Histórias da Gente Brasileira

Andei lendo os dois primeiros volumes de “Histórias da Gente Brasileira”, de Mary del Priore, que tratam da vida cotidiana durante os períodos colonial e imperial. Não me animei a ler os seguintes.

Noves fora, a série parece ser pouco mais que um bom resumo do que já se escreveu sobre a vida privada no Brasil, feito com critério e sensibilidade. A obra e a visão de Gilberto Freyre, dono do que é provavelmente a mais importante bibliografia nesse campo, se destacam entre o cipoal de historiadores, viajantes e escritores, e isso não é ruim — é sempre bom ver o velho reacionário de Apipucos reconhecido num tempo em que se tornou a regra colocar a expressão “democracia racial” em sua boca.

Mas o livro não se anima a fazer disso um trampolim, o início de uma reflexão nova, e esse me parece ser o seu grande problema.

O zeitgeist moderno, como é natural, influencia essa narrativa ao mesmo tempo nova e velha. Por exemplo, ao falar da preferência estética por dedos finos e alvos, por pés pequenos e delicados, Del Priore a define como um aspecto da diferenciação necessária dos pés largos e chatos das negras, implicitamente estabelecendo o racismo como base dessa preferência estética. Isso é verdadeiro, mas não é toda a verdade. Na França do mesmo período osso finos eram valorizados em comparação não com negras exploradas, mas com as camponesas louras de dedos grossos e pele vermelha de sol (e também porque indicariam orifícios estreitos, mas essa é outra conversa que não fica bem em um blog de boa família como este). O que é essencialmente uma questão de classe eventualmente enriquecida pelo racismo é mostrado como apenas uma questão racial, negando, aqui também, a complexidade das relações e valores da sociedade. É o tributo que Del Priore paga ao seu tempo.

Mais incômoda é a constatação de que há poucas ideias novas em “Histórias da Gente Brasileira”. Del Priore essencialmente repete as convenções históricas de seu tempo quando poderia tentar se aventurar sobre o que está por baixo delas, ou tirar conclusões a partir de informações conflitantes. Provavelmente é a isso que o livro se propõe: é cheio de ilustrações que atrapalham a leitura mas devem servir de chamarizes para leitores mais jovens ou menos desasnados. Mesmo dentro desse escopo, no entanto, há defeitos que saltam aos olhos.

O segundo volume, especialmente, realça esses problemas, menos aparentes no que trata sobre a história colonial. Nas páginas sobre sexualidade, especialmente no período imperial, lemos sobre esposas que rezam uma Ave Maria antes de abrir resignadamente as pernas para seus maridos, moçoilas que namoram apenas com olhares e beliscões lusitanos na saída da missa. Diante de narrativa tão rígida, que fazer com as tantas histórias que sabemos que existiram? Dos casamentos apressados em corrida contra a barriga cada vez mais protuberante, das moças mandadas para a corte ou outra província prenunciando a adoção de um primo distante recém-nascido, das pessoas que descobrem um dia serem filhos daquelas que achavam serem suas irmãs?

Não que seja fácil para historiadores abordar essas questões. Escândalos familiares, a vergonha de ter um filho “fresco”, como diziam, são quase sempre devidamente sepultados pelas famílias, não constam em inventários nem testamentos, se tornam segredos de polichinelo que o tempo geralmente se encarrega de esquecer, mais rápido do que esquece de todo o resto. Mas lembrar que a história não é linear e o passado raramente é totalmente passado, reconhecer que a vida íntima do brasileiro tem uma riqueza que extrapola narrativas oficiais e compartimentos temporas, e que nem toda história é registrada, seria um bom ponto de partida para investigar e jogar luzes novas sobre nossa história.

É impossível não lembrar de um dos tantos temas em “A Experiência Burguesa: da Rainha Vitória a Freud”, obra estupenda de Peter Gay, infelizmente fora de catálogo no Brasil e vendida a preços extorsivos nos sebos. Freudiano, Gay lembrava que por baixo do puritanismo e repressão vitorianos as carnes continuavam fervendo, porque da saliência ninguém aguenta abrir mão por muito tempo. Foi assim que Gay conseguiu desvelar uma realidade muito mais rica e mais complexa no período vitoriano e oferecer uma visão renovadora sobre a arte e o comportamento daquele tempo, questionando alguns dos mitos mais persistentes. É o que faz falta aqui.

Assim, é curioso que Del Priore acabe negando à mulher do Brasil imperial o exercício do prazer e do desejo, apesar de em várias partes se referir aos raptos, às fugas no meio da noite, em trechos que parecem tirados de “Sobrados e Mocambos”. É possível supor que a sexualidade, mesmo quando obedecia às regras morais da época, era muitas vezes mais saudável do que a pudicícia historiográfica faz crer. Infelizmente, nos faltam diários e relatos que atestem essa ideia, porque antes das redes sociais e dos reality shows era feio ou ao menos vulgar falar ou registrar os abandonos e desvarios de amor, luxúria e perdição que as paredes caiadas ostentando um Sagrado Coração tanto viram no país d’outrora. É aí que deveria entrar a autora, contextualizando tudo, fazendo as conexões necessárias, até levantando hipóteses. “Histórias da Gente Brasileira” se ressente dessa ausência. Falta lembrar que sim, mulheres gozavam no período imperial.

Além disso, a julgar pelo livro, homossexuais não são gente, pelo menos não gente brasileira. E embora haja alguns livros que tratam do assunto, como o já clássico “Devassos no Paraíso”, o tema não é tratado de maneira clara pela Del Priore. O capítulo destinado a eles tem pouco mais de duas páginas, e mesmo assim se concentra em uns poucos casos pitorescos, que estão muito longe de apresentar um panorama real do seu tempo — o marinheiro que mata o companheiro apaixonado por uma ex-prostituta daria ao menos uma boa fotonovela italiana, mas não é o suficiente para nos fazer entender como se davam as relações interpessoais e com a sociedade. Aqueles que nasceram antes dos anos 80 podem intuir uma parte disso, a partir da observação e extrapolação da sociedade até aqueles tempos, da compreensão de seus preconceitos e subterfúgios encontrados para driblá-los; mas aqueles que nascem agora, em um período de tolerância crescente e inserção social, em algumas décadas não terão mais critérios de julgamento. É claro que é outro daqueles temas difíceis, pela escassez de fontes confiáveis; mas justamente por isso mereceria um esforço maior.

Há outras questões que a leitura suscita. Numa obra que tem o título geral de “Histórias da Gente Brasileira”, é curioso que se dê tão pouca atenção e destaque às diferenças culturais abissais que marcam a geografia do país. Não existe um Brasil único em termos de costumes, nunca existiu. A sociedade das Minas Geraes do século XVIII não era igual à da Vila de Piratininga da mesma época, e bem diferente do que se via às margens do rio Guamá. O Rio de Janeiro de 1850, em seu esplendor imperial, já tinha costumes e perspectivas diversas da Salvador decadente de então. Corte e províncias, capitais e interiores sempre andaram em passos muito distintos, diferença que só há poucas décadas, depois das antenas parabólicas e principalmente da internet, começou a diminuir de maneira significativa e irreversível.

Apesar disso, esta é uma narrativa eminentemente sudestina. O Nordeste está bem presente, graças à importância basilar da obra de Gilberto Freyre na gênese deste livro, mas tem-se a impressão de que o Sul, por exemplo, não faz parte do Brasil. E isso acaba, talvez, dando uma impressão de uniformidade que nunca existiu, e que gente como Evaldo Cabral de Mello costuma deplorar.

Também chama a atenção um dos problemas que parecem afligir a historiografia brasileira desde sempre: a dependência às vezes excessiva dos brasilianistas e seus relatos de viagem, Maria Graham, Saint-Hilaire, uns tantos outros. Talvez não dê para ser diferente, porque esses relatos são às vezes os únicos a cobrir lacunas incontornáveis em um país de gente atavicamente iletrada, que mesmo hoje não costuma registrar o seu cotidiano. Além disso, são indispensáveis porque ao estrangeiro saltam aos olhos aspectos da vida cotidiana que os patrícios muitas vezes não conseguem mais enxergar.

O detalhe é que esses relatos devem ser lidos sempre com certa reserva; Gilberto Freyre dizia que os franceses, especialmente, costumavam ser uns mentirosos safados e sem-vergonha. Mas, principalmente, é preciso lembrar que nenhum olhar é desprovido de preconceitos e de subjetividade. No primeiro volume, sobre o Brasil colonial, isso está bem claro, e Del Priore acerta ao registrar opiniões diferentes: a casa-grande de pau-a-pique, que a um viajante parece apenas primitiva e pobre, a outro pode parecer engenhosa e uma solução ambiental adequada. Comportamentos podem ser julgados de maneiras diferentes, aspectos importantes para uns podem não ser dignos de nota para outros.

Mais que isso: mesmo cumprindo papel importante, nem sempre eles são tão necessários assim. Por exemplo, em determinado momento Del Priore recorre a uma viajante francesa para uma descrição muito sucinta de como aconteciam os casamentos. Talvez essa descrição não fosse tão necessária assim. Era só lembrar da “História da Baratinha”, adaptada por João de Barro em disquinhos infantis coloridos e presente em milhares de lares brasileiros a partir dos anos 1960:

E logo chegou a hora marcada para o casamento.
Numa linda carruagem, forrada de azul turquesa,
Lá se foi a baratinha — era mesmo uma beleza.
Ao seu lado, repimpado, parecendo um general,
Ia garboso o padrinho, o papagaio real.
Mais atrás, em grande fila, e sem carros enfeitados,
Vinham parentes, amigos, e o resto dos convidados.
Só não vinha no cortejo o dr. João Ratão;
Porque como era costume, em tempos que já lá vão,
O noivo e sua madrinha deveriam esperar
A noiva e seu padrinho desde cedo, ao pé do altar.

Às vezes, as conclusões a que Del Priore chega parecem mudar ao longo do livro de acordo com o autor citado. Fica a impressão de que falta uma visão unificadora e mais crítica — ou seja, a intervenção da historiadora. Por exemplo, ao falar do papel do pai na sociedade imperial, Del Priore cita Capistrano de Abreu: “pais soturnos, mulher submissa, filho aterrado”. Mas apenas algumas páginas antes ela citou um certo James Wells, que descreveu crianças mal-educadas e petulantes tratadas com complacência excessiva pelos pais, e uma opinião de Maria Graham muito parecida. Afinal de contas, como eram as relações entre pais e filhos? Se ambos são verdadeiros — e certamente são —, por que não trabalhar a partir da compreensão mais abrangente dessa diversidade e tentar interpretar de maneira mais completa e rica esses aspectos da história, e de como essa diversidade de relações forjou a sociedade em que vivemos? Não é a exposição ou omissão de fatos que nos faz entender a história: é a compreensão do seu conjunto.

Esse é o grande problema desta obra, que obviamente recorre a pouquíssimas fontes primárias: falta a interpretação e criação de um novo conceito a partir do apanhado de informações coletadas no livro, a interferência da historiadora, o cotejamento com a evolução dos tempos e com outros aspectos da vida cotidiana.

É um problema comum em obras de história. Em “SPQR”, um bom livro de Mary Beard sobre Roma, em vários momentos se tem a impressão de que, se ela conhecesse um pouco mais do cotidiano da política como é feita hoje, de suas entranhas e complexidades, poderia lançar um pouco mais de luz sobre o processo que levou à conspiração que matou Júlio César e à queda da República. Às vezes tem-se sensação semelhante aqui.

Isso não é uma condenação do livro. Pelo contrário. “Histórias da Gente Brasileira” é excelente para quem tem expectativas um pouco menores — ou melhor, para quem, diante do que o livro apresenta, não espera um passo adiante. Traz uma excelente curadoria de informações, com boas escolhas de suas fontes. É abrangente, sensível, em muitos momentos apresenta bons insights. Ninguém perde seu tempo lendo este livro.

Mas às vezes tem-se a impressão de que falta deixar claro, para os leitores, que o passado nunca é totalmente passado. E as mudanças nunca obliteram tudo aquilo que sucedem e superam. É por faltar essa compreensão de maneira mais clara que o livro resulta em uma leitura confiável, mas insuficiente. Confirma o que já sabíamos, no máximo adicionando alguns detalhes. Mas não muda nada, não acrescenta nada. E no fim das contas, chama a atenção exatamente para o que não diz.

Os Anos Dourados

Nunca fui noveleiro.

Ao contrário, na infância cheguei a odiar novelas, porque impediam que eu assistisse aos seriados e desenhos que passavam na TV Tupi e que me interessavam muito mais — as novelas da Tupi, por sua vez, nunca foram vistas lá em casa. Mais tarde, aprendi a tolerá-las e até gostar de algumas, mas raramente assistindo regularmente a elas.

Com a idade, no entanto, passei a respeitá-las um pouco mais. E reconheço sua importância na minha própria história: novelas sempre serviram como referenciais cronológicos, porque em tempo de dois canais de TV não havia jeito de não ser exposto de alguma forma a elas, e por isso eu sabia a ordem da maior parte das que foram exibidas entre a virada dos anos 70 e 80, e ao menos alguma parte de uma trama. Querendo ou não, novelas tiveram algum nível de influência na percepção e vida de todos os brasileiros.

Mas houve exceções nesse desdém: não exatamente novelas, mas as minisséries que a Globo exibiu aí pela metade dos anos 80. De certa forma, a emissora do Boni prenunciou um novo tempo na TV que só agora se tornou corriqueiro. Algumas dessas minisséries foram antológicas, como “Grande Sertão: Veredas”, “O Tempo e o Vento”, “Memórias de um Gigolô”. Assisti a elas, gostei de todas.

Nenhuma, entretanto, foi tão boa quanto “Anos Dourados”. Assisti na época porque falava dos anos 50 e o rock daquela década era talvez o que eu mais ouvia então.

Por muito tempo achei que os anos 80 assistiram a um revival dos 50, mas a verdade é que aquela década sempre esteve presente: da retomada do rock básico pós-psicodelismo em 1968 (do qual o “Álbum Branco”, dos Beatles, é filho dileto e não inventor, como querem tantos beatlemaníacos), aos filmes American Graffiti, Lords of Flatbush ou Grease ao longo dos anos 70, ou o seriado Happy Days, os anos 50 permearam a cultura das décadas seguintes porque, no fim das contas, foi quando tudo começou, quando a adolescência passou a definir os padrões culturais de massa. Isso era mais intenso nos Estados Unidos, mas mesmo no Brasil a nostalgia de tempos leves, promissores, em que avançávamos 50 anos em cinco e todo mundo podia sair da fome no sertão para a fome nas cidades, nunca deixou de permear o imaginário: “Estúpido Cupido”, novela de 1976, é prova disso.

Assisti a “Anos Dourados” novamente quando o Viva reprisou a série, em 2011, 25 anos depois. Agora assisto novamente, no Globoplay, e estou impressionado.

“Anos Dourados” é a obra-prima de Gilberto Braga. A maneira como entremeia o nascimento e os percalços de um primeiro amor pueril e puro com outro, ilegítimo, adulto, contextualizando-os brilhantemente em um tempo de preconceitos rampantes, é obra de um excelente escritor, não importa o meio em que escreve.

O texto é primoroso, os diálogos excelentes em seu naturalismo. Roberto Talma não era um Walter Avancini, mas sua direção é de uma sensibilidade enorme, sempre no tom certo da cena. Cenografia e figurino perfeitos, de um bom gosto e simplicidade que chegam a impressionar, e que ilustram bem o que era o tal “padrão Globo de qualidade”. A música de Tom Jobim é de beleza única, e a narração do Paulo César Pereio, abrindo cada capítulo com um resumo do capítulo anterior, é sempre fascinante.

A recriação da Tijuca dos anos 50, seus códigos sociais, seus preconceitos, o contexto político em que seus personagens estavam inseridos, referências que se perderam no tempo — quem ainda lembra de Mira y López? Ou do que significava dar uma foto ao seu namorado, com dedicatória formal que escondia a intensidade do que se sentia? Ou ainda —, tudo isso é feito de maneira doce, verdadeira, que torna “Anos Dourados” uma obra permanente e sempre interessante.

Há tantos e tantos filmes clássicos por aí que falam do nascimento do amor, da emoção de ser adolescente e estar vivo e descobrindo o mundo — ou do amor proibido, sofrido, até sórdido. E enquanto eles eram louvados, a produção teledramatúrgica brasileira era desprezada. Mas a delicadeza com que Braga fala do ciclo da vida em uma Tijuca dos anos 50, inserindo-o de maneira perfeita em seu contexto social e político, não deixa absolutamente nada a dever a muita coisa boa no cinema. “Anos Dourados” serve para lembrar que a teledramaturgia brasileira era infinitamente melhor que o nosso cinema.

E então a gente se pergunta o que aconteceu.

É claro que a decadência da audiência da TV aberta se deve prioritariamente a outros fatores. Mas assistindo a “Anos Dourados”, percebendo os detalhes que passaram batido quase 40 anos atrás, me pergunto se a mediocrização das novelas atuais não é um fator relevante a ser considerado.

Não posso falar muito porque não assisto a a mais que alguns minutos delas, de vez em quando, e há décadas não assisto sequer a TV aberta além do Jornal Hoje durante o almoço. Mas ainda assim me parece desagradável assistir a uma novela hoje. Cenas longas demais, diálogos que às vezes parecem estar enchendo linguiça ao mesmo tempo em que são desnecessariamente complexos, verborrágicos, um tom escuro demais nas imagens que macaqueiam porcamente a estética de seriados americanos, falta de imaginação em movimentos de câmera e enquadramentos. O que as novelas brasileiras tinham de singular e em comunhão com seu público parece ter se esvaído em um caldo de globalização e tecnologia no lugar de criatividade.

E talvez o maior sinal disso seja o alerta que agora é exibido antes de cada capítulo: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”.

Que me perdoem os bem-intencionados cheios de certeza moral que pululam como girinos na internet: essa é a maior confissão de rendição à estupidez humana. Lembra aquelas advertências bizarras em produtos americanos, tipo “tire a criança do carrinho antes de dobrar” ou “não segure a motosserra pelo lado errado”. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de algum pensamento crítico, de contextualizar a história. E diante disso, é difícil não imaginar que estamos ficando mais imbecis. Ou que os anos dourados, definitivamente, passaram.