Andei namorando a ideia de comprar um Kindle.
Parece uma ideia estranha, eu sei. Desde o início, encarei essa nova bugiganga com desconfiança. Mas o tempo passou, e nas redes da vida a oferta de coisas que eu até gostaria de ler, mas não o suficiente para comprar, fez com o pequeno trambolho parece uma compra interessante. Os preços estão razoáveis, tem muita coisa por aí, pois é, talvez valesse a pena.
Mas o namoro acabou de forma rude, quase misógina, diante de um livro de Rex Stout.
Eu nem sou lá um grande fã de Nero Wolfe, ao contrário do Alex Castro, por exemplo. Me parece essencialmente o típico whodunit inglês da velha dama indigna, com uma cobertura insossa de hardboiled americano personificado no Archie Goodwin que diz só beber leite. Até reconheço suas qualidades, e à medida que envelheço simpatizo cada vez mais com o gordo pernóstico. Mas eu gosto mesmo é de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Ross MacDonald — o Pai, o Filho e o Espírito Santo —, e ultimamente do Walter Mosley, além de uns tantos por aí, como James M. Cain, David Goodis e algum Chester Himes. Ainda assim, uma aventura de Nero Wolfe é um policial legítimo, que quase me lembra a grande literatura noir.
E esse é um amor antigo, muito antigo.
Desde muito cedo eu lia os livros da Colecção Vampiro. É uma das grandes heranças paternas. Me acostumei a palavras maravilhosas como “chui” e “sarilho”, a mulheres perigosas e sujeitos traiçoeiros. Como não podia deixar de ser, a Colecção Vampiro trazia principalmente autores de segunda, como Agatha Christie, Mickey Spillane, Erle Stanley Gardner, Frank Gruber, E. Phillips Oppenheim, Leslie Charteris, Ellery Queen, Fredric Brown, Lionel White, Lew Bruce, Anthony Berkeley. Mas também publicou virtualmente tudo o que se escreveu de decente em literatura policial
(Citei apenas os que lembro de ler por volta dos 10 anos. Mas um louco publicou um site maravilhoso com todas as capas da coleção.)
Havia outra série. Na verdade, ela não chega aos pés da Colecção Vampiro, mas foi tão ou mais importante para mim. Em 1981 a Abril lançou uma coleção chamada Mistério. Papel vagabundo, capas que jamais chegariam perto das da Colecção Vampiro, mas um elenco que, em meio a muita gente menor, incluía alguns bons autores. Foi nela que li pela primeira vez Ed McBain, Patrick Quentin, Ruth Rendell, Lawrence Block, Collin Wilcox, John Wainwright e John Ball, e principalmente Ross MacDonald.
Juntas, essas duas coleções definiram, em grande parte, o que entendo por prazer da leitura. Não é tão importante sequer o aspecto gráfico do livro — e talvez por isso objetos bonitos como os da CosacNaify me encantem um pouco menos do que deveriam. Mas o ato de pegar um livro, virar as páginas, tudo isso faz parte de um processo que ainda hoje ajuda a me definir como eu mesmo. Criaram também um amor indelével a sebos; eu gosto de livro, mas gosto mesmo é de livro barato.
E então chegamos a Nero Wolfe, tantos anos depois.
Como disse, eu estava namorando a ideia de um Kindle, para ver se conseguia me tornar um pouco menos ogro, um tiquinho mais moderno. Até que peguei um livro de Stout (“A Confraria do Medo”, para ser exato) e comecei a ler.
Um livro policial, desses que têm sido publicados no Brasil ultimamente, tem em média umas 250 páginas. Na verdade podia ter muito menos, mas as editoras arranjam uns artifícios para o volume ficar maior e justificar o ágio absurdo que cobram. Esse, especificamente, tem pouco mais de 350.
E foi então que percebi algo que, lá no fundo, eu sempre soube, apenas não sabia que sabia.
Umas 50 páginas antes do final do livro o coração começa a bater mais rápido, a ansiedade dispara. Você sabe que está chegando ao fim. Cada página virada aumenta a parte já lida e mostra que o final está cada vez mais próximo. Você sabe que o crime vai ser resolvido em breve, e agora cada detalhe é importante. Você vê que está chegando ao fim.
Você não tem isso num Kindle. Essa emoção de virar a página traduzida em algo palpável, no número cada vez menor de páginas. Imagino que o Kindle traga algo como “página 60 de 234”, mas não, isso não é a mesma coisa. Não muda a espessura de páginas que faltam, e que você sente sem olhar para elas. Muda só um número em algum lugar da tela, se é que muda.
O namoro acabou ali. Continuo ogro e velho, continuo preferindo o papel. O cheiro dos livros novos, inconfundível, e os cheiros dos livros velhos, particular e único como o cheiro de cada biblioteca onde eles ficaram; a emoção de se ver chegando ao clímax daquilo que lhe tomou umas horas preciosas em sua vida; não, o Kindle não vai me dar algo parecido. É como diz o Chico Buarque, é namorar uma mulher sem orifício, esse namoro não tem futuro.