A bunda da mulher de John Lennon

Na livraria, aparece um livro chamado “Como John Lennon Pode Mudar Sua Vida”.

Não li sequer a orelha, mas tudo indica que seja um livro de auto-ajuda. E a síndrome da auto-ajuda tem chegado a absurdos quase inimagináveis. Talvez porque a arte de escrever algo do tipo exige a observância estrita de algumas regras.

Por exemplo, não se pode ser muito original. É preciso dizer algo com que o leitor não apenas concorde, mas em que já tenha pensado antes. Auto-ajuda, no fundo, é apenas uma forma de bajulação do leitor, ainda que injustificada. É um elogio à mediocridade. O talento do escritor de auto-ajuda é o talento do redator, de alguém capaz de dizer o que já foi dito de maneira convincente.

E então chegamos a John Lennon.

Ao ver o livro fiquei imaginando o que, exatamente, John Lennon teria a me oferecer. Conheço razoavelmente sua vida, como os leitores provavelmente sabem. Um amigo, por sinal, filmou o sujeito esvaindo-se na noite de 8 de dezembro de 1980. Era produtor da MCA, passava por perto, ouviu os tiros e correu para lá. Não que isso aumente ou diminua meu conhecimento biográfico sobre o finado, mas demonstra, de certa forma, o meu interesse no assunto. Ou talvez nem isso: vai ver contei apenas para me vangloriar de conhecer uma testemunha do crime. Freud explica. Ou Adler.

O fato é que conheço razoavelmente a vida do sujeito, do número 251 da Menlove Avenue ao quinto andar — ou melhor, à calçada — do Dakota Building.

E talvez por isso me sinta autorizado a dizer que qualquer livro que pretenda ensinar a viver a partir do exemplo de John Winston Ono Lennon é uma fraude.

Afinal, o que se pode aprender com a vida de Lennon? A se viciar em heroína? A ser um pai abominável, tragédia agravada pelo fato de ter feito um trabalho melhor com o segundo filho, só porque este teve uma mãe mais exigente? A ser uma pessoa insegura, agressiva e assustada, alguém que compensava sua personalidade detestável com um carisma impressionante?

Eu não quero aprender a viver assim. O mais grave, no entanto, ainda não foi dito.

Na contracapa de Two Virgins, primeiro disco da dupla, Lennon e Yoko Ono aparecem nus, de costas. E a verdade trágica então se revela, uma verdade feia, triste: a bunda dele é mais bonita que a dela. Não que alguma das duas preste para alguma coisa, mas a bunda dela é mais feia que a dele.

Então é isso que Lennon tem a me ensinar? A casar com uma mulher com uma bunda mais feia que a minha? É a isso que chamam ensinar? Porque um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua é indigno desse nome, indigno como o pipoqueiro que oferece o primeiro cigarro de maconha ao garotinho da terceira série. Um homem tem o direito de casar com seios grandes ou pequenos, rijos ou flácidos; mas nunca, mas jamais poderá casar com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua. Esse não é um homem, não merece o direito de coçar o saco. Esse não é um homem.

Em verdade, não importa quão feia ou bela seja a bunda dela. Não. Este não é um conceito absoluto, porque toda bunda — quase toda — tem seus atrativos, suas graças. O que importa é apenas que ela seja mais bonita que a dele. O contrário é um crime contra bilhões de anos de evolução da espécie. É um crime contra as gerações que virão. Um casamento desse tipo só pode ser celebrado em um beco escuro na zona do cais do porto por um bêbado inconsciente e possuído por Belial — não, por uma legião de demônios, dos piores e mais malvados e mais cruéis que possa haver.

Aos homens que se casam com mulheres cujas bundas são mais feias que as suas já é reservado um justo castigo, o de não saberem em sua plenitude o que é encostar-se à bunda dela sob o chuveiro, com a mão ensaboada sob a dobra do seio; mas esse ainda não é castigo suficiente.

Um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua melhor faria se dormisse com cabras; e deveria ser justamente apedrejado por homens que depositariam suas vestes aos pés de Saulo de Tarso — e talvez tenha sido esse o crime de Santo Estêvão, casar com uma gentia cuja bunda era mais feia que a sua; e o crime de Madalena seria ter uma bunda mais feia que aquele com quem deitou em adultério, e a Bíblia teria escondido tudo isso porque é um livro de bondade e de perdão, paz na Terra às mulheres de bunda mais feia que a dos seus maridos.

(Mas no caso de Madalena o verdadeiro culpado é aquele que a cobiçou, pois não está em seu direito ao desejar a mulher do próximo quando a bunda dela é mais feia que a sua.)

Talvez eu exagere, mas tenho a impressão, sempre tive, de que Lennon tinha absoluta consciência do crime tenebroso cometido, e por isso cantava “Imagine que não há posses”; porque se não tivesse casado com uma mulher cuja bunda era mais feia que a sua, Lennon saberia que ela — a bunda, não a mulher — é sua propriedade única e absoluta, a ser guardada zelosamente com cerca elétrica e cães de fila. Mas Lennon não sabia de nada disso, não poderia, e tinha que se contentar em ser um sonhador. A falta que faz uma mulher cuja bunda é mais bonita que a sua.

Não, John Lennon não tem nada a me ensinar, o livro se me afigura inútil. A única coisa que Lennon poderia me ensinar seria a compor obras-primas, mas um livro não pode me ensinar a ter talento. E sobre o que é realmente importante, a capacidade de adorar a verdade calipígia, ah, sobre isso aquele rapazinho de Liverpool não tem nada a me dizer.

Originalmente publicado em 20 de julho de 2006. Esse texto deveria ter sido publicado no mês passado, durante a maratona de republicações, mas por alguns motivos teve que ser suspenso. Como é um texto de que gosto muito, ele vai agora.

As bem-aventuranças

Volta e meia recebo o mesmo e-mail indignado, sempre com assinaturas diferentes.

No e-mail se diz que está sendo produzido um filme mostrando Jesus Cristo como gay e apaixonado pelos seus discípulos. O e-mail indignado esbraveja que isso não pode ser tolerado. Que podem solapar tudo, até a cara da sua irmã, mas que jamais poderiam fazer isso com Jesus de Nazaré. E propõe então um abaixo-assinado para combater essa heresia tão grande e ignominiosa, proposta pelo visto seguida por centenas de pessoas que tiveram a pachorra de assinar o manifesto, às quais esperam que você se junte. Uma espécie de cruzada virtual.

Eu não costumo responder porque, em primeiro lugar, isso tem cara de hoax. Sensação reforçada pelo fato de o e-mail ser antigo e até agora não ter saído nos cinemas ou pelo menos nos jornais nada do tipo.

Além disso, independente da minha visão sobre o assunto, em vez de tentar proibir que o filme seja feito as pessoas têm o direito somente de não querer assistir — e até mesmo de tentar convencer outras pessoas a fazerem o mesmo.

Mas isso me deixou com umas perguntas e umas idéias rodando a minha cabeça vazia.

Por que as pessoas se incomodam tanto com isso? Não se incomodam tanto com sugestões de que Jesus foi amante, namorado ou mesmo marido de Maria Madalena. Mas qualquer insinuação de homossexualismo é recebida assim.

É por não conseguir responder satisfatoriamente essas perguntas que fico pensando numas coisas. É um pequeno exercício de imaginação, e imaginar não ofende ninguém.

Imagine Jesus Cristo fazendo sexo com Simão. Imagine-o de quatro, enquanto o belo apóstolo segura a sua cintura e o possui com força e desejo.

Imagine Jesus Cristo deitado sobre Bartolomeu, cujas pernas abertas envolvem a bunda de Jesus Cristo, mãos crispadas em suas costas, gritando e trocando saliva e gemidos.

Imagine Jesus Cristo deitado ao lado de Tiago filho de Zebedeu, ambos suados, felizes, e Jesus beija o peito de Tiago com o abandono dos amantes satisfeitos.

Imagine Jesus Cristo se apaixonando por Tiago filho de Alfeu, e abandonando um Judas que se sente traído e o entrega aos romanos com um beijo que sela, acima de tudo, o amor traído e a vingança.

Agora imagine Jesus Cristo ajoelhado diante de João, o apóstolo que ele amava, boca aberta recebendo a boa nova. Imagine-o se levantando, limpando a barba do erro de cálculo ou excesso de ímpeto, se dirigindo ao alto de um pequeno monte e falando:

Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

Agora vem a pergunta.

As palavras se tornam menos verdadeiras para quem acreditava nelas, depois de tudo o que se imaginou aqui? Realmente importa o que Jesus, que tantos bilhões dizem seguir, fazia durante suas noites?

Deixem o Cristo dar o cu em paz.

Republicado em 13 de setembro de 2010

Ser ou não ser, ou ser e não ser

Em agosto, o New York Times publicou uma matéria sobre um filósofo de Oxford, Nick Bostrom, que aventa a possibilidade de estarmos todos vivendo numa simulação de computador. Não teríamos sequer um corpo de carne e osso plugado a alguma coisa, como em “Matrix”. Seríamos bits, apenas, equações matemáticas extremamente elaboradas. Uma espécie de Second Life em computadores quânticos de 57689a geração.

Na verdade, essa idéia não é propriamente nova. Muita gente — eu inclusive — já pensou nisso pelo menos uma vez na vida. E embora a reportagem não faça nenhuma menção ao fato, já foi explorada em um filme chamado “O 13o Andar”, feito há alguns anos com a belíssima Gretchen Moll.

Eu pensava que a filosofia de verdade, aquela metafísica grandiosa que lida com coisas ou conceitos maiores que ao ser, era coisa da época dos escolásticos e que Kant tinha dado um basta nessa conversa mole. Eu estava enganado, como sempre acontece. O computador, esse trequinho que uso para escrever e que o Bia usa para fazer sexo virtual, abre possibilidades interessantes.

O mais engraçado é que, se a idéia de um simulador controlado diretamente por alguém é relativamente pobre, a possibilidade de sermos apenas bits em um computador se realimentando constantemente a si mesmo, numa espécie de moto contínuo absolutamente dialético, é fantástica. Deus é um computador. Que grande idéia.

Eu não me importaria em ser um joguinho de computador, como não ligaria em ser uma criação divina. Não faz muita diferença. Como disse o filósofo David Chalmers na reportagem do New York Times, o teclado em que datilografo este post não seria menos real para mim só por ser composto de bits. Em qualquer mundo ou de qualquer matéria, eu continuaria esse ser que um dia fez a delícia do sexo feminino, e por enquanto isso me basta.

Mas mesmo assim não consigo evitar imaginar que — no caso de um cenário bobinho como aquele do simulador, de eu ser uma brincadeira de um nerd espinhento que melhor faria se fosse encher a cara na rua — haveria algumas coisas que eu poderia fazer. Por isso, meu senhor que neste momento me vê escrevendo isto, tome vergonha na sua cara de nerd trancado em casa comendo Cheetos. Se isso é um jogo, vamos ganhar. Arranja aí uma mega sena para mim. Se não dá para fazer isso de modo liso e honesto, eu não estou preocupado. Se vire. Dê seus pulos. Foi você — ou eu deveria escrever Você? — quem começou o jogo. Arranja um cheat desses que websites oferecem a jogadores preguiçosos. Vamos ganhar essa merda.

Urubu de chocalho

Este é um post para um poeta que tem uma pinimba com os ingleses.

Eu gosto de poetas que dizem assim, na lata, que não gostam de poetas ingleses; muito mais do que daqueles que de vez em quando citam um Swinburne, versão fleumática e esnobe de um J. G. de Araújo Jorge. Mas gosto mesmo é daqueles que dizem que têm uma pinimba com eles.

Porque aí está a diferença entre nós e eles; e não estamos apenas batendo pé com altivez e confiança diante da inglesada, mas fazemos isso nos nossos termos, chamamos esses branquelos que tomam chá para uma surra na nossa taba. Eu não gosto de chá. E só um conheço um poeta que tenha essa pinimba com os saxões.

Quanto o poeta falou de sua pinimba provavelmente já estava meio bêbado como todos nós, os cabelos que insisto branco-azulados brilhando no lusco-fusco da casa de Cauê. Acho que foi enquanto o Paulinho e o Marcelo cantavam e lembravam histórias de outros tempos, ou quando o José me falava sobre a poesia da Libras, post que prometi e agora devo, não nego, pago quando puder. Não sei; sei que foi.

Foi graças aos e-mails que de vez em quando o poeta manda para a gente — poeta esquisito, esse, que tem e-mail mas não tem celular; eu tenho uma dificuldade grande para entender essas tomadas de posição não radicais, seletivas, mas talvez eu intua o acerto e o savoir vivre do poeta — que li a história do urubu de chocalho.

São os e-mails que fazem valer a pena abrir uma caixa de entrada sempre abarrotada de mensagens de trabalho e anexos enormes. É neles que o fauno em seu entardecer — esse é o único jeito de falar na idade de um poeta, acima de tudo um boêmio como o poeta que tem uma pinimba com os ingleses — lembra de sua infância em Capela e da juventude em uma Aracaju que o progresso espancou, coisa de umas décadas atrás. Eu e todos os outros ficamos torcendo para que tudo isso seja reunido em livro, mas o poeta faz charme, diz que não vale a pena, que não são crônicas, só besteirinhas, e faz com a mão o gesto típico de desdém que um dia provo serem fingidos.

E um desses e-mails eu queria publicar aqui. Eu sou assim mesmo, roubo o que gosto, vai desculpando aí.

Crueldade em criança é tema pouco estudado. Freud explica a saudade uterina, o malfadado desejo de voltar à tepidez recôndita — lá nas entranhas da mãe. Outros cuidam da intrepidez infantil na vida começando sempre, outros (quase todo mundo) da inocência dos meninos, tão irrefutável e tão bela! Balela! Da crueldade ninguém fala.

Passa esquecido o prazerzinho de arrancar uma por uma as pernas dos besouros, de espetar a bunda das tanajuras num palito para ouvir zunindo a agonia delas. Ternura malvada, essa!

Antes que se dessem às crianças o canhão de nêutrons do vídeo game para destruir o mundo — maldade virtual — era na baleadeira, na espingarda de chumbinho socado, no canivete mesmo que exercitávamos o instinto natural de matar. Ninguém se lembra do bicudo no sapo, da lagartixa enforcada num cipó, do gato alvejado, brincadeiras cruéis da nossa infância.

***

Acho que a idéia foi de Carlinhos meu primo, mas foi bom demais! Mocosados no quintal lá de casa, olho firme no anzol camuflado sob a carniça (tripa de galinha matada ontem), espreitávamos. Era sábado, dia em que a feira deixava guloseimas podres na pedra. Qual urubu da vizinhança não agendava uma incursão às maravilhas da feira? Depois, sair por aí e missão de faxina, afinal era dia da cidade produzir carniça.

Pois bem, lá vem um famélico urubu sonsando no beiral. Pé ante pé cuidou: o cheiro das tripas lhe zonzava o medo, mas qual, manjar fino no quintal de Corina, vou que vou. E foi, e engoliu o anzol da nossa crueldade. Pegamos ele.

Já a idéia do chocalho foi minha. Senhor da vida, rei do urubu cativo, eu queria o espetáculo da tortura, marcar a criatura e dominar de vez sua liberdade. Foi-se com anzol na goela e o chocalho no pescoço, aos tropeços, descrente da humanidade. Mas se vingou, o pestinha: ninguém dormiu com o blém-blém no telhado, a família inquieta, o Pai virado na peste, os vizinhos reclamando, o remorso sob os lençóis a me jogar no inferno. Deus viu, ele vai me pegar. Depois o pior: — “Foi Carlinhos, meu pai, eu bem que não queria, mas ele é doido, sabe? Pobrezinho do urubu”. Dez lapadas no lombo.

Deus me perdoe a infância.

Amaral Cavalcante – setembro/2007

A grande colaboração da HP para a segurança deste país

Diálogo travado no início da noite de terça-feira, 23 de outubro de 2007, no chat da HP:

Renata: Boa noite

Renata: Obrigado por entrar em contato com o Centro de Soluções da HP Brasil. Em que posso lhe ajudar?

Rafael Galvão: Boa noite.

Renata: Obrigado por entrar em contato com o Centro de Soluções da HP Brasil. Em que posso lhe ajudar?

Rafael Galvão: O meu notebook, um dv9000, foi roubado. A bateria estava queimada. Se não me engano a HP não comercializa esse modelo no Brasil, portanto ele deve ser raro. Há alguma maneira de localizar o ladrão caso ele procure comprar a bateria?

Renata: Senhor Rafael, para melhor atendê-lo, é necessário efetuarmos algumas perguntas durante o atendimento, podemos prosseguir ?

Rafael Galvão: Claro.

(…)

Renata: Correto, um momento, por gentileza.

Rafael Galvão: Olá?

Renata: Senhor Raphael, obrigada por aguardar, infelizmente não é possível que o meliante responsável pelo furto de seu equipamento, seja localizado desta forma, por gentileza entre em contato com os órgãos públicos responsáveis pelo ocorrido.

Rafael Galvão: Sim, eu já entrei.

Rafael Galvão: A questão é:

Rafael Galvão: De posse do número de série do produto, não é possível que as autorizadas saibam quando ele for para o conserto?

Renata: Senhor Rafael, tratando-se de um equipamento importado, o mesmo não possui suporte técnico no Brasil, e como informado acima, não é possível que a HP localize o equipamento.

Rafael Galvão: A questão é que ele vai precisar comprar uma bateria. Isso me parece simples.

Rafael Galvão: Ou seja: vocês não fornecem o número de série para a rede de autorizadas, em casos assim?

Renata: Senhor Rafael, o equipamento mencionada não foi introduzido ao Brasil, consequentemente, Centros Autorizados da HP do Brasil não efetuam reparos nestes equipamentos, por gentileza, o caso deverá ser tratado pelos órgãos responsáveis pelo ocorrido.

Rafael Galvão: Não estou dizendo que vão efetuar reparos.

Rafael Galvão: Estou dizendo que vão procurar e vocês vão dizer a eles: “senhor, não efetuamos reparos”.

Rafael Galvão: Mas vão ter acesso ao número de série.

Rafael Galvão: Pelo menos em Aracaju, onde foi roubado?

Renata: Senhor Rafael, não são comercializadas peças deste equipamento em revendas ou Centros Autorizados da HP do Brasil, por gentileza, entre em contato com os órgãos responsáveis pelo ocorrido. Mais alguma dúvida?

Rafael Galvão: Não, nenhuma.

Confusão filosófica

Post antigo:

Pequeno exercício de lógica
Batata não pensa. Logo, batata não existe.

Comentário novo, de um certo Abel:

comi uma garota chamada batata.logo entao a menina pensa

À sua revelia, o Abel forneceu mais uma comprovação empírica para a minha tese.

Ninguém que pense daria para o Abel. Batata deu para o Abel. Logo, batata não pensa. Logo, batata não existe.

Está ficando difícil encontrar discussões filosóficas à minha altura.

Sonhos eróticos de um publicitário

Era o comercial que eu sempre quis fazer.

Comercial de sabão em pó. Certo, há produtos mais glamurosos, mas não é de glamour que se fala aqui. Não se trata do tipo do sensacionalismo do Oliviero Toscani, aquele mondo cane chic que só engana os bobos e os bestas. Um anúncio do Toscani é como um filme de hollywood que denuncia o seu própro star system, sua própria canalhice, mas utilizando-se das mesmas técnicas.

O que eu queria fazer era um comercial revolucionário de verdade. Um comercial de sabão em pó. Criar a grande obra de arte da publicidade moderna, coisa de deixar Ogilvy e Bernbach se remoendo em seus caixões. Uma obra para mudar os conceitos da propaganda, essa vagabunda que vive bajulando uma humanidade burra e, em troca, recebe as mais torpes acusações.

Comerciais de sabão em pó são aqueles em que o menino mal educado entra em casa com os pés sujos de lama, aquele pequeno porco que não recebeu educação. E a mãe olha para ele com um sorriso no rosto e uma expressão de “fazer o quê se eu não dei educação a esse nojentinho?”, o sorriso que bois dariam se conseguissem fazer outra coisa que não babar. E ela pega a roupa imunda do filho porco e bota na máquina, ainda o sorriso bovino no rosto, e mostra a embalagem para a câmera. E depois da assinatura volta à cena a família unida, feliz da vida, sorrindo num grande abraço, o menino quase brilhando de tão limpo, e tão bonito, e os cabelos sedosos como num outro comercial, esse de xampu.

Não, não. É outro o comercial que eu queria fazer:

Sabão Momo
Institucional
Filme
30″
Porquinho

Menino de cerca de 10 anos entra em casa imundo, pingando lama como João Ratão pingou feijão.

A mãe olha para o garoto e fica transtornada. Segura o menino pelo braço e começa a dar-lhe tapas fortíssimos, e arranca a roupa com alguns safanões.

ATOR: Pára, mãe! Faz isso não, mãe!

ATRIZ: Seu moleque mal educado! Você só se suja assim porque não é você quem lava esta merda! Sabe quanto custou essa camisa, seu bostinha?

ATOR: Ai, mãe! Pára, mãe!

ATRIZ: Estudar que é bom você não quer, né, seu vagabundo? E não é você quem limpa a casa!

E ela vai para a área de serviço, jogando com raiva a roupa no tanque. Close em sua mão pegando o Sabão Momo. Começa a enxagüar a camisa.

ATRIZ: Esse moleque puxou ao desgraçado do pai, ave Maria!

Corta para packshot do produto.

OFF e LET.: Sabão Momo. Limpa até as porcarias do seu filho imundo.

Volta o menino, encolhido sobre sua cama, chorando. A mãe grita em off:

ATRIZ (em OFF): Se você fizer isso mais uma vez, seu relaxado, eu lhe mato de porrada!

Close no olhar assustado do menino.

Republicado em 11 de setembro de 2010

A última queda de Hitler

The Unknown Soldier é um novo documentário sobre o papel da Wehrmacht na condução do Holocausto durante a II Guerra Mundial. Dirigido por Michael Verhoeven e lançado lá fora com alguma repercussão, dificilmente vai chegar ao Brasil. Certamente não vai ter a longa vida nas redes P2P que “Tropa de Elite” teve, por exemplo.

O tema escolhido é importante. Durante algumas décadas, uma Alemanha derrotada e envergonhada se agarrou a uma idéia que a libertava, um pouco, dos compromissos assumidos pela nação durante a era nazista: a de que a Wehrmacht, o Exército alemão, era composta por soldados absolutamente profissionais e isentos das atrocidades cometidas contra os judeus.

A Wehrmacht não foi escolhida à toa. Era uma instituição sólida, herdeira da personificação militar da própria identidade alemã e prussiana. Era algo de que os alemães podiam se orgulhar, uma instituição que por seu histórico parecia convenientemente separada do nazismo: a função da Wehrmacht era guerrear, um objetivo nobre e aceitável, e não matar judeus indefesos. The Unknown Soldier, a julgar pelas resenhas, se pretende uma denúncia dessa mentira.

O ponto frágil dessas novas denúncias é que elas não são, em absoluto, novas. Em 1997, por exemplo, novos documentos e fotos mostraram o que muita gente sempre soube: que a Wehrmacht, a única instituição cuja reputação se manteve incólume depois da derrocada do nazismo, tinha sido participante ativa do processo de limpeza étnica que culminou na Solução Final. Ou seja: do ponto de vista histórico, não há nada de realmente novo em The Unknown Soldier.

Mesmo antes dessas denúncias, acreditar na isenção e inocência da Wehrmacht era principalmente um exercício de negação de bons indícios. Pela extensão do Holocausto, era impossível que a SS fosse sua única executora. Pelo número de campos de concentração, era inconcebível que não fosse criada uma rede de logística e informação extensa e complexa, que envolvesse boa parte da sociedade alemã e dos países aliados ou ocupados, muitos dos quais viram na possibilidade de perseguição aos judeus uma compensação justa pela invasão de seu país. Já faz muito tempo que o mito de que os alemães desconheciam a extensão da política de extermínio não é levado a sério. Eles sabiam, sim; o que ainda se tenta discutir é se concordavam ou não com essa política. Não se trata apenas de reconhecer a existência de movimentos de resistência como o Rosa Branca e alguns outros, localizados e sem verdadeiro apoio popular; e sim de encontrar uma oposição extensa na sociedade, ainda que silenciosa e passiva.

Infelizmente, até essa tentativa é malfadada. “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, livro de Daniel Goldhagen, já tinha derrubado essa tese há muito tempo. Foi mais além: demonstrava que a participação do alemão comum no Holocausto não era nada forçada, e que a alegria com que desempenhavam o mister de carrascos se devia principalmente ao anti-semitismo secular espalhado pela região. Matar judeus era algo feito com entusiasmo e senso de dever cívico.

Mas essa é sempre uma tese que incomoda. Como aparente medida de auto-preservação, os alemães preferem esquecer o que aconteceu. Poucas histórias nacionais foram reescritas com tanta sutileza como a alemã nos últimos 60 anos. Para isso, promovem oportunistas a heróis da resistência, fingem que não lembram, dizem que não sabiam.

Essa atitude é compreensível, mas perniciosa. Em última análise, impede ou dificulta o que deveria ser a mais importante tarefa alemã desde o pós-guerra: compreender a extensão do processo histórico que culminou no Holocausto, entender que o Partido Nazista só chegou ao poder por atender não apenas a exigências econômicas de uma Alemanha humilhada, mas a preconceitos e ódios que têm raízes na Idade Média e na perseguição cristã ao judaísmo.

Para isso, é preciso lembrar que não foram o totalitarismo político e o expansionismo bélico as principais características do nazismo: foi o anti-semitismo. Totalitarismo foi marca de regimes díspares como o socialismo soviético e o fascismo italiano — embora este tenha sido esculhambado e farsesco por sua natureza inegavelmente latina. O que fez do nazismo uma aberração única, nunca é demais lembrar, é que ele possibilitou ao Estado alemão montar uma máquina de genocídio étnico em escala industrial

Os alemães projetaram na Wehrmacht uma imagem ideal de si próprios: maiores que Hitler, imunes à histeria nazista, inocentes que se viram envolvidos num redemoinho de loucura com a qual não estiveram, em nenhum momento, comprometidos. A versão alemã de sua história é a negação desse compromisso. Mas, infelizmente, ele não pode ser negado. Como não pode ser negada a grande verdade daquela era: os alemães não foram vítimas de Hitler. Hitler é que foi o instrumento do povo alemão.

Anatomia do comportamento de manés na internet

Comentário de Felipe Alves Fonseca a um post sobre o filme ruim do Diogo Mainardi:

Rapaz,você não entendeu nada. Nada mesmo. O filme se explica na última fala onde Diogo diz: ” A morte da Maria não serviu pra nada.” Vinni responde: ” Serviu sim, serviu pra financiar o nosso filme”
O filme é uma transcrição de Ave Maria. Só que na São Paulo do sec xxI o sacrifício de Maria não traz nenhuma boa nova. Não há salvação. É a mesma coisa em “Cama de Gato” onde Deus diz aos garotos “Afinal vocês nãotiveram tiveram tanta culpa assim”
Aconselho você a sair de casa, ir para as ruas onde essas coisas se passam e não ficar se masturbando na internet…

A explicação dada pelo Fefê é a explicação que o Mainardi deve ter dado a quem se deu ao trabalho de questionar seu filme. Foge de todas as críticas feitas no post, críticas que diziam respeito ao filme como objeto realizado. Fefê justifica “Mater Dei” pelas intenções, pelo “querer dizer”. Infelizmente isso não quer dizer nada. Eu posso até não ter entendido; mas o Fefê também não entendeu. Porque pouco importa o que os incompetentes cineastas Mainardi quiseram dizer: importa o que efetivamente disseram, e não foi nada mais do que um amontoado de bobagens. É triste ter que lembrar isso, mas de boas intenções o inferno está cheio. Quando alguém tem que explicar quais as intenções de um filme, a obra tem sérios problemas.

Pela irritação do Fefê se deduz fácil e talvez equivocadamente que ele está no círculo de bajuladores do Mainardi. Talvez por isso seu argumento beire o delírio. Transcrição da Ave Maria? Clichês da crítica como a frase “não há salvação” em oposição à idéia de redenção que caracteriza a maior parte dos filmes feitos em Hollywood?

Tudo isso é velho. É batido. É só a repetição de clichezinhos de universidade, parte do léxico de pseudo-críticos de segunda ou terceira. Milhares de bobinhos de classe média já repetiram esses argumentos para tentar agregar algum valor ao vazio do que defendem. E o que é pior: nada disso normalmente se traduz em verdade.

Digna de atenção também é a ofensa que o sujeito dirige ao seu incauto desafeto — no caso, este pobre paraíba solitário que datilografa estas maltraçadas: “pare de se masturbar na Internet”.

Há algo de estranho nesse tipo de conselho. Não costuma refletir apenas pobreza de argumentos; por alguma razão que um bom psiquiatra pode definir, vitupérios recorrentes como esse principalmente refletem e projetam o comportamento do ofensor. É o padrão que ele tem para julgar. É algo que ele sabe que lhe ofenderia porque doeria ao atingir um nervo exposto, e que por associação lógica certamente ofenderá o outro.

Por sua vez, o conselho de “ir para as ruas” é francamente imbecil. Não é nas ruas que se vê empreiteiros travando guerras com políticos. O Fefê, tão alienado em sua bajulação aos Mainardi, não compreende que esse tipo de ação se passa distante das ruas, e que elas apenas sentem as suas conseqüências. O Fefê não pode admitir que tema e o tratamento do filme dos Mainardi são elitistas como poucos outros na história do cinema brasileiro, e têm a mesma ojeriza às tais “ruas” que caracteriza a classe que ele representa.

Além disso, conselhos esnobes dados a quem se desconhece normalmente caem no ridículo. Não apenas para mim, macaco velho que provavelmente já bateu mais calçada que a dileta mãe do Fefê; mas porque não reflete apenas ignorância. Reflete também uma postura típica de classe média, que acha que “rua” é o boteco ao lado da universidade onde aprendeu as primeiras letras. As ruas de verdade, para “gente ‘culta’ de classe média” como o Fefê, são um lugar misterioso e exótico como a África Negra de um século atrás. Eu aposto que o Fefê anda de carro.

Se ele entendesse mesmo de rua saberia que, em primeiro lugar, o povo não vê um filme como “Mater Dei”, e que é feio invocar seu santo nome em vão. Nas ruas para onde o Fefê me degreda anda um povo que, com bastante razão, prefere “Titanic”. É uma das razões, inclusive, que fazem o seu ídolo chamar este país de “Bananão”. Quando, por algum acaso ou política de incentivo cultural, vê uma mediocridade absoluta e pretensiosa como “Mater Dei”, esse povo a abomina. Sai do cinema. Troca de canal. Queira ou não o Fefê, escastelado em algum lugar da pirâmide de bajuladores do Mainardi, o povo tem um padrão estético e narrativo razoavelmente claro, baseado no senso comum, por menos que se goste dele. Costuma ter juízo, também. É o que os mantêm longe de pequenas tragicomédias involuntárias como “Mater Dei”.

O filme do Mainardi não foi feito para o povo, e isso desautoriza o Fefê a encher a boca para invocar seu nome; foi feito para uma elite que o desprezou por reconhecer sua mediocridade. E isso fere. Isso machuca. Isso magoa.

“Mater Dei” não é só pretensioso. É medíocre, também, medíocre até dizer chega. Como colunista da revista Veja, Mainardi já foi sucessivamente interessante, engraçado, deletério e patético. Sua carreira cinematográfica, no entanto, não experimentou o fastígio: foi sempre de uma mediocridade acachapante. E filmes medíocres costumam aliciar defensores também medíocres.

Republicado em 09 de setembro de 2010