Dia desses o Hermenauta citou um enólogo que disse que nenhum vinho vale mais de 100 dólares. Na hora discordei rapidamente e deixei para lá, porque era tarde e ninguém tem a obrigação de aturar minhas diatribes.
Mas fiquei pensando nisso. O tal enólogo certamente não concorda com Fernando Pessoa, de quem furtei o título deste post. E cheguei à conclusão de que dizer isso é o mesmo que afirmar que nenhum carro vale mais que um Corolla.
Aos fatos: não existem mais carros ruins. Até aqueles chineses que se desmanchavam em movimento hoje conquistam mercado com um nível de qualidade cada vez maior. Mesmo o carro mais barato vendido no Brasil tem confiabilidade, conforto e segurança impensáveis 50 anos atrás.
Assim, o Corolla deveria ser um carro suficiente para qualquer pessoa — ou pelo menos é o que me dizem, porque nunca tive um e andei em muito poucos. Confiável, seguro, equipado com mais que o básico para o seu conforto. Está aí há décadas, e deve haver uma razão para isso.
Mas algumas pessoas precisam carregar carga, precisam de tração 4×4. Outras não abrem mãos das possibilidades de velocidade um Porsche oferece. Algumas pessoas precisam, ou acham que precisam, de mais espaço. Tem gente que faz de um carro uma afirmação ética, e se aboleta num Tesla. Ou faz questão daquela BMW que abaixa para você entrar nela, mais ou menos como uma jega do avô de um amigo já ia abaixando os quartos quando via o dono se aproximar.
No caso dos vinhos, a verdade é que quase todo vinho em torno dos 50 reais no Brasil é ao menos correto, sem grandes defeitos. Geralmente vale o que custa. A questão é que ele não vai oferecer a complexidade de cheiros e gostos que um vinho de 100 dólares — mais ou menos mil reais no Brasil — pode oferecer. Um vinho como o Marques de Casa Concha custa mais ou menos 25 dólares e, ele também, é suficiente para a vontade de beber um bom vinho seja plenamente saciada.
Se o tal enólogo dissesse que um vinho de 100 bidens é mais que suficiente para qualquer pessoa, eu assinaria embaixo. Diria que pode até ser um desperdício para quem gosta mesmo é de um Pérgola. Objetivamente, ninguém precisa beber um vinho desse preço, mas qualquer pessoa acostumada a beber vinho vai perceber a diferença e se sentir mais recompensada por isso.
Mas há possibilidades num vinho que só a fabricação mais elaborada e o tempo podem oferecer. E isso custa dinheiro. Claro, não é para todo mundo — mas um Porsche também não é, e não apenas por causa do preço. É a isso que se chama valor. Eu sempre disse que jamais compraria o Romanée-Conti que vi uma vez por meros 32 mil euros, porque duvido que alguém neste mundo tenha papilas gustativas suficientes para justificar esse preço; quem compra isso segue o mesmo raciocínio — ou falta de — que faz um redator gastar 18 mil reais num MacBook Pro para fazer o que qualquer PC faz por 3 mil. Mas a verdade triste é que eu seria capaz de dar, uma vez na vida, os 4 mil pedidos num Petrus, se 4 mil euros fossem para mim o equivalente a duas mariolas e um cigarro Yolanda.
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Pensar nisso me lembrou de tempos idos há muito, e de como eu e o vinho sempre fomos bons amigos, ou quase sempre.
Nos anos 70, o que frequentava as mesas da classe média brasileira em Salvador era o Chateau Duvalier, vinho que, acho, nem existe mais de tão ruim que era. Lá em casa muito raramente havia bebidas, mas de vez quando aparecia uma garrafa dessas, sempre tinto, e me deixavam tomar um pouco, com água e açúcar.
No réveillon de 1980 acordei depois que a festa lá em casa, de que eu não tinha participado porque dormia muito cedo, havia acabado. Meio da noite, casa vazia. Vi uma garrafa de Chateau Duvalier rosé, que eu nunca tinha tomado, e resolvi tomar um pouco. Coloquei o vinho, a água, o açúcar, e tomei um gole. Vomitei tudo, imediatamente.
O mais próximo que cheguei de um rosé desde esse dia foi um clarete espanhol, uns 10 anos atrás.
Aí pelo final da adolescência, saindo por algum tempo com uma moça que comprava sempre um branco português chamado Calamares, me acostumei a beber uma garrafa inteira, sem problemas. Pouco depois, fui trabalhar numa agência grande em Salvador, por um salário que, para mim que andava mordendo beira de penico dizendo que era biscoito, era inimaginável.
Resolvi comemorar o meu primeiro salário com uma garrafa de vinho. Parei no Paes Mendonça do Shopping Piedade, no caminho da casa de minha avó, e perscrutei a prateleira de vinhos. Estava decidido a comprar uma garrafa de vinho chique, porque o mundo dá voltas, né, queridinha? Escolhi um vinho do Porto, de que eu já tinha ouvido falar em tantos e tantos livros — o senhor Wickfield castigava um Porto direitinho, em “David Copperfield”. Comprei até uma taça, que não havia na casa de minha avó, para beber um vinho comme il faut. Era dessas taças em que restaurantes simples mas metidos serviam água e refrigerantes.
Cheguei em casa, enchi a taça e em duas horas tinha bebido a garrafa inteira. Acordei debaixo do chuveiro, onde meu tio tinha me jogado para que eu não vomitasse a casa inteira. Foi a pior ressaca de minha vida, e dela não tenho saudades. Mantive distância de vinho do Porto até pouco tempo atrás, quando um amigo trouxe uma garrafa de Portugal para mim.
E os anos se passaram. Aprendi que vinhos suaves de mesa, os velhos e bons vinhos de garrafão, ofereciam excelente relação custo-benefício, e que o Figueiras era melhor que o Dom Bosco. Devo noites muito agradáveis a eles.
Na virada dos anos 80 para os 90, como resultado da evolução da vitivinicultura brasileira, começou-se a falar mais amiúde em uns tais “varietais”; até então, nós da plebe ignara só conhecíamos tinto, branco, rosé e champagne Georges Aubert — e o Surpresa, um espumante artificial que devia envergonhar seu fabricante. Foi quando surgiram, pelo menos para mim, marcas sofisticadérrimas como Forrestier e Almadén. Na minha imaginação, o Forrestier estava ali, pau a pau com o Chateau Lafite que eu sequer sabia que existia.
Em 92, 93, um sábado em que um dinheirinho a mais apareceu, fui até o supermercado e comprei uma garrafa de vinho, para beber enquanto lia os jornais do dia que só chegavam à tarde em Aracaju, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo.
Escolhi com mais cuidado que daquela vez em Salvador. Por via das dúvidas, apostei num branco de marca reconhecida e elegante: um “semillon blanc” da Almadén — o blanc era por conta deles, claro.
E enquanto bebia, sentia um cheiro estranho naquele vinho. Cheiro de algo meio podre, passado. Era como se eu tivesse comprado um minas frescal e recebido um camembert.
“Então esse é um vinho sofisticado”, foi o que pensei. “Então esse cheiro de cavalo suado é o cheiro da sofisticação, da elegância. Melhor eu me acostumar, não vou ser pobre para sempre.”
Só muito tempo depois entendi que aquele vinho estava contaminado com Brett. E o pior é que, depois de metade da garrafa, eu já estava gostando mesmo do negócio.
O tempo passou, os chilenos apareceram, vinho virou moda. Como já disse aqui antes, bebo bem mais que os padres do Vaticano, com a vantagem de não gostar de menininhos. Apesar de toda aquela conversa da primeira parte deste post, os vinhos lá de casa nunca passam dos 250 reais, e a grande maioria anda aí na faixa dos 50, porque eu gosto de beber mas não tenho dinheiro para comprar um Corolla e não tenho dinheiro para comprar um premier grand cru classé ou um brunello de Montalcino.
E porque, no fim das contas, é Pedro quem me orienta ainda hoje, a lembrança dele no dia em que, jovens estroinas que éramos no comecinho dos anos 90, resolvemos esbanjar comprando um Chateau Duvalier — sempre ele. Pedro não viu a garrafa e quando recebeu o copo, deu o primeiro gole, fez uma careta e se indignou:
— Oxente, e agora deram para falsificar o Dom Bosco, foi?