Ford F-1000

De vez em quando assisto a esse filmete. É de 1979, e lançou a Ford F-1000. Dura pouco mais de 16 minutos e é, essencialmente, um road movie, contando uma história com começo, meio e fim.

Não sei nada sobre ele. Redator, diretor, o ator com cara de Belchior. Não sei sequer qual a agência que o criou, embora isso não seja difícil de achar. O filme tem jeito de ser uma peça criada para convenções da Ford ou apresentações a concessionárias e jornalistas especializados. Não sei. Sei apenas que adoro esse filme, a maneira como conta sua história, a adequação ao seu público-alvo, a inteligência com que ressalta os grandes argumentos de venda da caminhonete.

Sei também que ele é uma grande oportunidade perdida.

Fico imaginando que, com um pouco de ousadia e criatividade, ele se transformaria em um marco. Bastava exibi-lo uma vez nas duas principais redes de TV, a Globo e a Tupi. Ao mesmo tempo, no Fantástico e no Programa Sílvio Santos, criando um evento único, que seria comentado por semanas pelo público, e lembrado até hoje pelos publicitários, como o primeiro sutiã ou o orelhão da Telesp ou o Barate-o-tó da Unimar.

E então ele seria um filme revolucionário. Não apenas em termos de planejamento de mídia, mas mesmo de criação, antecipando em 30 anos toda essa bobajada de storytelling e outras palavras gringas que não consigo aprender.

Mas não foi, porque cada tempo tem o seu modo de fazer as coisas, um barbudinho alemão explicava há uns 150 anos. Pena.

Pela nacionalização da Seleção Brasileira

Anteontem a Seleção Brasileira conseguiu o feito monumental de levar apenas um gol desse potentado do futebol mundial que é a Guiné. Ontem combinou de esperar um ano por Ancelotti, dando mais uma mostra de quão pequena se tornou.

Já faz muito tempo que o Brasil é apenas uma seleção mediana, que em Copas do Mundo consegue passar por times pequenos nas fases eliminatórias para cair nas quartas-de-final, quando finalmente enfrenta a elite do futebol. Em 2026 completará 24 anos sem ganhar uma Copa, o mesmo período que passou entre 1970 e 1994. A diferença é que, enquanto naqueles tempos ela poderia ter sido campeã em 1978 (e o Coutinho morreu dizendo que tinha sido) e encantou o mundo em 1982, agora é só uma seleção que sofre para passar as oitavas. Como tantas e tantas outras mundo afora, agora alegando que “não existe mais bobo no futebol”.

A Seleção Brasileira vive, já há muito tempo de sua história, do peso de sua camisa e do talento de um ou outro craque com lampejos de qualidade em uma seleção medíocre e sem identidade.

Se os cinco jogos da última Copa não são suficientes para admitir essa obviedade, uma lista dos times que o Brasil conseguiu vencer em Copas dos últimos 20 anos deve ajudar: Croácia (pré-Modric), Austrália, Japão, Gana, Coreia do Norte, Costa do Marfim, Chile, Camarões, Colômbia, Costa Rica, Sérvia, México, Suíça e Coreia do Sul.

Por isso defendo a total nacionalização do futebol. Minha tese é muito simples, baseada em dois pilares.

O primeiro é a reestruturação dos campeonatos estaduais e regionais, algo com que quase todo mundo concorda.

O segundo é fechar a Seleção para os jogadores que jogam fora do país, e quem me ouve falar isso diz que é absurdo. Que precisamos aceitar que nos tornamos exportadores de commodities futebolísticas e não podemos abrir mão de gênios como Neymar, Vinícius Jr., etc. Eu só pergunto por quê: mesmo com eles, não ganhamos de ninguém, mesmo, e já há muito tempo. A verdade é que, no pior dos cenários, temos jogares no Brasil bons o suficiente para cair apenas nas quartas de final, como temos feito com os Neymar ou Vinícius Jr. da vida. Não é difícil montar no Brasil um time que consiga ganhar de Camarões.

Mas a nacionalização poderia resgatar a ligação com a torcida e talvez até mesmo criar uma seleção de verdade, em vez dessas coisas medíocres e amorfas que disputam amistosos com Senegal.

Cada vez menos gente liga para a Seleção hoje em dia. E desconfio que não seja apenas porque ela não ganha e não empolga. A Seleção Brasileira é cada vez mais um negócio que só importa, mesmo, para dirigentes, jogadores e para o negócio da propaganda. Por que razão alguém vai torcer por um troço em que um monte de milionários cuida apenas de sua própria vida é algo difícil de explicar.

Nem sempre foi assim. E não custa passear um pouco pela história recente.

Até o início dos anos 80, o maior sonho de qualquer jogador brasileiro era jogar na seleção. Depois, com o início do êxodo de jogadores brasileiros para a Itália, aos poucos a Seleção passou a ser um grande trampolim, o passaporte para a Europa e a garantia do pé de meia. O maior exemplo disso foi a convocação de um tal Paulo Sérgio para a Copa de 94, jogador ínfimo mas com passe controlado por um dos cartolas da CBF, que o exibiu por alguns minutos para poder vendê-lo mais caro.

Mas agora a própria Seleção passou a ser desnecessária. Mais e mais jogadores saem hoje do Brasil ainda na pré-adolescência, às vezes até se naturalizando. Por outro lado, a geografia do futebol mundial mudou, e muito.

Se a gente voltar no tempo até os anos 90, vai lembrar que um bocado de gente boa apregoava então que o futebol africano iria explodir nas próximas décadas. Isso não aconteceu. Se em vez de ficar repetindo os argumentos de venda da FIFA, empenhada em expandir o negócio do futebol, eles olhassem para a história da África, talvez pudessem antever o que aconteceu: imigrantes africanos e seus filhos revitalizaram as seleções europeias. Compare a Bélgica de 1986, mais branca que o paraíso da novela “A Viagem”, com a que mostrou aos brasileiros em 2018 como é que se ganha um jogo de futebol. Ser metrópole tem suas vantagens. Como resultado, o futebol europeu repetiu, de certa forma, a combinação que fez o futebol brasileiro: ficou mais solto, fisicamente superior e manteve a aplicação e a evolução táticas que sempre foram sua marca.

Isso ajudou a igualar o futebol europeu ao brasileiro, e em seu devido tempo o fez estruturalmente superior. O resultado é isso que vemos hoje, e que vai muito além do 7×1. Cada vez mais subjugada aos interesses da FIFA e da UEFA , e principalmente à corrupção endêmica de seus dirigentes, a Seleção Brasileira defende uns trocados se pendurando no mapa atrás de jogos com seleções que não jogariam a série B do Campeonato Brasileiro, jogadores que não têm nela seu principal foco.

Por isso acho que a melhor coisa que o Brasil poderia fazer seria reformular a seleção brasileira apenas com jogadores que disputam os campeonatos brasileiros.

Historicamente, as seleções brasileiras tinham como base os melhores times de seu tempo. Durante muito tempo foram Santos e Botafogo; em 1982, Flamengo e Atlético, com uns contrabandos do São Paulo porque Telê gostava da prataria de sua casa. Eram jogadores que se conheciam porque jogavam juntos ou se enfrentavam com regularidade. Era mais fácil formar um time coeso.

Uma seleção nacionalizada traria os benefícios de voltar a engajar os torcedores, porque uma seleção que não tem um jogador do meu time é uma coisa; outra é aquela em que o craque é alguém que faz a alegria do meu time, ou mesmo aquele que respeito pelas sacanagens que faz com ele: até hoje não entendo como é que Telê Santana deixou Roberto Dinamite no banco e apostou na desgraça chamada Serginho Chulapa, em 82.

Mas ainda mais importante, a nacionalização poderia devolver ao futebol brasileiro um estilo. Ganharíamos a vantagem do entrosamento, de poder treinar por mais tempo — de criar um time de verdade.

Reformular o a organização do futebol brasileiro também ajudaria muito.

Há tempos vejo comentaristas clamando pelo fim dos estaduais. É uma idiotice. Eles pensam em termos de grandes centros e grandes clubes, que têm uma agenda nacional e internacional que garante que joguem durante todo o ano. Para eles, os campeonatos estaduais apenas atrapalham.

Esse povo do Rio e de São Paulo simplesmente não conhece o país, que tem quase 800 times profissionais. O Brasil que eles desconhecem é feito por dezenas, centenas de times que sem os campeonatos estaduais simplesmente desapareceriam, e que mesmo assim jogam apenas três ou quatro meses por ano.

Imagine o que não se perde com isso. O número de talentos que deixam de ser revelados todo ano, a impossibilidade de estruturação econômico, de times minimamente decentes. E, por último mas não menos importante, a alienação de grande parte da torcida, que se vê obrigada a procurar carinho e futebol em outros campos.

A criação de um sistema mais robusto de campeonatos locais e regionais que mantenha os times jogando a maior parte do ano movimentaria a economia esportiva, engajaria as torcidas locais, fortaleceria o futebol nacional de maneira orgânica e consequente. E a reconfiguração do calendário nacional, com a criação de campeonatos regionais que possibilitassem aos times estaduais de segunda linha jogarem por mais tempo, fortaleceria os times, recriaria a própria cultura futebolística nacional e garantiria a massa crítica necessária para elevar o nível básico do nosso futebol. Assim como a União Soviética ganhou a II Guerra, entre outras razões talvez mais importantes, porque podia perder mais soldados, o Brasil pode produzir mais craques do que o resto do pode absorver.

Mas nada disso, claro, vai acontecer. Ninguém pode abrir mão de um sistema que forma todo ano algumas dezenas de milionários e que movimenta um mercado cada mais imponente. E nisso, parafraseando o velho Carlos Alberto Parreira, o futebol é apenas um detalhe.

Michel, Rafael, comentários sobre racismo e um pouquinho de cinema

Michel e Rafael — não, apesar do que parece não se trata de uma dupla sertaneja — deixaram comentários ao post sobre Lobato e Dahl. O mais elogioso diz que o texto é péssimo. O mais arrogante e redundante me manda fazer terapia.

Eu estava com saudades. Bons tempos, aqueles.

O que mais chama a atenção é que os dois comentários apelam no final para os ataques que na faculdade a gente aprendia serem ad hominem.

O xará diz que o post diz mais sobre mim do que sobre o tema — o que é uma bobagem, já que todo texto diz mais ou menos sobre seu autor, já a partir da escolha do tema; o que o Rafael do B é incapaz de perceber é que seu comentário diz ainda mais dele. Já o Michel exagera no desprezo e diz que preciso de terapia. Devo precisar, é verdade; mas não por isso.

Esses comentários, suando a superioridade moral normalmente dada por alguns anos na universidade e a perspectiva de uma vida em seus corredores, mostra que são garotos — o nome Rafael, por exemplo, só se tornou comum no início dos anos 80 —, deslumbrados com o ambiente acadêmico. Só isso para explicar o apelo a argumentos inconsistentes ou repetitivos que tentam transformar tudo em um diálogo de surdos, e principalmente a revolta pessoal. O Michel, por exemplo, basicamente repete os argumentos que o texto citava, e até contradiz o Rafael ao insistir nas justificativas para o que ele diz não ser censura, logo depois de preparar o terreno dizendo que não dá para monitorar crianças todo o tempo.

Responder a eles é chover no molhado e inútil.

Quem poderia apresentar o vislumbre de uma perspectiva diferente é o Rafael, ao afirmar que o debate é mais de mercado do que acadêmico. O problema é que ele diz que “a premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público” — poxa, ele nem sequer sabe como essa discussão começou? Nunca houve demanda do público por um Monteiro Lobato menos racista; o que houve foi a pressão acadêmica, e a consequente espiral de teses e artigos e outras bobagens mais, a partir do momento em que o MEC anunciou a compra de “Caçadas de Pedrinho”, uns 15 anos atrás.

O xará nega que isso exista, essa discussão e respaldo acadêmicos sobre a validade da purgação dos textos de Lobato. E aí é que complica.

Faz o seguinte: joga “monteiro lobato racismo teses” no Google pra ver o tanto de discussões nas universidades sobre o assunto. Adianto que são aproximadamente 138 mil resultados.

Essa discussão, nesses termos que os meninos colocaram, não leva a nada, claro. Mas me lembram a última vez que estudantes desceram o chicote no meu lombo. Esqueci de escrever aqui.

Tempos atrás, escrevi um post detalhando o curso de cinema que eu faria, no lugar desses cursos atuais que, essencialmente, formam mais professores que retroalimentam as universidades e mais motoristas de aplicativo. O texto partia da grade curricular do curso de cinema da UFF — que por sinal foi declarado patrimônio imaterial de Niterói, cidade muito do meu agrado e que agora tem dois patrimônios: esse e a vista do Rio.

O Vespa, do excelente Inconsistências Inconstantes, na época ensinava num curso técnico de audiovisual. Ele levou o post a seus alunos e depois me mostrou os comentários.

A revolta foi semelhante — não, semelhante não, foi bem mais agressiva. O argumento mais leve foi o de que ninguém teria autoridade para criticar um curso a partir da observação de sua grade curricular — mais um exemplo do nível de encastelamento da universidade brasileira, a persistência do bacharelismo que a afasta cada vez mais da sociedade e que resultou em cursos como “Ciências da Religião”, um bocadão de “sub-engenharias” e até mesmo um curso livre sobre Beatles na PUC (que apenas atualiza, para mim, o ditado que diz que todo dia um malandro e um otário saem de casa — agora eles se encontram no curso sobre Beatles na PUC). De resto, os xingamentos foram grandes. Acima de tudo, os alunos deixaram claro que, para eles, ainda mais interessante do que a perspectiva de fazer cinema é a perspectiva de um emprego, perpetuando o ciclo da piada do sujeito que estudou egiptologia.

É a mesma lógica defensiva e ultrajada que motivou os comentários do Michel e do Rafael. E o mais engraçado é que há algo de reconfortante nisso. Entra ano, sai ano, as coisas continuam iguais. E isso não é tão ruim assim.

A tristeza numa banca de revistas

Dentre as coisas mais tristes que podem me acontecer cotidianamente hoje em dia é entrar em uma banca de revistas.

Elas estão acabando, a gente sabe. A internet as destruiu. Em alguns lugares, como Aracaju, essa destruição se dá de maneira ainda mais acelerada, e diz tão mal de seus moradores. Durante a pandemia, eu dava voltas de carro pela cidade vazia, me sentindo Charlton Heston em “A Última Esperança da Terra”, e percebi que na zona norte já não existia uma única banca de revistas em funcionamento. Nenhuma. No resto da cidade, com pouco mais de 650 mil habitantes, sei de apenas seis que ainda vendem jornais ou revistas. O resto virou outra coisa, qualquer coisa, ou simplesmente desapareceu.

Em Salvador, quase todas as bancas que marcaram minha infância fecharam, vendem água ou frutas hoje, com exceção da Banca Coelho, em frente ao Hospital Espanhol, que ainda vende jornais, e a Banca do Fernando, na Princesa Leopoldina. Sumiram a banca do Renato no Largo da Barra, a Banca Fróes na esquina da Euclides da Cunha com Amélia Rodrigues, na Graça, e tantas outras de que ainda consigo lembrar. Sobrevivem muitas, é verdade, especialmente na Barra — talvez porque a Barra seja lugar de moradores velhos e de turistas e ladrões e traficantes e putas novos, não sei — mas eu e seus donos sabemos que seu tempo está contado.

Quando vejo uma banca, hoje, vejo algo que cumpre seus últimos dias de vida antes de uma execução dolorosa com data já marcada, uma espécie de último moicano resistindo quixotescamente à própria morte.

Mas não é daí que vem a tristeza, porque a essa sua sina eu já me conformei há muito tempo.

Ela vem porque sempre que entro em uma das poucas bancas que ainda restam quero desesperadamente comprar alguma coisa, uma revista, um jornal. Mas já há anos as bancas daqui não vendem os jornais de fora, e não consigo ver sentido em nenhuma revista à disposição, porque já vi tudo o que me interessava antes, na internet.

E nessas horas me sinto um assassino involuntário, um linchador que, diante do corpo estendido no chão, finalmente tem a consciência do que ajudou a fazer.

As bancas estão acabando, e a culpa é minha também.