Disquinho

Descobri dia desses que tenho mais historinhas da Disquinho do que imaginava. Achei na internet, baixei inclusive muitas que não conhecia, e esqueci, porque isso não é mais coisa para ouvir, mas sim para saber que se pode ouvir na hora que quiser.

As histórias da Disquinho são histórias infantis e de ninar clássicas, editadas a partir do início dos anos 60 em compactos sob a direção de João de Barro, pseudônimo de Braguinha.

Todo mundo na faixa dos 50 para cima lembra de pelo menos algumas dessas histórias. E como boa parte delas foi relançada em CD no início dos anos 2000, um bocado de gente na faixa dos 20 lembra também, porque pais e mães insistem em acreditar que seus filhos vão gostar das mesmas bobagens de que eles gostavam em seu tempo, tolos que são.

Para mim, que passei a infância indo dormir com elas recontadas pela minha mãe, essas histórias são especiais. Nunca esqueci de muitas delas: “A História da Baratinha”, “O Soldadinho de Chumbo”, “O Patinho Feio” — não apenas das histórias, mas também de cada canção, das mais tristes (“Vou-me embora pra bem longe/Essa é a triste verdade/Talvez algum dia encontre/A paz e a felicidade”) às mais engraçadas (“Sai daí, sapo danado/Sapo velho cururu/Sapo não vai para o céu/Na viola de urubu/Vou jogar você lá embaixo/(Tá errado, seu doutor)/Desta vez eu te esborracho/(Tá errado, sim senhor)/Mas agora eu te perdoo/Bicho feio da lagoa/Só pra ver no fim da festa/Como é que sapo voa”)

Mais tarde, eu contaria boa parte delas para a minha filha. A preferida era a “História da Baratinha”, porque podia ser aumentada a critério do sono da freguesa.

No original, apenas uns poucos animais passam e assustam a senhora dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Mas na labuta de jogar uma criança nos braços de Morfeu nenhum bicho é demais, e então a noite via um desfilar de bichos de todos os quadrantes na porta de dona Baratinha, moça séria que só queria casar. Para isso aprendi que águias crocitam, crocodilos bramem, pardais pipilam, capivaras assoviam.

Percebi também que se você não sabe que som o diabo de um bicho faz, você pode inventar qualquer coisa que uma criança não vai lhe corrigir — mas se ainda lhe resta um pingo de decência nessa alma apodrecida pelo sono, é recomendável aprender para contar certo no dia seguinte.

Dona Canô

Uma entrevista de Maria Bethânia ao Pasquim, agora disponível na hemeroteca da Biblioteca Nacional, traz duas coisas curiosas, que saltam aos olhos.

A primeira é a relutância de Bethânia em fazer elogios ou críticas a Gal Costa — ela insiste em não cair na pressão dos jornalistas e se limita a dizer que Gal é uma cantora “moderna”. Eram outros tempos, mais de cinquenta anos atrás, e o que se depreende disso é que Bethânia via Gal como uma concorrente, num tempo em que nenhuma das duas ainda tinha se firmado como um grande nome da música mercado. E, dependendo do olhar sobre a sua atitude e o próprio significado da palavra “moderna”, conclui-se também que Bethânia não era particularmente fã do estilo de Gal, talvez até se julgando superior em estilo e em repertório.

A outra coisa, e essa é mais interessante, é a importância de seu pai no imaginário e nas relações de hierarquia da família.

Dona Canô já entrou para a história como a grande matriarca dos Velloso, a figura central da família. A impressão que se tem hoje — me corrija se eu estiver errado — é que aquela família existia em função da grande senhora, que ela era assumia o papel de líder da casa, o esteio sobre o qual se instituiu uma família com importância incomparável na evolução da cultura nacional.

Não é o que se vê na entrevista. Ali está claro que a família girava em torno do pai, ele era o grande referencial da família. É dele que Bethânia fala, não é da mãe.

Mas ele morreria logo e, dos anos 70 em diante, quando os Velloso de Santo Amaro da Purificação ganharam o país e o mundo, Dona Canô se tornou a grande matriarca da família, e essa é a versão que vai ser contada.

Moral: a História se constrói do fim para o começo.

Os que vestem as cuecas por cima das calças

Faz 12 anos que deixei, de uma vez por todas, de comprar revistinhas de super-heróis.

Já tinha deixado antes, várias vezes. Das primeiras por falta de dinheiro, depois porque passava por ciclos de desinteresse e cansaço.

Ainda assim, acompanhei essas revistas com alguma regularidade durante uumas três décadas, mesmo que pulando alguns períodos de quando em vez. Quando comecei a ler as danadas, no início dos anos 80, elas apresentavam em grande parte as histórias do começo dos anos 70, boa parte das quais já publicadas pela EBAL e RGE. Foi a melhor fase do Capitão América — meu primeiro super-herói —, e o início de uma das mais chatas do Homem-Aranha. Stan Lee ainda escrevia muita coisa e era tudo muito repetitivo: o Capitão-América se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada. O Homem Aranha se sentia deslocado no mundo e tinha problemas com a namorada.

Para uma criança de dez anos, era um mundo atraente e com o qual ela podia facilmente se identificar. Larguei aí pelos 13.

Mais tarde, acompanhei a revolução iniciada por “O Cavaleiro das Trevas” e aquelas que se seguiram: Watchmen (a série em quadrinhos mais superestimada da história), “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham”, umas tantas por aí — sem falar no Spirit de Will Eisner — e eu voltei a comprar as revistas mensais.

Mas isso durou pouco tempo. Em 1992 a necessidade de cativar novos leitores fez com que os quadrinhos descambassem por caminhos estranhos. Para mim, o começo do fim se deu com a morte do Super-Homem. Descobriram uma fórmula mágica para conseguir um aumento expressivo de vendas por algum tempo, e dali em diante todos os super-heróis morreriam, real ou figuradamente.

A gota d’água foi quando substituíram o Peter Parker pelo seu clone, numa história impossível para quem tinha lido as histórias originais. Parei de ler as revistas nesse momento, e voltei quando a Abril lançou aquelas edições premium caríssimas. Logo depois a Abril desistiu da Marvel e da DC, e eu desisti também.

Algum tempo depois voltei a comprar as revistas do Batman, porque ele vinha sendo bem tocado. O Homem-Aranha, por sua vez, tinha umas fases razoáveis e outras muito ruins, porque se tornou um personagem convoluto demais, com reviravoltas inacreditáveis demais; mas também voltei a comprar suas revistas algum tempo depois.

Parecia namoro de adolescente, com vaivéns constantes até que se cansa de uma vez. Deixei de comprar as revistinhas definitivamente em 2012, quando me irritei com problemas de distribuição das últimas que ainda comprava — “Batman”, “Homem-Aranha” e “Vertigo” — e acedi ao cansaço que elas já me causavam há algum tempo. Adeus, passem bem.

De lá para cá, de vez em quando batia uma certa saudade das revistinhas de super-herói. Chegava numa banca e me espantava com a abundância delas, títulos e mais títulos que me faziam perguntar onde é que arranjam tantos compradores, afinal. Não faço ideia dos números de circulação; imagino que não se comparam a seu auge na Abril. Mas dia desses percebi que, quarenta anos atrás, havia muito mais personagens à disposição. Cada revista trazia três, quatro personagens diferentes, uma fórmula simples da Abril que tornava suas revistas mais interessantes que as originais americanas. Passei a achar que não estão lendo mais histórias do que eu lia. Apenas estão pagando mais por elas.

Mas de uns dois meses para cá resolvi baixar algumas revistas na internet. Alguns malucos reúnem os lançamentos de cada semana nos Estados Unidos e os disponibilizam nos torrents da vida.

E são coisas tão estranhas para este ancião.

À primeira vista, são mudanças demais. As revistas do Aranha estão ainda mais chatas e confusas para mim. Universos demais para quem não consegue lidar sequer com um. Mary Jane Watson está casada com outro sujeito? Otto Octavius virou o Homem-Aranha? É complicação em excesso, e algo que me parece uma bagunça dos alicerces originais sobre os quais se construíram esses personagens. É como os X-Men tivessem contaminado todo o universo Marvel, e ele não ficou melhor por isso. O Batman me parece um pouco melhor, porque seu filho é um personagem bem interessante e atualiza a dinâmica da dupla dinâmica, se perdoam isso que acabei de escrever.

É claro que sei que aqueles que acompanham essas revistas devem pensar diferente de mim. Que tudo para eles faz sentido, e suas sensibilidades são diferentes da minha. Pode ser, estou pouco me lixando. A verdade é que não consigo mais ler essas revistas. Passo os olhos, leio apenas algumas partes de cada uma delas.

Percebi que super-heróis já não me interessam, de nenhuma forma. Mas ainda me interesso por Bruce Wayne, Peter Parker, Steve Rogers.

É assim que leio essas revistinhas hoje, sempre que lembro de baixá-las: pulando as partes em que seres improváveis combatem o mal dando murros e pontapés, como faziam para as crianças de quase 100 anos atrás, e tentando acompanhar a vida privada de personagens fictícios que conheço há décadas demais para contar. O que transformou os super-heróis nos quadrinhos em algo um pouco mais que entretenimento para crianças, a ser abandonado a partir da primeira mão num peitinho, foi justamente a percepção que ainda mais importante que os poderes ou as peripécias ou a simples porradaria de sujeitos vestidos de maneira improvável eram os problemas do cotidiano que suas identidades civis poderiam ter. Foi essa a grande revolução que a Marvel protagonizou no início dos anos 60. Era Peter Parker, estúpido.

De onde vêm as palavras

Eu menti. Menti descaradamente, mas peço perdão porque não foi intencional.

Alguns anos atrás, respondendo a um comentário do Serge, falei que os quadrinhos Disney não foram importantes para o desenvolvimento do meu vocabulário.

Eu realmente acreditava nisso. Mas depois que escrevi me peguei pensando nas revistinhas que li quando tinha 6, 10 anos. E aí lembrei dos vândalos.

Passei anos tentando descobrir em que revista eu tinha lido uma certa história do Zé Carioca. Nela o Zé, em um dos quadrinhos, olha para uma porção de colcheias e semicolcheias caindo do céu porque um pandeiro mágico fora destruído, enquanto o inventor do instrumento, fora de quadro, grita: “Vândalos!”

Foi na Disney Especial “Os Mágicos”, de maio de 1979, e se chamava “O Pandeiro Mágico”. A partir do dia em que li essa história, e por um bom tempo, imaginei que vândalos fossem aquilo, aquelas figuras de notação musical.

Lembrando disso percebi que ao menos uma base do que entendo do mundo aprendi naquelas revistinhas, principalmente nas histórias escritas por Carl Barks. Até hoje, por exemplo, se imagino um país longínquo penso que o seu nome termina em “-istão”, porque o Tio Patinhas e os sobrinhos sempre precisavam resolver problemas e roubar tesouros em cusdemundo como Longistão ou coisa parecida.

“Expediente”, por exemplo — no sentido de lista de funcionários —, é palavra que aprendi também lendo as Disney Especial.

Durante anos achei que “dervixe” era outra dessas palavras, mas há pouco finalmente achei a história em que os tinha visto — e nela a palavra dervixe não era usada, e sim acrobatas; o que mostra um aspecto ainda mais curioso, aquele em que a imagem é tão forte que quando você descobre a palavra que a define automaticamente a associa a ela.

Essas são as de que lembro agora, sem pensar muito. Não faço ideia de todas as que aprendi naquelas revistinhas — ah, lembrei de outra, “cosmonauta” —, porque revistas não têm o caráter de permanência dos livros.

O meu problema, o que me faz desprezar tão injustamente as revistas em quadrinhos, é que ao mesmo tempo em que as lia, também lia outros tipos de livros, como a tal “Clássicos da Literatura Juvenil” de que já cansei de falar aqui. E lia também os livros do meu pai, com preferência para os policiais da Colecção Vampiro. Além disso, depois que ficou fácil achar essas revistas digitalizadas, reli várias delas e a verdade é que lembrava de muito poucas histórias, e por associação achei que não aprendi tanta coisa assim.

Claro que nem tudo era essa maravilha de que lembro e falo, e eu certamente tinha dificuldades para entender grande parte do humor e da ironia, e levei a sério demais livros como “As Aventuras de Huck”, embora mesmo depois de ler o original não consiga concordar com Hemingway, que dizia ser esse livro o ponto de partida da literatura americana. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que acabei por menosprezar a importância daquelas revistinhas porque não consegui resolver uma dicotomia curiosa: nas últimas décadas, uma progressiva estupidificação cultural mundial se esforça para elevar os quadrinhos a um patamar literário imerecido, o que me incomoda porque, no exagero contrário, nunca achei que sequer chegassem perto de literatura séria.

No fim das contas, o fato é que eu lembrei dos vândalos, mas não posso fazer ideia de todas as palavras que aprendi naquelas revistas, de lugares do mundo reais ou imaginários. Devo mais a elas do que consigo imaginar. E isso nem sempre é bom: se você quer me enrolar, é só me falar de um país qualquer cujo nome termine com “-istão”. Eu vou acreditar que ele existe.

A volta do Zé Carioca

Nem li ainda, porque as revistas Disney publicadas pela Culturama, apesar de toda a conversa sobre “distribuição revolucionária” que cercou seu lançamento, não chegam a Aracaju. Mas vi em algum lugar que já há alguns anos voltaram a ser publicadas as estórias do Zé Carioca, e isso encheu o meu coração, sempre tão triste, de alegria.

Outro motivo de alegria é que fico sabendo também que redesenharam mais uma vez o figurino do Zé.

O Zé Carioca original era o típico malandro dos anos 30. Terno, chapéu palheta, gravata borboleta, guarda-chuva em pleno sol fluminense, como bom arremedo de lordes ingleses que eram e continuam sendo os brasileiros. O Zé Carioca era um 171, uma espécie de Afonso Coelho inofensivo, sempre aplicando pequenos golpes num tempo em que malandragem não era essa bandidagem carioca barra-pesada que acabou nos dando Bolsonaro.

Décadas mais tarde, colocaram o Zé numa camiseta branca. Não foi das piores transformações, mas a roupa faz o homem, e não à toa o Zé Carioca foi se transformando de vigarista clássico em apenas um boa-vida cada vez mais caricato, que odeia a simples ideia de trabalho. Achei um erro, que já escrevi aqui nos primórdios do blog: para o Zé Carioca, a roupa era um instrumento de mistificação e de ascensão social.

Finalmente, nos anos 90 transformaram-no na versão em quadrinhos de Claudinho e Buchecha. Velho conservador e reacionário que sou, protestei contra isso, mesmo achando que entendia a razão: uma maior identificação do Zé com a juventude atual, que nesse meio-tempo adquiriu protagonismo e poder de mercado, e correspondia à afirmação da comunidade que só queria ser feliz, andar tranquilamente na favela em que “naisci”. Era uma opção válida, embora não custe lembrar que as pessoas não pararam de dar golpes e que o Zé, antes de tudo, queria era sair do morro e morar com a Rosinha na mansão do Rocha Vaz.

De qualquer forma, hoje entendo que podia ser muito pior. Por sorte não acompanharam a transformação estética do personagem com uma mudança adequada e fidedigna de caráter. Ia ser estranho ver um Zé Carioca evangélico, carregando um AR-15 e gritando “nóis é cria”.

Agora leio que o Zé Carioca volta usando camiseta, sim, mas também um chapéu panamá. E é esse pequeno detalhe que me deixa feliz, porque mostraram que entendem um pouco melhor o Zé, sabem o que é o personagem. Não é mais o estelionatário boa-praça de 1942, e nunca voltará a ser; mas também não é mais o dançarino de baile funk, e isso acalma meus preconceitos, aquele mínimo de rigor histórico que ainda tenho, e me reconforta.

Em parte, isso acontece porque, de certa forma, vivemos a era da pós-malandragem. Ela perdeu muito de sua mística quando descobrimos como é na realidade. Não é preciso lembrar de Chico Buarque indo à Lapa para saber que aquela tal malandragem não existe mais. O malandro comum de hoje vira coach, vira pastor evangélico, aposta em esquemas de day trade, vira cabo eleitoral em eleição municipal. Malandro que aplica golpes no Mercado Livre ou OLX, tira dinheiro de velhinhas com cartões de crédito ou dá uns tapas no velhinho que acabou de pegar sua aposentadoria na saída da Caixa Econômica perdeu o direito de ser chamado de malandro, é bandido. Ninguém gosta de bandido.

Mas há algo na malandragem do Zé Carioca que permanece, e deve permanecer. É a malandragem no limite do inofensivo, quase uma tradução de uma certa joie de vivre talvez anacrônica, e de certa forma uma antítese do viralatismo agudo que nos assola já há alguns anos.

E essa malandragem talvez possa ser simbolizada pelo chapéu panamá, um detalhe bobo mas significativo. É quase como se um velho amigo estivesse voltando e, ao chegar, pendurasse o chapéu na porta.

A Vingança do Bastardo

Uma das coisas que escrevi neste blog e de que mais gosto são as “Notícias do .cu”.

Os posts nasceram como uma sacanagem. O Alex foi para Cuba e deixou seu blog aos encargos de alguns amigos, eu entre eles. Eu sou um péssimo amigo, e decidi publicar uns emails que ele teria me mandado. Eu publicava os posts no Liberal Libertário Libertino e, um dia depois, republicava no meu, porque gostei muito do resultado e não tinha certeza de que o Alex não os apagaria quando os visse — eu, pelo menos, faria isso e ainda contrataria uns três cabras bons de peixeira para irem atrás de mim. Ele não apagou, até hoje não sei como deixou aquilo no ar. Mas fez pior: pouco depois fechou o blog e os textos desapareceram.

Durante um bom tempo considerei transformar aqueles quatro posts em uma novela de suas 100 páginas, que seria lançada em 2009 numa “Edição Comemorativa do Cinquentenário da Revolução Cubana”. Cheguei a escrever o primeiro capítulo (porque seria uma novela com capítulos com títulos como “De como Alex Castro foi parar em Cuba em um avião da Aerolíneas José Martí”) com aeromoças cubanas escondendo muamba embaixo da saia e fazendo safadezas pagas com passageiros nos banheiros do avião, e comecei a escrever um capítulo avulso narrado pelo Oliver, o cachorro do Alex, boiando no Golfo do México e refletindo sobre a existência até se reencontrar com seu dono nas areias de Monterey.

Mas alguns fatores impediram que eu continuasse. O primeiro, claro, foi a preguiça, que eu sou baiano e esse negócio de escrever livro rouba o tempo necessário à rede e à contemplação inútil. Segundo, nunca cheguei a uma conclusão sobre o que fazer com o espanhol e o portunhol utilizados nos diálogos. Terceiro, fazer as piadas que eu queria, pegar ofensas hoje em dia vistas como, ahn, ofensas e transformá-las em algo que não me gerasse processos ou encheção de saco do pessoal que me detestava iria dar trabalho e seria uma capitulação a uma ordem das coisas que acho deletéria. Finalmente, o Alex se recusou a posar para a foto que ilustraria a capa vermelha do livro, igual ao Che Guevara na foto do Alberto Korda; ia avançada a transição do Xandelon para o guru zen que é hoje.

O tempo passou, a mulher do Raul morreu como antecipei nos posts, Fidel morreu e a revolução caminha para um lanche no McDonald’s, se um dia o bloqueio americano for suspenso. As “Notícias do .cu” perderam, se não o sentido, a atualidade. É, provavelmente, a única oportunidade que lamento ter perdido neste blog. E a recusa do Alex me dá a desculpa de que preciso, e vou morrer dizendo que não escrevi o livro porque aquele filho da puta se recusou a posar para a foto.

Havia um detalhe pequeno e curioso em tudo isso, no entanto. Na época, o Alex foi o único a perceber o tanto que aqueles posts deviam a algo que tinha sido publicado uns 20 anos antes.

Ele estava parcialmente certo. Na verdade, as “Notícias do .cu” derivavam diretamente do “Diário do Rio”, por sua vez inspirado no “24 Horas de Le Mãos na Cabeça” do Bia; mas no fundo só existiam porque, mais de 20 anos antes, eu tinha lido “A Vingança do Bastardo”.

Publicado em folhetim, um capítulo por mês, no Planeta Diário, “A Vingança do Bastardo” foi uma das poucas coisas boas que o Rio de Janeiro dos anos 80 legou à humanidade. O Planeta era um jornal fantástico, mui digno sucessor de um Pasquim que depois de triste agonia naquele momento respirava por aparelhos, morte cerebral já decretada. Era também muito superior à sua contemporânea e conterrânea Casseta Popular.

Tenho quase certeza de que foi no final de 1985 que comprei o meu primeiro exemplar. Comecei a ler na casa de minha avó, e em pouco tempo ela veio me perguntar por que eu estava gargalhando histericamente daquele jeito.

Inesquecível, por exemplo, é uma matéria sobre os diversos graus de classificação de mulher feia: mocreia, urutau, flemba, e o mais baixo de todos, IPB — Indivíduo Portador de Boceta, não chega a ser mulher.

Mas nada superava o folhetim que eles publicavam então. Era escrito por uma senhora circunspecta, devassa e peidona chamada Eleonora V. Vorsky; apesar do nome de marafona russa, esse era apenas o nome de guerra de Alexandre Machado, que depois escreveria coisas como “Os Normais” para a TV Globo e, en passant, ganharia um Grand Clio. Em 1987 o folhetim foi publicado em livro, e trazia inteiramente grátis o capítulo final.

“A Vingança do Bastardo” foi o livro mais engraçado, mais alucinado, mais demente que li em toda a minha vida, e olha que eu não li tão pouco assim. Do começo ao fim, é basicamente uma enxurrada de referências da cultura pop carioca e mundial dos anos 60, 70 e 80 emaranhadas numa trama que às vezes parece se perder, mas sempre descobre uma saída inusitada — e sempre a mesma, um deus ex-machina imprevisível que tira nossos anti-heróis de uma frigideira para colocá-los no fogo. E só quem estava vivo nos anos 80 entende, por exemplo, a última coisa escrita no livro: “Favor rebobinar a fita”, uma última piada pythoniana.

Emprestei o livro a uma colega de escola e nunca mais o vi. Durante mais de 20 anos, sonhei com o dia em que colocaria novamente minhas mãos sobre um exemplar, sem nenhum sucesso. Mas aí por 2010 dobrei a Nelson Mandela para pegar o metrô e, numa banca de usados, lá estava ele. Eu reconheceria aquela capa em qualquer lugar do mundo. Custou bem barato; aliás, podia custar cem, mil reais que ainda assim seria barato— porra nenhuma, é mentira, vá roubar a vagabunda da tua mãe. Mas custou barato e quase 20 anos depois eu conseguia reler um dos livros mais fantásticos que já li em toda a minha vida.

Minha opinião não mudou em todas essas décadas. Enquanto relia o livro, o deslumbramento e as gargalhadas voltavam diante da total ausência de senso de ridículo, as referências absurdas ao que circulava no ar na época: Kurt Waldheim, Aids, até o Tutty Vasques.

Tem como esquecer a imagem de um Simon Wisenthal balofo — demorou anos até eu descobrir que Wisenthal era magérrimo — correndo atrás de um avião enquanto tenta achar sob a banha o próprio pinto para provar que era judeu? Ou um Khadaffi aos beijos tórridos com o Primo Levi? Ou o Nacional Kid espancado pelos detetives-mirins que comia durante o recreio? Ou a jeba descomunal de Kowalski? Ou a confusão entre Frederic, o escarrador do molho curry, e Frederic, o punheteiro do molho branco? Ou ainda o Thomas Green Morton fazendo os peitões da Prima Roshana murcharem até parecerem um maracujá de gaveta? Ou os três reis magos peladões que trazem ouro, incenso e — como é mesmo o nome daquela porrinha?

Tem não.

Peguei novamente o livro dia desses. Ainda gargalho com ele. Mas ao fim da leitura, e diante da impossibilidade de rebobinar a fita, fica uma sensação meio melancólica.

Porque o livro não seria escrito hoje. Já em seu primeiro parágrafo estaria em dificuldades — porque, como diz o Primo Levi, a cela onde ele estava condenado a passar os próximos 212 anos era de um escuro úmido e umbroso, e o nome do escuro era Waltencir com suas crises de flatulência. E cada piada, cada reviravolta na trama, mesmo a coleção de porcarias do primo Janus, nada ficaria a salvo, porque se não ofende um, ofende outro, até o mau gosto causa desgosto, hoje em dia, e mais de um zelote puritano e imbecil zurraria sua indignação, no que seria acompanhado pelo resto do seu pedaço de rebanho.

A tragédia deste século XXI é que nos tornamos mais intolerantes com símbolos do que com a realidade. Isso diz tão mal de nós, mas a realidade é ainda pior, porque ninguém liga. 36 anos depois que “A Vingança do Bastardo” descobriu a cura da Aids através de um singelo tomar no cu, regredimos. Não apenas ficamos mais chatos, e não é só porque as sensibilidades se tornaram mais puritanas. No século XXI se tornou impossível rir sem culpa, e um mundo que lhe proíbe de perceber o ridículo da vida tem problemas sérios demais, que nem mesmo “A Vingança do Bastardo” poderia resolver.

Duas autobiografias

Ganhei o livro de memórias do Washington Olivetto. E comprei o primeiro volume da autobiografia do Jô Soares quando o preço baixou, antes que ele morresse. Agora espero o preço do segundo baixar para comprar também; é sempre assim com esses livros de tiragem grande, editados em papel grosso e letras grandes que os tornam mais volumosos e atraentes para compradores, porque aos olhos das pessoas — e talvez aos do leitor — fazem uma novelinha de Schnitzler parecer “Guerra e Paz” na estante.

Um tempo atrás fiz um post sobre o livro do Olivetto, que acabou se transformando numa espécie de defesa do sujeito diante de um artigo vitriólico do Mario Sergio Conti. Eu tinha folheado o livro e, embora tivesse me parecido cabotino, além do limite da chatice, não achei que era motivo para tanto ódio.

É nisso que dá escrever sobre as coisas sem ler. Porque se eu tivesse lido “Direto de Washington” inteiro não teria escrito nada, teria dado razão a Conti, ou teria dito que ainda era pouco, teria gritado que era para derrubar no chão e chutar a cara.

Já li alguns livros de publicitários. Todos eles são, claro, em algum nível, o exercício de uma vaidade. Mas para a maioria, era também uma forma de exercer o seu trabalho, de conquistar mais clientes para sua agência, e por isso tinham, sempre, alguma utilidade para os seus leitores além da mera leitura.

É verdade que eles falam de um tempo que passou, e entre o mundo dos Mad Men e este, em que meninos recém-saídos de faculdades escrevem legendas de fotos no Instagram sem sequer saber usar o diacho de uma crase, há uma distância maior do que houve entre a DDB dos anos 60 e uma agenciazinha qualquer em Macapá. Mas em todos eles consegui aprender alguma coisa, porque seus autores conseguiam pensar além de si mesmos, e tinham ideia do que poderia ser o seu lado à posteridade. Do gigantesco Ogilvy on Advertising ao livro do Periscinotto, do “Fazer Acontecer” do Júlio Ribeiro ao excelente “E o Outro Vacilou” do Roger Enrico, todos eles tentavam explicar alguma coisa, ao menos mostrar o que pensavam sobre o seu ofício.

O livro do Olivetto é o único em que não consegui aprender nada. Ou melhor: a única coisa que aprendi, graças a essa vaidade que chega a parecer patológica, é que ele se tornou apenas um velho ultrapassado que abdicou da dignidade que a história reserva àqueles que marcaram seu tempo, ao cometer a desídia de não perceber a hora de se calar.

Parar no tempo não é pecado — é até uma conquista, o direito de pouco se lixar para o mundo em volta porque você não precisa mais dele, a retirada graciosa da corrida de ratos. Pecado é querer ser relevante de qualquer forma, é uma velha bêbada vestida de menina rebolando uma bunda murcha às quatro da manhã. O livro de Olivetto talvez fizesse sentido 40 anos atrás, quando ele precisava vender sua imagem para conquistar clientes. Hoje, é apenas um taramelear meio caduco de alguém que continua repetindo o que dizia há 40 anos, sem perceber que o mundo em volta dele mudou.

É uma sina triste, essa a que Olivetto se condenou. Ninguém questiona o seu papel na história da publicidade brasileira. Mas boa publicidade é quase tão efêmera quanto um bom artigo de jornal; e a chance que ele teria de passar à posteridade foi desperdiçada em um livro que não deixa nada para ela, apenas a repetição ridícula da própria crença em um brilhantismo passado que a repetição constante barateou demais.

* * *

Em compensação, que delícia é “O Livro de Jô”, ou pelo menos o primeiro volume.

Menos que uma autobiografia no sentido clássico, o livro é quase uma coleção de histórias acumuladas por Jô Soares ao longo de 60 anos. Jô Soares tem uma memória impressionante, e fez parte da ribalta durante mais de meio século. Acima de tudo, ele sabe como contar uma história, sabe qual o interesse que cada uma delas pode despertar.

O resultado é um livro agradabilíssimo, informativo, especialmente para quem gosta da história do show business nacional dos últimos 70 anos.

“O Livro do Jô” é quase uma conversa numa sala de estar entre amigos que se conhecem há muito tempo. Assim como foi em seu programa de entrevistas, Jô Soares era um entertainer por vocação e talento. Anedotas, lembranças de um tempo que passou, tudo isso faz do livro leitura agradabilíssima, talvez até necessária.

Mas curiosamente, o livro se revela insuficiente. E o que falta é, de certa forma, o próprio Jô Soares.

Li o livro há algumas semanas sem saber nada sobre ele, e fiquei me perguntando o que o Matinas Suzuki fazia ali, já que um escritor tarimbado e produtivo como Jô Soares não tinha necessidade de um ghost writer. Intuí que o livro tinha sido escrito a partir de conversas entre os dois, organizadas pelo Suzuki e passando pela edição final do Jô. Foi isso que aconteceu, e talvez essa seja a grande fraqueza do livro.

Uma coisa é o que um autor escreve sozinho, diante da tela em branco de um computador e tendo ao lado os seus fantasmas. Ali ele pode investigar sua vida, entender algumas coisas, reavaliar outra. Mas além disso, sozinho, ele pode ser absolutamente sincero, se esse é o seu objetivo. Outra coisa, totalmente diferente, é o resultado de conversas, quando você tem que dizer a verdade a alguém que está olhando em seus olhos. Nessas horas a sinceridade encontra fácil os seus limites. Sozinho, o memorialista se vê tentado a revelar tudo: suas conquistas e seus fracassos, seus medos e fraquezas. Mas numa conversa com outa pessoa é quase inevitável que alguém como Jô Soares se restrinja ao que é mais interessante, mais agradável, dentro da perspectiva do entertainer.

E por isso a sensação, talvez injusta, é a de que falta franqueza a “O Livro do Jô”. É como se fôssemos expostos apenas à face pública de Jô Soares. Por exemplo, sabemos que seu pai mexia com câmbio, mas como quebrou? O que fez depois para ganhar a vida? São informações importantes. Eu gostaria de saber, por exemplo, como era ser um menino gordo rico na Suíça, num tempo em que a obesidade era exceção, e não a regra. Como eram os namoros na escola de muito ricos que frequentou? Ela parece ter sido um paraíso. Nenhuma escola o é. Ele sempre fez questão de dizer que a gordura não o atrapalhou em nada — e isso é mentira. O que se poderia esperar do livro é que nele, finalmente, Jô Soares enfrentasse os seus fantasmas.

Há, aqui e ali, algumas pistas. Ao se apaixonar pela sua primeira esposa e mãe do seu filho, ele se pergunta por que uma mulher como aquela estaria dando corda a um rapaz gordo. Além disso, a única referência a sexo é a lembrança do dia em que foi pego se masturbando. Isso é o menos interessante em um sujeito que viveu cercado de mulheres lindíssimas. Como se fazia sexo naquele meio artístico dos anos 50 e 60? Ele não precisa dar nomes — ele graças a Deus é elegante demais para isso —, mas podia falar, afinal, de quem comeu. Eu, pelo menos, não castiguei tanto Proust assim para me contentar em sentar olimpicamente acima dessas baixarias.

Essa, no entanto, é uma reclamação injusta. Uma das coisas que salta aos olhos é o respeito com que Jô Soares trata das vidas das pessoas que passaram pelo seu tempo. É uma elegância, quase pudor, que é praticamente a marca registrada desse livro e que faz falta hoje em dia, num tempo em que autobiografias cada vez mais se assemelham a relatórios ginecológicos ou conversas de banheiro, e em que pessoas públicas escancaram suas vidas privadas de uma maneira que tem algo de desesperado, de agoniado. Sabemos do Jô Soares aquilo que ele, judiciosamente, quer que os outros saibam, e o seu critério é o do interesse geral. E não se pode querer mais que isso.

Ouvindo vozes

Onze anos atrás escrevi este post aqui, ó, defendendo a ideia da dublagem e reclamando de uma gente elitista que, mais que admitir apenas filmes legendados, parecia ter raiva de que outras pessoas assistissem a eles.

O tempo passou e as coisas parecem ter mudado muito. Aversão indefinida e generalizada à ideia de dublagem continua sendo coisa daquele tal pessoal esnobe, mas esses mais de dez anos fizeram muita diferença.

Nesse período o mercado de dublagem se transformou. Antigamente só se dublava para a TV, uns poucos filmes infantis e eventualmente desenhos animados da Disney. Hoje, boa parte dos filmes são lançados no cinema também em versões dubladas. Dependendo do lugar onde estão, alguns complexos de salas exibem apenas filmes dublados. Dubladores alcançaram algum reconhecimento popular, alguns viraram quase estrelas e agora têm canais no YouTube. É cada vez mais difícil encontrar um filme legendado nos cinemas.

Pode parecer que a vida deu a razão a quem reclamava da dublagem e a vitória a quem gosta dela, mas a verdade é que nada disso importa porque no “istrímin” qualquer pessoa pode ver o filme como quer, e reclamar da dublagem é, sinceramente, coisa de quem continua não gostando de pobre.

O engraçado é que isso, para mim, é algo contraditório. E cada vez mais sem sentido, também.

Ainda adoro a dublagem da AIC, velha, datada, com seus rr corretos e vozes empostadas, ou a da Herbert Richers, quase onipresente em minha adolescência. Ainda é delicioso ouvir vozes como a de Borges de Barros e do Carlos Vaccari, ou o Ricardo Mariano me contando quem fez a “versão brasileira: Herbert Richers”, e vou morrer sendo fã do Márcio Seixas narrando a Disneylândia para mim. Quando decidi assistir a “Jornada nas Estrelas”, fiz questão de ver as duas primeiras temporadas com a dublagem dos nos 80, o mesmo Márcio Seixas fazendo o Spock.

Ainda assim, tenho calafrios quando assisto a um trecho de filme novo dublado. Normalmente detesto cada detalhe, as vozes, as expressões, os palavrões que agora são autorizados a traduzir.

Durante muito tempo tive a impressão de que isso acontecia porque, por um lado, me vi mais e mais exposto ao som original de filmes, seriados e desenhos; não vejo TV aberta já há algumas décadas, com exceção do Jornal Hoje para alegrar o meu almoço com tragédias inomináveis, das quais a menor não é o César Tralli e suas platitudes falsamente compungidas.

Por outro, eu tinha a sensação de que algo se perdeu quando dubladores passaram a trabalhar sozinhos no estúdio. Nos tempos do eu pequeno a tecnologia parca exigia que uma cena fosse gravada com todos os atores com falas nela. Computadores permitiram que as gravações sejam feitas em tempos e lugares diferentes, dando mais eficiência ao processo; mas parecia faltar agora aquele quê indefinível que só a interação humana pode dar, as frações de tempo certas entre uma fala e outra, a entonação mais natural ao que se acabou de ouvir.

Acreditei nisso por muito tempo. Acho que ainda acredito.

Acontece que alguns anos atrás alguém estava vendo um filme da Sessão da Tarde muito alto e eu estava na rua. Parei alguns instantes para ouvir a dublagem. E fiquei impressionado ao perceber como ela era boa. Sem a imagem, o que eu ouvia eram boas vozes e boa entonação, atuais, corretas, verdadeiras.

De lá para cá passei a acreditar que a ruindade da dublagem atual está na minha cabeça, sempre esteve, e lá apenas. E mesmo assim continuo sem gostar dela. Continuo detestando. Mas agora sei que detesto porque sou chato, talvez a mesma chatice e cabeça tonta que me fazem escrever este post.

(Disso, pelo menos, eu sei a razão. Escrevo porque quero deixar um registro para mim mesmo. Porque daqui a pouco, nada disso vai importar.)

Há alguns anos, conversando com amigos — antes da IA virar assunto comum —, eu dizia que não devia demorar tempo demais até que computadores fizessem a dublagem de um filme com a própria voz do ator original. Ninguém discordava de mim, é verdade. Mas há algumas semanas atrás mesmo a minha previsão mais otimista se mostrava defasada e, principalmente, equivocada. Um vídeo de uma atriz americana falando em português com sua própria voz e expressões faciais modificadas pelo computador viralizou mundo afora. Eu não esperava por isso.

O vídeo é um aviso do apocalipse que está por vir. Dublagem é profissão inexoravelmente condenada. Dubladores podem ainda tentar se iludir, mais ou menos como fabricantes de carruagens diziam em 1910 que sempre haveria espaço para o requinte de um landau, incomparável diante daqueles automóveis barulhentos, pouco confiáveis, vulgares. Talvez seja melhor assim, talvez doa menos ver que algo que você ama e que marcou a vida de tanta gente, como a minha, está inexoravelmente condenada a desaparecer.

***

Mas o mundo da dublagem é muito mais complexo do que tudo isso.

Dia desses assisti a um episódio dublado de “A Gata e o Rato”. Era um dos melhores de todo o seriado, que foi, por sua vez, talvez o melhor dos anos 80. Nele, David e Maddie discutiam sobre um crime acontecido décadas antes, e cada um tinha uma perspectiva diferente sobre a autoria, baseados no que hoje chamariam de perspectiva de gênero. Originalmente o episódio se chamou The Dream Sequence Always Rings Twice, mas foi apresentado aqui como “Romance do Passado”, título típico da Globo naquela década.

E então David fala para Maddie: “Você está sendo uma sexóloga.”

Epa. Não fazia sentido. A palavra sexóloga estava tão à vontade nesse contexto como eu em missa de ação de graças. Fui procurar o original em inglês, e era isso mesmo que eu imaginava: o personagem de Bruce Willis dizia a Maddie Hayes que ela estava sendo sexista.

Também não era difícil imaginar a razão pela qual a tradução tascou um “sexóloga” nesse diálogo.

Na primeira metade dos anos 80 parecia que as mulheres estavam descobrindo o sexo. O “Relatório Hite” tinha feito um sucesso estrondoso alguns anos antes, e colocado a questão do prazer feminino na pauta do dia. Por coincidência, eu tinha lido e relido o livro no verão anterior, como um general escrutina o mapa do terreno que pretende invadir — e devo confessar que este foi um dos mais úteis em minha então curta vida, o que reconheci anos atrás quando o Hermenauta me passou um tal meme dos cinco livros. Além disso, desde o início da década Marta Suplicy tinha colocado no vocabulário dos brasileira a palavra sexologia, a partir do seu quadro em um programa revolucionário chamado TV Mulher.

Os brasileiros, então, conheciam a palavra sexologia. Mas “sexista” não existia em português, não ainda. Era um conceito estranho em um mundo que ainda normalizava o machismo. E por isso a tradução, possibilitada pela dublagem, pegou o conceito mais próximo do original e o utilizou. Deve ter dado certo na época, porque não lembro de estranhar a palavra ou o contexto então.

É esse tipo de coisa que a dublagem fazia e que agora, com a IA, deverá fazer parte do passado. Essas soluções criativas, essa atenção a um mundo que existe fora dos filmes, tudo isso vai desaparecer. E é por isso que escrevo isto, como homenagem e registro de um tempo em que atores brasileiros faziam trabalhos muitas vezes melhores que os originais

Michael Jackson

Quase 15 anos após sua morte Michael Jackson ainda me faz pensar, ainda que involuntariamente.

Quando assisti a Leaving Neverland, o documentário em que dois sujeitos, que dormiram com Jackson quando eram crianças e que décadas atrás serviram como suas testemunhas de defesa, voltam atrás e contam como foram abusados pelo “rei do pop”, incluindo os detalhes sórdidos de suas relações, não vi nada de realmente novo. Um deles, Wade Robson, já tinha sido dedurado por uma das testemunhas de acusação em um dos tantos processos a que Jackson respondeu em vida.

Mas dia desses finalmente li uma série de reportagens de Maureen Orth para a Vanity Fair (que, ela lembra, jamais foram questionadas por Michael Jackson ou por seu espólio), em que a jornalista traça um perfil deprimente de um homem psicologicamente doente, forçado a conviver com a escória da raça humana para satisfazer seus apetites de maneira infantil — afinal Michael Jackson podia ter o que quisesse, desde que estivesse disposto a pagar os preços pedidos.

Era tudo tão obvio, foi tudo tão óbvio desde o começo. Aquelas mães venderam seus filhos. Alguém disse que esses garotos deviam processar suas mães em vez de Jackson, por terem permitido tudo aquilo, e tem razão. Em Leaving Neverland pode-se ter uma visão clara de como elas fecham os olhos para o que pode estar acontecendo, justificando-se para si mesmas por eventuais possibilidades de estarem abrindo oportunidades para seus filhos.

O que me assusta é ver gente defendendo Michael Jackson tentando transformar a defesa de Jackson em uma defesa do movimento negro.

O próprio Jackson já tinha recorrido a isso — em 2002, saiu literalmente às ruas chamando a Sony de racista pouco depois dela cobrar o ressarcimento dos gastos com Invincible. Dizem que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Agora a alegação de racismo também é.

Por alguma razão que só pode ser creditada à crescente estupidez e infantilidade dos movimentos identitários, certos segmentos do movimento negro parecem acreditar nisso também.

Um tal de TI tenta pegar uma carona e garantir seu espaço no noticiário, dizendo que tudo isso é parte de um momento para destruir a cultura negra:

Destroy another strong black historical LEGEND?!?! It’s several examples of pedophilia in American History… if y’all pulling up all our old shit… we gotta examine ELVIS PRESLEY, HUGH HEPHNER,and a whole slew of others guilty of the same if not more!!! BUT WHY US all the time?

Elvis talvez possa ser chamado pedófilo, embora de um tipo socialmente aceito em seu tempo e lugar — Jerry Lee Lewis se casou com a prima de 13 anos; Loretta Lynn casou aos 15. No Brasil colonial, quando a menina menstruasse já podia casar. É algo aceito culturalmente, diferente, por exemplo, das ações de Adam Ant ou Michael Jackson — que ainda têm o agravante da torpeza. Mas ninguém questiona isso, na verdade, e o grito de TI é inócuo, bobo.

Aterrorizante é ver os comentários. As pessoas concordam com o tal TI. Elas se tornam desonestas aos se recusar a admitir que Michael Jackson era um sujeito doente, profundamente perturbado, cujas idiossincrasias faziam com que fosse rodeado por um tipo de gente abjeta que pessoas comuns têm dificuldade em acreditar que possam existir. Em vez disso, é melhor acreditar que ele era a vítima de um racismo inexplicável — talvez o mesmo racismo que fez dele o maior ídolo pop dos anos 80.

A questão é: defender um pedófilo só porque ele é negro? Não se trata sequer de um caso como o de Bill Cosby, que nos últimos anos teve sua imagem destruída por uma série de revelações de abusos sexuais. Ninguém pensou em creditar a denúncia dos crimes de Cosby a uma agenda racista — provavelmente porque a contribuição de Cosby para a afirmação da cultura negra já foi superada há algum tempo pelos atuais movimentos identitários. Assim, as pessoas puderam ver Cosby como ele é realmente: um criminoso, um estuprador. No caso de Jackson, ele ainda é um ídolo para muita gente; e num movimento que se baseia em simbolismos e “ressignificações” como o identitário, atacar sua reputação é o mesmo que enfiar uma faca em seu peito.

Ainda mais curioso é que, apesar da boa vontade dos que parecem tentar transformar Jackson em uma espécie de neo-Malcolm X post-mortem, a verdade sobre ele é mais complexa. O fato de ter vitiligo pode explicar o embranquecimento de sua pele, mas não explica o cabelo cada vez mais parecido com o de Elizabeth Taylor ou o nariz que, em sua última encarnação, prenunciava o da “Noiva Cadáver” de Tim Burton. O discurso de Jackson, em nenhum momento, foi o desses movimentos identitários; em vez disso, em canções como Black and White, nos seus filhos brancos e esposas mais brancas ainda, e nas suas vítimas brancas ou pelo menos latinas, Michael Jackson parecia dar a entender que preferia um mundo onde etnias simplesmente não fossem mais importantes. Se estivesse vivo hoje e mantendo as mesmas posições,  em algum momento certamente seria vítima preferencial desses “social justice warriors” lacradores que pululam nas redes sociais.

(As gerações atuais, mais burras, menos sutis, enfatizam Black or White como hino antirracista. Mas a ponte que Jackson criou se estabelecia em um nível mais alto, menos óbvio, mais artístico: quando Jackson misturava a música negra e a guitarra de Eddie van Halen em Beat It, por exemplo, invertendo o fluxo da música pop. Mas esse tipo de coisa parece sofisticada demais para as novas gerações.)

Imagine-se Michael dentro da cultura de vitimização que se tem criado ultimamente. Coitado, dormia com crianças porque não teve infância e foi abusado física, emocional e talvez sexualmente pelo próprio pai (que numa visita recente ao Brasil teve um piripaque por abuso de Viagra. Pelo visto, ele não gosta de meninos; gosta é de puta, mesmo, como qualquer pessoa decente). Um dos garotos de Suzano perpetrou o massacre na escola Raul Brasil porque tinha pais viciados em crack e gostava de jogos violentos. Tudo é desculpa, tudo é explicação para o que não carece de justificativa nem admite escusa. Num mundo onde todos são vítimas, não existem culpados.

A vida e o ambiente de Jackson eram um circo dos horrores, um pesadelo infantil. Branco ou preto, Michael Jackson era no mínimo estranho, um homem doente mas rico, vivendo num mundo cão. O número de pessoas que vivem vicariamente de seu nome e de seu espólio é impressionante até para os padrões de famílias pobres de superstars. São eles que estão assustados com a perspectiva de perda da galinha dos ovos de ouro. Em seus últimos anos Michael Jackson dava prejuízo. A decadência criativa, o estilo de vida insano, o vício em drogas e provavelmente os meninos não custavam barato — só o Jordie Chandler, que descreveu acuradamente a genitália de Jackson, lhe custou 25 milhões de dólares em um acordo que mostra que o dinheiro, para a justiça dos EUA, está acima do bem-estar das crianças. Morto, em menos de dez anos Jackson se tornou uma marca lucrativa novamente — e essas acusações ameaçam acabar com a renda de muita gente.

Mickey

Percebi dia desses que, ao contrário do que acontece com gente mais perspicaz que eu, para mim os personagens Disney clássicos — Mickey Donald, Tio Patinhas, os habitantes de Patópolis — pertencem ao mundo das revistas em quadrinhos, e não ao cinema.

Comprei ano passado e vim ler agora Mickey Mouse – The Ultimate History. É um desses livrinhos curiosos da Taschen, que estava em promoção; e eu nunca resisti a promoções de livros.

Ali está claro o que para mim nunca foi óbvio: para o mundo, o Mickey que conta é aquele do cinema, que inaugurou o desenho animado moderno em Steamboat Willie ao coordenar de maneira inovadora som e imagem e que seguiu estrelando curtas e médias metragens ao longo das décadas seguintes. O livro fala brevemente de sua existência nos quadrinhos, mencionando inclusive a produção brasileira, que foi uma das mais importantes do mundo entre os anos 70 e 80.

Por um desses acasos da vida, o primeiro filme a que assisti no cinema foi justamente um daqueles desenhos: “Mickey e a Foca”, numa matinê no Cine Guarani, no comecinho mesmo dos anos 70. Tenho uma vaguíssima lembrança disso. Eram os últimos suspiros de um tempo em que cinemas tinham várias sessões diárias e buscavam atingir públicos diversos no mesmo dia. Mais tarde, ainda era possível assistir eventualmente a um longa animado em alguma reprise nos cinemas, como “Cinderela” ou “A Bela Adormecida”.

Mas era muito mais fácil achar uma revista em quadrinhos da Disney do que um desenho em cartaz. Aqui, as revistinhas Disney foram publicadas ininterruptamente pela editora Abril por 68 anos. Em qualquer momento que se fosse a uma banca de revistas, podia-se achar uma revista nova da Disney.

E daí que, pensando nisso porque obviamente não tenho mais em que pensar, percebo como o Mickey dos quadrinhos era tão mais rico que o dos desenhos animados. O Mickey dos desenhos não tem uma história real. Não tem vida além daquilo que vemos naquele desenho, daquela situação específica. Pode ser um operário de estaleiro, um sujeito em férias, um sujeito às voltas com uma foca em seu banheiro. Enquanto isso, o Mickey dos quadrinhos era detetive, cuidava dos sobrinhos, flutuava espaço afora em companhia de Esquálidus na Patrulha Estelar, era o escada perfeito para o Pateta. Nos quadrinhos, o Mickey alcançava voos muito mais altos. E não falava fino daquele jeito.

Isso vale para todos os outros personagens. Não custa lembrar que o Tio Patinhas é um personagem dos quadrinhos, não dos desenhos animados. As histórias desenhadas por Carl Barks, que deu a milhões de crianças uma noção mais ampla do mundo, existiam nas revistinhas, não nas telas de cinema. E o Zé Carioca, além de umas duas ou três aparições nas telas para adular o Brasil a ficar do lado dos EUA na II Guerra Mundial, só existe mesmo nas folhas de papel.

Pensar nisso me faz lembrar que sempre fiz distinção entre dois mundos Disney bem diferentes. Um era o dos quadrinhos, aquele que me era mais próximo, o do cotidiano. O outro era o do cinema — “Branca de Neve”, “Os 101 Dálmatas”, “Cinderela”, até mesmo “Bernardo e Bianca”. Podiam até se encontrar nas páginas das revistas, mas eles nunca me enganaram: eu sabia de onde vinham. Faziam parte de uma classe mais alta, mais abastada, mais chique. Eu não ligava de verdade para eles.

Acho que os editores da Disney no Brasil não pensavam assim. Imagino que, para eles, tudo era um produto só, que misturava indistintamente cinema e quadrinhos.

Paulo Maffia, editor da Disney no Brasil, disse há algum tempo que a era das revistas em quadrinhos baratas vendidas em bancas está acabando. Na verdade, as próprias bancas são hoje equipamentos públicos em extinção acelerada. Ele deve ter razão, mas o mundo se torna mais pobre com isso.