Por que não vou ao show de Paul McCartney

Eu tenho dois heróis. Um é Al Bundy. O outro é Paul McCartney.

E por isso todo mundo que me encontra pergunta se vou para um dos shows de McCartney no Brasil, mandam notícias e imagens e etc. e etc.

E então tenho que responder que não, eu não vou para o show, não quero ir. É uma longa e triste história, mas com final feliz.

Em abril de 1990 Paul McCartney fez o seu primeiro show no Brasil e eu não tinha dinheiro para ir.

Eu não gosto de megashows. Não gosto de multidão, não gosto de gente suada encostando em mim, não gosto de cotovelos alheios em minhas costelas; como defesa, vou a eles usando umas botas Caterpillar com ponta de aço sob o couro. Meus dedos saem intactos. Não garanto os dos outros.

Mas eu nunca quis tanto ir a um show quanto àquele. 20 anos após o fim dos Beatles, o maior deles finalmente vinha ao Brasil. Era o sonho de qualquer beatlemaníaco, e eu nunca fui tão fã quanto naqueles dias.

Havia um pequeno detalhe, no entanto: eu não tinha dinheiro, e não tem beatlemania que resista à falta de recursos. O resto da história é previsível. Como um menino de rua olha as vitrines das lojas de brinquedos, acompanhei as notícias pelos telejornais, li a resenha do show pelo Jornal do Brasil, vi o compacto exibido alguns dias depois na Globo, comprei posters e revistas. Nada disso serviu como consolo. Eu queria estar no Maracanã, e não pude. Mais de 30 anos depois, ainda não esqueci a tristeza daqueles dias.

Em 1993 McCartney voltou e fez dois shows, em Sumpaulo e Curitiba. Dessa vez, eu continuava sem dinheiro, mas talvez tivesse como conseguir. O que eu não tinha como evitar eram provas na universidade, e já tinha perdido provas demais. Anos mais tarde vi a placa que colocaram na pedreira Paulo Leminski marcando o show de Curitiba, e é claro que eu gostaria de ter estado lá. Ainda mais porque não tinha certeza de que McCartney viveria o suficiente para voltar ao Brasil.

Viveria, claro. A partir de 2010 ele faria do Brasil quase uma segunda casa, iniciando um período pós-crise de 2008 em que o país se tornou uma alternativa lucrativa à Europa e aos EUA em crise. Mas agora o jogo tinha virado. Agora eu podia ir, e estava de tocaia.

As vendas de ingressos teriam início a partir da meia noite. Em um primeiro momento, apenas para clientes do Bradesco e donos de cartões American Express; só depois seriam liberadas para a patuleia.

Eu nunca fui cliente do Bradesco nem tive American Express. E assim, quando as porteiras abriram para o comum das gentes, já não havia mais ingressos para o que chamavam pista prime, diante do palco. Só pude comprar o nível imediatamente abaixo, pista alguma coisa. Odeio o Bradesco até hoje por isso e espero ansioso o dia em que a American Express vai quebrar.

E assim, num belo dia de novembro, me enfiei em um avião rumo a Sumpaulo. Marquei para o dia do show um encontro com blogueiros daquele tempo, como o Doni e o Marmota e a Márcia. Mas encontrei outra amiga antes, e acabei passando o dia com ela e perdendo a hora. Nunca pedi desculpas a eles, por sinal. E já saí atrasado para o Morumbi.

A fila era a mais gigantesca que eu já tinha visto. Parecia não haver jeito de conseguir sequer entrar a tempo para ver o final do show, quanto mais conseguir um bom lugar. Não costumo furar filas, mas naquele momento fiz o que qualquer desesperado faria no meu lugar, certo de que os santos me perdoariam: corri a fila em busca de algum amigo mais próximo da entrada. Não era possível que, de todo o mundo que conheço, não houvesse alguém que também fosse àquele show. E se não houvesse, eu adoraria fazer novas amizades.

Os deuses do fura-filas sorriram para mim e encontrei uma amiga de Fortaleza, que coincidentemente ia para a mesma parte da plateia que eu.

Quando entramos, percebi a estupidez que tinha feito ao comprar a segunda posição mais cara. Era tão longe do palco; vimos o show, na prática, pelos telões. Não demorei a perceber que teria feito muito melhor se tivesse comprado um lugar na arquibancada e, com a diferença de preço, comprado um binóculo. Ainda veria o show sentado.

Saí do Morumbi com uma sensação enorme de desapontamento, quase culpa. Durante o show, ao meu lado, um rapaz de seus vinte e poucos anos chorava enquanto era filmado pelo pai. E eu me perguntava: “Tá chorando de raiva, meu rapaz?”

Um show de Paul McCartney é o mesmo há 30 anos. Ao contrário de Dylan, que reinventa suas músicas praticamente a cada show, McCartney concebe o seu como uma chance de fãs ouvirem suas canções semicentenárias interpretadas o mais fielmente possível ao original. Ele sabe que é isso que a esmagadora maioria dos fãs quer. A cada turnê McCartney muda apenas uma parte pequena do setlist, geralmente umas cinco ou seis músicas dos Beatles que saem para dar lugar a outras e dar aos fãs a desculpa necessária para assistirem novamente ao que é essencialmente o mesmo show que já viram.

É mais ou menos como ir ao Louvre tentar ver a Mona Lisa. É a mesma coisa há décadas, uma multidão tirando fotos e lhe impedindo de chegar mais perto: só que há 25 anos eram japoneses fazendo clic-clic-clic; agora são chineses. Tudo igual, mas diferente. Do mesmo jeito, o coração do show de McCartney permanece o mesmo, inclusive com as mesmas gracinhas: umas frases em português do local, My Love sendo apresentada como uma canção que ele fez para “mia gatchinha Linda”.

Eu já tinha visto tantos shows de McCartney em VHS, DVD e o escambau que ali não havia nenhuma novidade. E a sensação foi de insuficiência, de decepção. Estar tão longe do palco ajudou, claro, mas a sensação geral era a de que, se não estava arrependido, também não me animava a ir ao próximo, se próximo houvesse. Eu já tinha visto um show de McCartney, obrigação de qualquer beatlemaníaco como é, para um muçulmano, a de visitar a Meca. Não estava exatamente feliz, mas me conformava com realização de um sonho antigo. Era o bastante para tornar tudo aquilo válido, para compensar a decepção que eu disfarçava sob um incômodo que não queria descrever. Não fui aos shows seguintes, mesmo o que aconteceram mais perto de mim.

Mas em 2013 minha filha pediu para ir comigo ao show de McCartney em Fortaleza. Tudo bem. Por mim, eu não iria. Mas o que uma filha pede sorrindo ao pai que ele não faz chorando e fazendo contas?

Acontece que dessa vez consegui o que agora se chamava frontstage. Acho que, como McCartney virou arroz de festa no Brasil (já são oito turnês e 26 shows), a ansiedade havia diminuído.

Já contei parte das desventuras neste show aqui. O mais importante, no entanto, deixei de lado.

Aquele show foi redentor.

Perto do palco, a experiência é totalmente diferente. Chega a ser extática. Você finalmente está próximo da única pessoa no mundo que que lhe faria pedir um autógrafo. E então já não interessa se o show é essencialmente o mesmo, se as músicas são tocadas exatamente da mesma forma há 30 anos. Há uma ilusão de comunhão e de proximidade que, no fundo, é tudo o que você quer em um concerto. Foi assim que tirei as fotos que ilustram este post.

Saí do show feliz, e devo isso à minha filha. Finalmente tive a recompensa emocional e artística que me faltou naquele show no Morumbi. E por ter saído satisfeito do show em 2013, não sinto a mínima necessidade de ir novamente.

Para começar, mil reais, 200 dólares, não nascem nas árvores retorcidas da caatinga. Eu teria pago mais em 2010 para ver aquele primeiro show, mas agora estou satisfeito com o que vi dez anos atrás. De qualquer forma, não é isso o que realmente importa. Além da sensação de que não vai fazer diferença ir ao show que já conheço de cabo a rabo, a voz de McCartney hoje me incomoda. Ela vem em um processo acelerado de degradação desde o início dos anos 2000, mas nos últimos anos parece ter saído de controle. O volume de turnês, a duração enorme de cada show, tudo isso deve ter contribuído para que ele simplesmente perdesse a voz. É meio triste vê-lo usar um arsenal variado de truques para disfarçar as notas que já não consegue cantar. É nítido o esforço que ele faz para emitir suas notas.

Ir a um show de McCartney a esta altura, para mim,provavelmente seria melancólico. E já não tenho um “dever” a cumprir; melhor ficar em casa.

Mas essas são apenas minhas idiossincrasias, uma de minahs pinimbas com o mundo. Não valem para todo mundo. Quem nunca foi a um show de McCartney deveria ir. É um grande show, honesto. É o músico mais importante do século XX. É uma lenda viva. É algo que você contará aos seus netos nos anos que virão. Recomendo apenas que, se não conseguir o fronstage, vá para a arquibancada e compre um binóculo. Seja onde for, essa pode ser uma experiência única. Mas talvez por ser única, eu já a tive. Estou feliz assim. Deixa estar.

Hunter Davies

Anos lá atrás publiquei o que chamei de edição definitiva de uma pequena bibliografia dos Beatles.

Mas de umas semanas para cá, ela está me incomodando.

Olhando agora, é uma boa lista. Ou melhor, seria, se eu não tivesse cometido um erro crasso: deixei de incluir “The Beatles”, de Hunter Davies. Na verdade, até incluí, mas o coloquei num saldão final com vários outros, dizendo a seguinte barbaridade:

“The Beatles”, de Hunter Davies, foi a primeira biografia de verdade da banda, definiu a sua história oficial e foi a mais completa até o lançamento de Shout!. Mas não apenas é extremamente sanitizada como chega a insistir em mentiras deslavadas, como as verdadeiras razões pelas quais Lennon espancou Bob Wooler na festa de 21 anos de McCartney; seu valor é meramente histórico.

É uma das maiores besteiras que já escrevi sobre os Beatles neste blog, e por ela eu peço perdão e rasgo minhas vestes e me cubro de cinzas e choro com as mãos na cabeça como uma velha palestina. Enquanto isso, tento entender como cheguei a esse ponto de estupidez.

“The Beatles” foi o segundo livro sobre a banda que li, depois do de Geoffrey Stokes, livro bobo pelo qual, ainda hoje, tenho um carinho imenso — porque ainda lembro do garoto de 15 anos carregando extasiado um livro envolto em papel celofane vermelho, como era o costume da Civilização Brasileira, da rua do Tesouro até Nazaré, e de como ele leu e releu e releu e investigou cada foto de maneira quase obsessiva.

Alguns anos depois veio parar nas minhas mãos o livro de Davies, em sua primeira edição brasileira de 1968, num exemplar já sem capa. Li rápido porque era livro emprestado.

Com o passar dos anos vieram novos livros e matérias e entrevistas e filmes e textos na internet, e o volume de informações aumentava e se cristalizava, e minha visão em retrospecto sobre a obra de Davies foi ficando cada vez mais negativa, mais ou menos como aquele novo-rico que se obriga a gostar de coq au vin e passa a desprezar o pirão de galinha bem-feito que o fez crescer forte, sadio e feliz.

Foi essa a impressão que se cristalizou: era dispensável diante de tudo o que veio depois, porque estes continham as informações do livro de Davies e ainda traziam coisa nova. Além disso era uma biografia autorizada, bastante editada e censurada, repleta de mentiras e conveniência. Por alguma razão, suas falhas foram criando vida própria na minha cabeça, e pelo visto se descolaram da realidade.

O livro teve duas novas edições. A de 1985 acrescentava um pós-escrito que incluía um desabafo de McCartney feito num telefonema ao autor em 1981, onde ele reclamava de acusações de Yoko Ono e dizia que Lennon podia ser um “porco manipulador”. Essa reedição ganhou as manchetes naquele ano.

Em 2009 saiu outra edição, com uma nova introdução e um apêndice sobre os personagens do livro que já tinha morrido.

Foi pouco depois disso que finalmente comprei o meu exemplar, mais para completar minha biblioteca do que para reler o livro. Li rapidamente a nova introdução e o pós-escrito, e o deixei na estante onde permaneceu intocado até há pouco tempo.

Aí, dia desses, resolvi passar os olhos pelo livro, e algumas coisas que vi contradiziam a minha impressão sobre o livro, e agora não tinha mais jeito: eu tinha que relê-lo.

Pois é. Bem que dizem que cabeça vazia é escritório do diabo, e isso era algo que eu não devia ter feito, porque agora estou aqui, envergonhado, com raiva de mim mesmo, me sentindo um picareta por ter escrito essa vergonha sobre o livro.

É verdade, é uma biografia autorizada e partes dela foram realmente censuradas por algumas pessoas, principalmente a tia que criou Lennon, Mimi Smith. Além disso, o próprio autor teve o cuidado de não exagerar nas partes picantes, para não ofender as esposas e parentes. Ele nunca diz que Brian Epstein era gay e masoquista, embora deixe pistas suficientes para que se perceba isso; e as partes mais picantes sobre a temporada em Hamburgo são deixadas de fora, já que todos eles eram casados ou noivos na época.

O problema é que nada disso, em nenhum momento, compromete o livro. E relendo o danado agora, mais de 30 anos depois, me pego tentando entender como cheguei ao veredito que dei a ele nos últimos anos.

Porque “The Beatles”, escrito por Hunter Davies, é um livro fundamental para a compreensão do fenômeno. Ao contrário do que passei a achar, é bastante honesto. Só não entra sempre em detalhes — e sim, ele diz claramente por que Lennon espancou Wooler: “Ele me chamou de bicha”, embora não explique que foi por causa da viagem que Lennon e Epstein fizeram à Espanha enquanto uma Cynthia Lennon recém-parida cuidava do filho, o que ele menciona pouco antes Não faltam, por exemplo, as referências necessárias ao consumo de drogas. Há algumas omissões, claro, pequenos erros aqui e ali, e o livro não pretende fazer alguma análise da música, ainda que mínima. Mas o que realmente importa está presente, e o livro mostra seres humanos falhos, inquietos, em um momento em que tinham chegado ao auge de suas carreiras e se sentiam perdidos e sem saber o que fazer da vida.

De qualquer forma, não é isso que faz do livro uma obra basilar.

A questão é que The Beatles tem algo que nenhuma outra biografia tem, nem jamais poderá ter: é a única construída a partir de depoimentos em primeira pessoa de John, Paul, George e Ringo, de seus pais e colegas, por alguém que conviveu com a banda e seu entorno durante mais de um ano. Davies frequentou suas casas, esclareceu fatos diretamente com eles. Isso jamais vai ser repetido novamente, e já devia bastar para que “The Beatles” seja sempre incluído em qualquer lista de melhores livros sobre a banda, o primeiro de todos — e na verdade sempre basta, porque essa minha lista é a única, que eu saiba, idiota o bastante para não incluí-lo.

Sua importância é tão maior do que eu percebia que uma insuficiência sua definiu a estrutura de todos os livros que se seguiram. Escrito no período do Sgt. Pepper’s, ele não alcançou a crise do “Álbum Branco”, a Apple, não viu as consequências da morte de Epstein e a entrada de Yoko se fazendo sentir e ajudando a levar à dissolução da banda. Por isso o livro se estende e muito sobre seus anos iniciais. Essa estrutura e alocação de tempo estabeleceram o padrão obedecido por todas as biografias que se seguiram: biografia de Lennon até formar os Quarrymen, biografia de McCartney, biografias de cada membro narradas a partir do momento em que se encontram, e maior parte do livro contando o início e a ascensão da banda. É como se todos os autores posteriores se baseassem no livro de Davies, e escrevessem profusamente sobre o período entre 1956 e 1966; e ao se deparar com o que ele não cobriu — os anos finais da banda — se tornam mais resumidos, concisos, mais ou menos como os produtores da série Game of Thrones meteram os pés pelas mãos ao terem que se virar sem os livros de Goerge R. R. Martin.

E aí fico com esse pepino na mão. Por que diabos coloquei o “edição definitiva” no título daquele post? Como posso corrigir esse erro vexaminoso sem que pareça a 217ª turnê de despedida de algum artista caquerado que busca descolar uns trocados antes o que o Alzheimer o consuma totalmente, como Elton John ou The Who?

Então resolvi apelar para a safadeza. Meti a mão no post e simplesmente editei, apaguei aquela referência vergonhosa, coloquei o livro no seu devido lugar. Ninguém vai notar mesmo. E eu vou me sentir menos envergonhado. Não, eu jamais negaria a esse livro o seu devido lugar na história, nunca fiz isso, basta você olhar lá na minha “Pequena Bibliografia dos Beatles — Edição Definitiva”.

Os Anos Dourados

Nunca fui noveleiro.

Ao contrário, na infância cheguei a odiar novelas, porque impediam que eu assistisse aos seriados e desenhos que passavam na TV Tupi e que me interessavam muito mais — as novelas da Tupi, por sua vez, nunca foram vistas lá em casa. Mais tarde, aprendi a tolerá-las e até gostar de algumas, mas raramente assistindo regularmente a elas.

Com a idade, no entanto, passei a respeitá-las um pouco mais. E o mais importante, reconheço sua importância na minha própria história: novelas sempre serviram como referenciais cronológicos, porque em tempo de dois canais de TV não havia jeito de não ser exposto de alguma forma a elas, e por isso eu sabia a ordem da maior parte entre a virada dos anos 70 e 80, e ao menos alguma parte de uma trama. Querendo ou não, novelas tiveram algum nível de influência da percepção e vida de todos os brasileiros.

Mas houve exceções nesse desdém: não exatamente novelas, mas as minisséries que a Globo exibiu aí pela metade dos anos 80. De certa forma, a emissora do Boni prenunciou um novo tempo na TV que só agora se tornou corriqueiro. Algumas dessas minisséries foram antológicas, como “Grande Sertão: Veredas”, “O Tempo e o Vento”, “Memórias de um Gigolô”. Assisti a elas, gostei de todas.

Nenhuma, entretanto, foi tão boa quanto “Anos Dourados”.

Por muito tempo achei que os anos 80 assistiram a um revival dos 50, mas a verdade é que aquela década sempre esteve presente: da retomada do rock básico pós-psicodelismo em 1968 (do qual o “Álbum Branco”, dos Beatles, é filho dileto e não inventor, como querem tantos beatlemaníacos), aos filmes American Graffiti, Lords of Flatbush ou Grease ao longo dos anos 70, ou o seriado Happy Days, os anos 50 permearam a cultura das décadas seguintes porque, no fim das contas, foi quando tudo começou, quando a adolescência passou a definir os padrões culturais. Isso era mais intenso nos Estados Unidos, mas mesmo no Brasil a nostalgia de tempos leves, promissores, em que avançávamos 50 anos em cinco e todo mundo podia sair da fome no sertão para a fome nas cidades, nunca deixou de permear o imaginário: “Estúpido Cupido”, novela de 1976, é prova disso.

Assisti a “Anos Dourados” novamente quando o Viva reprisou a série, em 2011, 25 anos depois. Agora assisto novamente, no Globoplay, e estou impressionado.

“Anos Dourados” é a obra-prima de Gilberto Braga. Assisti na época, porque falava dos anos 50 e o rock daquela década era talvez o que eu mais ouvia então. A maneira como entremeia o nascimento e os percalços de um primeiro amor pueril e puro com outro, ilegítimo, adulto, contextualizando-os brilhantemente em um tempo de preconceitos rampantes é obra de um excelente escritor, não importa o meio em que escreve.

O texto é primoroso, os diálogos excelentes em seu naturalismo. Roberto Talma não era um Walter Avancini, mas sua direção é de uma sensibilidade enorme, sempre no tom certo da cena. Cenografia e figurino perfeitos, de um bom gosto e simplicidade que chegam a impressionar, e que ilustram bem o que era o tal “padrão Globo de qualidade”. A música de Tom Jobim é de beleza única, e a narração do Paulo César Pereio, abrindo cada capítulo com um resumo do capítulo anterior, é sempre fascinante.

A recriação da Tijuca dos anos 50, seus códigos sociais, seus preconceitos, o contexto político em que seus personagens estavam inseridos, referências que se perderam no tempo — quem ainda lembra de Mira y López? Ou do que significava dar uma foto ao seu namorado, com dedicatória formal que escondia a intensidade do que se sentia? Ou ainda —, tudo isso é feito de maneira doce, verdadeira, que torna “Anos Dourados” uma obra permanente e sempre interessante.

Há tantos e tantos filmes clássicos por aí que falam do nascimento do amor, da emoção de ser adolescente e estar vivo e descobrindo o mundo— ou do amor proibido, sofrido, até sórdido. E enquanto eles eram louvados, a produção teledramatúrgica brasileira era desprezada. Mas a delicadeza com que Braga fala do ciclo da vida em uma Tijuca dos anos 50, inserindo-o de maneira perfeita em seu contexto social e político, não deixa absolutamente nada a dever a muita coisa boa no cinema. “Anos Dourados” serve para lembrar que a teledramaturgia brasileira era infinitamente melhor que o nosso cinema.

E então a gente se pergunta o que aconteceu.

É claro que a decadência da audiência da TV aberta se deve prioritariamente a outros fatores. Mas assistindo a “Anos Dourados”, percebendo os detalhes que passaram batido quase 40 anos atrás, me pergunto se a mediocrização das novelas atuais não é um fator relevante a ser considerado.

Não posso falar muito porque não assisto a elas, há décadas não assisto sequer a TV aberta além do Jornal Hoje durante o almoço. Mas ainda assim me parece desagradável assistir a uma novela hoje. Cenas longas demais, diálogos que às vezes parecem estar enchendo linguiça ao mesmo tempo em que são desnecessariamente complexos, verborrágicos, um tom escuro demais nas imagens que macaqueiam porcamente a estética de seriados americanos, falta de imaginação em movimentos de câmera e enquadramentos. O que as novelas brasileiras tinham de singular e em comunhão com seu público parece ter se esvaído em um caldo de globalização e tecnologia no lugar de criatividade.

E talvez o maior sinal disso seja o alerta que agora é exibido antes de cada capítulo: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”.

Que me perdoem os bem-intencionados cheios de certeza moral que pululam como girinos na internet: essa é a maior confissão de rendição à estupidez humana. Lembra aquelas advertências bizarras em produtos americanos, tipo “tire a criança do carrinho antes de dobrar” ou “não segure a motosserra pelo lado errado”. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de algum pensamento crítico, de contextualizar a história. E diante disso, é difícil não imaginar que estamos ficando mais imbecis. Ou que os anos dourados, definitivamente, passaram.

Michel, Rafael, comentários sobre racismo e um pouquinho de cinema

Michel e Rafael — não, apesar do que parece não se trata de uma dupla sertaneja — deixaram comentários ao post sobre Lobato e Dahl. O mais elogioso diz que o texto é péssimo. O mais arrogante e redundante me manda fazer terapia.

Eu estava com saudades. Bons tempos, aqueles.

O que mais chama a atenção é que os dois comentários apelam no final para os ataques que na faculdade a gente aprendia serem ad hominem.

O xará diz que o post diz mais sobre mim do que sobre o tema — o que é uma bobagem, já que todo texto diz mais ou menos sobre seu autor, já a partir da escolha do tema; o que o Rafael do B é incapaz de perceber é que seu comentário diz ainda mais dele. Já o Michel exagera no desprezo e diz que preciso de terapia. Devo precisar, é verdade; mas não por isso.

Esses comentários, suando a superioridade moral normalmente dada por alguns anos na universidade e a perspectiva de uma vida em seus corredores, mostra que são garotos — o nome Rafael, por exemplo, só se tornou comum no início dos anos 80 —, deslumbrados com o ambiente acadêmico. Só isso para explicar o apelo a argumentos inconsistentes ou repetitivos que tentam transformar tudo em um diálogo de surdos, e principalmente a revolta pessoal. O Michel, por exemplo, basicamente repete os argumentos que o texto citava, e até contradiz o Rafael ao insistir nas justificativas para o que ele diz não ser censura, logo depois de preparar o terreno dizendo que não dá para monitorar crianças todo o tempo.

Responder a eles é chover no molhado e inútil.

Quem poderia apresentar o vislumbre de uma perspectiva diferente é o Rafael, ao afirmar que o debate é mais de mercado do que acadêmico. O problema é que ele diz que “a premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público” — poxa, ele nem sequer sabe como essa discussão começou? Nunca houve demanda do público por um Monteiro Lobato menos racista; o que houve foi a pressão acadêmica, e a consequente espiral de teses e artigos e outras bobagens mais, a partir do momento em que o MEC anunciou a compra de “Caçadas de Pedrinho”, uns 15 anos atrás.

O xará nega que isso exista, essa discussão e respaldo acadêmicos sobre a validade da purgação dos textos de Lobato. E aí é que complica.

Faz o seguinte: joga “monteiro lobato racismo teses” no Google pra ver o tanto de discussões nas universidades sobre o assunto. Adianto que são aproximadamente 138 mil resultados.

Essa discussão, nesses termos que os meninos colocaram, não leva a nada, claro. Mas me lembram a última vez que estudantes desceram o chicote no meu lombo. Esqueci de escrever aqui.

Tempos atrás, escrevi um post detalhando o curso de cinema que eu faria, no lugar desses cursos atuais que, essencialmente, formam mais professores que retroalimentam as universidades e mais motoristas de aplicativo. O texto partia da grade curricular do curso de cinema da UFF — que por sinal foi declarado patrimônio imaterial de Niterói, cidade muito do meu agrado e que agora tem dois patrimônios: esse e a vista do Rio.

O Vespa, do excelente Inconsistências Inconstantes, na época ensinava num curso técnico de audiovisual. Ele levou o post a seus alunos e depois me mostrou os comentários.

A revolta foi semelhante — não, semelhante não, foi bem mais agressiva. O argumento mais leve foi o de que ninguém teria autoridade para criticar um curso a partir da observação de sua grade curricular — mais um exemplo do nível de encastelamento da universidade brasileira, a persistência do bacharelismo que a afasta cada vez mais da sociedade e que resultou em cursos como “Ciências da Religião”, um bocadão de “sub-engenharias” e até mesmo um curso livre sobre Beatles na PUC (que apenas atualiza, para mim, o ditado que diz que todo dia um malandro e um otário saem de casa — agora eles se encontram no curso sobre Beatles na PUC). De resto, os xingamentos foram grandes. Acima de tudo, os alunos deixaram claro que, para eles, ainda mais interessante do que a perspectiva de fazer cinema é a perspectiva de um emprego, perpetuando o ciclo da piada do sujeito que estudou egiptologia.

É a mesma lógica defensiva e ultrajada que motivou os comentários do Michel e do Rafael. E o mais engraçado é que há algo de reconfortante nisso. Entra ano, sai ano, as coisas continuam iguais. E isso não é tão ruim assim.

Da arte de idiotizar livros

A discussão sobre a reescrita de livros para crianças continua, e é espantoso que continue.

Ainda lembro da discussão sobre Monteiro Lobato. Essa, especificamente, me cansou desde que percebi que é essencialmente uma discussão acadêmica, isolada do mundo, que só interessa de verdade ao pessoal das universidades.

Porque crianças não leem mais Monteiro Lobato. Leem “Harry Potter”, “Crepúsculo”, “Diário de um Banana”, “Gossip Girl”. O mundo de fantasia ainda oitocentista e semirrural de Lobato já não fala ao universo infantil, muito menos ao adolescente. O pássaro roca ninguém mais sabe o que é, mocha é um tipo de café e não uma vaca sem chifres e o Curupira existe ainda menos que o Papai Noel. Coleções de Monteiro Lobato se acumulam nos sebos como testemunhos silenciosos e empoeirados da frustração de pais que acharam que seus filhos eram iguais a eles.

No fundo, o bafafá sobre Lobato serve apenas para justificar salários e teses de professores que vivem disso: de palavras, de símbolos, de significados e “ressignificados”, por estéreis que sejam. E, para validar esses “ressignificados”, que o Racista de Taubaté se torne uma versão contemporânea do Açougueiro de Lyon, porque ultimamente, no ranking dos preconceitos e ódios, o antissemitismo anda perdendo lugar para o racismo contra negros; a II Guerra Mundial foi há muito tempo, e a Palestina é logo ali.

Um tanto dessa inutilidade acomete a última discussão que acompanhei superficialmente, agora sobre Roald Dahl. Dahl, no Brasil, até onde sei é leitura recente, e se exerceu alguma influência eventual sobre bacuris patrícios foi pelo filme “A Fantástica Fábrica de Chocolates”, e não por seus livros. Quando eu era criança, nos anos 70, lia-se Verne, “Tesouros da Juventude”, “Mundo da Criança”, coleção Vagalume, o Racista de Taubaté. Eu, pelo menos, só fui ler Dahl na casa dos 30, e mesmo assim porque a editora Barracuda, brilhante e breve aventura editorial do Alfred Bilyk, me presenteou com um livro.

Mas há que se combater o mal causado pelas palavras cruéis de Dahl. Um dos personagens da Fantástica Fábrica de Chocolates, Augustus Bloop, deixou de ser “gordo” para ser “enorme”. A palavra “gordo”, aliás, foi retirada de todos os livros do finadoautor. Indiferente a tudo isso o pobre Augustus, recoberto por sua banha balouçante, continua pesando o mesmo, tanto faz se você o chama de gordo ou enorme.

Esse tipo de revisionismo é tão tacanho, e já fui terminantemente contra essas releituras. Mudei um pouco de ideia quando lembrei dos “Clássicos da Literatura Juvenil”, sobre a qual, eu eterno bêbado que não sabe que está se repetindo, escrevi várias e várias vezes aqui. A coleção, que provavelmente formou os meus gostos e pinimbas literários, era constituída majoritariamente, se não totalmente, de adaptações e simplificações. Logo, como eu sou a verdadeira medida do mundo, adaptações não são necessariamente ruins.

Mas há uma diferença entre o tipo de adaptação feita naqueles livros e essas mutilações pudibundas de agora, e ela é fundamental.

Aquelas eram tentativas de fazer livros às vezes seculares chegarem a pessoas mais jovens e menos afeitas aos meandros da escrita, através de um esforço consciente de empobrecimento e simplificação. Por exemplo, sua versão de “Os Três Mosqueteiros” simplificava a história, talvez tirasse uns detalhes importantes, mas mantinha a sua estrutura, com seus heróis imperfeitos, sem omitir o que era de fato importante. Aqui e ali os adaptadores faziam intervenções mais judiciosas, e demorou anos até eu saber que Steerforth tinha feito mal à menina Pegotty e levado a tadinha à prostituição; um dos mais bizarros, no entanto, foi a decisão incompreensível de Herberto Salles de omitir a morte de Beth em “Mulherzinhas”, embora na continuação, “A Rapaziada de Jô”, adaptada por M. Z. Camargo e publicada na mesma coleção algumas semanas depois, ela já estivesse mortinha da silva. Provavelmente Salles achou que a criançada não podia ser exposta à morte dessa forma, como hoje não podem ser expostas ao racismo; tudo o que conseguiu foi confundir os leitores.

De qualquer forma isso era raro, e só lembro desse exemplo. O que se vê agora parece com essa omissão cometida por Herberto Salles: são esforços puritanos em estabelecer uma proteção definitiva de pobres crianças idiotizadas e superprotegidas da maldade do mundo.

Um exemplo paralelo está na reedição do “Manual do Escoteiro Mirim” (outra daquelas obras fundamentais da minha infância, o que mostra quão pobre foi a minha formação. Mó inveja desse pessoal que lia “Ulysses” aos dez anos). Ele trazia umas receitas que incluíam, imagino, licores entre seus ingredientes. Agora os licores foram retirados delas, com uma notinha jogando a culpa no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Eu realmente não sei como sobrevivemos àqueles tempos duros. Devia ser graças à cachaça que bebíamos aos três anos de idade e às orgias intermináveis que fazíamos a partir dos cinco, porque não havia uma nota explicativa proibindo nada isso.

Os defensores das reescritas dizem que elas não importam tanto assim, porque as obras originais continuam aí. É a justificativa mais canalha e cínica que conheço, até porque ela é apenas parcialmente verdadeira. Esses originais vão continuar existindo para adultos que os escolherem como motivos de teses acadêmicas que serão lidas apenas por seus orientadores, mas o que estará nas livrarias ou, mais importante, nas compras governamentais serão as versões sanitizadas. Como dizia Lampião, “eu só faço o furo, quem mata é Deus”.

A questão é outra. Censurar um livro é simplesmente errado, seja qual for a forma de censura. Essa postura lembra cada vez a prática comum nos EUA de banir livros de bibliotecas e escolas — porque uma vez aberto o precedente, nada impede que todo mundo que se sinta incomodado ou ofendido por um livro tente proibir a sua leitura pelos outros, movidos pelo proselitismo de bons cristãos. E é aí que a certeza e presunção morais e éticas dos ativistas se tornam perigosas e um enorme tiro pela culatra. Em 2022, o livro mais banido nas escolas americanas foi Gender Queer, de Maia Kobabe, porque traz temática gay e é, alegadamente, sexualmente explícito. O segundo livro mais banido dos EUA na década passada foi essa série subversiva chamada “Capitão Cueca”.

Uma vez aberto, o portão da estupidez não pode mais ser fechado.

O mais grave é que toda a essa atividade protetora, policialesca, é essencialmente um exercício obtuso de subestimação da inteligência das pessoas. Defensores dessas proibições gostam de usar o argumento de que cada “interpretação tem seu tempo” para justificar seus cortes, mas o esquecem na hora de admitir a inteligência das pessoas.

Não custa tomar o racismo de Lobato, que na confusão que umas gentes fazem entre autor e obra dizem estar materializado em expressões racistas ditas pela Emília, como exemplo: se livros são o retrato do seu tempo, crianças também são. E certamente são mais inteligentes que a maior parte dos seus autonomeados protetores. Tenho sérias, seriíssimas dúvidas de que precisem ser protegidas do beiço da Tia Nastácia: o que era normal em 1930 hoje soa automaticamente incômodo para elas, criadas em um ambiente onde essas manifestações são cotidianamente malvistas, policiadas e condenadas. Até mesmo adultos e velhos como eu passam por fenômeno semelhante: o que era cotidiano e normal trinta, quarenta anos atrás, hoje soa incômodo e simplesmente errado.

Mas para os zelotes do vernáculo, se as crianças brancas lerem um livro em que a Emília, dada a falar os mais variados tipos de disparates, ofenda a Tia Nastácia, se transformarão automaticamente em racistas; se negras, ficarão deprimidas e terão sua autoestima destroçada ao verem as ofensas da boneca de macela, incapazes de identificar isso como racismo — assim como, para os fiscais do rabo alheio, ler Gender Queer vai transformar seus filhos em travestis enlouquecidas de fio dental na caçamba de uma caminhonete purpurinada cantando enlouquecidas Loco Mia.

Pensando bem, talvez o mundo fosse melhor se isso fosse verdade.

1001 seriados para ver antes de morrer

Por dez reais eu compro até livro de autoajuda, tipo “Foco Quântico e Seja Grande” do coach Benjamin Arrola, autor célebre que na virada do ano fez muito sucesso nas frentes de quartéis e entre lutadores de MMA que levaram pancada demais na cabeça.

Em vez disso, comprei há algum tempo, num desses saldões da Amazon, “1001 Séries para Assistir Antes de Morrer”, editado pela Sextante e com o qual, imagino e espero, a editora teve prejuízo significativo. Anos atrás ganhei “501 Filmes Para Ver Antes de Morrer”, que não é ruim, e achei que esse podia valer alguma coisa. Triste engano.

É um calhamaço de 960 páginas em couché fosco, com muitas fotos, muito pesado e difícil de manusear. O título é enganoso. Não são apenas o que entendemos por séries, ou seriados. Há programas de auditório, game shows, telenovelas, programas de esquetes humorísticos, reality shows. Título melhor seria “1001 TV Shows”, tradução adequada seria “programas de TV”. Foi um livro caro de fazer, mas pelo visto isso não sensibilizou ninguém e ele terminou na pilha de encalhes, de onde o resgatei como meninas bobinhas resgatam gatos.

O prejuízo é merecido porque, para começar, não existem 1001 séries de TV que merecem mesmo ser vistos. Seriados são longos demais. Assistir a “Bonanza” inteiro, por exemplo, demandaria mais de 400 horas da vida de uma criatura, que poderia fazer coisas melhores com esse tempo — uma trepanação, por exemplo, ou uma cirurgia de vesícula. É o tipo de livro que só pode existir nestes tempos de fartura excessiva: informação apenas curiosa, análise pífia e uma vocação contemporânea para criar um tipo estranho de ansiedade inútil: você precisa ver isso, você precisa fazer aquilo.

Sendo generoso de verdade, há uns 20 ou 30 seriados que fizeram a TV avançar, como I Love Lucy ou The Sopranos, e unss outras 50 que são tão bons que merecem ser realmente vistos mesmo agora. O resto é lixo para gastar tinta em gráfica.

Além disso, esse livro chinfrim não inclui “Daniel Boone”. Eu até entenderia se ele tratasse dos dez melhores seriados, até 100. Mas quebrar a cabeça para arranjar mil programas de TV que possam ser recomendados por alguma coisa e não incluir um seriado inesquecível, que durou seis temporadas, só pode ser pirraça. (Sim, é implicância pessoal. Ninguém mexe com meus amores. Danem-se, editores canalhas.)

Mas mesmo descontando tudo isso, até a minha ranhetice, este é um livro realmente ruim. É essencialmente um apanhado cronológico de programas de TV americanos e ingleses, com alguns franceses e um ou outro de outras nacionalidades para ajudar o livro a ser vendido nesses países. Parece não haver um critério mais rígido nem uma correta hierarquia de importância de séries, mas é só impressão: essa diferença existe, só que se dá no uso de fotos maiores. Os textos têm basicamente o mesmo tamanho. Um seriado de segunda ou um sucesso absoluto às vezes têm quase o mesmo peso.

O Brasil está presente com “Sua Vida Me Pertence”, a primeira telenovela brasileira. Esse é talvez o indício mais gritante da estupidez que envolve todo esse livro. Quem a incluiu não sabe do que está falando: procurou o nome numa enciclopédia qualquer e a colocou no livro porque, bem ou mal, é um marco histórico. Mas o fato é que ninguém viu essa novela de 1951 — no máximo uns poucos milhares de paulistas, que se ainda vivos já passaram dos 80 anos. Pior, ninguém pode assistir a ela porque a novela não existe. É do tempo da TV ao vivo.

Sinto ser eu a lhe dizer isso, mas você vai morrer sem ver “Sua Vida Me Pertence”, e sua vida terá sido incompleta e insatisfatória, e não valeu nada, que vida inútil você levou. Triste e ingrato fim, o seu e o meu e o de todo mundo.

Mas posso lhe oferecer um pequeno consolo.

Se escrevi acima que espero que a editora tenha tido um bom prejuízo com esse livro, é porque a preguiça merece ser recompensada com o opróbrio e o encalhe. Fossem menos preguiçosos e tirariam aquele amontoado de seriados ingleses de que jamais ouvimos falar e colocavam algumas das grandes produções brasileiras.

A TV nacional sempre foi melhor que o nosso cinema, e se me perdoam a pachequice, melhor que a maioria das TVs do mundo. Programas como “Chico City”, novelas como “Roque Santeiro”, seriados como “Carga Pesada” ou “Malu Mulher” ou “Sítio do Picapau Amarelo”, minisséries como “Anos Dourados”, “Hoje é Dia de Maria” poderiam substituir grande parte dos seriados obscuros, nunca exibidos no Brasil, que incluíram aqui. Fariam isso com honra e glória e, principalmente, maior apelo comercial.

Fizessem isso e eu não estaria aqui, esculhambando algo que nem vale a pena ser esculhambado.

Melhor do que colocar uma novela que ninguém pode ver, como “Sua Vida Me Pertence”, seria detalhar melhor os mais importantes seriados antigos e atuais: datas, episódios, equipe, trívia, essas coisas. É verdade que esses dados provavelmente já estão na Wikipedia ou em outros wikis internet afora, mas a organização dessas informações em um livro ainda é algo insuperável. Melhor, poderiam selecionar os melhores e investir em informações e avaliações críticas realmente interessantes. Desperdiçaram essa chance.

Mas o pior, mesmo, é a ideia de “ver antes de morrer”. Há algo de doente numa sociedade que vive em angústia permanente, sob pressão para fazer coisas que nem quer tanto fazer, tornando as pessoas devedoras eternas de algo que não receberam. Fazer isso antes de morrer, comer aquilo antes de bater as botas, contar as misérias de sua vida sexual porque todo mundo está fazendo isso antes que o tempo acabe. Precisamos vender, precisamos vender, e para isso precisamos criar ansiedades inúteis em uma humanidade que está perdendo a capacidade de exercer algum critério de sensatez.

Ainda tenho dúvidas de que vou morrer um dia. A única certeza, mesmo, é a de que vou morrer pouco me lixando para os tantos e tantos e tantos seriados que não vi. Nem para isso esse livro serviu.

Da arte de reescrever a história e enganar otários

Revisionismo é um troço que me incomoda desde os tempos do camarada Kruschev. Tanto pior para mim, porque estes tempos de esgotamento criativo se transformaram na era das releituras e “ressignificações” e outras bobagens do tipo.

Por esses dias andaram comemorando o sexagésimo aniversário de lançamento do Please Please Me, o LP de estreia dos Beatles. Semana passada o youtuber Régis Tadeu fez um vídeo louvando as maravilhas desse disco “revolucionário”. Pouco antes, apareceu para mim no Facebook o anúncio de um curso — isso mesmo, um curso — da CCE/PUC/Rio, seja lá o que isso for, para estudar “toda a repercussão de seu lançamento no cenário musical brasileiro e mundial”.

Quanta besteira e quanta picaretagem, meu santo Asmodeu.

Sabe qual foi a importância mundial do Please Please Me? Nenhuma.

Sabe qual foi a importância no Brasil? Menor ainda.

Vamos começar pelo Brasil, porque a explicação é mais simples. Esse disco só foi lançado aqui em 1976, seis anos depois do fim da banda. Até 1965, a discografia brasileira era totalmente diferente da inglesa. Parte das faixas do Please Please Me tinham sido espalhadas pelos dois primeiros álbuns brasileiros, uma no “Beatlemania” e outras seis no “Beatles Again”. Foi apenas em 1976 que a EMI tirou de catálogo os discos lançados até aquele ano, substituindo-os pelos originais ingleses. Fez isso no mundo inteiro.

Se no Brasil a sua inexistência — a não ser em uns poucos exemplares importados por uns poucos abençoados pela Fortuna e pela fortuna, o que é insignificante — levou à absoluta desimportância em seu tempo, na Inglaterra a história é diferente; e é por não conhecer a história dos Beatles e da indústria fonográfica que as pessoas repetem bobagens como essa.

Mas não é tão difícil de entender. Basta olhar para o próprio Please Please Me. O disco tem 14 faixas. Quatro delas são os compactos lançados anteriormente. Outras seis são covers. Restam quatro faixas originais da dupla de compositores que fez história ao bater pé e exigir que seus primeiros compactos tivessem apenas canções próprias.

(Descontando os lados A dos compactos incluídos, apenas duas das canções do álbum tiveram vida longa: Twist and Shout, depois de redescoberta no filme “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1987, e I Saw Her Standing There, que ganhou vida nova quando Paul McCartney voltou aos palcos no final dos anos 80 e a incorporou ao seu setlist.)

A questão é que LPs não significavam nada naquele comecinho dos anos 60. Eram basicamente coletâneas de compactos e umas faixas de segunda para completar o espaço que faltava. Não é à toa que o título completo do disco é Please Please Me — with Love Me Do and 12 Other Songs. Comprava um LP quem gostava muito de um artista, mas não era para eles que as gravadoras trabalhavam.

O que importava naquele momento eram os compactos. Eram eles que norteavam o mercado e o público, mediados pelas rádios. Para os Beatles, importante mesmo foram o compacto Please Please Me, um disco — este, sim — revolucionário que mudou o cenário da música inglesa, e um pouco mais tarde She Loves You, que catalisou a beatlemania que vinha sendo gestada nos meses anteriores. Até o fim da banda, a grande luta de Lennon e McCartney era emplacar o lado A do próximo compacto, e era para eles que reservavam suas melhores canções — I Want to Hold Your Hand, I Feel Fine, Day Tripper, Strawberry Fields Forever, Penny Lane, Hey Jude nunca foram incluídas em um LP original. O resto, como McCartney sempre lembra, eram “fillers”, canções compostas para completar o álbum. Às vezes não conseguiam e eram obrigados a procurar material antigo e previamente descartado, como Wait no Rubber Soul.

Mas a história dos Beatles é uma história em construção permanente. Eles foram um dos responsáveis pela consolidação do LP como objeto cultural importante, mas isso só se daria alguns anos depois. Antes que eles atentassem para isso, outros faziam seu papel na valorização dessa mídia: Bob Dylan, por exemplo. Mas o tempo passou, os Beatles ocuparam de maneira incontestável o topo do Olimpo da música mundial. O Please Please Me passou a ter uma importância que nunca teve, o fato de ter boa parte de suas canções gravadas em 11 horas passou a ser motivo de admiração e as gentes esqueceram que isso era muito comum em seu tempo. E nestes tempos duros, afinal, as pessoas e as instituições precisam ter assunto para descolar um troco. Faz parte.

Mas eu ainda estou intrigado com esse curso. Fico realmente maravilhado e estupefato diante da possibilidade de que alguém realmente pague por isso. Penso nisso, na abundância de bestas neste mundo despirocado, e dou um esporro em mim mesmo: “É por isso que você é pobre, otário”. Felizmente caio em mim rapidinho: pobre, mas honesto. Só que nunca sei se isso é consolo suficiente.

Oscars 2023

Avatar não prestava em 2009, presta ainda menos em 2023.

Top Gun: Maverick nesta lista é quase uma ofensa. Não por ser um mau filme, que isso ele não é. Mas tampouco vai além do artesanato tecnológico e excelência estética em cenas de ação que ostenta como grande trunfo. É uma vergonha que a sequência de um filme que há menos de 40 anos era apenas divertimento escapista para adolescentes hoje concorra ao Oscar. Um filme menor, sob todos os aspectos. Não vale o que Tom Cruise gasta em cirurgias plásticas.

Elvis é um Baz Luhrman repetitivo e esgotado, que junta duas tradições narrativas diferentes para um resultado pífio, sem a euforia e a surpresa visuais que caracterizam filmes realmente bons como Moulin Rouge. Não o ajudam as inverdades históricas, as mentiras para forjar, nos bom e mau sentidos, um Elvis recauchutado para o mundo que ajudou a criar mas não soube acompanhar: aqui tentam transformá-lo no que nunca foi nem quis ser, roqueiro na alma, irmão do gueto, um cabra “woke” de verdade. No fim das contas, o filme não compreende nem respeita o velho ídolo que morreu cagando, embora trate melhor o seu protagonista e narrador, o coronel Tom Parker. E o ator que interpreta Elvis, Austin Butler, parece mais com Jim Morrison do que com The Pelvis.

É espantoso que Triângulo da Tristeza tenha ganhado a Palma de Ouro em Cannes; aparentemente, hoje Cannes está mais próxima do Piscinão de Ramos do que da Mônaco onde Grace Kelly seduzia Cary Grant com suas joias. Deve ter sido porque pobres gostamos de ver os ricos sendo ridicularizados, ou o hype do mundo sendo mostrado como o esforço cínico de marketing que é. A primeira parte, na verdade, é muito boa, com bons insights e flechadas certeiras. Mas então vira uma bobajada demagógica num roteiro cheio de furos e implausibilidades. “O Mordomo e a Dama”, filme que costumava ser exibido na Sessão da Tarde nos anos 80, é melhor.

Os Fabelmans é um bom Spielberg, uma ode ao cinema como forma de recriação da vida e diálogo entre as pessoas. Tem alguns excelentes momentos e impressiona ao mostrar os pais do diretor como pessoas falhas como qualquer um. Mas coitado do velho Steve: há algo de tão acadêmico, de tão morno em seus filmes, de tão velho. É a sua honestidade que mais seduz neste filme, a chance de conhecer um pouco mais da vida do sujeito; porque fora isso, não há muito mais. Spielberg já fez filmes melhores, o cinema já recebeu homenagens melhores.

Nada de Novo no Front é um belo filme, forte, capaz de mostrar o horror e a falta de sentido da guerra com capacidade. A direção é firme, correta, a fotografia é excelente, as atuações são adequadas. Mas além de ser uma refilmagem — que deveria ser falta eliminatória em uma premiação —, não tem realmente nada de novo, e os mais de 90 anos de miséria e horror humanos e a infinidade de guerras que separam as duas versões retiram muito da sua importância real.

Entre Mulheres é um filme curioso e instigante, que em uns poucos momentos chega a lembrar vagamente aqueles filmes godardianos em que se fala, fala, fala. Estabelece um debate sobre a condição feminina que escapa da demagogia, e só isso já motivo de celebração. Seria ainda melhor se fosse tratado como uma parábola dessa discussão, atemporal e num lugar imaginário, em vez de inspirado num caso real acontecido na Bolívia. De qualquer forma, é um grande resumo da discussão feminista americana atual, apesar de acabar refletindo a origem puritana religiosa de parte dessa discussão.

Tár é um filme admiravelmente bem construído, excelente em sua ambiguidade e na destreza com que narra a trajetória à la Nightmare Alley de Lydia Tár. Mas acima de tudo, é uma atuação estelar de Cate Blanchett. Eu não queria que escolher entre dar o Oscar a ela ou a Michelle Yeoh: duas atuações tão diferentes, e tão brilhantes. Uma, a de uma grande estrela que dá uma dimensão maior que a vida à sua personagem; na outra, a compreensão das minúcias e sutilezas de seus personagens.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ter impresso “Vencedor do Oscar 2023 de Melhor Filme” em seu cartaz de lançamento, para economizar tempo. O filme traz uma mistura inteligente e surpreendente de atualidade — absorve como poucos esses vinte e poucos anos de universo de super-heróis e lhe dá uma perspectiva diferente —, inventividade formal, roteiro que em alguns momentos lembra os de Charlie Kaufman, referências diversas ao cinema, e tudo isso sobre uma base sólida e eficiente, que é a boa e velha busca pela felicidade familiar. É a receita perfeita para o prêmio, e uma provável vitória será mais que merecida.

Mas o melhor filme entre os concorrentes deste ano é Os Banshees de Inisherin — junto com o formidável EO, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro —, um filme sensível e surpreendente, admiravelmente bem executado, com grandes diálogos, interpretações brilhantes — especialmente a de Colin Farrell — e uma visão inquietante e complexa das relações humanas. “Banshees” não dá respostas, e nos lembra que cinema, antes de mais nada, continua sendo contar bem e de um jeito novo e singular uma boa história. Fazer isso com tamanha maestria, num ano excepcional em que a maioria dos concorrentes ao Oscar é muito boa — algo cada dia mais raro, como mostram os últimos anos — é um feito e tanto.

Mais um original de Dylan e McCartney

Eu tenho um sonho.

Perguntaram a Paul McCartney quem era o único artista que o faria ficar inseguro, gaguejante, num encontro. A resposta foi simples.

“Dylan”.

Bob Dylan foi mais prolixo:

Eu sou deslumbrado por McCartney. Acho que ele é o único que me deixa pasmo. Ele é completo. E nunca deixa a bola cair. Ele tem o dom da melodia, tem o dom do ritmo, ele pode tocar qualquer instrumento. Ele pode gritar e berrar tão bem quanto qualquer um, e canta uma balada tão bem quanto qualquer outro. E suas melodias são tão naturais, é isso que impressiona… Ele é tão natural. Eu queria que ele parasse. Tudo o que sai de sua boca parece envolto em melodia.

Os dois maiores artistas da música pop ainda vivos são apenas elogios um para o outro — mais que isso, reconhecem nele alguém maior que eles mesmos. É isso. O meu sonho de consumo é um disco de Bob Dylan e Paul McCartney.

Ora, direis, grandes merdas. Todo mundo gostaria de um disco com as músicas de McCartney e as letras de Dylan.

Mas não, não. Não é isso. Bob Dylan e Paul McCartney têm mais em comum além do fato de terem perdido a voz anos atrás. No meu sonho, não é o Dylan letrista e o McCartney compositor que eu queria juntos. É o contrário.

As pessoas têm dificuldade em reconhecer em McCartney um grande letrista. Não no sentido mais óbvio, do sujeito que passa uma mensagem importante e significativa e quem sabe revolucionária em suas músicas, como Lennon sempre tentou e Dylan fez tanto e tanto. Mas uma canção não é um poema. A letra de uma canção precisa soar bem, precisa combinar e acompanhar a música, engrandecer a harmonia, e McCartney sempre teve uma capacidade sobrenatural de encaixar a letra na melodia, de dar uma musicalidade rara às palavras. Infelizmente, ele condescende excessivamente em fazer isso em detrimento do conteúdo, o que é uma pena. Mas se a música de McCartney sempre teve uma qualidade superior, quase sobrenatural em sua naturalidade que Dylan tanto admira, é também porque os sons vocais estão no lugar certo.

Depois de um período tenebroso nos anos 70 e 80 — o mundo deveria ter sido poupado de barbaridades como Saved, Shot of Love e Knocked Out Loaded, e mesmo Blood on the Tracks, me perdoem, não é tudo isso que dizem dele — Bob Dylan conseguiu se reequilibrar nos anos 90, para então se acomodar contente em álbuns musicalmente corretos mas nada ambiciosos. Ele não quer fazer um Sgt. Pepper’s, ou um OK Computer. Aparentemente, quer fazer a música de que gosta, sem grandes arroubos de invenção, e com uma elegância madura que não havia nos seus primeiros discos. Dylan se permitiu envelhecer sem traumas, fazendo o que gosta. Seus últimos álbuns têm sempre uma característica simples: a classe conservadora de quem sabe que é impossível errar com os blues ou standards que o fizeram querer sem músico em vez de um novo Holden Caulfield.

Por sua vez, depois de passar pelo mesmo período tenebroso que Dylan — devia ser algo na água dos anos 80 — McCartney continua até hoje buscando relevância e atualidade no mundo; o que mais faria alguém gravar um tecno-sei-lá-o-quê como Back in Brazil no Egypt Station de 2018? Neste momento, ele está escrevendo um musical, e sabe-se lá quando ou se lançará um novo álbum pop. Essa angústia criativa é admirável, mas muitas vezes o coloca em becos sem saída, e o que deveria soar moderno soa modernoso — vide o New, de 2013 —, exagerado, excessivo

É a combinação disso, a busca por relevância e invenção, mas também um senso de raiz, que seria possível em um encontro entre os dois. É perfeitamente possível imaginar McCartney e Dylan combinando duas personalidades musicais tão diferentes: o conservadorismo musical de Dylan e a eterna busca pela contemporaneidade de McCartney, um aparando os excessos do outro, enriquecendo o que o outro oferece: a tradição musical sólida que Dylan tanto valoriza equilibrando a necessidade do novo que McCartney busca, e vice-versa. Assim como seria fantástico ver letras que combinassem a musicalidade de McCartney e a profundidade lírica de que Dylan é capaz.

O rock — aquela música que meninos educados brancos tomaram dos negros e fizeram sua, e que ajudou a definir os caminhos do mundo por uns trinta anos, ou pouco mais — morreu há um bom tempo. É uma linguagem esgotada, e o seu sucessor mais próximo é o que hoje chamam calhordamente de R&B, música feita por computadores numa eterna e cada vez mais esmaecida reciclagem do que já foi feito mil vezes antes

Mas antes de falecer numa prateleira de saldos de CDs ele mudou o mundo como nenhuma música antes dele, e merecia um epitáfio à altura, e ninguém melhor para escrevê-lo dos que seus dois principais artífices, seus últimos gênios vivos.

Infelizmente, este é um sonho que nunca será realizado — esse e o de passar a Ava Gardner nos peitos. Porque são dois egos gigantescos, dois artistas perfeitamente cônscios de seu papel na história e, principalmente, do legado monumental que deixaram na cultura popular. Tenho a impressão de que ambos têm medo um do outro, por reconhecerem nele um artista superior, e têm a consciência do quão difícil seria o processo criativo entre eles. Do seu ponto de vista, provavelmente têm mais a perder do que ganhar com isso.

Mas não custa sonhar. Porque, sem sonhos, como envelhecer como Dylan e McCartney?