Eça, o defunto

O Bia acaba de me dizer que no livro “Contra o Consenso” o Reinaldo Azevedo, editor da Primeira Leitura, destrói Eça de Queiroz.

Um dos seus argumentos é o de que Eça, para mim um dos escritores mais fantásticos em língua portuguesa, só é considerado no Brasil. Em Portugal, sequer falariam dele.

É verdade?

Update: o Bia corrige a informação dada, e diz que não é bem que Eça não seja considerado, e sim que ele não é unanimidade em terras d’além Tejo.

Coisas do Bia.

(Anotação pessoal: lembrar sempre de checar o que o Bia diz. Ele é gonzo, afinal.)

E assim se passaram 10 anos

A Folha de S. Paulo resolveu fazer um caderno comercial em comemoração aos 10 anos da internet comercial no Brasil, na semana passada.

10 anos, já.

Acessei a Internet pela primeira vez em agosto de 1995. Ainda não havia provedores em Aracaju, onde eu morava, mas um amigo meio alucinado, Maurício, conseguiu uma daquelas contas experimentais da Embratel — na época estatal — e ligava para Recife todas as madrugadas.

Nós já acessávamos BBS, principalmente uma “conferência” de bobagens chamada Abobrinhas, em uma rede chamada SyNC-Net. Mas a internet era outra coisa.

O que mais me surpreendeu naquelas poucas horas foi a quantidade de informação que se podia ter. Nao foi a web que me seduziu naquela madrugada: foi a Usenet, e mais especificamente o rec.music.beatles. Até hoje esse grupo é, provavelmente, o maior repositório de informação sobre Beatles existente, superando até mesmo os livros de Mark Lewinsohn. Eu fiquei maravilhado. Aquilo era mais que trocar mensagens e baixar pequenos arquivos obsoletos. Aquilo era o futuro.

O resto é história.

Foi só no ano seguinte que passei a usar a internet diariamente. Lembro de pagar 90 reais por 80 horas de acesso mensais, algo como 220 reais hoje se formos usar o dólar como padrão. Só no final de 97 o acesso ilimitado chegou a Aracaju, por 60 reais. Dos programas que usava naquela época — Netscape, Eudora, mIRC, iPhone, Free Agent, WSGopher (alguém ainda sabe o que é isso?), ICQ (meu UIN tem 6 dígitos, apenas) –, o único que sobreviveu no meu computador foi o CuteFTP, e mesmo assim porque estou acostumado e FTP não é algo que mude todo dia (a versão que uso é a 4; ele ja está no 7). E eu ainda usava o Windows 3.11 em um 386, o velho e bom Percival.

Talvez por isso eu tenha olhado com atenção o caderno da Folha. Não é a pior coisa do mundo. Serve, quando menos, para mostrar que ao contrário da lenda a Microsoft foi rápida ao perceber a revolução da internet: seu browser — se é que se pode chamar essa coisa chamada Internet Explorer de browser — foi lançado dois anos depois do Mosaic; para uma empresa do seu tamanho, é um feito e tanto. Aqui e ali ele levanta uma ou outra lembrança, aqui e ali comete erros crassos (como por exemplo ao chamar o Pirch de “rede”, quando era apenas um programa, concorrente do mIRC). Erra na perspectiva: mal se refere a blogs, por exemplo. Comete alguns atos de má-fé, como ao negar ao JB a primazia entre os jornais na internet, chamando-o de apenas “um dos primeiros”. Quando tenta contextualizar os velhos tempos, usa uma Quick Take, a câmera digital pioneira da Apple. Mas ninguém usou a Quick Take. Eu nunca a vi na minha frente.

Mesmo assim o caderno dá uma visão razoável desses 10 anos. O problema é que, de acordo ele, a internet basileira é o UOL. De modo geral essa edição é basicamente uma grande propaganda do provedor do grupo Folha. E os portais são a razão de ser da internet.

Pior que isso, negam ao iG a sua importância. Não fosse pelo iG e pelos provedores gratuitos que se seguiram, como o iBest e o Click21, a internet demoraria mais para se popularizar. Por essa abordagem, negam também ao BOL a sua parte, por ter sido o primeiro e-mail gratuito realmente popular no país, mais até que o Zipmail.

Acho que vou ficar com as minhas lembranças, não com as da Folha de S. Paulo.

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O Mauro é a cabeça por trás do Carreirasolo, um dos projetos mais fascinantes da blogosfera brasileira. E já que ele está participando, seria uma boa dar uma mãozinha. De quebra a gente aproveitar para testar, na prática, a capacidade real de influência que blogs têm neste mundão sem porteira.

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Custa nada.

Depois do "boa noite"

Quando William Wyler conseguiu convencer Laurence Olivier a filmar “O Morro dos Ventos Uivantes”, Olivier tinha certeza absoluta da superioridade do teatro sobre o cinema.

Wyler abusou da crueldade ao dirigir Olivier. Ria da sua impostação de voz, dos seus gestos afetados que eram adorados em Drury Lane. A crueldade chegou ao máximo quando Olivier, cansado da incompreensão daqueles ianques ignaros acerca da grande arte da representação, reclamou: “Nesse meio estreito e anêmico de vocês não há lugar para uma grande interpretação”. Tudo o que recebeu em troca foram as gargalhadas de todo o estúdio.

Olivier parece ter aprendido a lição, e pelos próximos 40 anos teve uma carreira bastante razoável no cinema, inclusive dirigindo algumas das melhores versões cinematográficas de Shakespeare.

Corta.

No ano passado, boa parte da crítica desabou sobre “Olga”, de Jayme Monjardim. Em vez de criticar atuações ou roteiro, ou ainda falhas de direção, a principal acusação era a de que o filme repetia a linguagem televisiva; aquilo era televisão, não cinema.

Corta.

Talvez o que mais incomode nesses dois casos seja a necessidade da intelligentsia de estebelecer uma hierarquia entre produtos culturais. Elas representam a mesma postura: a de que um meio anterior é superior a outro. Há um certo elitismo cultural, também, a idéia de quanto mais voltado para as massas, menos qualidade esse produto deve ter. O pessoal do teatro esnoba a TV; esnoba menos o cinema porque este se afirmou como “arte”, mas ator que se preze canta loas à superioridade do teatro. O pessoal do cinema, por sua vez, despreza a TV como quem despreza um cachorro sarnento, e criticam este diretor por dirigir comerciais, aquele por trabalhar em novelas.

Especificamente no caso da crítica a “Olga”, há um certo preconceito por parte dessa elite cultural. Ela falha em perceber que a televisão pode ser, sim, a origem de uma linguagem estética brasileira. Específica, claro, que não necessariamente é adaptável a todo e qualquer filme. Mas brasileira.

A linguagem das telenovelas brasileiras é bastante diferente da linguagem televisiva americana. A fotografia de Friends, por exemplo, não tem os mesmos elementos de “Renascer”. Nossa predileção por closes diz mais respeito a um modo ibero-brasileiro de se relacionar com o outro do que a eventuais exigências narrativas da televisão.

A própria formação da TV brasileira é diferente. Em que pese o fato de a TV americana ter recebido uma migração intensa dos grandes nomes do rádio da década de 40 em seus primeiros anos, sua estética foi definida a partir da indústria cinematográfica, o maior referencial cultural de um país que, embora com uma educação básica quase universal, sempre primou pela ditadura do gosto médio. A brasileira, por outro lado, deve suas origens ao rádio e ao teatro de revista. Até hoje, como se pode ver em programas como “Zorra Total”, há uma boa predominância do humor radiofônico, centrado em bordões e esquetes rápidos, e sua concepção visual era a dos shows de vedetes do Carlos Machado.

Mas se algo evoluiu tremendamente neste país foi a TV.

Estamos praticamente no meio do ano, e até agora a melhor produção brasileira em dramaturgia foi “Hoje é Dia de Maria” — sob qualquer aspecto, uma peça brilhante, maravilhosamente escrita e dirigida com perfeição. Como narrativa, essa minissérie não é em nada inferior a quaisquer dos filmes brasileiros lançados este ano. Sua concepção estética está à altura da cinematografia do jeito que se pratica no Brasil — e de teatro também, ao misturar elementos enográficos deste último. É diferente, claro, mas não inferior. E se vamos falar de “cultura genuinamente popular”, “Hoje é Dia de Maria” nao podia ser um exemplo melhor.

“Hoje é Dia de Maria” mostra que esse debate sobre estética cinematográfica e televisiva sequer deveria existir. É um debate estéril, burro, porque afinal de contas cada filme pede uma abordagem específica.

Mas o preconceito contra a TV parece não morrer.

Por exemplo, do ponto de vista do autor não há nenhuma diferença entre escrever para o teatro e para a televisão. Os diálogos podem ser bons ou ruins a despeito do meio; as situações criadas também. Basta uma olhada na produção cinematográfica dos anos 70 para notar que qualquer telenovela tem diálogos melhores do que os filmes da época; o mesmo vale para todas as outras áreas. O teatro, aliás, não tem mostrado grandes obras primas nos últimos tempos.

Talvez aí esteja um os grandes erros da intelligentsia nacional. Assim como Olivier não conseguia reconhecer que o novo meio seria o dominante naquele século e demorou a perceber que tinha que se adaptar, aqueles que fazem cinema parecem se recusar a admitir que a cultura nacional é definida em função não da grande tela, que sempre foi incipiente, ou do teatro, que nunca teve penetração de massas.

Então só um lembrete: quem define a cultura deste país é a TV, é a telenovela depois do “boa noite” de William Bonner e Fátima Bernardes. Não custa nada reconhecer isso.

Fim de papo

Do Henrique, pondo um ponto final nessa conversa sobre o Homem-Aranha:

ok, foi boa a sacada da aranha transgênica. Mas sempre que eu lembro desse ponto não consigo deixar de lembrar que a glandula “teiosa” desses aracnídeos fica no final do abdome – e se essa mudança foi em nome de uma maior verossimilhança, então talvez devêssemos ver Tobey Maguire em um filme x-rated, interpretando um spiderman que atira teia pelo cu…

OK. Acabou a discussão, pois não?

Coisa de cinema

1. Qual o último filme que viste no cinema?
“Star Wars – A Vingança dos Sith”. Pressão social é barra. Mas até que foi legalzinho.

2. Qual a tua sessão preferida?
A mais vazia. Eu gosto de cinema sem ninguém. Minhas sessões favoritas eram em um cinema do centro de Aracaju, que fechou há 8 anos, sempre sem ninguém e onde eu podia fumar.

3. Qual o primeiro filme que te fascinou?
Difícil responder. Vejo televisão e vou ao cinema desde antes de me entender por gente. Lembro bem dos filmes de Jerry Lewis, de Chaplin, de John Wayne (que passavam na Sessão na Tarde). Mas no cinema, talvez tenha sido “Em Algum Lugar do Passado”, sem contar, claro, os do Superman.

4. Para que filme gostarias de te ver transportado(a)?
“Satyricon.”

5. E já agora, qual a personagem de filme que terias gostado de conhecer um dia?
Charles Foster Kane.

6. E que actor(actriz), realizador(a), argumentista ou produtor(a) gostarias de convidar para jantar?
Ator: Marlon Brando. Sempre que eu lembro que ele fez “O Poderoso Chefão” e “Último Tango em Paris” na mesma época, eu lembro que ele era o maior de todos.
Atriz: Cicciolina. Para que o dinheiro gasto no jantar não tenha sido em vão.
Diretor: Billy Wilder.
Argumentista: Scott Fitzgerald.
Produtor: David O. Selznick. Mas só depois que ele tivesse feito “…E O Vento Levou”. Deve ser terrível viver como ele, perseguido por sua própria obra-prima, em busca de um sucesso artístico maior, e nunca conseguir. Devia ser uma pessoa interessante.

7. A quem vou passar isto?
Ia fazer como o Milton, de quem copiei, e não passar para ninguém. Mas passo para o Bia, que me acha um gênio idiota, para o Ina e para o Flávio.

Homem-Aranha, Homem-Aranha, nunca bate, só apanha

André, não acho que seja difícil fazer boas histórias com a fórmula clássica do Aranha. Ele não é o Surfista Prateado.

Por suas próprias características, Peter Parker é um personagem maleável ao extremo. A existência de mudanças é quase uma necessidade, porque ele foi o primeiro super-herói em que a metade “civil” era tão ou mais importante que seu alter-ego uniformizado.

Além disso, a idéia de que mudanças drásticas no personagem são necessárias não se comprova na prática. Algumas podem ser boas, a maioria é ruim. A questão é a forma como fazem essas mudanças.

Se fosse para estabelecer uma regra, ela seria a de que não se mexe na estrutura básica de um super-herói. Mata-se personagens secundários, dentro de limites. Eventuais mudanças de rota devem ser feitas de modo a não colocar o personagem em um beco sem saída, sempre com a consciência de que qualquer nova situação se esgotará mais cedo ou mais tarde.

Mas para mim o problema central não está em alterar o personagem. Está em mudar o passado. Esse é o erro que deve ser evitado a todo custo.

Por exemplo, o pessoal da DC matou Jason Todd, o segundo Robin, no fim dos anos 80. Era um personagem secundário, porque àquela altura o “verdadeiro” Robin ainda era Dick Grayson, na percepção do leitor. Matou e pronto, agora vamos em frente. Foi uma mudança drástica, mas compreensível, até lógica. E eles não ficaram fazendo auê em cima disso, ressuscitando o coitado a cada 10 edições. Pelo contrário: “Morte em Família” é até hoje uma das histórias mais lembradas do Batman porque continua imaculada, ninguém tentou desdizê-la. Agora, alguém conhece um admirador da “Saga dos Clones” do Aranha? Eu não.

Quanto ao DeMatteis, eu gostava das histórias dele; mas isso era uma opinião pessoal e concordo com a crítica que se fez a ele: o Aranha é intrinsecamente um personagem leve, apesar dos problemas, e a profundidade psicológica depressiva que o DeMatteis dava era algo arriscado. (Talvez tenha sido a época em que a Bezinha tenha lido o personagem, por exemplo.)

Mas o mais importante, mesmo, é que há algo de muito errado quando se pega uma tradição de 40 anos e altera tudo em função do sucesso de um filme.

Basta olhar o que fizeram com o Batman e com o Superman. Os filmes de ambos foram sucessos monumentais. Mas os editores do Batman não transformaram o Coringa em assassino dos pais do Bruce Wayne, nem o pessoal que escrevia o Superman matou Jonathan Kent só porque ele morria no filme. Evitando um cenário ainda mais assustador, não transformaram o Batman em ícone gay depois depois do seriado dos anos 60. Pelo contrário: foi justamente depois disso que Denny O’Neill e Neal Adams empreenderam a primeira “volta às raízes” do Batman, inclusive diminuindo a importância do Robin em suas histórias talvez para evitar, digamos, mal entendidos que levassem Bruce Wayne a ser preso por formação de uma rede de pedofilia.

Roger, acho que a melhor idéia do filme não foi a teia orgânica, mas a transformação da aranha radioativa em geneticamente modificada. Faz até mais mais sentido, agora que o mundo inteiro sabe que se você é mordido por uma aranha irradiada no máximo desenvolve um baita câncer, não super-poderes. Mas não acho que isso seja motivo suficiente para alterar o elemento constitutivo do Aranha. O Henrique lembrou uma coisa importante: uma das coisas interessantes sobre Peter Parker é que ele era um quase gênio. Foi por isso que conseguiu bolsa para a universidade. A teia orgânica, além de desnecessária, torna isso quase irrelevante.

De modo geral, o filme empobreceu o Homem-Aranha, comprimiu sua história e retirou personagens importantes para sua evolução como Betty Brant e Gwen Stacy. Funciona como filme, claro, mas é uma mídia diferente, e os editores do Aranha deveriam lembrar disso. Por serem públicos diferentes, balizar os quadrinhos em função deles é um erro descomunal.

É preciso lembrar também que o público de cinema não necessariamente se transforma em leitor de quadrinhos; não consta que as revistas do Aranha tenham conquistado 10 milhões de leitores. Eu não passei a ler o Superman só porque saí fingindo que voava do cinema, quando fui ver o primeiro filme (eu tinha 7 anos, ora). Além disso, a relação do menino que assiste ao Aranha no cinema pela primeira vez é diferente do leitor que o acompanha há anos, muito mais frágil.

Comparando ainda com o Batman, acho que uma das razões pelas quais suas revistas passaram incólumes pelo sucesso do filme está no fato de que ele atravessava uma de suas fases mais consistentes. Tinha saído de uma série de histórias fundamentais: “O Cavaleiro das Trevas”, “Ano I”, “Morte em Família”, “A Piada Mortal”. Enquanto isso o Aranha já se arrasta há algum tempo, e roteiristas desesperados parecem estar tentando achar uma fórmula mágica para retomar o sucesso.

Um exemplo dese deserto criativo pode ser notado num belo e-mail que o Pedro me mandou, esclarecendo que a Marvel Millenium Homem-Aranha é um universo alternativo, mesmo. Aí se torna mais aceitável recontar a história de Peter Parker, pretensamente de acordo com os novos tempos.

Mas eu faria diferente. Em vez de criar um universo novo, eu me restringiria a recontar a história nos moldes estabelecidos por Stan Lee. Aproveitaria lacunas, daria mais profundidade a aspectos que não podiam ser melhor explorados na época.

Por exemplo, a primeira namorada de Peter Parker foi Betty Brant. Imagine o que não se poderia fazer com isso. Um adolescente, ainda no high school, namorando uma mulher mais velha e financeiramente independente. As possibilidades dramáticas que isso permite: conflitos emocionais, descobertas sexuais — Deus do céu, eu fico babando quando imagino o que esse pessoal tem nas mãos e não aproveita.

E o caso Betty Brant é apenas uma delas. Deixemos claro: Stan Lee era um gênio. Os novos responsáveis pelo Aranha não são.

Se o governo fosse o Tylenol

O Idelber acha que o governo pode ter errado ao não capitalizar de maneira mais agressiva sobre o mandato conferido ao Lula pelo povo brasileiro.

Eu não tenho certeza disso. Em primeiro lugar, é bom lembrar que Fernando Henrique, eleito em primeiro turno nas suas duas eleições, também foi refém dessas “forças da sociedade”, embora em menor grau que Lula, que tinha um passado considerado “negro” pelo mercado e foi ao segundo turno com Serra. E penso ser ilusão acreditar numa aliança PT/PL com um PT agressivo em uma plataforma popular reformista. Essa aliança tem condições próprias, das quais a ladainha de José Alencar pela diminuição dos juros é um indício claro. Ela existe em função de compromissos políticos e ideológicos que o PT assumiu; dificilmente teriam condições de avançar muito, fora da ortodoxia pregada pelo FMI para os mercados emergentes.

A questão que, na minha opinião, está para ser respondida é levemente diferente: dentro dessa conjuntura o PT teria condições de bancar um programa reformista minimamente radical, como acha o Idelber (e o Plínio de Arruda Sampaio, numa bela entrevista à Caros Amigos)?

Eu acho que não. Por isso, enquanto a classe média fazia como sempre fez, e reclamava do presidente em quem acabara de votar porque as mágicas não começaram a aparecer imediatamente, eu sempre levava em consideração que a correlação de forças não era exatamente favorável ao PT.

O que havia era um certo espaço para manobra, em áreas limitadas. Acho que o primeiro grande erro do governo foi não ter aprovado o salário mínimo de 300 reais no ano passado, sob a desculpa do superávit primário. Aquilo teria dado um respaldo que, provavelmente, aumentaria seu poder de fogo numa correlação de forças desigual. O governo ali foi covarde, como seria em outros momentos, não teve coragem de blefar; o resultado é o que se vê hoje, o governo se arriscando seriamente a perder o controle do Estado e aparentando ser, como disse o Roman, engolido pelo fisiologismo.

Agora, o fato de reconhecer essas deficiências não quer dizer que eu sequer considere uma alternativa nas próximas eleições. Que me perdoe o Reginaldo, mas o PSDB tem se revelado pior na oposição do que no governo. Não consta, ao menos, que na oposição o PT tenha levantado a bola de Severinos. Nos últimos tempos parece que se tem subestimado a direita deste país, como se seu componente ideológico tivesse desaparecido para dar lugar ao mais simples fisiologismo. Isso é, no mínimo, um desrespeito à história. Basta olhar para trás, para o que foi o governo de João Goulart, para ver que sempre há uma disputa ideológica, e que o fisiologismo só tem sentido dentro da manutenção de um status quo. Compreender essa dinâmica, embora não tire toda a sua responsabilidade, desculpa um pouco o governo Lula. Por outro lado, à esquerda a alternativa é ridícula e não merece sequer ser considerada, e em 2006 vai servir apenas para fortalecer a direita.

Além disso, há fatores a que os formadores de opinião não prestam a atenção devida, por estar longe do seu dia-a-dia. O crédito consignado, por exemplo, terá uma importância muito maior nas eleições do que pensa a classe média desavisada e que finge indignação diante dos roubos de galinha que a TV mostra. Enquanto ela reclama de taxas Selic, para o povão, sustentado às vezes pela aposentadoria de um avô, o país está melhorando (já falei antes que a classe média nao costuma ser a melhor balizadora de uma situação política). Esse detalhe deve ser importantíssimo nas próximas eleições, assim como os vários avanços em outras áreas, como cultura, etc.

É aí que está o grande problema nessa crise, e a provável cascata de ações semelhantes que devem se seguir. Porque nada disso é aleatório: tudo sempre faz parte da disputa por poder. Corrupto ou não, o Maurício Marinho — que não sabe sequer para que serve uma sauna — foi também uma vítima dessa luta, embora talvez não inocente. O jogo é pesado, sujo — mas é o jogo e todos sabem disso. A instauração da CPI é obra, sim, de quem quer desestabilizar o governo, etc.; mas isso não é um jogo de inocentes e caberia ao governo uma resposta adequada.

A questão, no fim das contas, é como administrar essas crises. E esse tem sido o erro do governo. Se até agora ele tem cometido falhas de comunicação, como diz o Tiago, a partir de agora é mais necessário do que nunca se comunicar de maneira correta. O governo cometeu um dos erros mais graves de sua história ao se opor abertamente à CPI dos Correios: sai do episódio como derrotado e, para muita gente, como protetor de corruptos. Agisse de maneira diferente e poderia conseguir duas vitórias: poderia evitar a CPI e ainda sairia com sua reputação ilibada.

Ao contrário do Roman não tenho muitas dúvidas, ainda, de que Lula vai se reeleger. E ao contrário do Roberson, não acho que o governo tivesse condições de aproveitar a CPI para limpar o terreiro. O grande problema que vejo nessa crise é a quase certeza de um segundo governo ainda mais fraco, ainda mais refém das forças de direita e do fisiologismo. Por outro lado, um cenário com um governo fortalecido, ocupando muito mais vagas no Congresso e forçando as outras forças que formam a base aliada a aderir a um programa mais progressista ainda é possível. Mas se as coisas continuarem do jeito que estão, é melhor que o povo brasileiro se prepare para tempos muito, muito difíceis.

Talvez não seja adequado comparar esta crise com o episódio do Tylenol com cianeto. Mas a postura transparente da Johnson & Johnson deveria ser lembrada, sempre. Não custa nada.

A crise dos Correios

A incompetência do governo federal no gerenciamento da crise dos Correios está me impressionando.

O aspecto ético, discussões sobre a honestidade ou corrupção do governo não me interessam, porque vai acabar numa discussão estéril entre apoiadores e opositores do governo, em que a oposição se esbalda nas acusações de corrupção enquanto desconsidera a sua própria responsabilidade nisso, e o fato de que o governo, além de não ter controle sobre todas as suas esferas, acaba na prática dando apenas uma resposta às exigências da sociedade.

Mas no terreno da comunicação, o governo tem a obrigaçao de encampar publicamente a CPI dos Correios. E não falo isso por uma concepção ética do que deve ser um governo; falo porque os danos que esse episódio pode causar a sua imagem podem ser gravíssimos. É uma crise muito mais grave que o caso Waldomiro. A razão é simples: estamos muito mais próximos à eleição, e a falta de uma atitude enérgica do governo pode levá-lo a uma situação muito parecida com a vivida por Sarney: um governo fraco, acossado por várias forças, sem controlar o que se passa em seu governo.

O noticiário do Jornal Nacional, ontem, foi um exemplo trágico de tudo o que não se deve fazer.

O cinismo do Maurício Marinho, dizendo que aquele dinheiro que ele foi filmado recebendo era um “adiantamento” por serviços de consultoria a serem prestados daqui a dois anos só serve para uma coisa: irritar ainda mais qualquer pessoa que tenha juízo, porque ninguém gosta de deboche. Depois disso apareceu o Roberto Jefferson dizendo que já que as acusações foram retiradas o PTB vai retirar o apoio à criação da CPI. Erro. Desconsiderando o que quer que fizesse nos bastidores, o PTB tinha o dever de exigir o esclarecimento dos fatos. A mulher de César.

Por incrível que pareça, tenho a impressão de que se as eleições fossem hoje Lula ganharia no primeiro turno. Por falta de uma oposição organicamente coesa, por uma série de resultados positivos na economia, por algumas iniciativas brilhantes do governo em várias áreas — quem acusa o governo Lula de incompetência absoluta deveria prestar mais atenção ao que o governo vem fazendo. Seria um cenário com vários pontos em comum com a reeleição de Fernando Henrique: se as coisas não estão tão mal, é melhor não arriscar.

O problema é que uma derrota do governo na comunicação em relação a esse caso pode ter conseqüências graves. Pode enfraquecer o governo a ponto de possibilitar à oposição a coragem de lançar um candidato realmente forte nas eleições presidenciais do ano que vem. Pode tornar o governo cada vez mais dependente das forças que o apóiam — basicamente as mesmas que apoiaram todos os governos civis. E o resultado pode ser um segundo governo ainda mais enfraquecido, mais suscetível à pilhagem das estruturas de poder.

Enquanto matam o Homem-Aranha

Alguém um dia vai me contar direitinho o que fizeram com o Homem-Aranha.

Faz tempo que não leio suas histórias, mas passei na banca e folheei uma tal de Marvel Millenium, que aparentemente tenta recontar a história do amigão da vizinhança. Meu queixo caiu e fui dar uma olhada nos fóruns de leitores para saber o que estava acontecendo. Foi pior.

O Aranha é um dos super-heróis mais importantes da história, talvez o mais importante depois do Superman. Quando apareceu representou uma mudança fundamental no mundo dos quadrinhos, e apesar de não ter iniciado uma revolução — honra que cabe ao Quarteto Fantástico –, foi seu protagonista mais importante.

Em primeiro lugar, ele era um sujeito comum, apesar dos super-poderes. Tinha os problemas que seus leitores tinham. Foi também um personagem que, em vez de viver aventuras isoladas no tempo e no espaço, evoluía constantemente, saindo do segundo grau para a universidade, trocando de namoradas, arranjando novos problemas. Ao contrário dos personagens tradicionais, Peter Parker envelhecia.

O Aranha de Stan Lee e Steve Ditko era um adolescente magrelo sem sorte e cheio de problemas, um personagem com quem os leitores poderiam se identificar facilmente. A entrada de John Romita possibilitou o primeiro redesenho do Aranha, que se tornou mais musculoso, mais de acordo com o padrão dos quadrinhos. Por outro lado, os roteiros de Stan Lee eram brilhantes. O personagem tinha uma sintonia com a realidade até então inédita, e estabeleceu o padrão pelo qual super-heróis deveriam ser julgados a partir dali. A primeira abordagem das drogas em quadrinhos, por exemplo, aconteceu na revista do Aranha.

E então mataram Gwen Stacy.

A morte de Gwen deveria ser incluída em qualquer lista de 10 melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Nunca antes uma namorada de super-herói tinha sido assassinada. Ninguém poderia imaginar Lois Lane empacotando. Hoje isso virou lugar-comum, neguinho morre a três por quatro, mas na época foi uma revolução. Foi a primeira vez. E do ponto de vista da cronologia do personagem, foi um dos eventos mais importantes de sua história. Até hoje, sempre que os roteiristas ficam sem idéias, aparece alguma referência a Gwen Stacy.

Aquele foi o ápice do Aranha, mas foi também o fim da sua fase de ouro. Pelos próximos anos ele andaria às tontas de um lado para o outro, mal desenhado pelo Ross Andru e mal roteirizado por uma série de joões-ninguém. Nos anos 80 resolveram fazer uma grande mudança, e trocaram seu uniforme por um mais moderno, todo preto. O uniforme era até bonito, mas era como desenhar Jesus Cristo sem barba e tatuado. Não demorou muito para o uniforme voltar ao que era antes.

Aquele era o primeiro sinal de que não sabiam mais até que ponto ir, de que a busca por novas idéias tinha se transformado um mecanismo completamente desregulado.

Então a Marvel teve uma daquelas idéias geniais das quais depois se arrependem amargamente. Resolveram casar o Homem-Aranha. Nenhum outro super-herói do primeiro time tinha sido casado antes, mas o Aranha estava sempre no meio de uma revolução, eles devem ter pensado. Não tinham matado Gwen Stacy? O casamento parecia uma boa idéia.

O único problema, que os gênios da Marvel não conseguiram perceber, é que estavam fazendo exatamente o contrário do que Gerry Conway tinha feito ao jogar Gwen Station da ponte. A morte de Gwen libertou o Homem-Aranha para novas aventuras emocionais; sua nova idéia genial o prendeu para sempre. O casamento de Peter Parker e Mary Jane Watson (que foi transformada em supermodelo e passou a ter uma semelhança enorme com Cindy Crawford) tirou uma série de possibilidades para o super-herói.

Mesmo assim aquela foi uma das melhores fases do Aranha, até hoje, porque ali estavam explorando todas as possibilidades que a nova situação oferecia. Uma de suas melhores histórias, “A Última Caçada de Kraven”, é dessa época. E a entrada de Todd McFarlane possibilitou o primeiro redesenho do personagem em 25 anos (McFarlane aumentou os olhos da máscara do Aranha, tornou seu perfil mais esbelto e mais próximo do original e recriou a textura da teia). As pessoas hoje detonam McFarlane, mas ele foi um dos desenhistas mais importantes na história do personagem mais importante da Marvel.

McFarlane saiu e aí pelo começo dos anos 90 fizeram o Aranha embarcar na febre do momento: “mataram” o personagem. A tendência inaugurada pelo Superman se espalhou por praticamente todos os personagens do primeiro time; no caso do Aranha, eles reviveram um antigo clone, Ben Riley, que ocupou o lugar do super-herói sem sorte durante algum tempo.

(Eu li as histórias originais com o tal clone quando foram republicadas no início dos anos 90. E posso afirmar que era impossível que ele fosse o verdadeiro Peter Parker. A premissa dessa volta era falsa e o resultado só poderia ser a tragédia que foi.)

De lá para cá, com Peter Parker de volta, o Aranha vem se arrastando como naquela fase negra entre os anos 70 e 80. Preso a um esquema que lhe permite poucas mudanças críveis e realmente conseqüentes, é um zumbi que não vai a lugar nenhum. Pelo visto, anda faltando coragem para fazerem o que devem fazer: divorciar o Aranha e continuar com a tradição de evolução do personagem. Liz Allen, por exemplo, é um personagem que poderia ser muito bem aproveitado.

Diante da falta de coragem, resolvem partir para o deboche. Nessa tal Marvel Millenium, eles resolveram perverter toda a tradição o homem Aranha. Estão recontando a origem do personagem de uma forma absolutamente incompreensível. Fazem o coitado namorar a Mary Jane antes de todas as outras, tirando Betty Brant da história. Gwen Stacy passa a ser uma rebelde sem causa, e tudo isso ocorre no segundo grau (originalmente Parker só conhece Gwen Stacy e Mary Jane na universidade).

Mas a Marvel Millenium pode ser vista como uma espécie de “universo alternativo”. Eles conseguem fazer coisa pior nos títulos regulares. Atualmente estão copiando o filme e fazendo que a teia seja orgânica, o que não me parece uma boa idéia. Não é recomendável mudar uma tradição de quase 50 anos apenas por causa do sucesso de um filme. Por exemplo, os editores de Superman não mataram o pai de Clark Kent só porque ele morria no filme.

Mas a última loucura — essa sim, inexplicável — que fizeram foi alterar uma parte fundamental do passado do Aranha, e agora Gwen Stacy teve dois filhos com o arqui-inimigo do Aranha, Norman Osborn. A coisa chegou a um nível de retardamento difícil de acreditar.

Eles não aprendem com seus erros. Não sabem que é no mínimo temerário alterar o passado, e que destruir personagens fundamentais é sempre um erro. Deviam se mirar no exemplo do Batman. Quando Frank Miller recontou sua origem em Ano I, não mexeu nos fatos principais — que afinal de contas estavam aí havia quase 50 anos. Em vez disso, ressaltou alguns elementos importantes para a redefenição do personagem. O resultado é um clássico.

A diferença é que Frank Miller era um gênio e o pessoal que mexe com o Aranha não passa de um bando de idiotas com idéias pretensamente geniais. E que estão matando a sua galinha dos ovos de ouro.

Talvez eu seja apenas um velho leitor de quadrinhos, de outros tempos. Mas algo me diz que não. Porque eu já era um velho leitor de quadrinhos quando as obras-primas dos anos 80 apareceram. E a impressão que eu tinha era a de que estava diante de maravilhas, como na história de Alex Ross; hoje, me sinto como quem olha aqueles bailes, durante a Depressão americana, onde as pessoas dançavam até a exaustão para ganhar alguns trocados. A impressão é a de estar diante de um bando de desesperados que não sabem mais o que fazer.