz que é absurdo. Que precisamos aceitar que nos tornamos exportadores de commodities futebolísticas e não podemos abrir mão de gênios como Neymar, Vinícius Jr., etc. Eu só pergunto por quê: mesmo com eles, não ganhamos de ninguém, mesmo, e já há muito tempo. A verdade é que, no pior dos cenários, temos jogares no Brasil bons o suficiente para cair apenas nas quartas de final, como temos feito com os Neymar ou Vinícius Jr. da vida. Não é difícil montar no Brasil um time que consiga ganhar de Camarões.

Mas a nacionalização poderia resgatar a ligação com a torcida e talvez até mesmo criar uma seleção de verdade, em vez dessas coisas medíocres e amorfas que disputam amistosos com Senegal.

Cada vez menos gente liga para a Seleção hoje em dia. E desconfio que não seja apenas porque ela não ganha e não empolga. A Seleção Brasileira é cada vez mais um negócio que só importa, mesmo, para dirigentes, jogadores e para o negócio da propaganda. Por que razão alguém vai torcer por um troço em que um monte de milionários cuida apenas de sua própria vida é algo difícil de explicar.

Nem sempre foi assim. E não custa passear um pouco pela história recente.

Até o início dos anos 80, o maior sonho de qualquer jogador brasileiro era jogar na seleção. Depois, com o início do êxodo de jogadores brasileiros para a Itália, aos poucos a Seleção passou a ser um grande trampolim, o passaporte para a Europa e a garantia do pé de meia. O maior exemplo disso foi a convocação de um tal Paulo Sérgio para a Copa de 94, jogador ínfimo mas com passe controlado por um dos cartolas da CBF, que o exibiu por alguns minutos para poder vendê-lo mais caro.

Mas agora a própria Seleção passou a ser desnecessária. Mais e mais jogadores saem hoje do Brasil ainda na pré-adolescência, às vezes até se naturalizando. Por outro lado, a geografia do futebol mundial mudou, e muito.

Se a gente voltar no tempo até os anos 90, vai lembrar que um bocado de gente boa apregoava então que o futebol africano iria explodir nas próximas décadas. Isso não aconteceu. Se em vez de ficar repetindo os argumentos de venda da FIFA, empenhada em expandir o negócio do futebol, eles olhassem para a história da África, talvez pudessem antever o que aconteceu: imigrantes africanos e seus filhos revitalizaram as seleções europeias. Compare a Bélgica de 1986, mais branca que o paraíso da novela “A Viagem”, com a que mostrou aos brasileiros em 2018 como é que se ganha um jogo de futebol. Ser metrópole tem suas vantagens. Como resultado, o futebol europeu repetiu, de certa forma, a combinação que fez o futebol brasileiro: ficou mais solto, fisicamente superior e manteve a aplicação e a evolução táticas que sempre foram sua marca.

Isso ajudou a igualar o futebol europeu ao brasileiro, e em seu devido tempo o fez estruturalmente superior. O resultado é isso que vemos hoje, e que vai muito além do 7×1. Cada vez mais subjugada aos interesses da FIFA e da UEFA , e principalmente à corrupção endêmica de seus dirigentes, a Seleção Brasileira defende uns trocados se pendurando no mapa atrás de jogos com seleções que não jogariam a série B do Campeonato Brasileiro, jogadores que não têm nela seu principal foco.

Por isso acho que a melhor coisa que o Brasil poderia fazer seria reformular a seleção brasileira apenas com jogadores que disputam os campeonatos brasileiros.

Historicamente, as seleções brasileiras tinham como base os melhores times de seu tempo. Durante muito tempo foram Santos e Botafogo; em 1982, Flamengo e Atlético, com os contrabandos do São Paulo porque Telê gostava da prataria de sua casa. Eram jogadores que se conheciam porque jogavam juntos ou se enfrentavam com regularidade. Era mais fácil formar um time coeso.

Uma seleção nacionalizada traria os benefícios de voltar a engajar os torcedores, porque uma seleção que não tem um jogador do meu time é uma coisa; outra é aquela em que o craque é alguém que faz a alegria do meu time, ou mesmo aquele que respeito pelas sacanagens que faz com ele: até hoje não entendo como é que Telê Santana deixou Roberto Dinamite no banco e apostou na desgraça chamada Serginho Chulapa, em 82.

Mas ainda mais importante, a nacionalização poderia devolver ao futebol brasileiro um estilo. Ganharíamos a vantagem do entrosamento, de poder treinar por mais tempo — de criar um time de verdade.

Reformular o a organização do futebol brasileiro também ajudaria muito.

Há tempos vejo comentaristas clamando pelo fim dos estaduais. É uma idiotice. Eles pensam em termos de grandes centros e grandes clubes, que têm uma agenda nacional e internacional que garante que joguem durante todo o ano. Para eles, os campeonatos estaduais apenas atrapalham.

Esse povo do Rio e de São Paulo simplesmente não conhece o país, que tem quase 800 times profissionais. O Brasil que eles desconhecem é feito por dezenas, centenas de times que sem os campeonatos estaduais simplesmente desapareceriam, e que mesmo assim jogam apenas três ou quatro meses por ano.

Imagine o que não se perde com isso. O número de talentos que deixam de ser revelados todo ano, a impossibilidade de estruturação econômico, de times minimamente decentes. E, por último mas não menos importante, a alienação de grande parte da torcida, que se vê obrigada a procurar carinho e futebol em outros campos.

A criação de um sistema mais robusto de campeonatos locais e regionais que mantenha os times jogando a maior parte do ano movimentaria a economia esportiva, engajaria as torcidas locais, fortaleceria o futebol nacional de maneira orgânica e consequente. E a reconfiguração do calendário nacional, com a criação de campeonatos regionais que possibilitassem aos times estaduais de segunda linha jogarem por mais tempo, fortaleceria os times, recriaria a própria cultura futebolística nacional e garantiria a massa crítica necessária para elevar o nível básico do nosso futebol. Assim como a União Soviética ganhou a II Guerra, entre outras razões talvez mais importantes, porque podia perder mais soldados, o Brasil pode produzir mais craques do que o resto do pode absorver.

Mas nada disso, claro, vai acontecer. Ninguém pode abrir mão de um sistema que forma todo ano algumas dezenas de milionários e que movimenta um mercado cada mais imponente. E nisso, parafraseando o velho Carlos Alberto Parreira, o futebol é apenas um detalhe.

A tristeza numa banca de revistas

Dentre as coisas mais tristes que podem me acontecer cotidianamente hoje em dia é entrar em uma banca de revistas.

Elas estão acabando, a gente sabe. A internet as destruiu. Em alguns lugares, como Aracaju, essa destruição se dá de maneira ainda mais acelerada, e diz tão mal de seus moradores. Durante a pandemia, eu dava voltas de carro pela cidade vazia, me sentindo Charlton Heston em “A Última Esperança da Terra”, e percebi que na zona norte já não existia uma única banca de revistas em funcionamento. Nenhuma. No resto da cidade, com pouco mais de 650 mil habitantes, sei de apenas seis que ainda vendem jornais ou revistas. O resto virou outra coisa, qualquer coisa, ou simplesmente desapareceu.

Em Salvador, quase todas as bancas que marcaram minha infância fecharam, vendem água ou frutas hoje, com exceção da Banca Coelho, em frente ao Hospital Espanhol, que ainda vende jornais, e a Banca do Fernando, na Princesa Leopoldina. Sumiram a banca do Renato no Largo da Barra, a Banca Fróes na esquina da Euclides da Cunha com Amélia Rodrigues, na Graça, e tantas outras de que ainda consigo lembrar. Sobrevivem muitas, é verdade, especialmente na Barra — talvez porque a Barra seja lugar de moradores velhos e de turistas e ladrões e traficantes e putas novos, não sei — mas eu e seus donos sabemos que seu tempo está contado.

Quando vejo uma banca, hoje, vejo algo que cumpre seus últimos dias de vida antes de uma execução dolorosa com data já marcada, uma espécie de último moicano resistindo quixotescamente à própria morte.

Mas não é daí que vem a tristeza, porque a essa sua sina eu já me conformei há muito tempo.

Ela vem porque sempre que entro em uma das poucas bancas que ainda restam quero desesperadamente comprar alguma coisa, uma revista, um jornal. Mas já há anos as bancas daqui não vendem os jornais de fora, e não consigo ver sentido em nenhuma revista à disposição, porque já vi tudo o que me interessava antes, na internet.

E nessas horas me sinto um assassino involuntário, um linchador que, diante do corpo estendido no chão, finalmente tem a consciência do que ajudou a fazer.

As bancas estão acabando, e a culpa é minha também.

IA

Primeiro testo o ChatGPT e me assusto, porque peço um roteiro de comercial passando um briefing mínimo e o que recebo é melhor que muita coisa que já recebi de agências, com briefings bem melhores.

Diabo, é melhor até que muita coisa que eu já fiz.

Agora Júnior me manda um vídeo do Gen-2, que cria e edita vídeos a partir de textos.

Eu mando para Peneluc, e aviso:

“Vamos nos acostumar a tomar no cu, porque é isso que vai sobrar pra gente.”

Peneluc, tão mais cético que eu, responde:

“E você acha que não vai ter uma porrada de robozinho tomando no cu no lugar da gente?”

Da tolerância

Queria saber quem foi o desgraçado que apareceu com essa ideia cretina de que temos que respeitar a crença dos outros.

Porque eu não tenho que respeitar a crença de ninguém. Tenho que respeitar o crente — ou nem isso, tenho que respeitar incondicionalmente o seu direito de acreditar no que quiser. E nada mais.

Você quer acreditar que é essa mixaria aí porque quando nasceu Júpiter estava em conjunção com Vênus, acredite. Júpiter era mesmo batuta e entrava em conjunção com Io, com Alcmena, com Ganimedes, com Antíope, com a mulher do padeiro e com uma cabrita do Quirinal desde o tempo em que ainda se raptava sabinas.

Quer acreditar em um Deus que é um e é três enquanto o padre passa o rodo nos coroinhas e mostra com quantos paus se faz uma hóstia, acredite.

Quer acreditar que o Deus que você inventou para criar um universo incompreensível em sua infinitude fica com raivinha de você se você não o adorar acima de todas as coisas, acredite.

Quer acreditar que, se você der o dízimo para o pastor, Jeová Deus vai lhe dar um Voyage 2018 e deixar as 60 prestações para você pagar, acredite

Quer acreditar que setenta virgens estarão lhe esperando depois que você se explodir num ônibus escolar, acredite.

Quer acreditar que Deus vai lhe jogar no pior círculo do inferno se você comer carne de porco, acredite.

Quer acreditar que Exu vai lhe ajudar a trazer a pessoa amada em sete dias se deixar um ebó na porta daquela vagabunda que o roubou de você, acredite.

Quer acreditar que a terra é plana — ou ainda melhor, oca com um sol interior no meio — acredite.

Quer acreditar que Jesus morreu na cruz por você, acredite.

Quer acreditar que ETs visitam este malfadado planeta para abduzir justamente os espécimes mais estúpidos ou picaretas da humanidade, acredite

Quer acreditar que oxiúros são os novos deuses, acredite, até porque ao menos oxiúros existem de verdade.

Acredite, e regale-se em sua crença. Junte-se aos seus pares e acreditem juntos. Porque você pode, e acredita no que quiser, é direito seu com ampla jurisprudência por aí, e essa é a grande maravilha do mundo, e ninguém pode tirar isso de você. Acredite. Essa é a nossa grande conquista como sociedade: acreditar na bobagem em que se quer.

Porque enquanto isso eu continuo acreditando que, se você acredita nessas coisas, você é um estúpido, meu filho.

O ano em que morreu todo mundo

Todo mundo parece estar com a impressão de que 2022 foi um ano esquisito, em que morreu mais gente do que o costumeiro, descontando-se o ano da desgraça de 2020, aquele que conseguimos sobreviver a penas duríssimas.

Pois eu tenho uma boa e uma má notícia.

A boa é que não é impressão, não, você não está deprimido, mais mórbido, mais pessimista depois de passar por quatro anos de Bolsonaro com uma pandemia aterrorizante e interminável no meio: morreu mesmo mais gente em 2022.

Deixa eu explicar. Em 1987, li um artigo interessante no Meio & Mensagem — assinado pelo Walter Longo, acho. Era o tempo em que traduzir o que a mídia gringa escrevia era missão chique, porque não havia internet, nada dessas coisas, a informação demorava mais circular.

O artigo era sobre os baby boomers. Eles estavam chegando ao poder: chegavam aos 40, ocupavam posições de decisão nas empresas. Nos anos 60 eles tinham sido os protagonistas de um novo tempo, com protagonismo da juventude e uma mudança profunda nos costumes. Não lembro bem do artigo, mas não é insensato imaginar que se indagasse sobre as mudanças que essa geração iria trazer para o mundo dos negócios.

(Não trouxe nenhuma, claro. O capitalismo continuou avançando, os pobres continuaram pobres e os ricos continuaram enchendo o rabo de dinheiro.)

Não esqueço desse artigo porque eu sequer sabia o que eram baby boomers até aquele momento. Isso foi antes dessa fixação em definir gerações de consumo, X, Y, Z, Flicts: os baby boomers eram um fenômeno de base real, a explosão de nascimentos com que a natureza costuma repor os cadáveres acumulados durante as guerras e um momento singular na história humana.

Mas esse pessoal mandou em um mundo bem diferente daquele que o precedeu. As telecomunicações, e principalmente a internet, aproximaram as pessoas e fizeram com que mais gente se tornasse conhecido de todos, ao menos durante aqueles quinze minutos warholianos. A informação nunca tinha fluído de maneira tão intensa, e fomos mais próximos, de certa forma, de todas essas pessoas. Vivemos a maior parte de nossas vidas sabendo que elas existiam.

Por isso, quando uma Gal Costa morre, morre alguém que fez parte de nossas vidas durante tempo demais, mais tempo do que você tem pela frente. Eu não lembro de um mundo em que Jô Soares, rainha Elizabeth, Pelé, Erasmo Carlos, Godard, não existiam; era gente que já estava no horizonte antes mesmo de eu ser um brilho no olhar de alguém. Outros, como Gorbachev, exerceram um impacto no mundo grande demais para passar em branco.

São eles que estão morrendo agora, e é por isso que você notou. É a troca de guarda do mundo. É uma geração inteira chegando aos 80 anos, idade mais que justa para se bater as botas.

Essa é a boa notícia. Agora a má: é disso para pior.

A partir de agora, toda semana vai ser um tal de gente conhecida morrer. É ordem natural das coisas, simples assim. Os dias que acumulamos, ano após ano, vão cobrar sua conta. Além disso, há a dose normal de extemporâneos: aqueles que morrem cedo demais, como Michael Jackson, ou que extrapolam seu prazo de validade, como Olivia de Havilland.

Envelhecer é, também, ver a morte dos outros. Mas olhe o lado bom: houve um tempo em que você achou que o ano 2000 era algo muito distante e que estaríamos vestindo roupas prateadas e veraneando em Marte. E já passamos por um quinto dele.

O que aconteceria se…

Oscars 2023.

Na plateia, Jair, Eduardo e Carlos Bolsonaro.

Do palco, Danilo Gentili se dirige a eles.

“Dudu Bananinha, te vejo ano que vem em ‘Querida, Encolhi as Crianças’. E Carluxo, é verdade que tem o dedo e outras coisas do Léo Índio no fato de sua noiva lhe largar quase no altar?”

Revoltado com a piada com seus filhos, o ex-presidente Jair Bolsonaro se levanta, vai até Danilo e lhe dá um tapa na cara.

A internet quebra mais uma vez, em razão unânime a Bolsonaro.

Bang

Quem lê este blog há mais tempo do que é saudável talvez lembre que eu votei contra a proibição da comercialização de armas de fogo no referendo de 2005, porque antecipei o meu voto aqui.

Relendo esse post, percebi que continuo subscrevendo a maioria dos argumentos expostos ali. De lá para cá, no entanto, algumas coisas mudaram. A legislação foi modificada, calibres antes restritos ou proibidos foram liberados, o movimento armamentista ganhou corpo e até fundou recentemente a versão brasileira da NRA, o ProArmas. Bolsonaro foi eleito prometendo colocar uma arma na cintura de todo brasileiro, e seu convite foi ouvido por 57 milhões de idiotas.

De modo geral a agenda armamentista não apenas ganhou importância no debate público, mas avançou de maneira inédita. E o mais triste é que boa parte da culpa pertence à esquerda.

Há alguns meses, Lula fez uma declaração expondo o que, até onde vi, é a sua única proposta no campo da segurança pública: vai “tirar as armas que Bolsonaro colocou nas mãos das pessoas”. Não custa lembrar que durante o governo Lula, em que pesem os tantos avanços, a população carcerária no país disparou, e que o que há de relevante nos decretos de Bolsonaro diz respeito apenas aos CACs.

A verdade é que, infelizmente, se de um lado a direita tem um projeto claro de segurança, que essencialmente consiste em enxugar gelo reprimindo o varejo do tráfico de drogas e matar preto pobre, noves fora a esquerda não tem nenhum além de um amontoado de generalizações e defesa de princípios gerais cada vez mais distanciado da realidade. As armas de fogo, então, são fetichizadas e usadas como o inimigo eleito, porque é mais fácil fazer isso.

Até os anos 90 esse não era grande motivo de debate. A posse de armas de fogo, algo normal e necessário no interior do país, não era um aspecto central das vidas das pessoas. As regras eram simples: quem achava que precisava e preenchia os requisitos básicos comprava seus revólveres na Mesbla e depois os deixava enferrujar em cima de um armário.

Mas o crescimento da violência urbana, aliado a uma falta geral de ideias que não o recrudescimento do aparelho repressivo do Estado, fez com que algumas pessoas achassem que se tirassem as armas das pessoas comuns a coisa ia melhorar. O problema era o tresoitão; não dá para tirar dos bandidos, então vamos tirar dos outros.

Teve início então uma cruzada proibicionista que mudou as coisas. O então deputado pelo PT Eduardo Jorge apresentou um projeto de lei (o PL 2246/1991) confuso e mal escrito que proibia o porte de armas a praticamente todas as pessoas, inclusive policiais fora de serviço. Mas era o segundo artigo que mais incomodava: na prática, proibia totalmente a posse de armas no país. Quem tinha seu .22 em casa seria obrigado a entregá-lo ao Estado.

O projeto de lei foi arquivado, mas foi o ponto de partida para uma reação que, de lá para cá, vem fazendo a alegria da extrema-direita.

Porque agora ela tinha uma causa: a garantia de um direito que parecia prestes a lhe ser tomado, o direito à defesa em um momento em que o crime saía de controle. É uma causa incontestável, fortalecida porque o Estado não sabe o que fazer com criminosos armados além de amontoá-los indiscriminadamente nas cadeias. Em grande parte isso se deve ao fato de que a esquerda tem dificuldades em pensar a questão da segurança pública, espremida entre a consciência da necessidade inegociável de princípios básicos de civilização — aquilo que as “antas de bem” chamam pejorativamente de “direitos humanos”, e os querem exclusivamente para “humanos direitos” — e a pressão de tempos em que a violência adquire contornos que extrapolam os livros de sociologia, e em vez de raciocinar prefere reagir de maneira emocional, dogmática e covarde a essa questão.

É essa histeria que os armamentistas utilizam como justificativa para o que chamam de resistência, e que a esquerda só consegue combater com uma visão limitada, covarde e muitas vezes ignorante do que é segurança pública. O resultado é um debate desonesto de ambos os lados.

Basta olhar a maneira como ambos os lados exploram informações parciais ou falsas. Desarmamentistas, por exemplo, alegam que as armas legalizadas vão parar nas mãos dos bandidos, o que é menos comum do que parece (e parecem achar que eles realmente se armam roubando armas legais, como se há dez anos civis pudessem comprar fuzis AR-15), ou que todo mundo vai se matar em brigas de trânsito. Armamentistas exploram o pânico em relação à violência e escondem os números que não lhes interessam (por exemplo, em um universo de 170 mortes diárias com armas de fogo no país, latrocínios são apenas 7, e esse é o crime que interessa ao cidadão).

Sempre que há um massacre numa escola americana, por exemplo, o pessoal fala do controle de armas, faz comparações descabidas com o Brasil. Armamentistas dizem que se todos estivessem armados os malucos não matavam tanta gente; desarmamentistas retrucam que se ninguém estivesse armado, ninguém morria. Além do fato de se tratar de uma disputa entre o lógico parcial e a utopia, espantoso é que, num país onde o porte é direito garantido na constituição e em boa parte dos estados as pessoas não precisam nem comunicar ao Estado que compraram uma arma, não haja ainda mais massacres. O verdadeiro problema é a sociedade doente que os americanos criaram, e se não têm armas de fogos eles recorrem a facas. Nos EUA morreram quase 15 mil pessoas por arma de fogo (sem contar suicídios) em 2019. No Brasil, onde o porte de arma é muito restrito e mesmo a posse ainda é bastante controlada, entre 2017 e 2019 morreu uma média de 50 mil pessoas por ano em crimes violentos. A conta não bate, porque são realidades diferentes.

A direita trabalha melhor esses dados. É impressionante como a esquerda evita utilizar números reais para o debate, porque é movida antes por princípios do que pela observação da realidade. E é essa pobreza de dados que mais chama a atenção nesse debate. Faltam informações simples: quantas pessoas com posse legal de armas matam outras, quantas com porte de arma fazem o mesmo, quantas são as armas legais roubadas e desviadas para o crime organizado. Devia ser fácil achar esses números. Não é. Porque no fundo não interessa a ninguém. Suas agendas estão acima disso.

Ao demonizar as armas de maneira absolutamente maniqueísta, ao propor ao cidadão comum que se desarme em toda e qualquer circunstância enquanto o Estado se mostra incapaz de garantir sua integridade, a esquerda abandonou o jogo e deixou o campo livre para os malucos e os bandidos. Não se pode dizer que jogou a maior parte desse pessoal nos braços da direita, porque o fato é que esse tipo parece ter uma tendência inata ao autoritarismo e ao fascismo; mas fortaleceu o seu apelo entre quem vive em locais inseguros, alienou uma pequena massa que não oferecia grandes resistências, queimou pontes e cortou canais de diálogo que poderiam ser úteis, e fez gente que normalmente queria apenas ter uma espingardinha de um tiro para caçar mocós se alinhar àquele pessoal que deseja um .50 nas mãos de cada cidadão — menos em grupos como os Sem-Terra, claro.

O debate sobre a liberação de calibres, por exemplo, é exemplo dessa miopia.

A lista de calibres liberados recentemente por Bolsonaro, que capitalizou essa insatisfação, é imensa. Mas por não conhecer o assunto a esquerda gritou o fim do mundo, sem entender que os que importam mesmo não chegam a meia dúzia: 9mm, .40, .45, .357, que costumam ser liberados no resto do mundo e já tinham sido liberados antes, pelo Temer. O resto são calibres que as pessoas não compram porque são caros e sequer fabricados no Brasil. Na prática, são irrelevantes.

Mais grave são os novos calibres restritos. O 5.56×45 e o 7.62×51 foram liberados para CACs — ou seja, liberaram o AR-15. Não há justificativa real além da piada do “direito à liberdade” para isso, ou os privilégios de uma porção minúscula da sociedade. De modo geral, esses calibres só interessam mesmo a quem precisa andar por aí com uma arma potente, confiável e leve. Geralmente esse pessoal está nos morros cariocas e entradas de favelas Brasil afora.

Mas enquanto se discutia isso, Bolsonaro tornou mais difícil o rastreamento de armas de fogo, uma medida indefensável que só se explica pelas suas ligações com as milícias cariocas, porque o genocida é tão pequeno que só consegue pensar na sua aldeia.

Com seu negacionismo, a esquerda perde a chance de estabelecer um diálogo que tenha como base a realidade do uso de armas no país. Perde a chance de, ao pesar necessidades e realidades diversas, e admitir que um lavrador tenha uma espingarda na zona rural para se proteger de um eventual crime ou que alguém mantenha um revólver em casa para se sentir mais seguro, mostrar que não há razão nenhuma para que um sujeito que mora num apartamento sequer tenha uma arma em casa, muito menos o porte.

É uma tragédia na qual ela a sociedade são as grandes perdedoras.

Adeus, graxeiras

De repente me dei conta que não há mais hibiscos nas ruas da cidade.

Eram elas as flores mais populares, aquelas que encontrávamos em qualquer lugar, em qualquer muro ou grade, qualquer parque. Ninguém, no entanto, as chamava por esse nome, e eu mesmo tive que procurar nas internets da vida para saber qual o seu nome oficial. Em vez disso, o nome nas bocas das pessoas era o popular: graxeira. Eram chamadas assim, dizem, porque nos tempos dos já mortos os estudantes pobres davam brilho a seus sapatos — ainda se usava sapatos nas escolas, quem diria — esfregando suas pétalas neles. Mas disso eu só soube depois. O que eu sabia, ainda criança, é que bastava puxar o tubo estaminal da flor para poder sugar,junto ao ovário, o seu néctar.

Mas graxeira também era como uns tantos cá em meu rincão chamavam as empregadas domésticas, então tão abundantes quanto os hibiscos, e naqueles tempos incorretos não era incomum garotos gritando para empregadas que passavam: “Qual é a flor que não cheira?”, e não esperavam para responder eles mesmos, “Graxeira!”, para revolta e respostas impublicáveis das moças.

Insultos desse tipo não sobreviveram aos tempos, sorte nossa. As graxeiras também não. Morreram junto com os sapatos Vulcabrás escolares e com as graxeiras pagas a 300 reais por mês e um dia de folga na semana.

Como se não fosse morte bastante, cumpre notar que junto com os hibiscos somem também os pardais. Não fui o único a notar que eles estão desaparecendo, tem gente na internet comentando isso. Dizem que é o resultado da verticalização das cidades, do fim dos quintais e dos restos de comida abundantes. Talvez seja. A mim fazem pouca falta, e é com certo espanto que vejo as pessoas lamentando o desaparecimento dos pardais, como em meu tempo lamentávamos a expulsão dos tico-ticos por eles.

O que não vi comentarem é que em Aracaju os carcarás se aglomeram cada vez mais, se tornam cada vez mais comuns — e eu acho que verticalização coisa nenhuma, os pardais estão sumindo porque os carcarás descobriram que aqui há comida de sobra, comida que anda desparecendo do sertão, e estão comendo os coitados. Com um pouco de sorte os carcarás vão descobrir que aqui também há pombos, e pombos são iguaria fina desde os tempos de Roma.

Mas carcarás não comem hibiscos, seria injusto imputar a eles a culpa pela morte das graxeiras. Não é difícil chegar à conclusão a que chego: fomos nós que as matamos, e agora, em vez dos hibiscos, as ruas são tomadas por uma flor a que chamam buquê de noiva.

Todo mundo já passou por isso. A gente passa todo dia pela mesma rua, se torna cego para a beleza ou feiúra em volta, e um dia surge na paisagem uma área vazia, uma casa demolida; e então não conseguimos lembrar do que existia lá antes. Aconteceu algo assim com os hibiscos. Uma hora você olhava e via hibiscos; virou o rosto, olhou de novo, e lá estão aquelas flores brancas, onipresentes. É pior que isso, na verdade. Bastou notar o primeiro pé de buquê de noiva para perceber que elas estavam em todo lugar, e que já não se podia encontrar um velho hibisco vermelho, quanto mais rosa, roxo ou amarelo.

O nome científico dessa intrujona, fico sabendo, é plumeria pudica. Que equívoco, isso. Uma flor não pode ser pudica, longe disso. Flor que se dê ao respeito tem que se dar ao desfrute. Tem que ser amostrada, sibite, vaidosa. Precisa cheirar também, cheirar muito, cheirar tanto quanto penteadeira de puta. A graxeira não cheirava e o resultado é essa pequena tragédia, foi substituída por uma flor que se quer pudica e branca impoluta; e quem pode dizer, de tal horror, que é flor para botar no cabelo e para botar no xibiu, como diziam Jorge Amado e Dorival Caymmi? Não dá. Não um buquê de noiva, uma plumeria pudica.

Mas não adianta, ninguém liga mais. O mundo anda mais chato, de qualquer forma. A pudicícia dessa flor está agora em todo lugar — hoje percebi que está no cemitério diante do qual sempre passo. É um lugar adequado a ela. Por isso dizer adeus a flor boba como a graxeira é tão melancólico. Hibiscos não eram nada. Quando passam fazer falta, é porque as coisas mudaram, e para pior. Nada pode dar certo desse jeito.