Paulo Francis: fim de temporada

Andei passando os olhos pelo acervo do Pasquim na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, muito superficialmente. Li algumas matérias clássicas, como a %#&! entrevista com a Leila Diniz e o artigo “Um Homem Chamado Porcaria” com que Paulo Francis agraciou seu futuro patrão, Roberto Marinho, ofendendo-o com o que o seu vocabulário parecia ter de pior: “negro!”

E aí fiquei pensando no Francis, morto há quase três décadas mas que ainda hoje inspira meliantes medíocres de direita, embora em menor grau do que há 20 anos, por exemplo. O pessoal que se reunia em torno dos Wunderblogs — há quanto tempo você não lê esse nome, hein? — e quetais tinha veneração por ele, e mesmo hoje há quem o respeite mais do que devia.

Já escrevi sobre ele aqui. O post é de quase 20 anos atrás. E depois de tanto tempo, é engraçado ver o quanto o panorama mudou. Quase tudo o que servia de referência então desapareceu ou se transformou quase além do reconhecível. Ainda assim, mudei de opinião em alguns detalhes, mas o básico continua válido.

O que me importa, no entanto, são justamente os detalhes.

Francis se sustentava em uma época em que jornalistas podiam falar quase todas as asneiras que quisessem sem serem punidos pelo público. Sem internet, era fácil escrever o que se queria porque dificilmente alguém checaria a informação. No que ele escrevia, sempre houve uma série de exemplos de erros crassos, mesmo de vigarice — quando, por exemplo, ele apresenta como sua uma conclusão de Edmund Wilson sobre o materialismo dialético.

Eu certamente superestimava sua “solidez cultural”. Há uma entrevista do Francis ao Roda Viva disponível no YouTube. São impressionantes as posições rasteiras dele a respeito de tantas coisas. Para ele, naquele momento, todos os problemas do Brasil se restringiam à presença do Estado na economia — mais ou menos como o gado bolsominion, aquele que pede ajuda a ETs e reza para pneus de caminhão, fala da corrupção como se fosse algo palpável, isolado e possível de ser erradicado por um ladrão de joias medíocre e vulgar. Francis citava números falsos a rodo, porque como todo bom embusteiro sabia que sempre podia contar com a ignorância do resto da humanidade. E o elitismo descarado e afetado, principalmente em relação a tudo o que cheirasse a popular, ainda era aceito nos anos 90.

Isso lembra que Paulo Francis se tornou um ícone pelo que escrevia, com talento, vivacidade, brilho. Era muito fácil engolir como verdade e fato as bobagens que ele contava errado ou plagiava, porque ele sabia como contar. Isso não lhe tira o mérito de possuir uma cultura variada, abrangente, algo cada vez mais raro nesses tempos em que as pessoas são formadas nos bancos estreitos das universidades e restringem e sufocam cedo demais suas curiosidades; mas ridiculariza aqueles que vêm nele algo próximo a um pensador.

Paulo Francis permaneceu tanto tempo porque fez parte de um momento importante para a geração que chegou ao terceiro milênio em sua maturidade.

Na segunda metade dos anos 80 havia uma geração de jornalistas culturais que fez história e ditava o que se devia gostar ou não, num tempo em que a distinção entre intelectuais e jornalistas não era tão grande como hoje. Era uma turma boa: Sérgio Augusto, Ruy Castro, Paulo Francis, uns tantos outros — o Ruy Castro, por exemplo, chegaria à Academia Brasileira de Letras, numa eleição certamente mais merecida que a de sicofantas como Merval Pereira.

Era gente formada nos anos 50, sob a influência do processo de americanização do país a partir das indústrias cinematográficas e musicais, com uma pequena ajuda do USAID. Ao chegar à maturidade, se tornou uma geração que gosto de definir como novaiorquina putativa. No pós-guerra, os Estados Unidos haviam se tornado o grande motor da cultura mundial, em um modelo novo e dinâmico que a unia ao mercado de massas. E essa geração se formou sob essa influência. Ruy Castro até hoje sonha com musicais da Browadway; Francis, especialmente, depois que migrou para a metrópole se especializou em contar para os botocudos cá do hemisfério meridional o que acontecia na Big Apple, do low ao highbrow.

O parágrafo acima não tem nenhuma intenção de ser derrogatório. Em boa parte, essa geração desempenhou um papel fundamental, atuando como tradutora dessa intelectualidade específica, arejando o ambiente e trazendo os seus padrões para o Brasil, enriquecendo o nosso mundo. Por exemplo, Ruy Castro traduziu e selecionou contos de Dorothy Parker num livro que, se não me engano, tinha prefácio do Sérgio Augusto — que por sua vez selecionou os contos de “O Mundo das Maçãs”, de John Cheever. Conhecer o cinema e a literaturas americanos permitiu a Sérgio Augusto escrever o indispensável “Este Mundo é um Pandeiro”.

Mas todo esse pessoal envelheceu — e virtualmente todo envelhecimento traz consigo algum nível de inadequação ao novo mundo. Mais importante, o panorama cultural mudou muito — por um lado ficou mais diverso, o que é bom, e por outro mais medíocre, o que é ruim. A minha desconfiança é que Paulo Francis enveredaria pelo pior desses caminhos. Se estivesse vivo, sou capaz de apostar que ele seria pior que gente como Augusto Nunes e outros sabujos do reacionarismo, porque sempre foi maior que eles.

Reconheço, claro, que meu pessimismo não é infalível e que existem outras possibilidades. Além de uma cultura geral que ainda hoje se sustenta, de um início de vida como diretor e crítico de teatro, e de um mínimo de formação política, Francis se dava a liberdade de pensar. É uma esperança à qual aqueles que gostavam dele podem tentar se agarrar, por tênue que seja. Além disso, ao seu conservadorismo ele sempre foi capaz de adicionar uma camada agradável de verniz cultural, talento verdadeiro e mordacidade; talvez, então, conseguisse se livrar da sina triste de chegar a um fim melancólico de vida espalhando fake news no WhatsApp e apresentando algum programa na JovemPan.

Mas não leve muita fé nisso. O mundo seria bem mais cruel com ele hoje.

Aliás, provavelmente já está sendo. Olha a tal entrevista ao Roda Viva. Por ser vídeo, é bem possível que essa entrevista venha a se tornar a primeira referência a Francis nos anos que virão. Sempre que alguém for pesquisar sobre o nome, se é que alguém vai fazer isso, vai preferir essa entrevista aos livros que ficaram. O mundo é assim, é cada vez mais raso, mesmo. E é injusto, porque ele era maior do que aquilo.

Let it Be, de novo e finalmente

A Apple Corps. anunciou o relançamento do filme Let it Be — o original, lançado há 54 anos —, agora restaurado, remasterizado, essas “res” todas que viabilizam as arapucas para fãs em que a empresa se especializou nas últimas décadas.

A princípio não entendi direito: lançá-lo depois do excelente Get Back, de 2021, parece um anticlímax, quase um contrassenso.

Assisto de vez em quando a esse filme há mais de 40 anos. No dia 14 de dezembro de 1980, o domingo seguinte ao assassinato de John Lennon, a TV Aratu exibiu Let it Be. Era um dia nublado, abafado, depressivo. Havia visitas lá em casa e as pessoas comentavam tristes sobre o assassinato bárbaro daquele tal John Lennon, que eu nunca tinha visto mais gordo. Lembro de assistir a pedaços do filme e considerá-lo uma das coisas mais chatas que eu já tinha visto, pior que “Concertos Para a Juventude” e corrida de Fórmula 1, perfeito para completar aquele domingo trancado em casa.

Seis anos depois as coisas tinham mudado. Eu era um beatlemaníaco que agarrava com sofreguidão cada chance de ver algo novo sobre os Beatles — naqueles tempos, novidades sobre a banda eram algo suficientemente raro para transformar em um acontecimento cada nova informação, cada nova música desencavada de um disco pirata. Apareceu uma cópia em VHS, mais gasta que as frases decoradas que McCartney diz entre uma e outra canção de seus shows, e claro que eu tinha que ver.

Hoje parece haver uma lavagem cerebral coletiva, propiciada pelas redes sociais, que transforma fãs em lemingues siderados a considerar obras-primas qualquer lixo lançado sob a marca Beatles, das caixas remasterizadas de aniversário, cheias de sobras de estúdio sem nenhum interesse artístico ou musical, a mediocridades lancinantes e vergonhosas como Now and Then. Nas redes sociais, o que não falta é gente sem-noção e sem estética se dispondo a chorar antecipadamente pelo filme que já nasceu defunto. A canção morreu, diz Chico Buarque há muito tempo, e essas são suas carpideiras, chorando por vício e costume, apenas.

Meus cachorros têm mais dignidade.

Talvez por serem outros os tempos, para mim o filme tinha exatamente quatro momentos razoáveis: a versão mais longa de Dig It, a versão rock de Two of Us, a jam onde cantam Shake, Rattle and Roll, e obviamente o show no telhado. O resto era chato, continuava chato como quando eu era ainda criança. Não entender inglês não contribuía muito para gostar do filme, claro, mas a verdade é que os diálogos melhoram muito pouco a situação.

Let it Be era só um filme ruim. Muito melhor assistir a This is Spinal Tap. Ou mesmo Rockshow.

Ao longo dos anos seguintes assisti ao filme inúmeras vezes. Minha opinião nunca mudou. Em algum momento percebi que ele podia ser visto como uma história de redenção pela música: o começo difícil em Twickenham, a melhora dos ânimos no estúdio da Apple em Saville Row, finalmente o congraçamento do show no telhado. Sempre disse que a percepção do filme seria completamente diferente, não tivessem os Beatles se separado oficialmente um mês antes de seu lançamento.

Também disse que o filme é ruim, malfeito, uma tarefa muito acima da experiência e provavelmente do talento do diretor Michael Lindsay-Hogg — e a maior prova disso é que Let it Be, em sua mediocridade, em sua incompetência, é a única obra pela qual Lindsay-Hogg será lembrado. Era ululantemente óbvio ser possível fazer algo melhor com o material existente.

Com Get Back, Peter Jackson provou que era. E fez pior: lançou luz sobre o papel deletério de Lindsay-Hogg na epopeia de erros que foram a ideia e a execução do Let it Be.

É por isso que soa estranho o seu lançamento agora. Let it Be já estava restaurado há muito tempo, e algumas cenas puderam ser vistas já no Anthology. A restauração agora lançada deve ser outra, com melhores recursos, algo similar ao filme de Peter Jackson. De lá para cá a longa e sinuosa estrada se estendeu muito além do que se podia imaginar, e é por isso que, à primeira vista, parece não fazer sentido o seu lançamento agora, quando ele poderia ter sido parte do grande pacote que incluiu o Get Back e a edição de aniversário do Let it Be em 2021: “Tá aqui um grande documentário, e junto vai essa desgraça para vocês verem a bagaceira que fizeram antes”.

Mas é estranho só à primeira vista. A lógica da Apple é a do caça-níquel, do camelô. Por que lançar tudo junto se vale mais a pena lançar cada parte em separado? Além disso, o Get Back pode ter ajudado a amenizar o efeito depressivo que Let it Be sempre exerce nos seus espectadores, mudando a perspectiva com que se olha para o filme original. Agora podemos olhar para a obra de Lindsay-Hogg como um técnico de laboratório olha para um exame de fezes.

Que o cheiro do parágrafo acima, porém, não seja levado tão a sério. A irritação deste post não é com o filme, que é apenas chato e medíocre e merecia ser obliterado da história em favor do Get Back, como o compacto duplo Magical Mystery Tour original foi substituído pelo álbum americano. O incômodo é com a vulgarização progressiva e agora aparentemente incontrolável de uma obra estelar como a dos Beatles, e com a estupidez crescente do público consumidor. Um fã dos Beatles que ainda não tenha visto o Let it Be é, certamente, um fã novo que não achou que valesse realmente a pena o esforço de busca para assistir ao filme. Pra ele, o lançamento pode significar alguma coisa. Infelizmente, só para ele.

Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

Os que vestem as cuecas por cima das calças

Faz 12 anos que deixei, de uma vez por todas, de comprar revistinhas de super-heróis.

Já tinha deixado antes, várias vezes. Das primeiras por falta de dinheiro, depois porque passava por ciclos de desinteresse e cansaço.

Ainda assim, acompanhei essas revistas com alguma regularidade durante uumas três décadas, mesmo que pulando alguns períodos de quando em vez. Quando comecei a ler as danadas, no início dos anos 80, elas apresentavam em grande parte as histórias do começo dos anos 70, boa parte das quais já publicadas pela EBAL e RGE. Foi a melhor fase do Capitão América — meu primeiro super-herói —, e o início de uma das mais chatas do Homem-Aranha. Stan Lee ainda escrevia muita coisa e era tudo muito repetitivo: o Capitão-América se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada. O Homem Aranha se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada.

Para uma criança de dez anos, era um mundo atraente e com o qual ela podia facilmente se identificar. Larguei aí pelos 13.

Mais tarde, acompanhei a revolução iniciada por “O Cavaleiro das Trevas” e aquelas que se seguiram: Watchmen (a série em quadrinhos mais superestimada da história), “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham”, umas tantas por aí — sem falar no Spirit de Will Eisner — e eu voltei a comprar as revistas mensais.

Mas isso durou pouco tempo. Em 1992 a necessidade de cativar novos leitores fez com que os quadrinhos descambassem por caminhos estranhos. Para mim, o começo do fim se deu com a morte do Super-Homem. Descobriram uma fórmula mágica para conseguir um aumento expressivo de vendas por algum tempo, e dali em diante todos os super-heróis morreriam, real ou figuradamente.

A gota d’água foi quando substituíram o Peter Parker pelo seu clone, numa história impossível para quem tinha lido as histórias originais. Parei de ler as revistas nesse momento, e voltei quando a Abril lançou aquelas edições premium caríssimas. Logo depois a Abril desistiu da Marvel e da DC, e eu desisti também.

Algum tempo depois voltei a comprar as revistas do Batman, porque ele vinha sendo bem tocado. O Homem-Aranha, por sua vez, tinha umas fases razoáveis e outras muito ruins, porque se tornou um personagem convoluto demais, com reviravoltas inacreditáveis demais; mas também voltei a comprar suas revistas algum tempo depois.

Parecia namoro de adolescente, com vaivéns constantes até que se cansa de uma vez. Deixei de comprar as revistinhas definitivamente em 2012, quando me irritei com problemas de distribuição das últimas que ainda comprava — “Batman”, “Homem-Aranha” e “Vertigo” — e acedi ao cansaço que elas já me causavam há algum tempo. Adeus, passem bem.

De lá para cá, de vez em quando batia uma certa saudade das revistinhas de super-herói. Chegava numa banca e me espantava com a abundância delas, títulos e mais títulos que me faziam perguntar onde é que arranjam tantos compradores, afinal. Não faço ideia dos números de circulação; imagino que não se comparam a seu auge na Abril. Mas dia desses percebi que, quarenta anos atrás, havia muito mais personagens à disposição. Cada revista trazia três, quatro personagens diferentes, uma fórmula simples da Abril que tornava suas revistas mais interessantes que as originais americanas. Passei a achar que não estão lendo mais histórias do que eu lia. Apenas estão pagando mais por elas.

Mas de uns dois meses para cá resolvi baixar algumas revistas na internet. Alguns malucos reúnem os lançamentos de cada semana nos Estados Unidos e os disponibilizam nos torrents da vida.

E são coisas tão estranhas para este ancião.

À primeira vista, são mudanças demais. As revistas do Aranha estão ainda mais chatas e confusas para mim. Universos demais para quem não consegue lidar sequer com um. Mary Jane Watson está casada com outro sujeito? Otto Octavius virou o Homem-Aranha? É complicação em excesso, e algo que me parece uma bagunça dos alicerces originais sobre os quais se construíram esses personagens. É como os X-Men tivessem contaminado todo o universo Marvel, e ele não ficou melhor por isso. O Batman me parece um pouco melhor, porque seu filho é um personagem bem interessante e atualiza a dinâmica da dupla dinâmica, se perdoam isso que acabei de escrever.

É claro que sei que aqueles que acompanham essas revistas devem pensar diferente de mim. Que tudo para eles faz sentido, e suas sensibilidades são diferentes da minha. Pode ser, estou pouco me lixando. A verdade é que não consigo mais ler essas revistas. Passo os olhos, leio apenas algumas partes de cada uma delas.

Percebi que super-heróis já não me interessam, de nenhuma forma. Mas ainda me interesso por Bruce Wayne, Peter Parker, Steve Rogers.

É assim que leio essas revistinhas hoje, sempre que lembro de baixá-las: pulando as partes em que seres improváveis combatem o mal dando murros e pontapés, como faziam para as crianças de quase 100 anos atrás, e tentando acompanhar a vida privada de personagens fictícios que conheço há décadas demais para contar. O que transformou os super-heróis nos quadrinhos em algo um pouco mais que entretenimento para crianças, a ser abandonado a partir da primeira mão num peitinho, foi justamente a percepção que ainda mais importante que os poderes ou as peripécias ou a simples porradaria de sujeitos vestidos de maneira improvável eram os problemas do cotidiano que suas identidades civis poderiam ter. Foi essa a grande revolução que a Marvel protagonizou no início dos anos 60. Era Peter Parker, estúpido.

De onde vêm as palavras

Eu menti. Menti descaradamente, mas peço perdão porque não foi intencional.

Alguns anos atrás, respondendo a um comentário do Serge, falei que os quadrinhos Disney não foram importantes para o desenvolvimento do meu vocabulário.

Eu realmente acreditava nisso. Mas depois que escrevi me peguei pensando nas revistinhas que li quando tinha 6, 10 anos. E aí lembrei dos vândalos.

Passei anos tentando descobrir em que revista eu tinha lido uma certa história do Zé Carioca. Nela o Zé, em um dos quadrinhos, olha para uma porção de colcheias e semicolcheias caindo do céu porque um pandeiro mágico fora destruído, enquanto o inventor do instrumento, fora de quadro, grita: “Vândalos!”

Foi na Disney Especial “Os Mágicos”, de maio de 1979, e se chamava “O Pandeiro Mágico”. A partir do dia em que li essa história, e por um bom tempo, imaginei que vândalos fossem aquilo, aquelas figuras de notação musical.

Lembrando disso percebi que ao menos uma base do que entendo do mundo aprendi naquelas revistinhas, principalmente nas histórias escritas por Carl Barks. Até hoje, por exemplo, se imagino um país longínquo penso que o seu nome termina em “-istão”, porque o Tio Patinhas e os sobrinhos sempre precisavam resolver problemas e roubar tesouros em cusdemundo como Longistão ou coisa parecida.

“Expediente”, por exemplo — no sentido de lista de funcionários —, é palavra que aprendi também lendo as Disney Especial.

Durante anos achei que “dervixe” era outra dessas palavras, mas há pouco finalmente achei a história em que os tinha visto — e nela a palavra dervixe não era usada, e sim acrobatas; o que mostra um aspecto ainda mais curioso, aquele em que a imagem é tão forte que quando você descobre a palavra que a define automaticamente a associa a ela.

Essas são as de que lembro agora, sem pensar muito. Não faço ideia de todas as que aprendi naquelas revistinhas — ah, lembrei de outra, “cosmonauta” —, porque revistas não têm o caráter de permanência dos livros.

O meu problema, o que me faz desprezar tão injustamente as revistas em quadrinhos, é que ao mesmo tempo em que as lia, também lia outros tipos de livros, como a tal “Clássicos da Literatura Juvenil” de que já cansei de falar aqui. E lia também os livros do meu pai, com preferência para os policiais da Colecção Vampiro. Além disso, depois que ficou fácil achar essas revistas digitalizadas, reli várias delas e a verdade é que lembrava de muito poucas histórias, e por associação achei que não aprendi tanta coisa assim.

Claro que nem tudo era essa maravilha de que lembro e falo, e eu certamente tinha dificuldades para entender grande parte do humor e da ironia, e levei a sério demais livros como “As Aventuras de Huck”, embora mesmo depois de ler o original não consiga concordar com Hemingway, que dizia ser esse livro o ponto de partida da literatura americana. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que acabei por menosprezar a importância daquelas revistinhas porque não consegui resolver uma dicotomia curiosa: nas últimas décadas, uma progressiva estupidificação cultural mundial se esforça para elevar os quadrinhos a um patamar literário imerecido, o que me incomoda porque, no exagero contrário, nunca achei que sequer chegassem perto de literatura séria.

No fim das contas, o fato é que eu lembrei dos vândalos, mas não posso fazer ideia de todas as palavras que aprendi naquelas revistas, de lugares do mundo reais ou imaginários. Devo mais a elas do que consigo imaginar. E isso nem sempre é bom: se você quer me enrolar, é só me falar de um país qualquer cujo nome termine com “-istão”. Eu vou acreditar que ele existe.

A volta do Zé Carioca

Nem li ainda, porque as revistas Disney publicadas pela Culturama, apesar de toda a conversa sobre “distribuição revolucionária” que cercou seu lançamento, não chegam a Aracaju. Mas vi em algum lugar que já há alguns anos voltaram a ser publicadas as estórias do Zé Carioca, e isso encheu o meu coração, sempre tão triste, de alegria.

Outro motivo de alegria é que fico sabendo também que redesenharam mais uma vez o figurino do Zé.

O Zé Carioca original era o típico malandro dos anos 30. Terno, chapéu palheta, gravata borboleta, guarda-chuva em pleno sol fluminense, como bom arremedo de lordes ingleses que eram e continuam sendo os brasileiros. O Zé Carioca era um 171, uma espécie de Afonso Coelho inofensivo, sempre aplicando pequenos golpes num tempo em que malandragem não era essa bandidagem carioca barra-pesada que acabou nos dando Bolsonaro.

Décadas mais tarde, colocaram o Zé numa camiseta branca. Não foi das piores transformações, mas a roupa faz o homem, e não à toa o Zé Carioca foi se transformando de vigarista clássico em apenas um boa-vida cada vez mais caricato, que odeia a simples ideia de trabalho. Achei um erro, que já escrevi aqui nos primórdios do blog: para o Zé Carioca, a roupa era um instrumento de mistificação e de ascensão social.

Finalmente, nos anos 90 transformaram-no na versão em quadrinhos de Claudinho e Buchecha. Velho conservador e reacionário que sou, protestei contra isso, mesmo achando que entendia a razão: uma maior identificação do Zé com a juventude atual, que nesse meio-tempo adquiriu protagonismo e poder de mercado, e correspondia à afirmação da comunidade que só queria ser feliz, andar tranquilamente na favela em que “naisci”. Era uma opção válida, embora não custe lembrar que as pessoas não pararam de dar golpes e que o Zé, antes de tudo, queria era sair do morro e morar com a Rosinha na mansão do Rocha Vaz.

De qualquer forma, hoje entendo que podia ser muito pior. Por sorte não acompanharam a transformação estética do personagem com uma mudança adequada e fidedigna de caráter. Ia ser estranho ver um Zé Carioca evangélico, carregando um AR-15 e gritando “nóis é cria”.

Agora leio que o Zé Carioca volta usando camiseta, sim, mas também um chapéu panamá. E é esse pequeno detalhe que me deixa feliz, porque mostraram que entendem um pouco melhor o Zé, sabem o que é o personagem. Não é mais o estelionatário boa-praça de 1942, e nunca voltará a ser; mas também não é mais o dançarino de baile funk, e isso acalma meus preconceitos, aquele mínimo de rigor histórico que ainda tenho, e me reconforta.

Em parte, isso acontece porque, de certa forma, vivemos a era da pós-malandragem. Ela perdeu muito de sua mística quando descobrimos como é na realidade. Não é preciso lembrar de Chico Buarque indo à Lapa para saber que aquela tal malandragem não existe mais. O malandro comum de hoje vira coach, vira pastor evangélico, aposta em esquemas de day trade, vira cabo eleitoral em eleição municipal. Malandro que aplica golpes no Mercado Livre ou OLX, tira dinheiro de velhinhas com cartões de crédito ou dá uns tapas no velhinho que acabou de pegar sua aposentadoria na saída da Caixa Econômica perdeu o direito de ser chamado de malandro, é bandido. Ninguém gosta de bandido.

Mas há algo na malandragem do Zé Carioca que permanece, e deve permanecer. É a malandragem no limite do inofensivo, quase uma tradução de uma certa joie de vivre talvez anacrônica, e de certa forma uma antítese do viralatismo agudo que nos assola já há alguns anos.

E essa malandragem talvez possa ser simbolizada pelo chapéu panamá, um detalhe bobo mas significativo. É quase como se um velho amigo estivesse voltando e, ao chegar, pendurasse o chapéu na porta.

A Vingança do Bastardo

Uma das coisas que escrevi neste blog e de que mais gosto são as “Notícias do .cu”.

Os posts nasceram como uma sacanagem. O Alex foi para Cuba e deixou seu blog aos encargos de alguns amigos, eu entre eles. Eu sou um péssimo amigo, e decidi publicar uns emails que ele teria me mandado. Eu publicava os posts no Liberal Libertário Libertino e, um dia depois, republicava no meu, porque gostei muito do resultado e não tinha certeza de que o Alex não os apagaria quando os visse — eu, pelo menos, faria isso e ainda contrataria uns três cabras bons de peixeira para irem atrás de mim. Ele não apagou, até hoje não sei como deixou aquilo no ar. Mas fez pior: pouco depois fechou o blog e os textos desapareceram.

Durante um bom tempo considerei transformar aqueles quatro posts em uma novela de suas 100 páginas, que seria lançada em 2009 numa “Edição Comemorativa do Cinquentenário da Revolução Cubana”. Cheguei a escrever o primeiro capítulo (porque seria uma novela com capítulos com títulos como “De como Alex Castro foi parar em Cuba em um avião da Aerolíneas José Martí”) com aeromoças cubanas escondendo muamba embaixo da saia e fazendo safadezas pagas com passageiros nos banheiros do avião, e comecei a escrever um capítulo avulso narrado pelo Oliver, o cachorro do Alex, boiando no Golfo do México e refletindo sobre a existência até se reencontrar com seu dono nas areias de Monterey.

Mas alguns fatores impediram que eu continuasse. O primeiro, claro, foi a preguiça, que eu sou baiano e esse negócio de escrever livro rouba o tempo necessário à rede e à contemplação inútil. Segundo, nunca cheguei a uma conclusão sobre o que fazer com o espanhol e o portunhol utilizados nos diálogos. Terceiro, fazer as piadas que eu queria, pegar ofensas hoje em dia vistas como, ahn, ofensas e transformá-las em algo que não me gerasse processos ou encheção de saco do pessoal que me detestava iria dar trabalho e seria uma capitulação a uma ordem das coisas que acho deletéria. Finalmente, o Alex se recusou a posar para a foto que ilustraria a capa vermelha do livro, igual ao Che Guevara na foto do Alberto Korda; ia avançada a transição do Xandelon para o guru zen que é hoje.

O tempo passou, a mulher do Raul morreu como antecipei nos posts, Fidel morreu e a revolução caminha para um lanche no McDonald’s, se um dia o bloqueio americano for suspenso. As “Notícias do .cu” perderam, se não o sentido, a atualidade. É, provavelmente, a única oportunidade que lamento ter perdido neste blog. E a recusa do Alex me dá a desculpa de que preciso, e vou morrer dizendo que não escrevi o livro porque aquele filho da puta se recusou a posar para a foto.

Havia um detalhe pequeno e curioso em tudo isso, no entanto. Na época, o Alex foi o único a perceber o tanto que aqueles posts deviam a algo que tinha sido publicado uns 20 anos antes.

Ele estava parcialmente certo. Na verdade, as “Notícias do .cu” derivavam diretamente do “Diário do Rio”, por sua vez inspirado no “24 Horas de Le Mãos na Cabeça” do Bia; mas no fundo só existiam porque, mais de 20 anos antes, eu tinha lido “A Vingança do Bastardo”.

Publicado em folhetim, um capítulo por mês, no Planeta Diário, “A Vingança do Bastardo” foi uma das poucas coisas boas que o Rio de Janeiro dos anos 80 legou à humanidade. O Planeta era um jornal fantástico, mui digno sucessor de um Pasquim que depois de triste agonia naquele momento respirava por aparelhos, morte cerebral já decretada. Era também muito superior à sua contemporânea e conterrânea Casseta Popular.

Tenho quase certeza de que foi no final de 1985 que comprei o meu primeiro exemplar. Comecei a ler na casa de minha avó, e em pouco tempo ela veio me perguntar por que eu estava gargalhando histericamente daquele jeito.

Inesquecível, por exemplo, é uma matéria sobre os diversos graus de classificação de mulher feia: mocreia, urutau, flemba, e o mais baixo de todos, IPB — Indivíduo Portador de Boceta, não chega a ser mulher.

Mas nada superava o folhetim que eles publicavam então. Era escrito por uma senhora circunspecta, devassa e peidona chamada Eleonora V. Vorsky; apesar do nome de marafona russa, esse era apenas o nome de guerra de Alexandre Machado, que depois escreveria coisas como “Os Normais” para a TV Globo e, en passant, ganharia um Grand Clio. Em 1987 o folhetim foi publicado em livro, e trazia inteiramente grátis o capítulo final.

“A Vingança do Bastardo” foi o livro mais engraçado, mais alucinado, mais demente que li em toda a minha vida, e olha que eu não li tão pouco assim. Do começo ao fim, é basicamente uma enxurrada de referências da cultura pop carioca e mundial dos anos 60, 70 e 80 emaranhadas numa trama que às vezes parece se perder, mas sempre descobre uma saída inusitada — e sempre a mesma, um deus ex-machina imprevisível que tira nossos anti-heróis de uma frigideira para colocá-los no fogo. E só quem estava vivo nos anos 80 entende, por exemplo, a última coisa escrita no livro: “Favor rebobinar a fita”, uma última piada pythoniana.

Emprestei o livro a uma colega de escola e nunca mais o vi. Durante mais de 20 anos, sonhei com o dia em que colocaria novamente minhas mãos sobre um exemplar, sem nenhum sucesso. Mas aí por 2010 dobrei a Nelson Mandela para pegar o metrô e, numa banca de usados, lá estava ele. Eu reconheceria aquela capa em qualquer lugar do mundo. Custou bem barato; aliás, podia custar cem, mil reais que ainda assim seria barato— porra nenhuma, é mentira, vá roubar a vagabunda da tua mãe. Mas custou barato e quase 20 anos depois eu conseguia reler um dos livros mais fantásticos que já li em toda a minha vida.

Minha opinião não mudou em todas essas décadas. Enquanto relia o livro, o deslumbramento e as gargalhadas voltavam diante da total ausência de senso de ridículo, as referências absurdas ao que circulava no ar na época: Kurt Waldheim, Aids, até o Tutty Vasques.

Tem como esquecer a imagem de um Simon Wisenthal balofo — demorou anos até eu descobrir que Wisenthal era magérrimo — correndo atrás de um avião enquanto tenta achar sob a banha o próprio pinto para provar que era judeu? Ou um Khadaffi aos beijos tórridos com o Primo Levi? Ou o Nacional Kid espancado pelos detetives-mirins que comia durante o recreio? Ou a jeba descomunal de Kowalski? Ou a confusão entre Frederic, o escarrador do molho curry, e Frederic, o punheteiro do molho branco? Ou ainda o Thomas Green Morton fazendo os peitões da Prima Roshana murcharem até parecerem um maracujá de gaveta? Ou os três reis magos peladões que trazem ouro, incenso e — como é mesmo o nome daquela porrinha?

Tem não.

Peguei novamente o livro dia desses. Ainda gargalho com ele. Mas ao fim da leitura, e diante da impossibilidade de rebobinar a fita, fica uma sensação meio melancólica.

Porque o livro não seria escrito hoje. Já em seu primeiro parágrafo estaria em dificuldades — porque, como diz o Primo Levi, a cela onde ele estava condenado a passar os próximos 212 anos era de um escuro úmido e umbroso, e o nome do escuro era Waltencir com suas crises de flatulência. E cada piada, cada reviravolta na trama, mesmo a coleção de porcarias do primo Janus, nada ficaria a salvo, porque se não ofende um, ofende outro, até o mau gosto causa desgosto, hoje em dia, e mais de um zelote puritano e imbecil zurraria sua indignação, no que seria acompanhado pelo resto do seu pedaço de rebanho.

A tragédia deste século XXI é que nos tornamos mais intolerantes com símbolos do que com a realidade. Isso diz tão mal de nós, mas a realidade é ainda pior, porque ninguém liga. 36 anos depois que “A Vingança do Bastardo” descobriu a cura da Aids através de um singelo tomar no cu, regredimos. Não apenas ficamos mais chatos, e não é só porque as sensibilidades se tornaram mais puritanas. No século XXI se tornou impossível rir sem culpa, e um mundo que lhe proíbe de perceber o ridículo da vida tem problemas sérios demais, que nem mesmo “A Vingança do Bastardo” poderia resolver.

Duas autobiografias

Ganhei o livro de memórias do Washington Olivetto. E comprei o primeiro volume da autobiografia do Jô Soares quando o preço baixou, antes que ele morresse. Agora espero o preço do segundo baixar para comprar também; é sempre assim com esses livros de tiragem grande, editados em papel grosso e letras grandes que os tornam mais volumosos e atraentes para compradores, porque aos olhos das pessoas — e talvez aos do leitor — fazem uma novelinha de Schnitzler parecer “Guerra e Paz” na estante.

Um tempo atrás fiz um post sobre o livro do Olivetto, que acabou se transformando numa espécie de defesa do sujeito diante de um artigo vitriólico do Mario Sergio Conti. Eu tinha folheado o livro e, embora tivesse me parecido cabotino, além do limite da chatice, não achei que era motivo para tanto ódio.

É nisso que dá escrever sobre as coisas sem ler. Porque se eu tivesse lido “Direto de Washington” inteiro não teria escrito nada, teria dado razão a Conti, ou teria dito que ainda era pouco, teria gritado que era para derrubar no chão e chutar a cara.

Já li alguns livros de publicitários. Todos eles são, claro, em algum nível, o exercício de uma vaidade. Mas para a maioria, era também uma forma de exercer o seu trabalho, de conquistar mais clientes para sua agência, e por isso tinham, sempre, alguma utilidade para os seus leitores além da mera leitura.

É verdade que eles falam de um tempo que passou, e entre o mundo dos Mad Men e este, em que meninos recém-saídos de faculdades escrevem legendas de fotos no Instagram sem sequer saber usar o diacho de uma crase, há uma distância maior do que houve entre a DDB dos anos 60 e uma agenciazinha qualquer em Macapá. Mas em todos eles consegui aprender alguma coisa, porque seus autores conseguiam pensar além de si mesmos, e tinham ideia do que poderia ser o seu lado à posteridade. Do gigantesco Ogilvy on Advertising ao livro do Periscinotto, do “Fazer Acontecer” do Júlio Ribeiro ao excelente “E o Outro Vacilou” do Roger Enrico, todos eles tentavam explicar alguma coisa, ao menos mostrar o que pensavam sobre o seu ofício.

O livro do Olivetto é o único em que não consegui aprender nada. Ou melhor: a única coisa que aprendi, graças a essa vaidade que chega a parecer patológica, é que ele se tornou apenas um velho ultrapassado que abdicou da dignidade que a história reserva àqueles que marcaram seu tempo, ao cometer a desídia de não perceber a hora de se calar.

Parar no tempo não é pecado — é até uma conquista, o direito de pouco se lixar para o mundo em volta porque você não precisa mais dele, a retirada graciosa da corrida de ratos. Pecado é querer ser relevante de qualquer forma, é uma velha bêbada vestida de menina rebolando uma bunda murcha às quatro da manhã. O livro de Olivetto talvez fizesse sentido 40 anos atrás, quando ele precisava vender sua imagem para conquistar clientes. Hoje, é apenas um taramelear meio caduco de alguém que continua repetindo o que dizia há 40 anos, sem perceber que o mundo em volta dele mudou.

É uma sina triste, essa a que Olivetto se condenou. Ninguém questiona o seu papel na história da publicidade brasileira. Mas boa publicidade é quase tão efêmera quanto um bom artigo de jornal; e a chance que ele teria de passar à posteridade foi desperdiçada em um livro que não deixa nada para ela, apenas a repetição ridícula da própria crença em um brilhantismo passado que a repetição constante barateou demais.

* * *

Em compensação, que delícia é “O Livro de Jô”, ou pelo menos o primeiro volume.

Menos que uma autobiografia no sentido clássico, o livro é quase uma coleção de histórias acumuladas por Jô Soares ao longo de 60 anos. Jô Soares tem uma memória impressionante, e fez parte da ribalta durante mais de meio século. Acima de tudo, ele sabe como contar uma história, sabe qual o interesse que cada uma delas pode despertar.

O resultado é um livro agradabilíssimo, informativo, especialmente para quem gosta da história do show business nacional dos últimos 70 anos.

“O Livro do Jô” é quase uma conversa numa sala de estar entre amigos que se conhecem há muito tempo. Assim como foi em seu programa de entrevistas, Jô Soares era um entertainer por vocação e talento. Anedotas, lembranças de um tempo que passou, tudo isso faz do livro leitura agradabilíssima, talvez até necessária.

Mas curiosamente, o livro se revela insuficiente. E o que falta é, de certa forma, o próprio Jô Soares.

Li o livro há algumas semanas sem saber nada sobre ele, e fiquei me perguntando o que o Matinas Suzuki fazia ali, já que um escritor tarimbado e produtivo como Jô Soares não tinha necessidade de um ghost writer. Intuí que o livro tinha sido escrito a partir de conversas entre os dois, organizadas pelo Suzuki e passando pela edição final do Jô. Foi isso que aconteceu, e talvez essa seja a grande fraqueza do livro.

Uma coisa é o que um autor escreve sozinho, diante da tela em branco de um computador e tendo ao lado os seus fantasmas. Ali ele pode investigar sua vida, entender algumas coisas, reavaliar outra. Mas além disso, sozinho, ele pode ser absolutamente sincero, se esse é o seu objetivo. Outra coisa, totalmente diferente, é o resultado de conversas, quando você tem que dizer a verdade a alguém que está olhando em seus olhos. Nessas horas a sinceridade encontra fácil os seus limites. Sozinho, o memorialista se vê tentado a revelar tudo: suas conquistas e seus fracassos, seus medos e fraquezas. Mas numa conversa com outa pessoa é quase inevitável que alguém como Jô Soares se restrinja ao que é mais interessante, mais agradável, dentro da perspectiva do entertainer.

E por isso a sensação, talvez injusta, é a de que falta franqueza a “O Livro do Jô”. É como se fôssemos expostos apenas à face pública de Jô Soares. Por exemplo, sabemos que seu pai mexia com câmbio, mas como quebrou? O que fez depois para ganhar a vida? São informações importantes. Eu gostaria de saber, por exemplo, como era ser um menino gordo rico na Suíça, num tempo em que a obesidade era exceção, e não a regra. Como eram os namoros na escola de muito ricos que frequentou? Ela parece ter sido um paraíso. Nenhuma escola o é. Ele sempre fez questão de dizer que a gordura não o atrapalhou em nada — e isso é mentira. O que se poderia esperar do livro é que nele, finalmente, Jô Soares enfrentasse os seus fantasmas.

Há, aqui e ali, algumas pistas. Ao se apaixonar pela sua primeira esposa e mãe do seu filho, ele se pergunta por que uma mulher como aquela estaria dando corda a um rapaz gordo. Além disso, a única referência a sexo é a lembrança do dia em que foi pego se masturbando. Isso é o menos interessante em um sujeito que viveu cercado de mulheres lindíssimas. Como se fazia sexo naquele meio artístico dos anos 50 e 60? Ele não precisa dar nomes — ele graças a Deus é elegante demais para isso —, mas podia falar, afinal, de quem comeu. Eu, pelo menos, não castiguei tanto Proust assim para me contentar em sentar olimpicamente acima dessas baixarias.

Essa, no entanto, é uma reclamação injusta. Uma das coisas que salta aos olhos é o respeito com que Jô Soares trata das vidas das pessoas que passaram pelo seu tempo. É uma elegância, quase pudor, que é praticamente a marca registrada desse livro e que faz falta hoje em dia, num tempo em que autobiografias cada vez mais se assemelham a relatórios ginecológicos ou conversas de banheiro, e em que pessoas públicas escancaram suas vidas privadas de uma maneira que tem algo de desesperado, de agoniado. Sabemos do Jô Soares aquilo que ele, judiciosamente, quer que os outros saibam, e o seu critério é o do interesse geral. E não se pode querer mais que isso.