Revisionismos

O Edilson publicou, no Facebook, um texto de autor desconhecido sobre a natureza positiva dos super-heróis. Lá vai:

  • X-Men é sobre direitos civis. Se você não percebeu isso, não entendeu X-Men.
  • Pantera Negra é sobre direitos civis. Se você não percebeu isso, não entendeu Pantera Negra.
  • Capitão América literalmente enfrentou nazistas. Ele é a personificação da luta contra a extrema-direita. Se você não percebeu isso, não entendeu Capitão América.
  • O Império em Star Wars é fascista. A Aliança Rebelde é antifascista. Se você não percebeu isso, você não entendeu Star Wars.
  • O Justiceiro não foi feito para ser um modelo para a polícia ou Forças Armadas. Seus roteiristas o fizeram falar claramente contra isso em suas revistas. Se você não percebeu isso, você não entendeu o Justiceiro.
  • Deadpool é queer. Ele é pansexual. Fato. Se você não percebeu isso, não entendeu Deadpool.
  • Star Trek é sobre igualdade entre todos os gêneros, raças e sexualidades. Já em meados dos anos 60, a série adotava uma postura pró-escolha e defendendo o direito de escolha das mulheres. Um de seus temas mais claros é aceitar diferentes culturas e aparências e trabalhar juntos pela paz. (Também é anticapitalista e pró-vegana). Se você não percebeu isso, não entendeu Star Trek.
  • Superman e Supergirl (e vários outros super-heróis) são sobre imigrantes. A posição desses quadrinhos é pró-imigração e pró-igualdade e aceitação. Se você não percebeu isso, você não entendeu Superman ou Supergirl.
  • Stan Lee disse: “O racismo e o fanatismo estão entre os males sociais mais mortais que assolam o mundo hoje”. Se você é fanático ou racista, não entendeu nenhum dos personagens que Stan Lee criou.
  • As histórias com as quais crescemos nos ensinaram a valorizar outras pessoas e culturas e valorizar as diferenças entre nós. Somente os vilões eram xenófobos, sexistas, racistas ou totalitários. Não consigo entender como alguém poderia não ter percebido isso.
  • Se você está chateado por haver um Homem-Aranha preto, ou um Capitão América preto, ou uma Thor, ou que a Miss Marvel seja muçulmana, ou que a Capitã Marvel seja pró-feminismo ou qualquer outra coisa que os “fãs” de direita dizem, como ”estarem roubando a minha infância” – você nunca entendeu isso, em primeiro lugar. As coisas que você alega que estão agora “cedidas aos esquerdistas” nunca estiveram do seu lado, para começar.

Se você se considera um fã dessas coisas, mas ainda acha que a comunidade LGBTQ + está muito “na sua cara”, ou tem um problema com o Black Lives Matter, ou deseja “tomar o país de volta dos imigrantes”, então você não é realmente um fã.

A cultura nerd não se tornou de repente de esquerda… sempre foi sobre igualdade. Você foi ensinado a ser intolerante. Você se tornou o vilão nas histórias que costumava amar.

E o que eu queria dizer é: quanta bobagem.

Super-heróis podem ser sobre o que se quiser que eles sejam, porque são obras de ficção em construção permanente. Vão, necessariamente, refletir o seu tempo e os valores da maioria. Mas tentar dar a eles uma natureza intrínseca a partir de um tempo específico é uma grande forçação de barra.

Acho que nada pode simbolizar isso como Star Trek. O autor desconhecido tem toda a razão sobre a série original. Era isso mesmo, e refletia o zeitgeist dos anos 60. Mas a última releitura, disponível na Netflix, é completamente diferente. Está centrada nas conquistas individuais da personagem principal — uma mulher negra —, refletindo o individualismo dos nossos tempos e uma consciência identitária que se torna, aos poucos, mais sólida.

No fundo, super-heróis são basicamente sobre oportunidades de mercado. Há um mercado de meninas que não tem um personagem com quem possam se identificar? A Mulher Maravilha vai nos redimir. Bandas de rock tomaram a juventude de assalto? Olha os Jovens Titãs aí, gente. O movimento pelos direitos civis está crescendo? Vamos criar personagens para esse nicho. No caso do Pantera Negra, nunca vi um rei multibilionário sem todos os direitos civis, militares, sexuais e siderais que quiser. É bom lembrar que muito mais próximos do movimento negro estão Luke Cage e o Falcão — estes, sim, sempre lidaram com essas questões. O Pantera era um americano rico numa América africana, só mudava a cor.

Dizer que somente os vilões eram “xenófobos, sexistas, racistas ou totalitários” é desconhecer a história desse tipo de quadrinhos. Ou melhor, é fazer uma leitura parcial das coisas, em que se seleciona os valores que se quer impor sobre o passado. De modo geral, eles até se enquadram no combate ao totalitarismo, porque essa sempre foi a mensagem básica da democracia capitalista americana, e racismo declarado nunca foi bem aceito no mainstream. Quanto ao resto… Lembrei agora do Aranha esculhambando os ativistas universitários na NYU, fazendo libelos contra o uso de drogas — ou o Superman sempre salvando a Lois Lane que insistia em fazer “coisas de homem” (como ser uma repórter infinitamente superior a Clark Kent) e sempre quebrava a cara.

O mais absurdo, no entanto, é essa história sobre “Super-Homem imigrante”. Isso só pode ser sacanagem, não há outra explicação. Porque se Kal-EL é imigrante, é um sueco multibilionário e super-armado numa aldeia de pigmeus. É para comparar mesmo com os haitianos na Av. São João ou os bolivianos nos ateliês de costura? E não custa lembrar que o sujeito, desde o início, foi um baluarte do american way.

O Capitão América enfrentou nazistas, é verdade. Foi criado para isso. A verdade, no entanto, é que até o Batman enfrentou nazistas. A velhinha racista, matadora de índios e exploradora de mexicanos no Wyoming, ao seu modo, enfrentou nazistas comprando war bonds. Mas bastou a guerra acabar e o bom e velho Capitão passou a descer o cacete nos comunistas, enquanto nas horas vagas Steve Rogers era um professor dedicado a extirpar das universidades americanas a ameaça vermelha. Morasse no Brasil nos anos 70 e seria informante do SNI.

Essa do Justiceiro é barra pesada. Porque ele simboliza tudo que há de ruim na cultura americana de violência e o libertarianismo com sua negação da necessidade do Estado. É bom lembrar que nasceu como vilão nas revistas do Aranha. O fato de ser alçado a herói (assim como o Venom, embora este represente um aspecto moral enquanto o Justiceiro é claramente político) é sintoma de uma banalização da violência e de uma desmoralização do Estado que devia nos preocupar.

E me desculpem pelo que vou dizer: não acompanho quadrinhos novos há tempos, mas não acho que seja tão simples dizer que um Aranha negro me incomoda pelas razões apontadas aí. Perdi interesse no Aranha quando ele foi substituído pelo Ben Reilly, que por sinal era louro. O problema é que Peter Parker sempre foi tão ou mais importante quanto o Aranha; simplesmente não dá para pegar a essência do personagem e mudar. Fingir que não se entende isso, em nome de uma luta identitária, é simplesmente má-fé.

Muito melhor é fazer o que se tem feito: valorizar adequadamente personagens negros como Luke Cage ou o Pantera Negra. E por favor, botar a Capitã Marvel nesse bolo é complicado, porque ela sempre foi feminista. Não sei se ainda é a Carol Danvers, mas nos anos 70 era já era uma mistura bem adequada de Superman e Lois Lane.

Isso está pior que o revisionismo de Kruschev.