Sem alarde, este blog completou 20 anos em julho.
Comecei porque morava em Niterói e tinha tempo livre demais nas mãos e queria escrever de uma maneira diferente do texto publicitário.
Porque o texto publicitário clássico era assim.
Era curto, “paragrafal”.
E feito de pontos. Fodam-se as vírgulas.
O texto publicitário queria sempre vender alguma coisa a você.
Escrever um parágrafo longo cheio de vírgulas era libertador. Encadear sentenças era tão bom, tão bom. Além disso, eu queria poupar amigos para os quais eventualmente mandava longos emails sobre alguns assuntos aleatórios. Eu simplesmente sentia vontade de escrever sobre qualquer bobagem que me viesse à cabeça. E aquele era o tempo certo.
Embora weblogs fossem notícia desde pelo menos 2001, foi só em 2002 que passei a ler alguns. Na verdade, descobri esse mundo por motivos torpes e errados — nenhuma surpresa nisso, imagino: foi procurando pelas fotos de uma tal festa Giovanna infame, na qual tiraram e divulgaram fotos de gente em posições de safadeza e de ai-meu-Deus, que cheguei ao blog da Lolla Moon. Aquele foi o primeiro que li e gostei; ela tinha um jeito próprio de escrever, um modo inteligente e vívido de descrever — ou reinventar, eu nunca soube — a sua realidade. Lolla Moon era um personagem, aparentemente, mas era muito bom. Tinha vigor e verdade.
E assim chegou a hora em que resolvi escrever o meu próprio blog. Se chamava “Pensamentos Mal Passados”, e tinha um subtítulo: “Um pouco de nada, e nada de muito importante”. Seu endereço era http://rafaelgalvao.blogger.com.br; escolhi o Blogger brasileiro porque na época ele permitia a hospedagem de imagens, ao contrário do Blogspot, cujos usuários tinham que recorrer a coisas como o Photobucket; eu intuía que mais cedo ou mais tarde sumiriam com suas fotos.
Entre primeiros leitores estavam as poucas amigas a quem avisei que tinha começado um blog, a Daniela Parahyba e a Mônica do então Atos Falhos (depois Monicômio). Através da Mônica veio o Biajoni, que então tinha um mini-portal chamado Tiro & Queda em Limeira e se preparava para iniciar uma carreira de escritor.
Foi a Dani quem fez o primeiro tema personalizado do blog, de acordo com um layout que mandei para ela. Ali ele já perdeu o nome — que cá entre nós não valia nada —, dando início à minha pequena egotrip homônima. Ainda mantive o subtítulo por alguns meses, mas mesmo este sumiu nas brumas do tempo.
De certa forma, foi só quando virou “Rafael Galvão”, o nome de guerra desta velha marafona das palavras, que ele passou a fazer algum sentido. Tinha começado tímido, sem cara definida; o primeiro post era uma despedida do browser que tinha possibilitado a minha entrada na internet, o Netscape. Naqueles primeiros meses o blog era composto essencialmente por comentários bobos sobre o que me viesse à cabeça; olhando em retrospecto, era essencialmente um Facebook avant la lettre, como quase todos os outros blogs. Mas aqui e ali havia uma coisinha mais legal, e aos poucos ele foi tomando uma cara própria, os textos foram aumentando de tamanho e diminuindo em quantidade. Em agosto de 2003 publiquei 100 posts, a maioria curtíssimos. Em 2005, a média já tinha passado para um por dia, smepre publicados à meia-noite. Dois anos depois, uns três por semana. Não vou falar da frequência atual.
O Blogger.br era uma droga, e no início de 2004 decidi aproveitar o domínio que já tinha, por causa do e-mail, e passei o blog para hospedagem própria, rodando o Movable Type, um sistema de gerenciamento de conteúdo danado de chique na época mas que se perderia ao tentar descolar um troco de gente que não ganhava nada por escrever. O primeiro provedor era nacional, se chamava Sunhost e era muito ruim. Passei para um pequenininho americano, chamado AddAction, onde fiquei por anos. Finalmente, já nos estertores do que eu chamo de “primeira fase”, passei para o Bluehost, o melhor de todos, até que o dólar disparou e voltei para o Brasil, como emigrante fracassado.
Desde o início no Movable Type eu fazia meus próprios temas. A Dani, que nunca saiu do Blogger, não sabia mexer naquilo e eu tive que aprender na marra. O primeiro foi basicamente uma adaptação do modelo que ela tinha feito no Blogger, mas esses layouts me cansavam e durante algum tempo eu os mudava a três por quatro. Em 2006, o hábito da mudança periódica e a falta de tempo me fizeram, pela primeira vez, pegar um template pronto, embora eu ainda fizesse uma série de alterações. Em 2008, no entanto, um problema interno no provedor me fez migrar para o WordPress. E então a farra dos layouts acabou, porque a estrutura me parecia diferente, e eu já não sabia mexer naquilo nem queria aprender, e o jeito era pegar o que já estava pronto. Os templates posteriores foram gratuitos, encontrados no próprio WordPress, sem modificações. Infelizmente perdi virtualmente todos os primeiros layouts neste blog; alguns sobrevivem no WebArchive.
O blog começou a ser notado quando escrevi um post para o Kit Básico da Mulher Moderna. A Maneschy era minha amiga mas não sabia que eu tinha um blog; no entanto, no início de 2004, quando eu já morava em Aracaju, saiu algo sobre ele numa coluna d’O Globo, e ela veio me esculhambar por não ter lhe contado. Pouco tempo depois ela me pediu um post para o seu blog. “Mulheres Imperfeitas” (que depois republiquei aqui) fez um sucesso bem razoável, hoje inacreditável para quem lembra dos problemas graves que tive com um bando de feministas de caixas de comentários. Chega a ser irônico que o post que colocou este blog no mainstream da blogoseira fosse daqueles que agradam a 9 entre 10 mulheres, mas eu ainda não era o porco chauvinista que viria a me tornar pouco depois, e as moças gostavam de mim. Hoje, claro, apareceria alguém para dizer que o tal post é machista hétero patriarcal cis neurótico psicótico, mas naqueles dias o Facebook ainda não existia.
O post chamou a atenção do Alex Castro, que na época se escondia da polícia e tinha outro nome e escrevia o Liberal Libertário Libertino, um blog brilhante de que até hoje sinto falta, porque mesmo quando eu discordava absolutamente dele — e eu sempre discordo em quase tudo —, o Alex era, sempre foi, um grande escritor.
Através do Alex veio o Inagaki, que para mim é o sujeito que definiu o modelo do blog brasileiro, ensaístico, leve, sem um escopo definido e sem a preocupação de parecer uma coluna de jornal. Com o Ina veio uma explosão no número de leitores, o que sempre se dá em progressão geométrica: e em 2006, o blog tinha uma média de 3 mil visitantes únicos diários. De vez em quando fico impressionado ao ver que os anos entre 2006 e 2010 foram talvez os mais produtivos para este blog, e me pergunto onde arranjava tempo para escrever: nessa época, eu trabalhava feito um cão e tinha uma vida pessoal bastante agitada.
Uma “seção” que fazia algum sucesso eram “As Alegrias Que o Google me Dá”, em que eu dava respostas cretinas às perguntas esquisitas em mecanismos de busca que traziam pessoas aqui. O responsável por isso foi o Alex: foi ele quem elogiou a tal seção, e outros se seguiram. E como puta velha publicitário, a gente acaba tentando atender as preferências populares.
O mais curioso é que eu, pessoalmente, gostava mais de escrever as “Notícias Estranhas em um Blog Esquisito”, em que comentava notícias engraçadas. Isso só mostra que nunca consegui ter o dedo no pulso das massas. Eu não sei do que o povo gosta. E a esta altura da vida, isso não me importa.
Aquele período era o auge não apenas deste blog, mas de toda a blogoseira. Os primeiros diarinhos — mais ou menos nos moldes do Facebook de hoje — davam lugar a abordagens mais complexas. Acho que criamos, todos juntos, uma comunidade heterogênea e conflituosa, mas vibrante. Li muita gente boa ao longo daqueles anos; gente criativa, talentosa, gente engraçada e séria. São nomes demais para citar, mas é fácil lembrar da agonia romântica da Daniela Parahyba, da extrema sensibilidade caótica da Mônica do Monicômio; da ironia do seu marido, o Carlos Magalhães; a eterna busca do Marcos Donizetti, outro desses escritores talentosos que encontraram na facilidade de publicação um caminho; o Marcus Pessoa, que um dia ainda me convence a ouvir música eletrônica; a Lucia Malla que tem um dos melhores blogs de viagem ainda hoje; o Marmota e seu deslumbramento nerd diante do mundo; o Alexandre do Pinhead, cujo filho Valdemar eu vi nascer; a Carol do Appothekaryum, companheira de viagem em Botafogo e Copacabana; o Milton Ribeiro, gaúcho atípico; o Bia com um estilo próprio e instigante; o Reginaldo do Singrando, em seu bunker na usina de Paulo Afonso; o Allan com sua Carta da Itália e seus casos do grande Aldo, outro que vi mudar de vida ao longo desses anos; ao Ricardo, que chegou a morar um tempo em Aracaju justamente na época em que estava mais ocupado; Maray com suas reflexões maduras em seu Che Caribe; o Adriano, também chamado de Smart Shade of Blue e Hermenauta (criador, por sinal, do termo “blogoseira”), com sua lógica de engenheiro e seu humor de carioca canalha em Brasília; o Idelber sempre mercurial; a Luciana Rayol e seu lirismo adolescente e a devoção a Roberto Carlos no Cinta-Liga; o Bruno na simplicidade honesta do Ik Haat; a Viva, em blog nenhum e em todos os blogs.
São nomes demais para lembrar de todos. Mas nem eu, nem o Bruno, nem a Márcia vamos jamais esquecer uma belíssima noite de fim de outono no Belmonte. E é por dias como esse que escrever este blog valeu a pena.
Por causa de um post com um filminho meio canalha que o Bia tinha me mandado, arranjei uma briga com o que ainda chamo de pseudofeministas. Me indispus com boa parte da blogoseira de esquerda, que já naquela época caminhava célere para a estupidez comodista que se vê mais claramente hoje; e não esqueço que, naquele momento, o Hermenauta e o Pedro Dória foram os únicos que defenderam os princípios que justificavam aquela publicação. Sou grato a eles até hoje.
Sempre achei curioso que o período mais prolífico deste blog, entre 2005 e 2010, tenha justamente aquele em que mais trabalhei. Mais que isso, em 2006 eu estava comprando fiado e pedindo o troco; um incêndio tinha destruído minha casa, minha filha tinha afogado meu computador pouco antes; e ainda assim eu dava um jeito de escrever aqui.
Isso tem a ver com a única coisa de que realmente me arrependo. Segundo o Idelber, eu era famoso por não responder a comentários e por não comentar em lugar nenhum. É algo de que me arrependo. Hoje tenho a impressão de que isso soava como uma rudeza e uma grosseria desnecessárias. Em parte era pura falta de tempo, mesmo. Outra era a convicção de que os comentários deveriam estar em um espaço com moderação mínima — a única regra era não xingar outros comentaristas — e que não me pertencia. Houve uma época, de absoluto excesso de trabalho, que eu sequer conseguia ler todos. E assim não respondi a pedidos e perguntas que devia ter respondido.
Acho que o fato de eu ser um dos poucos blogueiros daqueles tempos heroicos que ganhavam a vida efetivamente escrevendo ajudou a definir a personalidade deste blog. Passei ileso (e pobre) pela onda de “monetização” de 2008. Nunca estive preocupado em ser cancelado, porque a verdadeira razão deste blog existir era o exercício do direito inestimável de dizer “foda-se” quando quisesse — o que eu certamente não tenho fora daqui. Para não dizer que nunca ganhei dinheiro com o blog, durante uma época coloquei anúncios do Google nos posts. Depois de um ano ganhei uns 200 dólares que foram parar na Amazon.
Mas um tempo é um canalha sádico, e ainda assim, o tom do blog mudou muito com o passar do tempo. Os textos ficaram maiores e mais sérios. Imagino que diante da abundância de textos sobre os mesmos assuntos disponíveis internet afora, eu tenha tentado escrever algo que fizesse alguma diferença, que não apenas repetisse o que se pode encontrar em outros lugares. Além disso, uma certa influência do mundo real que acaba me obrigando a ser um pouco mais cuidadoso, e isso era chato. Acho que já tinha mudado um bocado quando decidi acabar com ele.
Em 2010 tinha se tornado uma obrigação sem sentido, e fora isso eu estava realmente exausto. Não achava que tinha muito mais o que dizer nem me preocupava se alguém estava lendo. Olhando para trás, talvez eu não tivesse mais o que dizer, mesmo; a internet tinha mudado, as redes sociais se afirmavam e o ambiente que tinha possibilitado o surgimento dos blogs estava começando a desaparecer.
Quando anunciei que estava encerrando o blog, o Leo Bernardes, do Reinventando Santa Maria, escreveu um post que me deixa orgulhoso até hoje, apesar do exagero; a Luciana Rayol depois me diria que ficou chocada. Eu jamais imaginaria que havia gente que gostava dele tanto assim.
Mas eu gosto de escrever, e acabei voltando. Depois de tantos anos, o blog tinha passado a ser parte da minha vida; por isso voltei, mas sem a obrigação que eu mesmo me impunha. E ele vai ficar por aqui para sempre, acho; às vezes com um texto, às vezes não. Não precisa de mais que isso. Ele já está vivendo em um tempo emprestado, mas que bom: a este blog, que me deu alegrias, raivas e amigos, basta apenas continuar existindo, tornando possível que eu escreva algo quando quiser, ou não escreva quando não quiser. Não porque é ou deixa de ser lido: mas porque é parte indissociável de mim.
No entanto, há uma diferença entre o Rafael de 30 anos e o de vinte anos depois.
Uma vez, um leitor disse na minha cara que gostava da “arrogância adolescente” deste blog. Se eu tivesse bebido duas doses a mais eu o teria mandado fazer bom uso da sua bunda — mas ele era o governador de Sergipe e doido eu nunca fui. Hoje, muitos anos depois, vejo que ele tinha razão. Mas não é culpa minha: o resto do mundo é que me parece cada vez mais chato, mais sisudo, se leva a sério demais.
Mas não fui imune ao passar do tempo, e é claro que fiquei mais sério e mais chato. Não me incomoda, mas certamente diminui os encantos do blog. Me incomoda mais a falta de vontade de escrever sobre alguns assuntos que me interessam porque ele já foi debatido antes. Eu gosto da minha opinião, mas não a esse ponto. Mas não dá para deixar de notar que o blog perdeu o humor quase adolescente que vejo em posts antigos. Ficou mais sério, mais sisudo. Reclamão, não, que isso eu sempre fui. É como se eu tivesse passado a usar camisas sociais e sapatos o tempo todo.
Acho que tem um pouco de cansaço e de covardia também, mas parte disso é a mudança dos tempos, mesmo. O mundo ficou mais chato, mais policialesco, mais autoritário, e a internet é a grande responsável por isso. Há uma maneira para fazer as coisas, há uma noção de que ideias são certas — noção que me dá calafrios, porque é uma receita para a estupidez.
Vinte anos depois, blogs como este, basicamente conversa jogada fora numa espécie de bar virtual, foram perdendo o sentido. Nunca tive muita certeza da razão. Certo, a profissionalização dos blogs, sua transformação quase em “jornais alternativos”, ajudou. Mas no fundo não sei, de verdade, se é porque as pessoas já não os leem ou porque seus autores não escrevem mais; o fato é que Facebook e Twitter ocuparam esse espaço, e mudaram a forma como a gente se expressa. Não é à toa que todos os atuais leitores do blog o acompanham praticamente desde o início. Esse é o maior elogio que eu poderia receber, mas é também indício que não há novos leitores para esta bodega. O ambiente que criou os blogs acabou, e não volta mais.
Mas ainda acho que blogs foram a melhor rede social que a internet já inventou. O volume de gente talentosa que soube da existência uns dos outros é enorme, e não vai mais se repetir. Era isso que fazia daquele mundo algo que, até hoje, acho sensacional: os diálogos que se estabeleciam, de maneira mais elaborada e instigante que um postzinho no Facebook e comentários rápidos.
O Facebook, e depois o WhatsApp e Instagram, destruíram o que o Hermenauta chamava de blogoseira. A ideia de textos mais densos em ambientes abertos, a que todo mundo poderia chegar por acaso, deu lugar a ambientes controlados, “plataformas”, perfis de Facebook apenas para amigos, newsletters para assinantes. Acabamos dando preferência a lugares onde os leitores são cativos, onde os textos são menores, onde a pressa da informação ou a mera autoexposição são atendidas instantaneamente. Nos conformamos com nichos pré-determinados. Para todo mundo, é mais fácil escrever no Facebook que num blog, que demandava mais tempo, mais pensar. Mas isso colocou as pessoas em guetos particulares minimamente conectados — quase o oposto daquilo que os blogs representavam em seu auge, na segunda metade dos anos 2000. O melhor dos blogs, o diálogo e as conversações que ele possibilitava, desapareceu. Não é à toa esse diálogo de surdos em que se transformou o debate público, das gentes comuns. Cada um falando para sua própria plateia, pregando para convertidos porque não é, no fundo, o debate que importa; e nessas horas eu tenho saudade dos xingamentos que eu recebia.
O mundo, ou ao menos a franja de mundo em que eu me situava, está mais tribal, mais puritano, medíocre. As pessoas têm medo de rir do que os outros definem como impróprio. Algo que acho inadmissível — a ideia de ofensa pessoal a grupos — se tornou a norma. A ideia estúpida de que a vítima tem sempre razão, quando associada à noção de que vítima é todo aquele que se declara como tal, embota a sociedade. Ou seja, ficou feio dizer: “Eu não quis te ofender, sequer sei da sua existência. Se você se ofendeu com o que eu penso, foda-se”.
Para mim, isso é um problema. Eu perdi a conta das pessoas a quem este blog ofendeu. Principalmente goianos, neopolitanos, astrólogos de Maria e garotos de pinto pequeno.
No fim das contas, o que realmente importa neste blog é que eu ri muito. São mais de dois mil posts, dos quais uns 100 são muito bons. E por isso, 20 anos depois, sempre que alguém me pergunta por que não escrevo um livro, a pergunta me soa sem sentido.
Eu já escrevi.