Quando a CosacNaify fechou

Deve estar fazendo por esses dias dois anos que a CosacNaify fechou.

Na época, achei engraçadas as reações desoladas das pessoas, lamentando o final da editora e até fazendo parecer que ali terminava, também, a grande aventura editorial brasileira. Me lembraram imediatamente as pessoas que volta e meia lamentam o fechamento de um ou outro cinema de rua.

Acontece sempre, seguindo invariavelmente o mesmo roteiro: ninguém ia mais àquela joça, porque uns preferem os cinemas de shopping e outros, como eu, descobriram os prazeres torpes e baratos da pirataria numa TV de tamanho suficiente. Mas todos parecem querer que o cinema vazio continue ali enfeitando a cidade, como se por um passe de mágica e ainda que caindo aos pedaços, e agora choram como se perdessem um grande amigo; no caso, um amigo pobrinho que não viam há décadas e do qual mal lembravam o nome.

Se uma editora fecha não é apenas porque as contas não batem, porque normalmente já passaram desse estágio há tempos: mas porque a situação se tornou insustentável. Editoras — todas elas, sem exceção — são antes de tudo o resultado do trabalho de abnegados. De gente que ama livros, que se realiza na labuta editorial e quer compartilhar esse amor com outros. Gente esperta que quer dinheiro vai para o mercado de ações, vai vender tomate na feira; o mercado editorial é o reduto de dons Quixotes que têm uma visão própria, necessariamente elitista do mundo — mesmo quando esse elitismo se traduz virtuosamente na oferta de bens culturais melhores para as massas.

Nisso o papel do Charles Cosac, como o de qualquer outro editor, é invejável e necessário. Mas é preciso também lembrar que ele está longe de ser o único, ou mesmo tão importante assim.

Contei agora os livros da CosacNaify que tenho. Não chegam a dez, sem contar alguns que comprei para dar de presente e dos quais ainda lembro. A maior parte é Faulkner; a Cosac foi a sua melhor editora no Brasil, sem nenhuma sombra de dúvida, soltando edições impecáveis dos livros mais importantes do cachaceiro sulista. Eram bons a ponto de me fazer substituir algumas das antigas edições da Nova Fronteira que eu tinha.

Porque o cuidado da CosacNaify com o produto final era impressionante. Não apenas com a apresentação material, com o visual, as capas e contracapas, o papel e a tipologia — qualidades estéticas que, desconfio, eram o principal atrativo para as carpideiras de agora; um livro da Cosac na mesinha de centro chama mais a atenção dos visitantes incautos. O que realmenet interessa é outra coisa: um livro de Faulkner editado por ela não contém erros, traz a melhor tradução possível e uma revisão rigorosa. Não se pode pedir nada mais de uma editora.

Mas havia uma diferença gritante e fundamental entre a CosacNaify lançando uma nova edição de “Este Lado do Paraíso” com um cuidado editorial invejável, papel tão legal, capa dura com um projeto gráfico moderno e elegante, e Monteiro Lobato reinventando o mercado editorial brasileiro, ou Ênio Silveira ousando publicar Ulysses em português. Assim como há uma diferença entre a Martin Claret possibilitando o acesso a obras clássicas e Alfredo Machado investindo no mercado de massa. Nomes como José Olympio, Ênio Silveira têm uma importância infinitamente superior na formação de um mercado editorial brasileiro, pelo pioneirismo e, sim, pela ideologia que os motivava. Por legal que a CosacNaify fosse, seu legado não é realmente tão importante quanto a coleção “Cantadas Literárias” da Brasiliense nos anos 80.

E então lembrei dos anos 80, os bons anos 80 — na verdade anos de merda, mas o tempo passa e doira o passado, então a partir de hoje essa década miserável passa a ser “os bons anos 80”.

Naqueles bons anos 80, a editora que me apaixonava era a Companhia das Letras — pelo menos até o início dos 90, e eu certamente não estava sozinho nessa admiração. Acho que o impacto produzido por ela em seu tempo foi muito maior do que o da Cosac. O volume de boa literatura que a Companhia das Letras trouxe a partir do seu lançamento é impressionante. Não tenho nenhuma dúvida de que foi a editora mais importante desse tempo — mesmo lembrando que a Brasiliense oferecia à juventude da época um material inestimável, em muitos aspectos mais ousado. Depois a Companhia das Letras se tornaria uma editora grande, e isso acarretaria as escolhas comerciais necessárias que a colocam em outro patamar. Mas naquele momento, editando Edmund Wilson, John Cheever, Dorothy Parker, Georges Perec, uns tantos por aí, a editora do Luiz Schwarcz era invejável e fundamental para o cenário cultural do país.

Basta compará-la à CosacNaify para entender o óbvio: a Cosac era uma editora elitista demais. E não pretendia ser outra coisa. Isso nem longe a desmerece; ao contrário, se se deixar de lado o tanto que há de demagogia populista naquela tal de literatura para as massas, há que se reconhecer que uma editora como ela é necessária.

Havia algo de imensamente lúdico nos livros dela. Comprei “Zazie no Metrô” numa das tantas promoções porque gosto do filme do Malle mas nunca tinha lido o livro. Depois de ler, acho um livro superestimado; mas o conceito gráfico desenvolvido pela Cosac, com a estética dos cartazes de rua da época intercalando as páginas (que me forçaram a malabarismos razoáveis, já que eu jamais cortaria o papel para ver o material gráfico — que energúmeno seria capaz de algo tão monstruoso?) dão um valor ao livro que, cá entre nós, o enriquece e o valoriza. Não é fundamental; mas acrescenta algo ao mundo.

Havia rigor técnico, uma vontade de fazer o melhor produto possível, algo que deve ser sempre aplaudido. E digo isso mesmo admitindo que, por ver livros de outra forma, seu material não me fazia ter vontade de gastar dinheiro demais. Lançaram uma bela edição de “Bartleby, o Escrivão”, com uma abordagem de manuseio que extrapola o “mero” ato da leitura? OK, mas isso não me faria comprar um livro que já li e que poderia ser comprado por uma fração do preço cobrado pela nova edição. Era simples assim.

Por essas coisas, durante anos não me importei muito com a CosacNaify. Para piorar, o primeiro contato que tive com ela foi através de uma entrevista numa dessas revistas semanais, provavelmente a Época, aí pelo final dos anos 2000. Um perfil do Charles Cosac mostrava um sujeito elitista além do socialmente aceitável, com uma visão de cultura que, digamos assim, extrapolava a minha. A partir daquele momento, vi no sujeito um esteta rico, meio delirante que podia se abandonar aos seus devaneios; ele me parecia um daqueles playboys cariocas dos anos 50, que passavam as noites na Vogue gastando um dinheiro que não ganharam e se tornavam a matéria da lenda do Rio de Janeiro. Ou melhor, uma visão extemporânea e deslocada de Des Esseintes, ou um Jacinto de Tormes.

(Charles Cosac me lembrava um artista plástico que conheci algumas décadas atrás. Pintava quadros de nítida inspiração clássica, o tal pintor. Ticiano antes de Modigliani, Rafael antes de Bacon. Parecia viver no século XVIII. E em seu primeiro vernissage lá estava ele, envergando um trench coat e uma echarpe em pleno calor aracajuano — senhora, senhor, o calor de Aracaju sabe ser parecido com o carioca quando quer, acredite no que vos digo —, empunhando uma bengala desnecessária e tendo ao lado um menino, vestido como pajem renascentista, que oferecia ao transeunte incauto os seus cartões de visita, tirados de uma caixa de madeira.)

Brincadeira de rico para deleite de rico, era o que eu achava. Mas recentemente, essa entrevista do Charles Cosac me impressionou. Mais que isso, me fez mudar de opinião, e de maneira radical. Vi no Cosac um sujeito necessário, consciente do seu papel. Mais recentemente, depois de ver outra entrevista sua, desta vez à Folha de S. Paulo depois de assumir a direção da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, vi nele um sujeito que o capitalismo moderno tornou redundante e arcaico, infelizmente: o esteta elitista que, paradoxalmente, tem algo a contribuir para a sociedade. E é esse arcaísmo que o torna mais necessário.

(Vi também um sujeito que, depois de esculhambar o Dória e a mulher e aceitar um convite para trabalhar em sua gestão, se saiu de uma pergunta capciosa com astúcia, classe e educação, sem perder o respeito próprio.)

Não é o bastante para me fazer comprar seus livros. Uma edição barata mas correta de Moby Dick, para mim, ainda tem o mesmo valor real que a bela edição da CosacNaify. Eu envelheço e tento me atualizar, talvez um dia até compre um Kindle, mas não preciso e não quero mudar tanto assim. No entanto, é o suficiente para que eu veja a pequena multidão carpindo o fim do seu período como livreiro com um pouco mais de respeito do que tinha até então.

Ben-Hur

Eu realmente não sei por que insisto em cometer os mesmos erros, vez após vez.

Ben-Hur”, filme lançado em 2016 e devidamente esperado mim com, digamos, cautela, dava todos os sinais de ser uma pequena tragédia. E mesmo assim, mesmo intuindo o que me aguardava, eu assisti a ele.

Refilmagens são problemáticas quase por definição. O primeiro problema está no seu tempo. O significado e a importância histórica que um filme como, por exemplo, “Psicose” teve em 1960 jamais poderiam ser repetidos em 1999, quando o insano Gus Van Sant cometeu a imprudência de refilmar a obra de Hitchcock. Além disso, contar novamente uma história impõe riscos quase imponderáveis.

A coisa é mais grave quando se trata de um clássico absoluto. Como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur” está naquele panteão de épicos que definiram o gênero. Curiosamente, o próprio filme de Wyler é uma refilmagem. A primeira versão, de 1925, foi o filme mais caro feito até então e um sucesso absoluto. Mas tratava-se de um filme mudo e, considerando-se que ainda não havia DVD ou video on demand, provavelmente largamente esquecido trinta e poucos anos depois; no máximo visto apenas por cinéfilos em cineclubes obscuros e esfumaçados, se é que essa espécie degenerada já existia. Nessas condições, uma refilmagem podia fazer algum sentido. Você provavelmente não lembra de Ramon Novarro, o ator que fez Judá Ben-Hur naquela primeira versão (bem, talvez conheça a história do seu assassinato). Mas certamente sabe quem é Charlton Heston.

Deve haver algo de muito grave com as novas plateias, uma corrosão do quociente de inteligência e de discernimento crítico. É só assim que consigo explicar as decisões tomadas pelos produtores e roteiristas dessa refilmagem. Quando vi o trailer do filme, adivinhei pelo que ele deixava antever que seria mais uma idiotice do novo cinema de entretenimento. Eu achava que a única maneira de fazer uma refilmagem fazer sentido seria explorar a natureza homossexual possível na relação entre Judá ben Hur e Messala — ah, a cena do duelo das lanças túrgidas e latejantes… —, um favor que Gore Vidal fez questão de deixar nas lembranças de todo cinéfilo. Poderia, por exemplo, dar outra dimensão à relação de Judá com Quintus Arrius, por exemplo, mais ou menos como Antonino e Graco num filme melhor de um diretor de verdade.

Em parte eu estava errado. Havia outras possibilidades: aprofundar mais a questão da resistência à ocupação romana que serve de base para o filme, ou ainda investigar e dar mais nuances ao tratamento do cristianismo nascente.

De qualquer forma, eu podia ter seguido a minha intuição e evitado assistir a um filme que eu sabia que não poderia estar à altura do recordista de Oscars durante quase 40 anos.

Talvez o primeiro comentário a ser feito seja a respeito da mediocridade de todos os atores. Jack Huston e Toby Kebbel, até há pouco ilustres desconhecidos para mim e a partir de agora nomes a serem inscritos num caco de telha e jogados numa urna, interpretam sem nenhum brilho os personagens principais — uma tarefa especialmente inglória, talvez até injusta, para Huston, condenado a reprisar o papel que um dia coube a Charlton “Cold, Dead Hands” Heston. Rodrigo Santoro faz um Jesus insípido, menos por sua culpa do que pelo papel insignificante que lhe deram, e Morgan Freeman faz o seu arroz com feijão.

Desta vez, “Ben-Hur” começa antes do reencontro do protagonista adulto com Messala. Agora eles são irmãos adotivos, e Messala é apaixonado por Tirzah. Mas ele não é um rebotalho plebeu qualquer; seu avô foi um dos assassinos de Júlio César, porque no mundo cinematográfico de hoje todo mundo tem que ter algum pedigree (num filme quase tão repulsivo, o “Robin Hood” de Ridley Scott, transformaram o velho ladrão em filho do ghost writer da Carta Magna e leal ajudante de ordens dos barões). No entanto Messala é rejeitado pela mãe de Judá, e assim, qual um Julien Sorel de saiote, vai para a campanha da Germânia fazer sua fama e fortuna.

Em Jerusalém, Simonide (que no filme de 1961 só aparece bem depois) trabalha na casa dos Ben Hur e sua filha Ester se casa rapidinho com Judá. É estranho: todo mundo mora em Jerusalém, inclusive um certo marceneiro mais tarde dado a pregações, que você deve conhecer pelo nome de Jesus de Jerusalém (é, aquele mesmo, daquela música de Antônio Marcos: “Vem, irmão / Vamos seguir com fé / Tudo o que ensinou / O homem de Jerusalém”).

O filme até se esforça para dar um pouco mais de profundidade política ao contexto histórico e político da Judéia da época, e esse é o seu único ponto positivo. Mas sem muito sucesso: fica a impressão de que isso serve apenas para explicar de maneira nova o acontecimento que muda os rumos do filme. Originalmente, o atentado ao governador romano foi um acidente; agora é uma tentativa de assassinato por parte de um zelote protegido pelos Ben-Hur.

No filme original, ao salvar do afogamento um tribuno romano que o adota em retribuição, Judá ganha seu salvo-conduto para a vida, o que lhe possibilita empreender sua vingança contra Messala. Agora ele vai direto para Ilderim, que da maneira mais rocambolesca e implausível o deixa na boca da corrida de bigas que, neste como no outro, é o clímax do filme. Para isso Judá volta para Jerusalém e vê que na sua ausência as tragédias não pararam de se suceder: sua mãe e irmã pegaram lepra; e como desgraça nunca vem sozinha, a pior de todas: sua mulher virou cristã.

(Rides, hypocrite lecteur? Não, não riais: imaginai a senhora vossa patroa dando a louca e entrando para a Universal e dando todo o vosso dinheiro ao pastor Genoíldes e para desgraçar tudo vos chamando de “abençoado”. Não, não riais, que de certas coisas não se deve fazer troça.)

Em 1961, a cena da corrida era incomparável. Dirigida magistralmente, editada com brilhantismo, significava um passo adiante na estética dos filmes de ação. Ainda hoje é impressionante; mas neste filme ignóbil é apenas mais do mesmo que se vê em qualquer filme com orçamento mediano. Nitidamente inferior a qualquer filme dos Vingadores, por exemplo, é talvez o melhor indicativo da mediocridade rampante de uma obra que deveria ser evitada como se evitava um leproso.

E a partir daí a coisa desce à sarjeta mais baixa. Tirzah e Míriam (que aqui tem seu nome modernizado para Naomi, sabe Jeová a razão), antes curadas da lepra pessoalmente por Nosso Senhor Jesus de Jerusalém, agora são curadas pela chuva de água benta que cai quando Jesus dá seu último suspiro, como um batismo coletivo desses que a igreja faz por aí.

Mas nada, nada, absolutamente nada pode lhe preparar para a cena final. Judá e Messala fazem as pazes, porque eles sempre se amaram, aquilo era só briguinha de irmão, e agora que o romano está perneta e seu orgulho foi para as galés, toda a raiva e ódio podem ser esquecidos: Ben Hur venceu e Messala só precisava ser humilhado e aleijado para virar gente. E o filme termina com aquela que é talvez a cena final mais abjeta de toda a história do cinema: Judá e Messala cavalgando juntos rumo ao futuro, dois garotos que deixaram o passado para lá e para os quais o futuro é belo e risonho.

Pela primeira vez em uma longa história de salas escuras e TVs de todo o tipo, um filme me deu vontade de chorar de raiva. Porque raras vezes vi tamanho desrespeito a uma obra como essa miséria que merece o opróbrio de toda e qualquer pessoa que goste de cinema ou de literatura, mesmo uma de segunda como a do governador Lewis Wallace. E à medida que os créditos subiam, minha mente se perdeu em vinganças imaginárias. Imaginei uma sequência em que aquela corja inteira morria no Coliseu, na boca dos leões ou no gládio de seguidores de Espártaco. É o único fim merecido para esses novos personagens.

Mas tenho que admitir: eu também mereci. Que isso me sirva de lição e de castigo eterno. Infelizmente não poderei desver, jamais, essa cena final. Mas eu sabia que nada de bom me esperava ali, e por meu próprio erro, pela minha própria inconsequência, pela minha recusa em ouvir o que Jesus de Jerusalém me dizia, decidi ver esse filme, como aquele garoto decide experimentar crack. A culpa é minha, só minha, e vou ter que conviver com ela até o final dos meus dias.

NCC-1701

Quem diz que cachorro velho não aprende truque novo não sabe o que está falando. Eu aprendi, por exemplo.

Parece estranho, mas depois de velho virei trekkie — quer dizer, mais ou menos, porque os últimos adjetivos que aceitei de bom grado foram beatlemaníaco e comunista. Mais impressionante ainda é virar trekkie depois de uma vida em que o Capitão Kirk e uma pedra perdida no Raso da Catarina tinham exatamente o mesmo significado para mim.

O fato é que nunca liguei para “Jornada nas Estrelas”, mesmo levando em conta o fato de que o seriado tem estado presente na minha vida desde os anos 70. Lembro de vê-lo passando na TV nessa época, e aquilo não me dizia nada. Mais tarde, a Bandeirantes o exibiu no início dos anos 80, e como ele já era legendário parei para ver um ou outro episódio, mas foi só. As coisas me pareciam velhas, toscas, os efeitos especiais pareciam rivalizar com os tokusatsus (tokusatsu não é uma palavra linda, linda?) que eu via quando criança; e àquela altura eu estava mais interessado nos filmes do Faixa Preta ou da Sessão Western. Para não dizer que Star Trek passou completamente em branco, nós aprendemos a fazer a saudação de Spock, “live long and prosper” — mas gostávamos mesmo era de imitar o vulcano e apertar o trapézio de quem fosse pego desprevenido até ele gritar de dor, porque machucar os amigos era das coisas mais agradáveis que podíamos fazer.

Não é tão fácil explicar por que, entre tantos seriados, eu me importava particularmente pouco com as aventuras da Federação Interestelar. Talvez o meu desprezo profundo por Star Wars e seu universo infantilóide se juntasse à estranheza que sempre senti diante daquele pessoal que se veste de Darth Vader e de Spock e sai por aí achando que é bonito — mais que isso, achando que é normal —, e ao fato de sempre ter preferido westerns a ficção científica; mas acho que a principal razão para essa antipatia, mesmo, era o fato que o programa era mais adulto que a média, ao menos para mim. Ir aonde ninguém fora levantava questões mais complexas do que as que os membros biônicos de Steve Austin resolviam. Eu não sabia na época, claro. Entendo agora.

Mas uns meses atrás, ao ver que a Netflix exibe o seriado, parei para assistir pelo menos a um episódio. E então veio a surpresa: eu, que ando entediado dessas coisas todas, dessas séries que se repetem indistintas, me apaixonei tardiamente por Star Trek, mais ou menos como David Copperfield, depois de muitos anos, finalmente enxerga em Agnes a mulher de sua vida.

Ao contrário dos roteiros rarefeitos e esquemáticos de Star Wars, em que ritmo e efeitos tentam ocupar sem sucesso o vazio de ideias, foi quase uma revelação descobrir o que milhares de pessoas sempre souberam: que “Jornada das Estrelas” vale não pelos efeitos toscos, mas pelas ideias que traz. Que o mais importante no seriado é a história que ele conta, as reflexões que ele suscita sobre a humanidade, e principalmente os ideais sobre os quais ele está baseado.

O humanismo universal inerente a Star Trek, a ideia de um futuro de igualdade e respeito (dizem que foi o primeiro seriado a dar um papel de frente a uma mulher negra, antes de Julia, e além disso tinha um personagem soviético no comando da nave em plena Guerra Fria, apenas alguns anos depois da crise dos mísseis em Cuba) eram atuais em seu tempo, e continuam válidos hoje. Mais que isso: meio século depois, são ainda mais necessários.

A mensagem de “Jornada nas Estrelas” era boa; aqueles eram anos em que, apesar de tudo, a humanidade ainda tinha alguma fé no seu futuro. Mas de lá para cá muita água passou sob a ponte de comando da Enterprise. Essa meta démodé de igualdade, compreensão e multiculturalismo parece estar sendo hoje suplantada pelo discurso identitário, cada vez mais sectário e hermético. A crescente afirmação de conceitos delirantes como apropriação cultural e quetais dá a impressão de que o ideal do mundo hoje é uma espécie de “separados, mas iguais” redivivo. Os tempos estão difíceis. Talvez por isso tenha sido em plenos anos 2010, mais de 50 anos depois de sua estreia, que o seriado passou a me interessar.

Mas não tanto assim. Trekkie ma non troppo, a verdade é que se estou fascinado agora com um seriado que sempre esteve por aí, meu nível de conversão não é tão grande assim, e não tenho nenhum interesse nos zilhões de spinoffs que ele gerou. Uma única exceção à regra: talvez por ser algo atual, assisti aos episódios disponíveis de Star Trek: Discovery.

Fico imaginando o que a série original faria com as novas técnicas de filmagem e efeitos especiais. Mas imagino também o que a nova versão faria com os argumentos originais. Porque ela é tão inferior, tadinha. Toda a profundidade do seriado parece ter sumido no ralo: do congraçamento universal que parecia ser o seu Graal, agora devemos acompanhar a saga individual dos tripulantes perfeitamente adequados aos padrões narrativos de Hollywood hoje em dia. Mais que isso, parece responder bem a tempos cada vez mais individualistas.

Junte a isso um fato meio engraçado — ou revelador: eu assisto a Star Trek dublado. É engraçado porque, embora seja fã absoluto da ideia da dublagem, filmes e seriados dublados me afligem. É quase intolerável. O que vejo, especialmente no YouTube, são basicamente viagens nostálgicas, para reencontrar vozes familiares como a de Carlos Vaccari, sons de uma infância que se foi há tempo demais. Mas “Jornada nas Estrelas” para mim só faz sentido dublada.

Essa é a segunda dublagem, a da VTI feita no início dos anos 90. Eu a considero melhor que original, da AIC, embora prefira, de longe, a abertura da AIC com a locução empostada de Antonio Celso à vozinha safada e canastrona do Capitão Kirk. Para começar, a voz de Spock é do Márcio Seixas.

***

A despeito de tudo isso, dessa conversão tardia, minha desconfiança em relação aos outros trekkies, à sua incapacidade de entender o mundo e a inconciliável diferença entre os seus valores e os meus, não estava de todo errada.

Ontem assisti ao 11º episódio da segunda temporada de Star Trek, Friday’s Child. A sinopse você encontra por aí, o que eu quero falar é de uma cena específica.

McCoy está tentando ajudar uma moça, de outra espécie, a parir. (A propósito, a moça é interpretada pela Julie Newmar.) Pelos costumes do seu povo, ela resiste a ser tocada por um homem. Depois que McCoy conquista o seu respeito lhe descendo uma chapuletada na cara — lembre-se, a série é dos anos 60 e tinha elevados ideais, mas a roteirista que escreveu esse episódio nasceu no finalzinho dos anos 30 —, a moça vê o doutor com outros olhos. Encanta-se com sua mão macia em um homem viril.

E então chegamos à tal cena, esta de que quero falar. A moça está sentada numa pedra, entrando em trabalho de parto. Ajoelhado ao seu lado, McCoy apalpa sua barriga, em busca do bebê. A câmera se aproxima e tira a mão de McCoy de foco. McCoy pergunta onde dói. Depois de dirigir um olhar de soslaio que só uma Mulher-Gato pode dar, a moça responde: “Dói… Aqui.” E a cena se encerra com McCoy arregalando os olhos. No áudio original ela ainda dá uma risadinha, o que sumiu na dublagem.

O detalhe assustador é que procurei por aí comentários sobre essa cena, mas sem nenhum sucesso. Nenhum dos fãs, que dissecam cada detalhe de cada episódio do seriado, que buscam o significado de cada frase boba dita, ninguém parece ter comentado isso — e eu sou de um tempo em que a internet parecia ser dominada por nerds que conheciam cada palavra do seriado. A cena é tão insignificante que sequer existe na internet, e por isso me vi obrigado a publicá-la no YouTube.

Milhões e milhões de palavras foram escritas sobre “Jornada nas Estrelas”. Há milhares de pessoas espalhadas pelo mundo que se dedicaram a comentar cada episódio, elucubrar teorias sobre quase qualquer insignificância, desde que seja algo óbvio, desenhado. É coisa que os nerds entendem. Mas as sutilezas da sacanagem não parecem ser seu forte, e sem ninguém para explicá-la, aparentemente foram incapazes de perceber o conteúdo sexual dessa cena. Em um seriado que dá aos fãs horas e horas de comentários sobre os affairs do Capitão Kirk, isso é no mínimo digno de nota. No fim das contas, acho que eu tinha razão.