Bolsonaro, o perdão ao Holocausto e o desvio da esquerda

A reação à declaração do tenente expulso do Exército, Jair Bolsonaro, de que podíamos perdoar o Holocausto, mas não esquecê-lo, é uma mostra do quão míope e desconectada da realidade está uma parte da esquerda, pelo menos essa que parece militar em posts de Facebook e respostas inteligentes no Twitter.

O Holocausto se transformou em um trunfo histórico e político para o movimento sionista. Golda Meir mostrou entender isso perfeitamente ao dizer que “depois do que fizeram conosco, podemos fazer tudo”. É o que justifica a atuação de grupos como o Yad Vashem, que se recusa a aceitar homossexuais, ciganos e comunistas como vítimas do Holocausto, e o que motivou o protesto preconceituoso de certos setores judeus nova-iorquinos quando, no início dos anos 1990, um museu tentou promover uma mostra sobre essas vítimas do Holocausto. Em grande parte, essa é a justificativa subjacente ao colonialismo agressivo e ao genocídio que Israel executa há décadas na Palestina.

Mesmo gente mais ilustrada tem dificuldade em compreender a dimensão tenebrosa da Solução Final. Certos setores do movimento negro, por exemplo, tentam (inadvertidamente ou não) relativizar o Holocausto comparando números com outro crime contra a humanidade, a escravidão africana nas Américas, sem entender sequer o mínimo: que para além da questão racial inerente e justificadora, a escravidão tinha motivação e racionalidade econômica, enquanto o antissemitismo não tem nenhuma — ao contrário, é absolutamente irracional, ódio puro que deve ser materializado não importa o custo econômico. Escravizar negros gerava lucro; matar judeus representava um prejuízo que valia a pena diante do ódio aos “assassinos de Cristo”.

E no fim das contas nada disso quer dizer alguma coisa para 95% dos eleitores de Bolsonaro.

Analfabetos políticos e simplórios, eles estão absolutamente alheios a questões históricas como essa. Para eles, o Holocausto representa pouco ou nada. É algo que, quando ouviram falar, sabem ser errado, mas que já passou e não afeta suas vidas. Não têm a dimensão do horror, e para eles Auschwitz é algo quase tão distante, e sem nenhuma conexão emocional, quanto a batalha de Hastings.

Para esses eleitores, quando Bolsonaro diz que “podemos perdoar o Holocausto, mas jamais esquecer”, ele não está subscrevendo o nazismo, não está justificando suas ações, não está se posicionando a favor desse crime. Fora do sectarismo militante, pelo contrário, para seus eleitores ele mostra uma faceta que seus opositores não conseguem ver nele: um governante tolerante, moderado. É o contrário do psicopata fascista que seus opositores enxergam, e do idiota funcional, reacionário, ignorante e despreparado que ele realmente é. E nesse caso, ele é transformado, para aqueles que o elegeram, em vítima.

Ainda mais triste — ou talvez mais uma prova desse entrincheiramento intelectual míope — é que eles não conseguem ver que algo semelhante aconteceu com Lula. Quando ele traduzia posicionamentos mais complexos em palavras simples, quando dizia que “a gente não vai pagar a conta dessa crise criada pelos louros de olhos azuis”, ele era rechaçado pela elite, que o acusava de analfabeto — enquanto se fazia entender pela patuleia, que era o que interessava a ele. Bolsonaro faz isso de maneira mais simplória, talvez até involuntária.

O resultado é que o eleitor médio de Bolsonaro continua se identificando com ele. Com as barbaridades que diz, com a incompetência verbal. Esses eleitores foram educados, ao longo de quase 40 anos de exercício da democracia em eleições, a descrer de promessas de campanha de candidatos e confiar no seu “bom senso” e na opinião majoritária de sua comunidade. Eles veem no idiota twitteiro o seu mesmo padrão de comportamento, de pensamento, o mesmo modo de ver o mundo e se posicionar diante dele.

Talvez o fenômeno mais curioso nessas eleições tenha sido o número de famílias de latrocidas, de gays e negros que votaram nele. Para eles, o discurso identitário nunca surtiu efeito. Eles focaram seletivamente naquilo que lhes: o discurso do combate à corrupção, da restauração da ordem, do fim de privilégios que só os outros têm, do conservadorismo de costumes que representa uma estabilidade existencial perdida há muito tempo (se é que alguma vez existiu). Anos de bombardeio da mídia contra a corrupção inventada pelos petistas o tornaram descrente e radical, infelizmente com a ajuda alegre de uma parte do PT. E o crescimento da penetração das redes, da possibilidade do compartilhamento em massa de ideias semelhantes e compreensíveis, ainda que estúpidas, lhes deu força e autoafirmação.

É isso que essa parte dos seus opositores não consegue enxergar. É um problema que aparentemente tem origem no momento em que o Muro de Berlim caiu e a esquerda perdeu o referencial ideológico e concreto do socialismo. Órfã, se tornou presa fácil para a dominação das pautas identitárias, que sobrepunha questões de gênero e étnicas à luta de classes.

Desde o início, quem conseguia ver um pouco além dos posts lacradores de uma esquerda que achava que todo mundo ia se afastar de Bolsonaro pela sua homofobia, pelo seu racismo, pelo seu machismo delirante, tinha muito mais medo da sua incompetência e do seu despreparo. Mas a guerra de informação que se travou nas redes, especialmente no WhatsApp, se deu a partir de uma militância que privilegiava esses argumentos — que, no fim das contas, apenas galvanizavam a certeza de cada lado de que ele é que estava certo, levando a um impasse infértil que ajudou, mesmo que pouco, a beneficiar o candidato de uma direita desesperada.

É uma esquerda que se recusa a compreender as consequências sociológicas do crescimento do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade; que denuncia acertadamente que negros são as principais vítimas da violência, mas convenientemente esquece o que essas vítimas sentem na pele: que negros são também os perpetradores imediatos dessa violência.

Mais importante, não consegue entender as mudanças profundas que o capitalismo vem atravessando, possibilitadas pela tecnologia, e que transformaram profundamente a natureza das relações de trabalho. O sujeito que trabalha no Uber, o motoboy, o ciclista do Uber Eats, o caminhoneiro que está pouco se lixando se os subsídios que Bolsonaro prometeu há pouco vão beneficiar principalmente os fabricantes de pneus, os milhares de MEIs que aos poucos se tornam a norma nas relações trabalhistas representam uma mudança profunda e irreversível, que afeta profundamente a maneira como essas pessoas enxergam as pautas da esquerda. Para elas, que se veem não como explorados, mas como agentes autônomos, e que acham que seu sucesso depende apenas do seu próprio esforço, questões como previdência e pisos salariais representam antes de tudo a defesa de privilégios que certamente não são seus.

É com essa realidade complexa, em que certo e errado são cada vez mais fluidos, verdadeiros ou falsos apenas para um fragmento da sociedade mas não para outros, e que são definidos por experiências muitas vezes conflitantes, que essa esquerda teria que lidar — mas suas pautas identitárias impedem isso. Em vez de tentar compreender e lidar com esses processos, essa esquerda se esbalda em estultícies como o conceito de apropriação cultural.

As classes dominantes deste país nunca tiveram medo de se jogar aos crocodilos, se isso impedisse a esquerda de assumir o poder e promover mudanças estruturais que temem quase irracionalmente, em parte pela ignorância atávica e provinciana que lhe é característica e que fez, por exemplo, os médicos cearenses que foram vaiar os cubanos do Mais Médicos se espantarem ao ver que em Cuba há médicos negros. Já tinham feito isso com Castello Branco, e mesmo com Fernando Collor. A diferença é que agora, com a internet dando voz a uma legião de imbecis que sequer sabe escrever — e que se recusa até mesmo a confiar no corretor ortográfico do Microsoft Word —, quanto mais pensar política, essa burguesia tem ao seu lado uma camada de gente ignorante, preconceituosa e burra que assume como seu esse discurso. Eles, a propósito, são um indício de que em algumas coisas Marx estava errado. O barbudo não conseguiu prever que poderíamos viver a ditadura do lumpemproletariado.

De qualquer forma, são essas pessoas que ajudarão a decidir o futuro do país, e é com elas que se precisa dialogar. Mas essa esquerda parece não entender que política não é uma disputa para ver quem está moralmente certo ou errado. Infelizmente, é essa a base dessa esquerda identitária, aparentemente mais interessada em se afirmar diante de seus pares do que em conseguir conquistas tangíveis, mais interessada em fazer valer sua visão sectária de mundo do que em efetivamente mudá-lo.

Fases

Eu nem ligo muito quando vejo o pessoal falar que a segunda fase dos Beatles é que é boa, que o resto é bobagem. Pessoalmente, considero a tal primeira fase muito mais revolucionária que a segunda, como já escrevi aqui, mas entendo que as pessoas pensem diferente. Entendo inclusive que algumas pessoas pensem que a Terra é plana. O único problema é que elas estão completamente, uterinamente erradas.

Primeiro porque essa divisão é equivocada. Não há apenas duas fases dos Beatles. Essa ideia foi sedimentada por aquelas coletâneas lançadas alguns poucos anos depois do fim da banda, The Beatles 1962-66 e The Beatles 1967-1970, também conhecidos como os álbuns Vermelho e Azul. Mas a obra dos Beatles é uma evolução constante, do primeiro compacto ao Abbey Road, e foi assim que foi vista em seu tempo. Para efeito de classificação, entretanto — essas imbecilidades em que a academia é mestra —, é possível no máximo fazer uma divisão porca em três fases, mais ou menos. Essa classificação foi feita pela primeira vez por Joe Brennan, se não me engano.

A primeira fase, caracterizada pela abordagem mais básica, estruturada sobre as possibilidades de uma banda com duas guitarras, baixo e bateria, e adequada à necessidade de ser reproduzida ao vivo, iria até o Help!; a segunda, que compreende as fases “de transição” e a “psicodélica”, extremamente experimental, poderia ter como marcos inicial e final o Rubber Soul e o Magical Mystery Tour (incluindo aí o Yellow Submarine, lançado depois mas composto por sobras de 1967); finalmente, uma terceira e última fase, inaugurada com o “Álbum Branco”, que um materialista dialético — fora de moda em tempos de pós-verdade, mas me perdoem por não conseguir deixar de ser um velho comunista — poderia chamar de síntese.

Essa divisão, no entanto, não sobrevive a uma investigação mínima de cada canção.

Olha She Came in Through the Bathroom Window. É uma das faixas do último e mais perfeito álbum dos Beatles, o Abbey Road. Agora compara a danada com uma canção menos conhecida chamada It’s Only Love, do Help!. It’s Only Love tem um problema a mais: para muita gente é uma canção ruim, porque Lennon disse que não a suportava e a palavra de Lennon deveria ser lei.

John Lennon foi para o inferno não pelas barbaridades que cometeu ao longo da vida, mas porque o seu revisionismo magoado e despeitado no início dos anos 70 induziu milhões de pessoas em todo o mundo a uma visão deturpada e errônea da obra da banda que ele fundou, mas não soube levar adiante. Um de seus grandes pecados foi macular algumas canções com opiniões bizarras que um fã que o conhece bem até entende, explica e desculpa, mas que para o resto do mundo serviu apenas para gerar preconceitos infundados. Não custa lembrar: Lennon é o sujeito que disse que o melhor trabalho dos Beatles é aquele hoje disponível nos Live at BBC I e II.

De modo geral, Lennon tinha muito orgulho dos Beatles. Mas por razões que dizem respeito unicamente à sua evolução intelectual e espiritual e à influência muitas vezes nefasta de Yoko Ono, chegou à conclusão de que It’s Only Love, entre umas poucas outras, era uma canção muito ruim, que o envergonhava. É possível que se referisse especificamente a algumas soluções líricas pouco brilhantes, a algumas rimas pouco elaboradas. Lennon via uma canção, prioritariamente, do ponto de vista da letra. A sorte é que não é assim que as pessoas enxergam a música: por exemplo, em nenhum momento os Beatles se aproximado da sofisticação e brilhantismo literários de Bob Dylan em sua melhor fase, os seis discos absolutamente geniais entre The Freewhelin’ Bob Dylan e Blonde on Blonde. E no entanto os Beatles eram tão maiores que Dylan.

O que interessa é que para uma parte significativa das pessoas It’s Only Love é ruim, ponto, foi John quem disse. E se um pai renega seu próprio filho, boa bisca ele não deve ser.

Por causa disso, quase por definição She Came in Through the Bathroom Window é muito superior a It’s Only Love.

É claro que Bathroom Window traz qualidades a mais, que vêm principalmente da evolução sem precedentes da música pop e da própria banda nesses curtíssimos anos; os músicos são mais experientes, mais hábeis, mais inventivos: não dá para comparar, por exemplo, o baixo de McCartney nas duas canções. Mas qualquer doido que toque as duas canções num violão entenderá o óbvio: melodicamente, It’s Only Love é muito superior. Nela, a progressão de acordes, além de mais rica, é por vezes surpreendente — é mais ou menos como se Lennon tivesse compreendido com perfeição o ideal platônico por trás daquele F que Buddy Hollly tirou da manga para encaixar em Peggy Sue. A estrutura de She Came in Through, por sua vez, é muito mais simples, A D, A D, A Dm, A Dm, G7 C, G7 C A, e uma pessoa mais malvada poderia dizer que é a mesma base de Lady Madonna, descontado um Bm aqui, um G ali, um F acolá.

Alguém pode argumentar que liricamente a canção do Abbey Road é mais sofisticada. E é aí que a desgraçada da porca torce o rabo.

Por que é mais sofisticada? Porque fala de algo que nos parece mais chique, porque fala de coisas que a gente não entende direito? “Ela entrou pela janela do banheiro protegida por uma colher de prata”. “Ela trabalhava em quinze boates por dia; e embora achasse que eu sabia a resposta, bem, eu sabia mas não podia contar”. E o melhor dos melhores: “O domingo telefona para a segunda, a terça telefona para mim”.

O uso excessivo de maconha por Paul McCartney é demasiado conhecido e deveria servir para explicar essa letra. De qualquer forma, se você sabe o que ele queria dizer com isso, por favor me dê um alô.

Enquanto isso, It’s Only Love fala de algo que milhões de adolescentes reconheceram como verdadeiro imediatamente. Why am I so shy when I’m beside you?, Lennon perguntava, e aquela matilha de garotos incapazes de chegar junto da garota pela qual, juravam naquele momento, morreriam de amor mais cedo ou mais tarde compreendia isso perfeitamente bem. Entendia também a resposta dada pelo próprio Lennon um pouco adiante: “É só amor, e isso é tudo; por que eu deveria me sentir desse jeito? É só amor, e isso é tudo; mas é tão difícil amar você”.

It’s Only Love é um exemplo muito melhor da conexão estabelecida entre os Beatles e a multidão de seres humanos que se reconheciam em sua letra ao mesmo tempo em que descobriam, através de suas melodias, novas possibilidades musicais. Essa conexão foi única em toda a história. Não se repetirá jamais. E It’s Only Love a exemplifica adequadamente.

O fedor

Dia desses me bati com um depoimento de uma francesa no Quora dizendo que essa conversa de gauleses cheirarem mal é mentira, que isso não existe, que eles fazem os melhores perfumes do mundo.

Qualquer pessoa pode contrapor essa afirmação delirante com mais que o senso comum. Por exemplo, com estatísticas sobre o uso de sabonete — os franceses não são muito chegados nessas sofisticações e as consomem bem menos que outros povos europeus. Eu poderia contradizer essa moça com uma história pessoal muito triste.

O fato é que quando vejo um francês dizendo com a cara mais sonsa que “nóis num fede não” a vontade que dá é de dar uns tapas para ele deixar de ser cínico desse jeito. Alguém devia deixar a polidez de lado e dizer na lata que eles fedem, sim. Fedem muito. Pegue um metrô em Paris no verão ou num dia de chuva para você ver uma coisa. Quantas vezes vi senhoras com cabelos literalmente duros de tanta sujeira acumulada, o tipo de cabelo que a gente cá na Ilha de Vera Cruz só vê na volta dos blocos de carnaval em Salvador. Uma vez, em Londres, uma senhora loura, gordota, entrou numa loja de camisetas em Camden. Fedia, fedia, fedia. “Saporra é francesa”, pensei. Se eu tivesse falado em voz alta perto de outras pessoas teria falsamente me arrependido imediatamente pelo meu preconceito, com a hipocrisia diante dessas coisas que me é peculiar, mas teria ao menos o consolo de estar certo assim que ela abriu a boca e lascou um combien.

Mas nada pode se comparar ao dia que, até hoje, às vezes lembro em sonhos, pesadelos dos quais invariavelmente acordo suado, gritando, pedindo ajuda a um Deus que nunca, nunca, nunca me ouve.

Tem alguns anos, isso, quase dez. Eu descia o boulevard Saint Michel e entrei numa Gap porque resolvi comprar uma camisa.

O provador da loja era no subsolo. Lá fui eu, com duas camisas — iguais, mas de cores diferentes — que, se bem sucedido, me fariam parecer um marinheiro marselhês, e quem sabe eu não poderia vir a ser um dos ajudantes do Conde de Monte Cristo, ou pelo menos me enturmar com a Brigitte Bardot e a Isabelle Adjani. A camisa eu já tinha.

Infelizmente o provador estava ocupado. Fiquei por ali, olhando as modas bagunçadas em volta, até que o sujeito saiu do provador.

Era um francês típico, coisa que para mim, turista invariavelmente embasbacado, era algo cada vez mais raro. Naquele ano mais que em outros: graças a Lula, eu nunca tinha visto tanto brasileiro nas Oropa, e ali, em Paris, em todo lugar que se ia o português com sotaque paulista ou carioca se fazia presente como na feira de Caruaru.

O patrício que saía do provador parecia saído de um livro de Simenon: era muito branco, cabelos pretos, alto, magro, o nariz aquilino de De Gaulle. Trazia um pulôver furado, mas do jeito que ele olhava para o mundo, aquilo parecia mais charme do que pobreza. Um francês. Se eu, paraíba, saísse com uma roupa furada daquele jeito olharia para as pessoas pedindo desculpas por existir — mas ele, francês, não estava nem aí.

Assim que ele saiu do provador, eu entrei. Não devia ter feito isso. Devia ter esperado algumas horas, talvez dias. Melhor, devia ter ido a outra loja, no boulevard Magenta tem umas lojas tipo sulanca que acabariam sendo uma escolha melhor. Era melhor ter pego o próximo avião de volta para o Brasil, era melhor me deixar chicotear por dez mouros cegos. Eu teria sofrido menos.

Porque eu nunca tinha sentido um cheiro igual àquele; parecia o cheiro de dez mil sovacos jamais lavados, suados, sofridos, calejados numa muleta. O cheiro de trinta mil escravos hebreus construindo a pirâmide de Gizé na época da seca do Nilo. Acredito que o filho da puta não tomava banho há meses. Não era só o sovaco: era o cheiro de um corpo completamente imundo, um corpo que não via água — quanto mais sabonete — havia meses. Eu nunca vi um fedor daqueles. Eu que tinha orgulho de lembrar que, em meus verdes anos, andei em tantos lugares a que pessoas decentes jamais iriam. Havia o fedor bom, as moças da minha adolescência que fediam a perfume Avon. Havia o fedor ruim, o fedor dos doidos que moram na rua, o fedor do desespero, da tristeza, da loucura; o fedor da miséria que destrói as noções de higiene porque o esforço para conseguir sobreviver é tão maior que essas bobagens. Mas aquele era um fedor diferente. O fedor que eu sentia ali, e que pela primeira vez em minha vida me fazia ter ânsia de vômito em um provador de roupas, era o fedor da imundície consciente, desnecessária, pusilânime.

Tive que sair dali imediatamente, sufocado, cego, trôpego. Dir-me-iam bêbado.

Esperei algum tempo e entrei de novo no provador. Ainda fedia, e muito, mas agora era tolerável. Experimentei a camisa rapidamente, vi que dava em mim, saí correndo, deixando para trás os demônios que me assolavam e tiravam minha saúde.

Como a vida sabe ser canalha e debochada, fiquei exatamente atrás do sujeito putrefato na fila do caixa. Vestido o filho da mãe fedia muito menos.

Eu jamais esqueceria essa experiência. Mas demorou alguns anos até entender que isso era carma. Essas coisas orientais que dizem que o que vai, volta. Eu não acredito nessas besteiras, não consigo. Mas eu não acreditava que o povo brasileiro ia eleger Bolsonaro e olha ele aí. É por isso que hoje sei que aquele francês imundo foi a forma como as parcas resolveram me lembrar de maldades cometidas em outros tempos.

***

A negona no caixa, com óculos de Risoleta Neves, grossa, metida, canalha, apenas dizia: “Vingt sous, vingt sous!”, e me olhava como quem olha uma lagarta que rói a sua roseira.

Era a mesma Paris, uns muitos anos antes. Estou perto do Louvre e a moça que está comigo precisa ir ao banheiro. Descemos numa das estações de metrô, que eu não lembro mais. Talvez tenha sido a Palais Royal, talvez a Louvre-Rivoli — certamente a linha 1.

E enquanto esperava, resolvi que ia no banheiro também, fazer xixi. Entrei no banheiro e a negona me lascou um vingt sous.

Eu sou baiano e considero desaforo pagar 20 centavos de franco para dar uma mijadinha. Não. Na minha terra, na velha Cidade da Bahia de Jorge Amado e do mano Caetano, a gente mija e caga na rua, na calçada — ultimamente essas coisas de civilização andam atrapalhando e o pessoal parece estar mais tímido, mais acanhado e cheio de não-me-toques, mas além de todo ano haver um carnaval para nos redimir, de vez em quando a gente vê o resultado do trabalho de um saudosista — e pode acreditar, uns anos atrás fui à praça Castro Alves com minha então namorada e ali, atrás da estátua da poeta, um baiano tinha deixado sua homenagem a séculos de escravidão, de exploração, de suor e sangue.

(Acho, no entanto, que ele foi apressado demais. Esperasse uns anos e poderia ter feito aquilo atrás da estátua de Gregório de Matos, era só atravessar a rua. Porque isso tem mais cara de Gregório que de Castro Alves, convenhamos.)

Mas certo, Paris, a conversa era outra. A negona repetindo com cara feia vingt sous, vingt sous. OK. Então tá, se eu tenho que pagar que seja pelo serviço completo.

Era a minha primeira visita a Paris. Eu tinha acabado de achar uma rua que aparentemente homenageava meus ancestrais, a rue de Valois. Via pela primeira vez a única cidade que, até o fim dos meus dias e não importa quantas eu conhecesse depois, iria rivalizar com Salvador. O grau de excitamento só era igualado pela vontade de parecer cool, calm, collected. E por falar em cool, com tudo isso fazia dias que eu não ia ao banheiro.

Aquele era um banheiro tão bonito, tão antigo, tão chique. O mosaico no chão remetia à Belle Époque, o teto, tudo aquilo me fazia pensar que civilização era aquilo, não era o Terminal da Lapa em Salvador. Mas a negona com óculos de Risoleta Neves ficava repetindo com cara feia, vingt sous, vingt sous.

Do bolso da parka emprestada que eu usava surgiram os vingt sous. Estendi as moedinhas mas ela, grosseira como sempre, me mandou largá-los num pratinho ao lado do ventiladorzinho que jogava ar mais fresco em seu rosto. Entrei no banheiro, abaixei as calças como Bolsonaro diante de Trump, olhei para o mosaico no chão.

Quando saí eu era um homem mais leve, em paz com o universo e com a humanidade. Saí do banheiro olhando firme para a negona e sorrindo para ela — sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere. Fiquei alguns instantes no corredor da estação, parado a alguns metros do banheiro. Estava feliz, pensando na negona no banheiro da estação do metrô, imaginando-a olhando para os vingt sous que eu havia lhe entregado, imaginei o ventiladorzinho jogando ar mais fresco no seu rosto. Alguns minutos depois, a moça que estava comigo surgiu afobada:

“Rafael, vamos embora, alguém empesteou este lugar.”

Perdidos na TV

Andei vendo, na Netflix, uns seriados que derivam diretamente de programas dos anos 60, meus velhos conhecidos.

O primeiro foi Star Trek: Discovery, mais um spinoff do seriado que só fui entender e admirar recentemente, agora em sua segunda temporada. O segundo é Lost in Space, versão nova do familiar “Perdidos no Espaço” que assolou as TVs do mundo a partir de 1965. Sua segunda temporada deve estrear em alguns meses.

Star Trek: Discovery é uma prequel da série original. Na realidade faz muito pouco sentido, principalmente pelas discrepâncias históricas e estéticas, como a exibição de uma tecnologia obviamente muito mais avançada do que a que víamos no seriado dos anos 60. Em acordo com os tempos, a principal personagem do novo seriado é mulher, negra, complicada, forte: isso a coloca a anos-luz de distância de um seriado em que mulheres apareciam de preferência em trajes sumários. E Sonequa Martin-Green é uma atriz muito melhor que William Shatner.

Mas o seriado começou muito mal. Já vão longe os tempos em que cada episódio de um seriado continha uma história estanque. Agora, cada um deles está mais preocupado em contar a parte que lhe cabe de uma história muito maior e garantir que você assista o episódio seguinte, porque seriados viraram grandes novelas, essa é a verdade. Em tese isso não é bom nem ruim; mas na prática, o resultado é que não temos mais grandes episódios como tantos da primeira série, porque eles não almejam isso.

O “Jornada nas Estrelas” original, com todos os seus defeitos, permaneceu porque conseguiu se tornar maior que seu tempo, utilizando como matéria prima exatamente o melhor que este lhe oferecia; discutia os grandes temas da então atualidade, e mais que a simples aventura, que a simples ficção científica, tentou abordar temas universais como tolerância, preconceito, amor. Star Trek: Discovery abdica disso na maior parte do tempo, e aqui os problemas individuais e a ação são o que realmente importa. O novo seriado é medíocre e a ele falta aquilo que tornou o original atemporal: o humanismo, a busca por respostas a questões maiores do que a simples aventura espacial, a defesa quase militante do respeito à diferença. Isso é ainda mais notável no ano da graça de 2019, em que esses temas são obrigatórios, ainda que normalmente em uma nota só.

Star Trek: Discovery respeitou o seu tempo ao colocar como protagonista uma mulher, negra, com nome masculino; mas mostrou o quanto isso pode ser vazio ao abdicar de qualquer discussão sobre o assunto; é como se estivesse apenas se antecipando ao tribunal do Facebook.

De modo geral, Star Trek Discovery é umbiguista como qualquer outra série menor produzida hoje, e isso dá o seu tamanho exato, lhe insere em seu tempo e o torna medíocre. Star Trek Discovery tentou encaixar pés frágeis em sapatos muito grandes demais, e não conseguiu.

(A situação mudou um pouco na segunda temporada. Não que milagres tenham sido operados, esta ainda é essencialmente a mesma série; mas parece que entenderam um pouco do que tornou imortal o seriado original. Agora, temas um pouco mais amplos se imiscuem em alguns episódios, embora esta ainda seja uma série dos anos 10, o que significa privilegiar acima de tudo os pequenos dramas individuais e o “arco” da estória.)

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“Perdidos no Espaço” é outro velho amigo das gentes que se aproximam dos 50 anos, e dos mais velhos que isso. Crescemos assistindo a ele, e apesar de ter durado apenas três temporadas, como “Jornada nas Estrelas”, “Perdidos no Espaço” me parece ter sido reprisado com mais frequência, pelo menos no Brasil. Para mim isso nunca fez diferença, porque eu não ligava tanto assim para o seriado. Will Robinson era um idiota e o dr. Smith era um pé no saco e eu nunca entendi por que não davam um fim nele, ei, esquecemos o dr. Smith em Órion XIII, que coisa.

Para mim é tentador dizer que refilmar “Perdidos no Espaço” talvez seja a maior prova de que o mundo em que vivemos está criativamente esgotado, tendo que buscar referências em programas  medíocres feitos meio século atrás. Meio século é muito tempo. Só não é mais tentador porque não consigo esquecer que Walt Disney criou um império reembalando contos de fadas com mais de 400 anos de idade (na verdade, tem gente que diz que essas estórias na verdade têm milhares e milhares de anos).

O fato é que o novo Lost in Space tem uma vantagem inestimável em relação a Star Trek: Discovery: o original era ruim. Se qualquer sequência de “Jornada nas Estrelas” já começa em desvantagem, uma refilmagem de “Perdidos no Espaço” tem tudo a seu favor.

Para começar, é tão agradável ver novamente o letteringCreated by Irwin Allen”. Eu sei que na ortodoxia das coisas é Gene Rodenberry o bambambam das galáxias, mas a verdade é que nós, cá no meu torrão natal e no meu tempo, gostávamos muito mais das tosqueiras simplórias e mal produzidas de Allen. “Túnel do Tempo”, “Terra de Gigantes”, “Viagem ao Fundo do Mar”, tudo isso nos dizia mais que as indagações aparentemente profundas do capitão Kirk. E eram mais engraçados.

Sua nova encarnação não tem muito a ver com o original, além dos nomes dos personagens e da nave. A história é diferente, os personagens são diferentes. À primeira vista, deve mais aos filmes de astronautas feitos recentemente — especialmente aos filmes menos que medíocres de Ridley Scott, como Prometheus — do que à pequena tradição da comédia de ficção científica da TV americana dos anos 60. E isso é desnecessário. Lost in Space se sustenta sozinha. Talvez se sustentasse melhor se, 50 anos depois, fosse buscar mais inspiração na ”Tempestade” de Shakespeare, mas não dá para esperar demais.

Importante mesmo é que o novo seriado faz sentido, muito mais que Star Trek: Discovery. A família perfeita americana de 1965 não existe mais — já não existia naquele tempo, talvez —, por mais que os saudosistas queiram: os casais estão se divorciando, os filhos têm pais diferentes, nada é tão perfeito como nos anos 60.

O novo “Perdidos no Espaço” entende esses novos tempos, e isso parece ter incomodado muita gente. Comentaristas no IMDb reclamaram da nova abordagem “politicamente correta”: uma mulher à frente das grandes decisões, uma filha negra, o Dr. Smith como uma mulher, tudo isso parece incomodar muito um número muito grande de pessoas.

Por um lado, é inegável que há uma parcela assustadoramente grande da humanidade com muitos problemas para aceitar o mundo novo, e extremamente vocal em sua revolta.

Mas em parte essa revolta é compreensível. A sensação que essas pessoas parecem ter é que não basta lhe negarem uma primazia que lhes deveria ser reconhecida naturalmente — do homem sobre a mulher, do branco sobre o preto, do europeu sobre o resto do mundo; mas querem tomar também o seu passado, num momento em que, ao menos na seara do discurso, eles são cada vez mais minoria. Eu mesmo tenho dificuldades em entender a razão pela qual insistem em pegar símbolos que são caros a algumas pessoas e transformá-los a ponto de não os reconhecermos. Quem quer uma 007 feminina passa longe do que, para algumas pessoas, devia ser o objetivo da luta feminista: em vez de fazer uma cirurgia de sexo e dar um nome social ao Bond, James Bond, me parece mais justo criarem seu próprio ícone feminino. Talvez fosse mais fácil fazer Lara Croft se tornar adulta, por exemplo. (Isso merece um post à parte, que em suma discutiria o seguinte: para começar, Lara Croft diz mais às novas gerações do que James Bond. Mas se mesmo assim você insiste em emascular Bond, dá razão a quem reclama do discurso “hétero cis opressor estuprador por princípio”.)

Voltando a “Perdidos no Espaço”, o mais interessante nessa série — e em virtualmente todas as refilmagens de seriados antigos — é que eles perderam o humor. Agora eventuais tiradas engraçadinhas são restritas a um personagem, como tem acontecido nestes tempos, e neste caso o que mais se aproxima disso é Don, que de piloto e genro virou mecânico muambeiro.

Mas talvez as coisas sejam um pouco mais complexas do que isso.

O “Perdidos no Espaço” original nasceu como um programa para toda a família, em sua primeira temporada em preto e branco. Mas sendo tão estereotipado, tão esquemático, rapidamente se transformou em um seriado voltado para o público infantil, e daí a excessiva proeminência do Dr. Smith e de Will Robinson, sempre acompanhados pelo robô B9. “Perdidos no Espaço” nunca aspirou à profundidade de “Jornada nas Estrelas”; ainda assim, o Dr. Smith de Jonathan Harris foi um personagem razoavelmente ambíguo. Era um comunista canalha, covarde, aético, mas extremamente carismático em sua humanidade, a ponto de fazer o seriado passar a girar em torno de si. Agora, a Dra. Smith de Parker Posey, em um mundo em que o egoísmo substituiu a ideologia como motor da humanidade na TV, é uma boa personagem, mas sem as muitas vantagens que a comédia trazia para o Smith original.

Por tudo isso, você se vê torcendo pelo personagem menos humano de todos, o robô, e isso é muito triste.

Ele merece um parágrafo. Seu desenho é muito bom: do ponto de vista de um designer, ele respeita as linhas originais e as atualiza ao máximo. Certo, ele não é mais feito por humanos. Isso tira da série a possibilidade de discussão de um tema que que surge no horizonte, as possibilidades e os perigos da inteligência artificial geral, mas mostra que a própria percepção do espaço como reflexo da humanidade mudou, e muito, nos últimos 50 anos. Nos tornamos menos antropocêntricos e menos geocêntricos.

O robô original se chamava B9 — benign, sua besta, nunca percebeu? —, mas de benigno o novo robô não tem nada. E isso reflete o mundo pós HAL-9000. Se nos anos 50 e 60 a humanidade ainda podia ver a tecnologia como uma aliada subalterna e perfeita, hoje ela pode ser nada mais que uma esfinge. E essa é talvez a grande qualidade de Lost in Space.