O sumiço das bichas

De uns tempos para cá Hollywood vem se especializando no homossexual da nova era, e a sociedade vem se dando tapinhas nas costas com seus bons sorrisos hipócritas por ver seus preconceitos diminuírem. A visão de si mesmos no espelho, de uma sociedade cada vez mais liberal e tolerante, é corroborada pela aceitação do que chamam de “amor entre dois homens” e que Oscar Wilde, mais sinceramente, chamava de “o amor que não ousa dizer seu nome”.

Talvez ela até esteja certa, e aceite mesmo que dois homens façam sexo entre si. Mas se forem duas bichas, ah, mona, aí a coisa muda de figura.

Viados e sapatões fazem parte de uma comunidade literalmente singular. Se você é pobre, pode ter a certeza de contar com o apoio de ricos que vão aliviar sua culpa defendendo melhor distribuição de renda, desde que não toquem no deles. Se você é mulher, vai aparecer um bocado de homens defendendo os seus direitos (e, talvez, tentar te comer depois, que isso é bom para todo mundo e faz bem para a pele). Se você é negro, uma porção de brancos vai cerrar fileiras ao seu lado contra o racismo.

Mas se você é gay, você vai estar sozinho.

Movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, como o Dialogay de Sergipe, não costumam contar com o apoio claro de outros setores do que chamam de sociedade civil organizada. Se fazem uma passeata, não se vê heterossexuais nelas — isso quando fazem, porque uma passeata de bichas e sapatões deve ser prato cheio para vaias e ovos podres. Para a maioria dos heterossexuais, bichas e sapatões podem até não ser mais aberrações, como já foram, mas ainda são incômodos. Algumas vezes justamente.

E nesse processo, parece ter se tornado fácil aceitar os dois extremos mais visíveis. Por um lado o homossexual que não trai os códigos comportamentais de seu sexo, como o viado com pose de homem e a sapatão de batom; por outro a caricatura, inofensiva de tão estridente, como a drag queen. Então a sociedade elogia os viados machos de Brokeback Mountain e se diverte na parada gay de São Paulo.

Este último caso é um dos mais interessantes. Porque ali não há mal nenhum. Porque desde que o carnaval é carnaval as pessoas vão aos montes para bailes gays, e se travestem em desfiles como os das Muquiranas em Salvador. Porque as bichas encapsuladas em paetês são engraçadas. Porque a partir do momento em que a coisa se assume como festa e paródia não há mais ameaça. As paradas gays são apenas um carnaval fora de época.

Enquanto isso o mito propagado por Brokeback Mountain, e outros tantos filmes que tratam ou tocam na temática gay, acaba sendo o de que viadagem é aceitável, desde que os homens falem grosso e as mulheres se mantenham femininas. A sapatão barra pesada, de calças baixas e pose de Humphrey Bogart sem saco, está automaticamente banida da imagem sanitizada do novos gays hollywoodianos.

No fim das contas, esse estereótipo do viado comportado de Hollywood é confortavelmente anódino. A única coisa que os diferencia de heterossexuais comuns é o fato de, à noite, dividirem sua cama e seus fluidos corporais com outros homens. Não há sequer uma sombra da bicha louca que usa jeans apertados e fala sibilando afetação. Fazendo uma comparação com o movimento negro, é como se seus defensores brancos definissem como padrão aceitável apenas os mulatos clarinhos.

Apesar das aparências, Brokeback Mountain não mostra gays; não tem sequer a gayety que lhes deu o nome. Mostra apenas uma variedade de amor e sexo perfeitamente aceitável por uma sociedade que se sente desconfortável ao lidar com algo que foge aos seus padrões.

Até há pouco tempo — antes que o politicamente correto levasse os bobos a acreditar que chamar alguém de “diversamente orientado sexualmente” o tornava menos viado e que homófobos iriam deixar de espancá-lo –, o termo preferido pelos gays americanos para se auto-definir era queer, “esquisito”. Partia do reconhecimento de que ser gay não era apenas manter relações homossexuais, mas também ostentar um comportamento diferente. Uma bicha não está dentro dos padrões de uma sociedade baseada na família nuclear. E ao evitar tocar no direito dos homossexuais de assumir um comportamento diferente, filmes como Brokeback Mountain podem acabar reforçando o preconceito, definindo o padrão pelo qual homossexuais devem ser julgados.

É muito fácil aceitar homossexuais machos como Heath Ledger e Jake Gyllenhaal (aparentemente mais machos até que eu, este velho porco chauvinista odiado por pseudo-feministas de caixas de comentários, porque eu não falo grosso daquele jeito), ou lésbicas extremamente femininas e bonitas como as que de vez em quando colam um velcro discreto nas novelas das oito. Levantar a voz para dizer que não não vê estranheza nesses casais é muito fácil, porque isso não representa nenhuma superação dos próprios preconceitos. Difícil, mesmo, é se sentir à vontade — ou pelo menos tolerar, de verdade — com a bichona que mora no apartamento do lado e tem um comportamento que, definitivamente, lhe incomoda — aquelas festas noite adentro ao som de Maria Bethânia e risadas quase histéricas. A bicha cheia de trejeitos, escandalosa, às vezes apenas uma caricatura de mulher, essa não aparece nos filmes, a não ser como motivo de riso. Porque, se aparecesse, não despertaria os mesmos bons sentimentos em uma sociedade que, por mais que se orgulhe de defender obviedades como a união civil homossexual, ainda cuida para que seus filhos mantenham distância do tio viado.

Mas, voltando a Hollywood, o que parece estar acontecendo é curioso. Se esse modelo se afirmar, o que parece ser um avanço social vai se tornar um retrocesso enorme. Porque a partir dele, as bichas acabarão perdendo o direito de ser bichas.

Originalmente publicado em 4 de abril de 2006

A dançarina, o caseiro e o 18 brumário de Francenildo Pereira

E a dancinha da Angela Guadagnin foi parar na capa da Veja.

A Veja é a revista que publicou uma das matérias jornalísticas mais absurdas da história do jornalismo político do país, a dos “dólares de Cuba”. Uma matéria inteira sem nenhuma prova, mas principalmente sem sequer uma testemunha. Ninguém havia visto dólar nenhum. Mas isso não importava para a revista. Vale qualquer coisa quando se está em campanha.

Não que a dança da deputada seja elogiável. Mas o que eu vi, no fundo, foi uma senhora comemorando a absolvição de um amigo. É curioso que o Congresso tenha declarado um deputado inocente e pretenda levar alguém à Corregedoria da Câmara por ter comemorado justamente essa sentença. Mesmo isso até seria aceitável, se eles se mostrassem indignados assim cada vez que deputados se estapeassem no Congresso ou xingassem suas respectivas mães. Os critérios, no entanto, são diferentes. Talvez eles prefiram o Schadenfreude. Talvez apenas tenham aproveitado a chance de jogar mais lama no governo.

O problema é que se chegou a um ponto em que todos os que apóiam o governo são culpados, mesmo com prova em contrário.

Por exemplo, qualquer pessoa que conheça um mínimo de política e de eleições sabe que é bem provável que alguns dos deputados acusados de envolvimento com o valerioduto sejam inocentes: gente que pressionava o partido para receber algum dinheiro para pagar suas dívidas e não estava necessariamente envolvida com o esquema. Aposto, por exemplo, que a Heloísa Helena não se perguntou, enquanto tentava se eleger senadora, de onde vinha o dinheiro que Delúbio lhe dava.

O Guto lembrou que se fosse uma deputada do PSDB a dançar, o PT estaria fazendo um terremoto. Provavelmente. Mas é também o caso de perguntar o que é que estão fazendo agora. Porque se isso não é um terremoto artificial, eu não sei mais o que é a escala Richter. Então o problema fica reduzido ao seguinte: o PT deve ser esculachado por ter feito seus terremotos, mas a oposição não pode ser, por fazê-los.

Principalmente nesses últimos meses, tem impressionado a total inversão de valores. Chegou-se a um ponto em que tudo o que se disser do governo é necessariamente verdade. Um ACM Neto pode ameaçar bater no presidente da República, indignado com os rumores de grampo, esquecendo que seu avô é o sujeito que grampeou a Bahia inteira por causa de sua amante. Agora toda a oposição é honesta, e todo o governo é ladrão.

Essa dubiedade é ainda mais interessante no caso da queda de Palocci, depois do que foi o cerco mais longo da história de todo o Ministério da Fazenda.

De todos os episódios da crise, nada pareceu tão canalha quanto o depoimento do caseiro Francenildo Pereira. Podia-se sentir que Roberto Jefferson falava a verdade, ou parte dela. Mas tudo no caso do caseiro tem cheiro de mentira e de armação. No entanto, ainda assim as pessoas parecem acreditar que o dinheiro que apareceu em sua conta é realmente de um pai que nunca o viu, nunca assumiu a paternidade mas, num arroubo de generosidade e instinto paterno, lhe deu um bom dinheiro às vésperas de um depoimento importante. Isso nunca é questionado, porque não interessa a ninguém.

(E é impressionante a incompetência do governo no gerenciamento dessa crise. Em vez de divulgar o extrato bancário do caseiro, era melhor simplesmente pedir a sua quebra de sigilo, mostrar que ele recebeu dinheiro e depois se perguntar o que ele andou fazendo no gabinete de Antero Paes de Barros. Partia para o contra-ataque de uma forma muito mais competente.)

Eu, pelo menos, gostaria de saber quem foi o sujeito que, provavelmente numa sala esfumaçada e diante de uma garrafa semi-vazia de Logan, teve um estalo e lembrou que foi alguém igualmente humilde — e parte-se do princípio esquisito de que pobre não mente –, o motorista Eriberto França, que ajudou a derrubar Collor. Porque esse sujeito merece algum respeito: pela lembrança, pela falta de escrúpulos e por ter sido um leitor aplicado do primeiro parágrafo de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, aquele em que, citando Hegel, Marx diz que os grandes eventos da história se repetem como farsa.

Esse, talvez, seja o papel da oposição.

Mas talvez fosse o caso de perguntar pelo destino desconhecido do “republicanismo” e da “oposição responsável” desse pessoal, tão alardeados quando não ainda tinham o que dizer do governo. A investida contra Palocci teve um objetivo único e claro: desestabilizar um governo que mesmo com toda a crise tinha conseguido crescer em aprovação pública porque, apesar das negativas da oposição, vem fazendo, sim, um governo administrativamente e socialmente competente. Não se trata aqui da culpa ou não do PT, até porque a essa altura isso são favas contadas, mas de algo que este blog diz há muito tempo: que a oposição do PSDB/PFL nunca teve nada de “republicana”, que tudo é jogo político, interesses em um jogo pouco liso de poder.

Originalmente publicado em 30 de março de 2006

Saint-Honoré

Se alguém quer saber como era Rafinha Galvão aos 20 anos, é simples: é só imaginar um sujeito que, em boa parte das conversas, provavelmente interromperia seu interlocutor dizendo “Isso me lembra Bixiou debochando de Blondet” ou “Esse é o tipo de coisa que um Rastignac ainda pobre faria” ou “Ele fez como Paulo de Mannerville, não ouviu os conselhos de De Marsay e se ferrou.”

Entre os 20 e os 22 anos, eu lia Balzac como outras pessoas liam quadrinhos. À medida que ia comprando novos volumes de “A Comédia Humana”, um mundo absurdamente real ia se delineando diante de mim. Balzac foi a minha primeira verdadeira paixão literária, e provavelmente será a última.

Ainda hoje, se alguém me pergunta que livro eu levaria para uma ilha deserta, não perco tempo em afirmar que levaria “A Comédia Humana”. Nada mais é necessário. Nem Shakespeare. Balzac era, e é, leitura essencial para qualquer pessoa que goste de livros.

Havia obras-primas e havia lixo, claro. Coisas como “A Mulher de 30 Anos”, “A Vendetta”, uma ou outra espalhada por aqui. Mas a cada fracasso correspondem pelo menos dez obras brilhantes, pequenas pérolas como “Gobseck” ou “A Missa do Ateu” ou monumentos como “Ilusões Perdidas” ou “A Prima Bette”. São quase 90 livros na Comédia Humana.

Citar tantos títulos pode dar a impressão de que se trata de muitos livros diferentes. É só parcialmente verdade. Porque na verdade é um livro só, e seu enredo é toda a história de um lugar e um tempo, os estertores do regime feudal e da aristocracia na França e a ascensão irremediável da burguesia. Os romances, novelas e contos de Balzac são apenas episódios de uma obra maior. Aqui você lê uma história de De Marsay, sujeito que encontrou alguns livros antes. Mais adiante você vai conhecer sua origem. Essa falta de linearidade é exatamente igual à da vida, onde os encontros se dão de maneira aleatória e inconstante. E em tudo isso há um poder de observação da realidade que jamais seria igualado, por ninguém.

Não foi à toa que, segundo a lenda, Balzac morreu chamando pelo doutor Bianchon, seu personagem. Ele não podia fazer diferente: havia criado um mundo tão gigantesco e tão completo que às vezes parecia mais verdadeiro que o mundo real. Aqui e ali eu encontro um personagem de Balzac. O avarento como o velho Grandet, a socialite esnobe como a Marquesa d’Espard, o bom advogado como Derville, a moça inocente como Modesta Mignon e a víbora disfarçada como Rosália de Wateville; o talento em carne fraca como Luciano de Rubempré e o futuro vencedor como Eugênio de Rastignac.

Podia não ser um grande estilista — pecado ainda maior nos dias de hoje, em que pigmeus tentam calçar os sapatos esgarçados por gigantes — mas era um grande frasista. Um desses sujeitos que se dedicam a antologias de citações poderia fazer um volume bem alentado apenas a partir dos livros de Balzac. De qualquer forma, estilo puro e simples faz grandes redatores, não grandes escritores. Para esses é preciso ter o que dizer. Estilo é essencial em uma época em que o que parece restar a fazer é simplesmente dizer o que já foi dito com palavras mais adequadas, e que possam ser lidas durante os comerciais. Com estilo ou sem estilo, Balzac é um dos três maiores escritores da história. Escolha os outros dois. Qualquer um. Tanto faz.

O que incomoda em Balzac são, principalmente, suas incursões pelo romanesco, concessões ao pior gosto popular como os piratas que aparecem para coroar a mediocridade espantosa de “A Mulher de 30 Anos”. (Baudelaire, ao contrário, achava que essa combinação de fantasia e observação era uma das qualidades de Balzac). Mas ele compensa tudo isso quando fala dos grandes aristocratas e dos pequenos burgueses, dos funcionários públicos, de tipógrafos, dos ladrões baratos e dos ladrões que se sentam nas diretorias dos bancos. Balzac foi o primeiro a perceber que o verdadeiro protagonista do novo mundo capitalista era o dinheiro, a ação eram os livros-caixa, e a peripécia uma promissória vencida.

Quem mais poderia escrever em 1832 um romance chamado “História da Grandeza e Decadência de César Birotteau, Perfumista, Adjunto do Maire do Décimo-Segundo Arrondissemént de Paris, Cavaleiro da Legião de Honra, Etc.”? Ninguém. Foi preciso um Balzac para perceber a grandeza épica na falência de um simples comerciante burguês, e contar tudo isso com uma profundidade psicológica que, em nenhum momento, deixa de lado a observação crua da realidade.

É nos romances menores que talvez o gênio de Balzac se manifeste com mais clareza. Porque é relativamente fácil — se você é um gênio, claro — fazer um “Ilusões Perdidas” e um “Pai Goriot” ao longo de uma carreira. Qualquer escritor de primeira linha traz em sua mochila uns quatro ou cinco grandes livros. Difícil, mesmo, é tirar dezenas de pequenas obras-primas com regularidade e constância, em quinze anos de trabalho, de fatos bobos como uma cena entrevista pela janela, um padreco do interior ou uma mal-amada maquiavélica. É o resultado de um processo de criação espantoso, pelo ritmo e pelo método: vários livros escritos ao mesmo tempo, dezesseis horas por dia, sete dias por semana, e as provas tipográficas eram submetidas a revisões consecutivas que aumentavam três, quatro vezes o tamanho original do livro. Ele queria conquistar pela pena o que Napoleão não pôde pela espada. E conseguiu.

Ninguém jamais disssecou sua época como Balzac. Era Tolstói que dizia para falar de sua aldeia? Pois a aldeia de Balzac não era sequer Paris, apesar das aparências; era todo o gênero humano. E se o homem não mudou muito em alguns milhões de anos, mudou ainda menos nesse século e meio. Balzac continua, hoje, mais atual que virtualmente todos os escritores contemporâneos. É mais atual que os futuramente esquecidos Don DeLillo e Paul Auster, para citar apenas dois de uma galeria quase infinita.

Provavelmente, aliás, mais atual que em seu próprio tempo. A crítica da época nunca gostou muito de Balzac, que considerava apenas um escritor de best sellers populares. A crítica da época era retardada. Em 1843, a Academia Francesa (que nunca aceitou Balzac entre seus membros) poderia ter premiado “O Médico Rural” com o prêmio Montyon, dedicado a ações virtuosas na literatura. Em vez disso premiou esse dois clássicos da literatura universal, “O Pequeno Corcunda” e “A Família do Tamanqueiro”, da mundialmente conhecida Mlle. Ulliac-Trémadeure, cuja estátua Rodin não esculpiu e que teria feito arranjo melhor com o mundo se tivesse simplesmente procurado um marido. Certo, “O Médico Rural” não é uma obra-prima; mas certamente é bem melhor que esses dois livros com títulos infantis.

A edição brasileira da “Comédia Humana”, organizada por Paulo Rónai, é uma das melhores do mundo. É um trabalho brilhante, responsável, um guia perfeito para quem ainda não conhece Balzac, e mesmo para quem conhece. Suas notas de rodapé são essenciais; suas introduções a cada peça são um referencial crítico fundamental para a compreensão do universo balzaquiano. Suas falhas, relativas, são a não inclusão de algumas obras que não fazem parte da Comédia Humana, mas que outras edições como a Pleiade da Gallimard incluem, como os Contes Drôlatiques, e o aportuguesamento de nomes próprios. Nada disso, no entanto, mancha a grandeza da edição. O que mancha, mesmo, é o fato de ela estar atualmente fora de catálogo.

Se eu fosse recomendar um roteiro para a leitura da “Comédia Humana”, seria fácil: primeiro a biografia de Balzac escrita pelo Paulo Rónai no volume I. Daí para o Prefácio de Balzac à obra, no último volume. Voltaria para o IV volume, que tem “O Pai Goriot”, “O Coronel Chabert”, “A Missa do Ateu” e “O Contrato de Casamento”, um volume tão genial que o meu perdeu a sobrecapa, de tanto uso. E então o curso normal, a partir do volume I.

Alguns anos sem tocar na Comédia Humana fizeram bem. De repente não consigo lembrar, exatamente, dos detalhes de “Uma Filha de Eva”. Isso quer dizer que chegou a hora de ler tudo novamente. São mais de 10 anos de separação. Mas ainda lembro da sensação de deslumbramento ao ler cada novo livro. Naquela época, e quem leu Balzac nessa idade entenderá facilmente, era fácil querer ser Rastignac tendo um amoral como De Marsay como exemplo, embora no fundo houvesse a desconfiança triste de que se era mesmo um pobre Rubempré. E à medida que o tempo vai passando mais e mais nos parecemos com aquele grupo de que fazem parte Blondet e Lousteau, Bixiou e Finot, cínicos cujos sonhos de grandeza jamais se concretizarão, e talvez não possamos desejar nada melhor que a honestidade simples de César Birotteau. Os tijolos podem ser os mesmos, mas o reboco muda, e muito.

Só quem conhece Balzac sabe o prazer absurdo que essa releitura será.

Originalmente publicado em 16 de março de 2006

Clássicos do cinema nacional: "Oh! Rebuceteio"

Primeiro foi “O Diabo no Corpo”. Marco Bellocchio pegou o livrinho maravilhoso de Raymond Radiguet e o transformou em um filme chato e pretensioso, em 1986. Mas não foi o enredo do filme que causou escândalo: foi uma cena em que Maruschka Detmers se esbalda (em termos) em sexo oral, apregoada na época (provavelmente de maneira equivocada) como a primeira explícita em um filme que se pretende sério.

Depois — há pouco tempo, 2003 — foi a vez de The Brown Bunny, filme de Vincent Gallo que, num arroubo de “audacidade artística” (sic), se propôs a derrubar os muros que separam o cinema sério da pornografia pura. Conseguiu seu objetivo: causou polêmica e conquistou algumas páginas de jornal.

(Na verdade houve outro antes desses: “Império dos Sentidos”, de Nagisa Oshima. Mas é um bom filme japonês e, pela polêmica que filmes bobos causam sempre que arranjam um truque de marketing, não parece mais ser reconhecido como um precursor melhor.)

O fato é que “Oh! Rebuceteio” é melhor que todos esses filmes que se pretendem polêmicos.

Dirigido em 1984 por Cláudio Cunha, “Oh! Rebuceteio” é o nosso Oh! Calcutta e o nosso A Chorus Line, com uma pitada de “Garganta Profunda”. O filme mostra os ensaios de uma peça de teatro experimental — tendência muito em voga nos anos 70 e início dos 80 e, graças a Deus, esquecida. A peça é uma criação coletiva e bastante sexo, bastante explícito, é inserido no filme como instrumento de criação e de desenvolvimento para os atores.

A pergunta a ser feita é: o que distingue “Oh! Rebuceteio” de bobagens como The Brown Bunny, pelo menos no que diz respeito à “decência” como cinema? Na minha opinião, nada. Em “Oh! Rebuceteio” o sexo está inserido em um contexto específico. É apresentado como parte necessária da trama. É limitado aos ensaios, e na estréia da peça não há mais sexo explícito. Ele só pode ser compreendido, portanto, como parte do processo de criação da peça.

O aspecto intelectualmente secundário do sexo no filme é ilustrado na seqüência em que, diante de uma cena no palco que faz os outros atores se masturbarem incontrolavelmente, o diretor da peça, interpretado pelo próprio Cláudio Cunha, manda os espectadores do filme se masturbarem também. Deve ser um tanto difícil alguém conseguir tal feito olhando para a bela face hirsuta de Cunha. Ele não se leva demasiadamente a sério, nem pretende fazer do seu filme uma tese de pós-doutorado, e o resultado é relativamente surpreendente.

O filme acaba apresentando algumas questões até razoáveis sobre o conceito de teatro e sobre o processo de criação por parte dos atores. Não é bem o que Stanilavsky esperaria, mas é válido mesmo assim. Certo, a abordagem é paródica, debochada e um adepto do teatro experimental poderia até chamá-lo de preconceituoso. Mas essas são características que sempre fizeram parte do cinema brasileiro, por representarem uma parte significativa do nosso caráter nacional, embora os cineastas da retomada tenham resolvido colocá-las para escanteio porque não lhes parecem suficientemente dignas — ou suficientemente européias –, algo típico de uma elite cultural que prefere se imaginar em Manchester do que em Ipanema. O fato de ser uma paródia escrachada não o torna pior que “O Diabo na Carne”. No mínimo o torna melhor que um filme ruim como A Chorus Line.

Que se defina “Oh! Rebuceteio” como filme de sacanagem. Mas, nesse caso, que se inclua os outros também. E, finalmente, o que realmente interessa: as atrizes de “Oh! Rebuceteio” são muito melhores no babado do que as gringas. E só isso já deveria ser um grande mérito.

Originalmente publicado em 3 de março de 2006

Prestação de contas

Há tantas coisas de que, se não me arrependo, certamente não faria de novo: ficar pendurado no capô de um Maverick a 100 por hora em um carnaval, mandar gente demais à merda, mergulhar de lugares altos demais, caminhar sozinho de madrugada pela Saúde, não ter dito “não” mais vezes, estar ao lado de uma amiga prestes a jogar um coquetel molotov na polícia, ser grosso com umas pessoas e não ser com outras, viajar de Aracaju a Petrópolis com 500 cruzados — equivalentes a 20 coca-colas –, namorar quem não devia, não namorar quem devia, pegar um táxi no aeroporto de Veneza, dormir ao relento na entrada de Aracaju com a bunda para baixo por medo dos travestis que rondavam o lugar, montar uma égua chucra e ser jogado, humilhado, a alguns metros de distância, ser expulso de bares por comportamento impróprio, entrar no fosso dos jacarés, acordar sem saber onde estava, explicar a uma militante da UJS o trotskismo na visão do PCdoB em um ônibus cheio de professores paulistas trotskistas da Apeoesp, não ter feito a campanha de 1998, fazer um strip-tease coletivo no Cine Palace durante um filme dos Trapalhões, sair correndo do bar porque o sujeito que estava com aquela moça tinha um revólver na mão, vandalizar todo o condomínio com requintes pirotécnicos, mandar o sujeito que me assaltou tomar no olho do cu; e no entanto, à medida que o tempo vai passando e o corpo não quer mais que um sofá confortável com suco de mangaba e uma ruga fica cada vez mais tempo entre as sobrancelhas, isso é tudo o que sobra, porque de todo o resto eu esqueci, as coisas de que me arrependo e as que faria de novo, as coisas que deveria ter feito e fiz, e nenhuma delas me faz sorrir, hoje.

Originalmente publicado em 22 de fevereiro de 2006

Manifesto em Defesa das Baratas ou A Barata é Nossa Amiga

Todos os seres vivos são iguais perante o Criador. Todos temos o direito de viver, e isso inclui até astrólogos de Maria e pseudo-feministas de caixas de comentários.

É em estrita observância a esses direitos universais, e ao reconhecimento do estabelecimento de uma nova moral ecológica, que anunciamos aqui a fundação da ARPAB – Associação Rafaeliana de Proteção às Baratas.

As baratas estão neste planeta desde milhões de anos antes de nós. Estarão aqui depois que o último homem der seu último suspiro em meio a uma nuvem radioativa. Este é o seu mundo, um mundo em que somos apenas hóspedes temporários. Nós não temos o direito de usurpá-lo de suas donas legítimas.

Devemos, antes de qualquer coisa, reconhecer sua superioridade absoluta em relação a nós. Quantos milhões de baratas são mortas todos os dias? Matam-se mais baratas em um dia do que rinocerontes em toda a História. E no entanto elas sobrevivem graças à sua tenacidade, enquanto nós, seres conscientes, agora lutamos para preservar os rinocerontes.

Devemos declarar guerra às baratas porque elas trazem doenças? Hipocrisia desses humanos inconseqüentes. Acaso não trouxemos nós tantas doenças ao Novo Mundo, acaso não extinguimos populações inteiras de silvícolas bonitinhos, e tantas índias ecologicamente conscientes não deixaram de dar de mamar a cachorrinhos inocentes? E apesar disso não pensamos em nos suicidar coletivamente como lemingues para expiar um pecado que todos nós carregamos em nossas almas. Em verdade, em verdade a culpa é nossa, que em vez de nos adaptarmos à convivência pacífica nos dedicamos a combatê-las com ódio irracional.

Como podemos erguer nossas vozes que se pretendem civilizadas em defesa do tratamento ético dos animais, enquanto tratamos nossas irmãs blatáricas de maneira vil e covarde? Baratas têm sentimentos como as chinchilas, têm instintos como as focas, querem viver como a Susan Hayward. E no entanto as assassinamos aos milhões todos os dias, e não fosse a sua superioridade biológica acabaríamos responsáveis por um grande desastre ambiental, interrompendo a cadeia alimentar.

Mas desastre ambiental não é o ponto fundamental, aqui, porque esse é um conceito antropocêntrico e precisamos abdicar dessa arrogância deletéria, essa coisa de nos acharmos os reis da Criação e da cocada preta. O que realmente importa é o respeito à mãe Gaia, é a consciência telúrica de um equilíbrio cósmico. Há que se respeitar o direito das baratas à vida. É inconcebível que não sintamos a dor da pobre baratinha atingida à traição por um jato de Baygon; inadmissível que nosso coração não se confranja enquanto ela, como um monge tibetano em chamas, corre sem direção em agonia e dor inimagináveis, chamando pela mamãe barata antes de morrer com as perninhas tremelicantes para cima. Que monstro é capaz de cometer tamanha iniqüidade sem derramar uma lágrima furtiva pelo trágico destino de nossa irmã? Como esses assassinos conseguem dormir à noite com a mancha do genocídio em suas mãos?

Uma barata tem o mesmo direito à vida que um leão, que uma vaca, que o Afanásio Jazadji.

A ARPAB vai se dedicar a campanhas educativas pela tolerância entre homens e baratas; à defesa da ilegalidade de drogas pesadas como Detefon, SBP e Rodox; à censura e banimento de filmes depreciativos e preconceituosos como Men in Black. Vamos fazer o Viva Rio abraçar o rio Maracanã e os tantos terrenos baldios espalhados pela cidade.

A ARPAB se dedicará também a reformar o nosso vocabulário. Nossos antecessores, tão íntegros e inteligentes como nós, mostraram que isso é possível, e agora anão é verticalmente prejudicado e puta é trabalhadora do sexo; vamos estender agora tal maravilha ao mundo das baratas — e vamos além, porque se anões continuam pequenos e putas continuam batendo calçada apesar dos nomes que lhes damos, nunca mais se ouvirá a expressão “sangue de barata”. Pois como podem associar covardia às baratas, essas criaturas valorosas que todos os dias se arriscam em incursões à casa de seus inimigos, e desafiando a morte e o perigo comem de sua comida? Baratas são sinônimo de coragem, e nossa ação em defesa do politicamente correto restabelecerá a verdade universal.

Aplaudamos, portanto, a chegada da nova consciência da Era de Aquário. Reconheçamos, finalmente, que a partir do momento em que julgamos errado criar chinchilas por suas peles, também se torna errado matar uma pobre barata que tem filhos para criar e um importante papel a cumprir na natureza. Nós, humanos, não somos melhores ou superiores a qualquer animal. É fundamental deixarmos de lado a hipocrisia e a conveniência, e adotarmos uma postura moral digna e, principalmente, coerente.

Um viva às baratas que merecem o nosso amor.

Originalmente publicado em 16 de fevereiro de 2006

Ecologia e hipocrisia

Dia desses, assistindo a um programa sobre criação comercial de chinchilas na TV Senai, apareceu uma senhora de uma dessas ONGs dizendo que suas objeções à atividade, cujo fim é a produção de peles, eram morais. Acrescentou que era diferente da criação de gado, à qual implicitamente aferia um nihil obstat.

E aí eu me confundi. Venho tentando desde então, mas ainda não consegui ver a diferença moral entre matar uma vaca ou matar uma chinchila. Ambos são seres vivos e nenhum deles gostaria de morrer.

É compreensível e louvável que protestem contra o assassinato de filhotes de foca ou baleias. É perfeitamente justificável a consciência da necessidade de respeito ao equilíbrio ecológico e à vida selvagem; nem tanto pelos animais ou plantas, mas pela sobrevivência humana. Mas quando se trata de criação comercial, uma atividade iniciada e controlada pelo homem, há mesmo alguma diferença entre vacas, chinchilas e jacarés? Eu não consigo ver nenhuma, além do fato de que chinchilas são bichinhos fofinhos e vacas têm olhares bovinos e babam — o que, numa interpretação freudiana bem liberal, fornece a justificativa para a condescendência desses ecologistas: elas lhes lembram suas imagens no espelho e portanto é OK matar as pobrezinhas. Uma espécie de masoquismo projetado.

Se criamos animais para o matadouro, que diferença faz se vamos aproveitar sua carne ou sua pele? Garanto que para o bicho diante do cutelo não faz nenhuma diferença. Parece sensato afirmar que esses limites morais são justificados pela necessidade humana. Mas ninguém, por exemplo, precisa comer carne. Ela fornece proteína? Soja também. Entupa-se de soja, portanto. Carne de soja. Leite de soja. Queijo de soja. Os Rolling Stones bebem leite de soja, por que não os mortais comuns? De fato, as pessoas podem passar suas vidas inteiras comendo apenas soja. Não há necessidade objetiva de carne, assim como não há de casacos de pele.

Mas coerência não é atributo desses ecologistas radicais, baseados em distorções pseudo-humanistas que acabam adquirindo os contornos de uma religião neo-pagã e materialista.

Para eles é eticamente aceitável matar uma vaca, mas não uma chinchila. Esse pessoal, com sua moral fácil e hipócrita de classe média urbana, não percebe sequer que o manejo de uma vaca é muito mais cruel e desumano que o de uma chinchila.

Imaginai-vos, dileta leitora, tendo vossas mamas apertadas duas vezes por dia. E não vos alegrai pensando que é o toque macio ou a mordida apaixonada do vosso amante: são as mãos ásperas e rudes de um vaqueiro desempenhando sem delicadeza uma tarefa automática. Isso, claro, se tiverdes a sorte de ser escolhida para a produção de leite tipo C; porque se quiserem tirar leite A de vossos úberes, ah, minha nega, então enfiarão vossas tetas em uns aspiradores implacáveis sem nenhum sentimento. E, por favor, não deixeis que eu vos fale de inseminação artificial. É pior, mil vezes pior que a posição humilhante que assumis diante de vosso ginecologista. Voltai ao carinho de vosso amante, e hoje à noite, aninhada em seus braços, não deixeis que um calafrio percorra vosso corpo ao lembrar-vos do pobre canal vaginal da vaca diante do aplicador comprido com o sêmem do touro; nem do reto, mais pobre ainda, diante do muito longo braço do tratador, que guiará o aplicador até o útero da vaca e, caso necessário, desobstruirá seus intestinos. Esquecei tudo isso e tomai um leitinho.

É graças a uma desconfiança inevitável em relação a esse relativismo moral que só confio em ecologistas vegetarianos. Por enquanto. Porque quando descobrirem que o príncipe Charles tem razão e as plantas têm sentimentos, eu só vou confiar em ecologistas mortos de fome.

E por tudo isso um dos meus sonhos é comprar um casaco de peles, mesmo achando-os terrivelmente cafonas, apenas para desfilar diante desses ativistas que ficam jogando tinta nos outros. Estaria, claro, devidamente acompanhado de uns quatro guarda-costas de excelente porte e péssima índole, apenas para vê-los dando um cacete nos idiotas quando emporcalhassem meu casaco. Se esse tipo de ativismo é a nova religião, está mais do que na hora de lhes dar um mártir.

Originalmente publicado em 15 de fevereiro de 2006

Paulo Francis

A Primeira Leitura de janeiro trouxe um artigo sobre Paulo Francis, comemorando os 40 anos de lançamento de seu primeiro livro. A matéria, assinada por Bruno Garschagen, é francamente elogiosa; os depoimentos de amigos e admiradores, como não poderiam deixar de ser, também.

Há ali pelo menos uma falha, não muito grave: não inclui na bibliografia de Francis o seu último livro, “Waal: O Dicionário da Corte de Paulo Francis”, coletânea de trechos de colunas de Francis organizada por Daniel Piza e publicada em 1996. Curiosamente, todas as citações do homenageado incluídas no artigo estão nesse livro.

A matéria também traz uma análise interessante das características do texto e das colunas de Paulo Francis: lembra que o seu estilo é uma espécie de precursor do que hoje se vê nos blogs. É verdade: o estilo de Francis casa, à perfeição, com os blogs deste início de século. Era pessoal, variado, “quente”.

Paulo Francis era brilhante. Não é preciso procurar muito para ver isso:

Dylan era idolatrado. É ainda, por alguns. Fez algumas coisas infelizes como ter um caso com a amiga de Mogadon Suplicy, Joan Baez. Fico imaginando os dois brigando e como arma final ele cantando “Blowin’ in the wind” e ela “Guantanamera”. É pior que barulho de murro em parede de quarto.

É impossível não cair na gargalhada ao ler trechos como esse, e é impossível não reconhecer o talento absurdo do sujeito. O problema começa quando se tenta alçá-lo a referência cultural do país.

A matéria, por exemplo, atribui “rigor intelectual” a Francis. Falso. Francis não era rigoroso sequer ao checar suas informações. Parecia preferir confiar em sua cultura, bastante vasta. Na verdade, o adjetivo que se aplicaria mais facilmente seria “abrangente”. E nisso ele era insuperável, como nenhum outro jornalista brasileiro jamais foi.

Era esse o seu papel, o de jornalista. Informava e, no máximo, podia servir de guia. O que ele escrevia, apesar de sua erudição e de sua verve, era quase sempre superficial, como é adequado a um jornal. Em tempos sem internet, muito do que ele escrevia era um reflexo do que acontecia na imprensa cultural de Nova York. E embora isso possa parecer menor, naquele momento era extremamente válido e importante.

A matéria diz ainda que Francis morreu “no melhor de sua forma e como o jornalista mais influente do país”. E as coisas não são assim tão simples.

A década de 90 não foi muito generosa com ele. Começou com uma discussão pública e bastante áspera com Caio Túlio Costa, então ombudsman da Folha de S. Paulo. Costa era, em todos os aspectos, um jornalista inferior a Francis: mas estava certo ao questionar os seus critérios jornalísticos, e Francis, se sentindo desprestigiado, acabou saindo da Folha e indo para O Estado de S. Paulo. Tinha perdido aquela.

Ir para o Estadão foi um mau movimento. Ali não havia a pluralidade e a efervescência da Folha. Francis passou a falar principalmente para conservadores como ele, e boa parte da repercussão que tinha se perdeu.

Um último golpe seria o livro “Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis”, de Fernando Jorge. O livro se dedicava a encontrar incoerências e coisas do tipo na obra de Francis. É curioso que Francis, que se antecipou aos blogs em 20 anos, pelo menos, tenha sido vítima de um fenômeno tipicamente blogueiro: o stalker, o desocupado que se dedica a um parasitismo deletério e obcecado, que alguns consideram uma espécie de homenagem e que outros, como eu, acham apenas um retrato pé-no-saco de uma mediocridade profunda. O stalker é um fã no espelho, aqueles espelhos de parques de diversões onde tudo é invertido e distorcido. De qualquer forma, o livro deve ter sido um golpe e tanto para Francis. E dizem que, quando morreu, estava deprimido diante do processo milionário que a Petrobras movia contra ele.

Em todos esses casos, os desafetos de Francis apontavam seus erros como jornalista. Perdiam de vista o que era essencial nele: sua noção do que era bom e mau em cultura, sua coragem em defender seus pontos de vista sem transigir com a demagogia, sua capacidade de provocar politicamente seus leitores. Ao mesmo tempo, mostram que é uma temeridade tentar fazer dele um pensador. Porque havia muito de impostura intelectual em Francis. Por exemplo:

O socialismo, segundo Marx, só poderia ser concretizado em países que tivessem atingido o limite do desenvolvimento capitalista e este, gerando uma classe operária consciente de seus direitos e politicamente ativa, soçobraria em face da revolução proletária. Para ser franco, acho isso moralismo judaico.

Parece uma análise brilhante e original em sua “franqueza”. Não é. Foi tirada de Edmund Wilson em “Rumo à Estação Finlândia”, e é uma redução até um pouco inepta do pensamento de Wilson. No entanto, Francis faz parecer que é sua.

(E na minha opinião os dois estão errados. A fé marxista em uma nova moral proletária deve menos ao Talmud que a Rousseau. E desde Lênin ninguém além de anti-marxistas leva essa necessidade de “evolução moral” muito a sério. A corrente se rompe em seu elo mais fraco.)

Essa impostura pode até ser aceitável em um jornalista cultural, embora com restrições. Mas é intolerável em um intelectual a ser tomado como modelo. Definitivamente, Paulo Francis não era um sujeito que se levasse muito a sério.

Mesmo assim, há um número enorme de viúvas de Francis entre a direita. É engraçado que normalmente esqueçam onde e como Francis ascendeu à fama: como jornalista de esquerda na Última Hora de Samuel Wainer, e depois no Pasquim. Ao contrário de suas viúvas, Francis normalmente sabia do que estava falando: trotskista de formação e grande leitor de Freud, tinha uma solidez cultural que a maioria da direita, hoje, nem sonha em ter.

Talvez por isso ele venha adquirindo uma dimensão que não deveria ter. Mas isso não é de agora. Francis morreu com menos de duas semanas de diferença em relação a Darcy Ribeiro. A importância de cada um deles não pode ser sequer comparada. Darcy foi antropólogo, ministro, senador, fundador da UNB, escreveu livros importantes para a compreensão do brasil; Paulo Francis foi apenas um jornalista. No entanto, o finado Francis mereceu a capa da Veja, enquanto o defunto Darcy ganhou meras duas páginas na seção de obituários da mesma revista. É assim que criamos nossas referências culturais.

Originalmente publicado em 27 de janeiro de 2006

O papa de Hitler

Um artigo curioso na Primeira Leitura de dezembro: Hugo Estenssoro faz uma resenha de The Mith of Hitler’s Pope, do rabino David G. Dalin. O livro procura derrubar a idéia de que o papa Pio XII fez vista grossa à perseguição dos judeus pelos nazistas.

Não li o livro, o que faz deste post apenas um comentário sobre a resenha e sobre os aspectos ressaltados nela.

O problema de Dalin, como apresentado, parece ser a fraqueza de grande parte da argumentação. Dalin torce ao máximo interpretações, inclusive retirando-as de seu contexto histórico, para recriar a imagem que teve o papa até 1963: a de um líder que, embora pudesse ter feito mais, ao menos fez sua parte. E isso é uma inverdade.

A resenha afirma que Dalin “consegue também fundamentar suas afirmações com erudição e elegância. Assinala, por exemplo, que Hitler dificilmente teria desenvolvido planos de seqüestrar o papa se ele fosse seu aliado”. Não consigo ver a elegância em simplesmente dar uma opinião na base do “se”, mas essa afirmação equivale a dizer que Hitler dificilmente teria invadido a União Soviética se Stalin fosse seu aliado. No entanto, foi exatamente isso o que aconteceu. Dalin parece subestimar o que há de temporário em política para justificar os atos do papa, e parece não entender que alianças são quase sempre efêmeras — ainda mais em tempo de guerra. Hitler, mesmo tendo entre seus defeitos uma ignorância crassa e um profundo eurocentrismo — uma das razões para perder a guerra –, sabia disso.

“A decisão de acolher uns 3 mil judeus em Castelgandolfo, durante a ocupação alemã de 1943, foi simplesmente um ato de coragem”, como afirma o livro? Talvez. Mas essa coragem talvez empalideça quando imaginamos as manchetes do dia seguinte, em caso contrário: “Vaticano se recusa a acolher uns 3 mil refugiados judeus”. O custo moral, mas principalmente político, para o Vaticano seria muito maior, e Pio XII sabia disso. Não se está dizendo aqui que o asilo dado tenha sido resultado de covardia; apenas relativizando a “coragem” que julgam ver ali.

É preciso lembrar que, além de líder espiritual, o papa era o chefe de um Estado soberano. E dentro dessas condições parece humilhante comparar 3 mil judeus salvos principalmente por falta de opção aos 1200 que Oskar Schindler, trabalhando dentro do sistema e sem metade das garantias de que o papa dispunha. Se os 3 mil refugiados representam um ato de coragem para um homem com o poder papal, os judeus de Schindler representam um ato divino.

“O fato de Pio 12 não ter excomungado Adolf Hitler ou os carrascos dos judeus (…) é uma questão bem mais complexa, embora a secular história da Igreja demonstre que os resultados são quase sempre contraproducentes”. Provavelmente o imperador alemão Henrique IV, humilhado e ajoelhado na neve de Canossa, aonde tinha ido suplicar ao papa Gregório VII a suspensão sua excomunhão, pensava nesses aspectos curiosos das coisas de Deus. Certo, é preciso admitir que no século XX excomunhões significam pouco ou nada. Mas há uma diferença entre “contraproducente” e “ineficaz”.

Dalin tem razão ao afirmar que “não há razões concretas para pensar, como fica claro com o material exposto no livro, que um enfrentamento aberto com o Terceiro Reich teria melhorado ou aumentado a capacidade do Vaticano para contrariar, evitar ou atenuar a barbárie nazista”. Assim como São Paulo não tinha nenhuma razão para acreditar que ser apedrejado em Listra ou açoitado em Filipos faria alguma coisa pelo crescimento do cristianismo. Se se posicionar abertamente contra o nazismo, e reconhecer o crime contra a humanidade na perseguição aos judeus, poderia ou não ter surtido algum efeito, é algo que pode ser deixado à imaginação de cada um. O certo é que o silêncio de Pio XII não fez absolutamente nada contra essa estado de coisas.

É esse o defeito principal nessa abordagem do papel da Igreja Católica em relação a essa crise. Ela borra a linha que separa heróis de covardes — ou, se essa palavra parece muito forte, de “prudentes”. Pode-se aceitar do alemão comum o silêncio, até mesmo a colaboração. Mas tal atitude é inaceitável no líder espiritual de milhões de almas. É a coragem que, por exemplo, os primeiros cristãos tinham de sobra, ainda que em meio a uma névoa de fanatismo. A coragem que milhares de cristãos alemãos tiveram ao esconder judeus em suas casas. A mesma coragem que faltou a Pio XII.

Originalmente publicado em 12 de janeiro de 2006