Na livraria, aparece um livro chamado “Como John Lennon Pode Mudar Sua Vida”.
Não li sequer a orelha, mas tudo indica que seja um livro de auto-ajuda. E a síndrome da auto-ajuda tem chegado a absurdos quase inimagináveis. Talvez porque a arte de escrever algo do tipo exige a observância estrita de algumas regras.
Por exemplo, não se pode ser muito original. É preciso dizer algo com que o leitor não apenas concorde, mas em que já tenha pensado antes. Auto-ajuda, no fundo, é apenas uma forma de bajulação do leitor, ainda que injustificada. É um elogio à mediocridade. O talento do escritor de auto-ajuda é o talento do redator, de alguém capaz de dizer o que já foi dito de maneira convincente.
E então chegamos a John Lennon.
Ao ver o livro fiquei imaginando o que, exatamente, John Lennon teria a me oferecer. Conheço razoavelmente sua vida, como os leitores provavelmente sabem. Um amigo, por sinal, filmou o sujeito esvaindo-se na noite de 8 de dezembro de 1980. Era produtor da MCA, passava por perto, ouviu os tiros e correu para lá. Não que isso aumente ou diminua meu conhecimento biográfico sobre o finado, mas demonstra, de certa forma, o meu interesse no assunto. Ou talvez nem isso: vai ver contei apenas para me vangloriar de conhecer uma testemunha do crime. Freud explica. Ou Adler.
O fato é que conheço razoavelmente a vida do sujeito, do número 251 da Menlove Avenue ao quinto andar — ou melhor, à calçada — do Dakota Building.
E talvez por isso me sinta autorizado a dizer que qualquer livro que pretenda ensinar a viver a partir do exemplo de John Winston Ono Lennon é uma fraude.
Afinal, o que se pode aprender com a vida de Lennon? A se viciar em heroína? A ser um pai abominável, tragédia agravada pelo fato de ter feito um trabalho melhor com o segundo filho, só porque este teve uma mãe mais exigente? A ser uma pessoa insegura, agressiva e assustada, alguém que compensava sua personalidade detestável com um carisma impressionante?
Eu não quero aprender a viver assim. O mais grave, no entanto, ainda não foi dito.
Na contracapa de Two Virgins, primeiro disco da dupla, Lennon e Yoko Ono aparecem nus, de costas. E a verdade trágica então se revela, uma verdade feia, triste: a bunda dele é mais bonita que a dela. Não que alguma das duas preste para alguma coisa, mas a bunda dela é mais feia que a dele.
Então é isso que Lennon tem a me ensinar? A casar com uma mulher com uma bunda mais feia que a minha? É a isso que chamam ensinar? Porque um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua é indigno desse nome, indigno como o pipoqueiro que oferece o primeiro cigarro de maconha ao garotinho da terceira série. Um homem tem o direito de casar com seios grandes ou pequenos, rijos ou flácidos; mas nunca, mas jamais poderá casar com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua. Esse não é um homem, não merece o direito de coçar o saco. Esse não é um homem.
Em verdade, não importa quão feia ou bela seja a bunda dela. Não. Este não é um conceito absoluto, porque toda bunda — quase toda — tem seus atrativos, suas graças. O que importa é apenas que ela seja mais bonita que a dele. O contrário é um crime contra bilhões de anos de evolução da espécie. É um crime contra as gerações que virão. Um casamento desse tipo só pode ser celebrado em um beco escuro na zona do cais do porto por um bêbado inconsciente e possuído por Belial — não, por uma legião de demônios, dos piores e mais malvados e mais cruéis que possa haver.
Aos homens que se casam com mulheres cujas bundas são mais feias que as suas já é reservado um justo castigo, o de não saberem em sua plenitude o que é encostar-se à bunda dela sob o chuveiro, com a mão ensaboada sob a dobra do seio; mas esse ainda não é castigo suficiente.
Um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua melhor faria se dormisse com cabras; e deveria ser justamente apedrejado por homens que depositariam suas vestes aos pés de Saulo de Tarso — e talvez tenha sido esse o crime de Santo Estêvão, casar com uma gentia cuja bunda era mais feia que a sua; e o crime de Madalena seria ter uma bunda mais feia que aquele com quem deitou em adultério, e a Bíblia teria escondido tudo isso porque é um livro de bondade e de perdão, paz na Terra às mulheres de bunda mais feia que a dos seus maridos.
(Mas no caso de Madalena o verdadeiro culpado é aquele que a cobiçou, pois não está em seu direito ao desejar a mulher do próximo quando a bunda dela é mais feia que a sua.)
Talvez eu exagere, mas tenho a impressão, sempre tive, de que Lennon tinha absoluta consciência do crime tenebroso cometido, e por isso cantava “Imagine que não há posses”; porque se não tivesse casado com uma mulher cuja bunda era mais feia que a sua, Lennon saberia que ela — a bunda, não a mulher — é sua propriedade única e absoluta, a ser guardada zelosamente com cerca elétrica e cães de fila. Mas Lennon não sabia de nada disso, não poderia, e tinha que se contentar em ser um sonhador. A falta que faz uma mulher cuja bunda é mais bonita que a sua.
Não, John Lennon não tem nada a me ensinar, o livro se me afigura inútil. A única coisa que Lennon poderia me ensinar seria a compor obras-primas, mas um livro não pode me ensinar a ter talento. E sobre o que é realmente importante, a capacidade de adorar a verdade calipígia, ah, sobre isso aquele rapazinho de Liverpool não tem nada a me dizer.
Originalmente publicado em 20 de julho de 2006. Esse texto deveria ter sido publicado no mês passado, durante a maratona de republicações, mas por alguns motivos teve que ser suspenso. Como é um texto de que gosto muito, ele vai agora.