O puto do Amaral

Já falei antes, o puto do Amaral é o meu poeta entre todos os que já conheci, primeiro porque ele tem “uma pinimba com os ingleses”, segundo porque fez gato e sapato da vagabunda da musa, essa que nem olha para mim.

O Amaral é o meu poeta porque seus cabelos brancos me enchem de inveja e esperança, ainda mais quando fala de tempos que não vivi e que, cá entre nós, se vivesse eu estaria do outro lado. Eu diria: “Esse bando de maconheiros metidos a intelectuais estão precisando é entender a luta do proletariado”. (Que bom, poeta, que os tempos passaram e eu deixei de ser tão burro.)

Percebo agora que a maioria das pessoas que lêem isto aqui não sabem quem é meu poeta, quem é Amaral Cavalcante. Então eu digo: é um filho da puta de uma cidade do interior de Sergipe, um pivete de alma ruim que botava guizos em urubus, e que veio para Aracaju e se tornou poeta de escol e de talento único.

Duvido que ele saiba que sei tanta coisa dele, porque o mais comum era terminarmos a noite bêbados aos gritos: “Balzac! Balzac!, seu velho gagá!” “Hemingway, seu idiota ignorante!”

Grandes noites.

A Amaral devo um texto sobre a sua entrada na Academia, no rol dos velhinhos que no papel não morrerão nunca. É que eu não soube o que dizer, e por isso peço desculpas. Amaral é muito maior que a Academia, e o meu medo sempre foi o de que aquele bando de macróbios à beira da morte o dome e o faça menor do que é.

Mas por causa disso, dessas minhas cismas esquisitas, o puto não sabe o quanto o admiro. Pelos poemas, sempre: aos 20 anos comprei uma antologia de poetas sergipanos e com a arrogância da idade escrevi notas no livro desancando quase todos os poetas — menos Amaral e uns poucos, ainda sem o conhecer. “Morreu empanzinado de estrelas” — quem morre assim, cheio de estrelas no bucho? Mas a minha admiração vem também de outras plagas, é também pela maneira como levou a sua vida, pela maneira como fez o que o coração lhe mandava, pela elegância no viver emoldurada pelos seus cabelos brancos — é, poeta, às vezes azulados. E porque é preciso ser diferente para desencavar umas crônicas de leveza e lirismo imensos de coisas de há tanto tempo, como essas memórias de uma época em que o cinema realmente valia a pena, ainda mais que os filmes:

Em Itaporanga, onde vivi a meninice, era no Cine Operário, uma vetusta construção erguida pelos padres na rua principal, desgraçadamente inacabada: não tinha cadeiras nem cortinas. Em dias de exibição, anunciada pelo alto-falante da igreja na hora do Angelus, a cidade desfilava a caminho do cinema, cada família com seus assentos mais nobres trabalhados em jacarandá, de palhinha à francesa, raras chipandelle, algumas poltronas e outros móveis de status duvidoso. A família, viesse de onde viesse, sempre quebrava pela rua principal, desfilando com seus acólitos carregados de trambolhos.

A paróquia só tinha três filmes: “Marcelino Pão e Vinho” de chorosa memória, o indefectível “Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo” — que muita gente já não assistia porque o galã morre no final — e “Joana d’Arc”, com a inesquecível Ingrid Bergman de rosto redondo e dolorosos sofrimentos.

Certo dia, cansado de vê-la torrar na fogueira, um moleque aproveitou o momento em que a pobre condenada voltava-se para nós em doloroso close, pé ante pé subindo os degraus do cadafalso, o fogo já crepitando, o rostão pedindo um sinal de Deus… e gritou: “Joana!” Ela olhou. Era a última esperança, todo o Cine Operário aguardava um milagre! Ai o moleque gritou: “Nada não, pode ir! ”

Joana prosseguiu resignada ao som das gargalhadas infiéis, as labaredas da inquisição lhe sapecando os cabelos.

Já em Aracaju (cheguei aqui na década de 1960) eram as matinês do Cinema Palace o point obrigatório da maluquice reinante. Íamos curtir a lombra do domingo à tarde e desfilar roupas macabras com o bolso cheio da erva e a cabeça alhures, onde quisessem Godard, Fellini, Pasolini, Antonioni… Todo mundo ia e era ali que neguinho aliviava o gozo guardado — no escurinho do cinema.

Consta que quando exibiram “O Candelabro Italiano” um guarda empregado ali para conter os arroubos da safadeza, que ameaçava os bons costumes no recinto, estranhou um movimento nas poltronas da penúltima fila e fez valer sua autoridade moral, gritando com voz cavernosa: “Moça, solte a pica do rapaz!”

Pronto, acenderam-se as luzes, quem tinha a coisa de fora nem teve tempo de guardar e a moça, coitada, soltou a moleza e fez de conta que não era com ela, sob aplausos gerais.

Eu escolho meus poetas a dedo.

João e Maria

A sétima taça de vinho acaba, a segunda garrafa chegou ao último quarto. São as vantagens de beber sozinho, você bebe o quanto quer, até quando quer. Eu gosto de beber, mas gosto mais de beber sozinho porque assim não há nenhum bobo para interromper e dizer olha, você bebe muito.

Nessas horas a gente sorri e finge que não ouviu, mas agora isso não é necessário, e o computador toca “João e Maria”, com Chico Buarque e Nara Leão.

É quando vêm as lembranças, e são tantas, tantas, vêm uma atrás da outra, atropelando-se como bêbados trôpegos, cada uma delas dizendo é a minha vez, é a minha vez, lembra de mim, lembra de mim.

1978, ônibus do ISBA, o Instituto Social da Bahia. Dizem que era um bom colégio na época, pelo menos minha mãe diz. A diretora era Raulita Espínola e o filho dela era um filho da puta que, nas aulas de judô, se recusava a ser derrubado por mim — gente assim não presta, acredite. Não o conhecia, claro, e nunca me fez nada — mas jamais vou perdoá-lo por não se deixar derrubar por mim.

Fofoletes tiradas das caixas, camisas com escudos que pareciam o da polícia do Rio, as meninas conversavam excitadas entre si, um dia ainda vou descobrir o que as excitava tanto, o que as fazia conversar baixinho e dar risadinhas. Um dos meninos, o mais exibido, surfava no ônibus, equilibrava-se nas curvas, sorria impávido diante das tribulações automobilísticas; era o descolado daquele grupo heterogêneo, e era simpático como eu nunca fui — e na época eu não tinha ainda os traços de impaciência e de arrogância que depois deixariam claro a quem interessar pudesse que eu não ligava de verdade para eles; na época eu acharia legal ser como aquele garoto metido a engraçadinho que surfava no ônibus, só não achava que o esforço valesse a pena.

E elas, as moças com fofoletes fora das caixas, começavam a cantar “João e Maria”. Na minha casa ninguém ligava para rádio, e foi ali, no ônibus do ISBA, que ouvi essa música pela primeira vez; ou talvez não, talvez tenha sido apenas ali, na voz daquelas meninas do ISBA, que prestei atenção à canção que talvez tivesse ouvido antes, nos Trapalhões; são duas lembranças tão próximas entre si e tão distantes de mim agora, e elas acabam se tornando uma só, porque me dizem que foi então, naquele tempo. Foi então.

Ouvir a canção agora me lembra de ter vontade de chorar. Mais de 30 anos passados, tanta água debaixo da ponte e tantas histórias para contar, e mesmo assim ela ainda é diferente de todas as canções. Nenhuma música jamais me fez ter vontade de chorar — só “João e Maria” quando eu tinha sete anos, e mesmo hoje não sei por quê.

Porque ela ainda não tinha sumido no mundo sem me avisar. Ela ainda não havia me ensinado o que era um bedel, eu ainda não a havia coroado e ela ainda não andava nua pelo meu país — não, talvez andasse nua que de moças nuas eu gostei sempre; mas nesses dias ela talvez apenas andasse pela minha cabeça, talvez ela apenas atravessasse rápido a minha imaginação, um vulto, apenas, uma mancha deliciosamente negra criando um pequeno ponto de atenção. Para lá deste quintal ainda não era uma noite que não tem mais fim, porque isso ainda não era concebível para mim: as noites, eu sabia, jamais duravam para sempre, e terminavam no nascer do sol glorioso que se via do lado esquerdo do Farol da Barra.

Ela ainda não tinha me feito escrever sem sequer lembrar quem foi ela.

Se algum dia tive alguma dúvida sobre o talento de Chico Buarque, ela foi embora no dia em que depois de muito tempo sem ouvir essa música — ainda não havia internet, as coisas ainda eram raras e preciosas — tive vontade de chorar. Ela me lembrou a criança de dez, quinze anos passados; isso não tem preço.

Chico Buarque diz que não faz ideia do que quis dizer quando escreveu que “o meu cavalo só falava inglês”; e era tão lógico e simples para mim, é claro que o meu cavalo só podia falar inglês. Esse era o meu mundo, o mundo da televisão e dos seriados, e nesse mundo as pessoas falavam inglês e eram dubladas — mas olha, a gente sabia que elas falavam inglês, e que eles eram dublados na TV e que era por isso que em tantos filmes as palavras pareciam não combinar com as bocas que se moviam quando não falavam, e assim também falava o meu cavalo, era só assim que ele podia falar.

“João e Maria” me faz melancólico. Mas acima de tudo me faz lembrar de uma Salvador que existiu em um tempo em que já não era e ainda não era tão chique chamá-la de cidade da Bahia, uma época em que a vida era simples e tranquila — a época simples e tranquila que todos têm na infância, em qualquer tempo, em qualquer ano, em qualquer vida.

Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo — e não, você não sabe mais o que é não ter medo. Mas, ainda pior, talvez você nunca tenha sabido. Talvez seja isso que poderia me fazer chorar ao escutar essa música: a esperança sempre irrealizada de que nunca houve um tempo em que não tivemos medo; ou pior, o de que houve um tempo em que não sabíamos que medo era aquele que sentíamos, o medo do ET no vão da escada, o medo da noite caindo na Avenida Sete, o medo do carro morrer na subida da Manoel Dias.

No tempo da maldade eu já tinha nascido.

No tempo das diligências

Hoje estou cansado e vou passar a noite em casa. Vou aproveitar para beber uma garrafa de vinho, ler pelo menos uma das revistinhas antigas da Disney que baixei ultimamente e assistir a algum filme. “Sartoris” fica para depois.

Queria mesmo era ver um western. Nos últimos dias meu interesse pelo gênero se reacendeu, apesar de tragédias recentes como The Lone Ranger. Sempre foi um dos meus gêneros favoritos, como já disse algumas vezes neste blog, mas depois que finalmente assisti a Heaven’s Gate, o filme de Michael Cimino que destruiu a United Artists e que é o maior caso de filme-malfeito-que-poderia-ser-grande da história, a vontade de ver faroestes ainda desconhecidos parece ter recrudescido. Também a de rever alguns grandes filmes, e talvez hoje reveja “Consciências Mortas”.

O western sempre fez parte da minha vida. Era um gênero tão comum na TV dos anos 70, comecinho dos 80. Acho que já tinha sido mais; anos antes havia um número aparentemente infinito de seriados de bangue-bangue exibidos toda semana, quase todo dia. Mas já não peguei “Bat Masterson”, “O Homem de Virgínia” ou “Chaparral”, não que eu lembre. De qualquer forma, o western ainda era parte importante do imaginário das crianças, e brincávamos de mocinho e bandido e eu tive sucessões de revólveres de espoleta — que aparentemente fizeram de mim um serial killer com 357 mortes nas costas. Pensando bem, talvez reveja “Da Terra Nascem os Homens”, um filme gigantesco de William Wyler que poderia estar sem problemas em qualquer lista de dez melhores westerns da história.

Se havia menos seriados sendo exibidos, para garantir sua programação a TV aproveitava o acervo de mais de meio século de cinema falado. Isso significava que se apoiava, principalmente, na produção americana dos anos 50 — talvez a última grande década do cinema hollywoodiano, e certamente a última grande década do studio system. E boa parte da produção dos anos 50 era, oras, composta de westerns. Acho que podia ver novamente “Um Certo Capitão Lockhart”, porque cowboy mais típico que James Stewart, para mim, só John Wayne.

Se a Sessão da Tarde hoje é motivo de deboche, naqueles dias exibia bons filmes com regularidade. Filmes em preto e branco ainda eram comuns, nem todo mundo tinha TV em cores (trívia: as TVs em preto e branco só deixaram de ser fabricadas em 1997), e a média da grade de programação era muito superior ao que se tem hoje. Por exemplo, vi “Uma Aventura na África” na Sessão da Tarde, além de tudo o que Chaplin fez de importante. Logicamente, nessa época era virtualmente impossível evitar a exposição aos bangue-bangues. A maior parte das pessoas não ligava para eles, claro, e estava mais preocupada com dramas contemporâneos; outras, que sempre gostaram de cavalos e de estourar coisas, se apaixonavam. Ainda hoje, a ideia do cowboy errante com um rifle em sua sela, um cobertor na garupa do cavalo e um cantil ao lado dos alforjes é uma das principais imagens da aventura para mim. Mesmo assim talvez veja “Josey Wales — O Fora da Lei”, um pouco diferente desse arquétipo, mas um filme brilhante, talvez o mais subestimado de Clint Eastwood, e dialoga maravilhosamente com o seu tempo.

O fato é que rever westerns me faz voltar a um blog que, nos últimos meses, se tornou uma verdadeira referência para mim: o Westerncinemania.

O Westerncinemania, se não o melhor, é um dos melhores espaços na web brasileira sobre westerns. Levado adiante pelo Darci Fonseca, é um grande repositório de informação sobre westerns, conhecidos ou não. O conhecimento do Darci sobre westerns é enciclopédico; e o blog parece ter formado uma comunidade de apreciadores e fanáticos que discutem o gênero com propriedade e conhecimento impressionantes. É um dos poucos lugares onde vi, por exemplo, a apreciação equilibrada de um filme superestimado como Johnny Guitar. Seu penúltimo post, sobre o belíssimo “O Preço de um Homem”, é um bom exemplo do que o blog tem a oferecer. “O Preço de Um Homem” tem um Robert Ryan brilhante no papel de vilão. Pode ser esse.

Como eu disse, uma garrafa de vinho e um western. A noite está ganha.

***

Devo fazer parte da última geração que cresceu assistindo a filmes de faroeste. Esse pessoal mais novo deve ter visto alguns, fãs de cinema veem uns clássicos aqui e ali, John Ford e Howard Hawks; mas seu interesse é o cinema, não é o Velho Oeste. A minha geração, não: ela tinha na fronteira um referencial não apenas estético, mas ético também. Víamos faroestes o tempo todo, na Sessão da Tarde, no Bangue Bangue à Italiana, Sessão Western. Bons e ruins, claro; mas eram tantos filmes exibidos que, mesmo com o bocado de fitas ruins que faziam a base da programação, provavelmente vi a maior parte dos grandes clássicos do western ali, na TV.

É fascinante a maneira como os americanos, através do cinema e do faroeste, criaram para si mesmos um mito fundador que os países europeus só conseguiram depois de muitos séculos de história. O pistoleiro se tornou o cavaleiro andante; a prostituta, a donzela em perigo; o vaqueiro, o fiel vassalo. Deturpando e mitificando sua própria história, apagando seus crimes e embelezando suas pequenas tragédias, os Estados Unidos criaram um corpo de memórias em umas poucas décadas que lhes deu dignidade, respeitabilidade e um profundo senso de identidade.

A história americana é a história da busca do oeste, desde quando esse oeste era o Kentucky. Mas foi ao roubar ao México uma faixa de terra considerável — Arizona, Novo México, Califórnia — que os Estados Unidos se tornaram o que são hoje. Aquela foi a primeira guerra imperialista americana, uma guerra sem nenhuma justificativa ética ou moral além da cobiça e da necessidade de expansão territorial. Vergonhosa até mesmo para os americanos — nomes como Abraham Lincoln, então deputado em início de carreira, e Horace Greeley se pronunciaram contra ela —, a guerra tornou o “destino manifesto” uma realidade e transformou os EUA numa potência territorial.

E foi ali que se desenrolaram as últimas guerras contra os índios. O cinema se encarregou de mitificar e colocar para sempre na história tribos das Grandes Planícies como Apaches, Sioux, Cheyennes, Comanches, em menor medida os Navajos. Foram essas tribos que barraram a expansão espanhola na América no Norte, que atrapalharam durante décadas a expansão americana, e sua importância jamais poderia ser subestimada. Mas apesar da mitificação hollywoodiana, a grande guerra americana contra os índios se deu no leste. Chocktaw, Shawnee, Creek, Cherokee, Seminole, Chickasaw — tribos menos conhecidas mas vilipendiadas de uma maneira que, exemplificada na Grande Trilha de Lágrimas, deveria envergonhar cada americano, como o tratamento dado aos nossos guaranis caiovás deveria envergonhar os brasileiros.

No meu caso, o amor aos westerns acabou degringolando em uma curiosidade estranha sobre o processo histórico de conquista. Ainda são, para mim, os melhores capítulos da história americana (além de Jamestown com seus casos de canibalismo com a fleuma inglesa e, um pouco menos mas mais importante, Plymouth). Minha antipatia ao que representa a América não se estende à história de sua fundação, mesmo os tantos momentos vergonhosos como o Tratado de Guadalupe. A maneira como, em menos de um século, tomaram conta de praticamente todo um continente é impressionante e, dentro de seu contexto, ao menos parcialmente invejável.

Os comanches são talvez meus personagens favoritos. De tribo vagabunda e humilhada por milênios, em menos de 100 anos se tornaram a nação mais poderosa das Grandes Planícies americanas. Foram eles, junto com os apaches, que barraram a expansão espanhola na América do Norte, e apenas a invenção do revólver de ação dupla possibilitou aos americanos vencer definitivamente a guerra contra eles e os sioux. E tudo isso por causa de uma nova tecnologia: o cavalo.

A chegada do cavalo não teve tanto impacto, por exemplo, no leste americano. É compreensível: numa região com vegetação densa, o bicho não faz tanta diferença. Mas em uma pradaria quase infinita, ele coloca tudo em um nível diferente. Ao dominar o cavalo como pouquíssimas outras tribos, os comanches adquiriram um poder que a maioria dos outros índios americanos jamais sonharia em ter.

Hoje em dia é feio, em muitos círculos, falar qualquer coisa positiva dos colonos americanos que se aventuraram rumo ao oeste. A maneira como seu país roubou terras valiosas aos mexicanos e praticou um dos mais vergonhosos casos de genocídio contra os índios se sobrepõe a qualquer de suas qualidades, e a isso junta-se um processo de “beatificação” do índio, que passa a ser visto, de maneira excessivamente maniqueísta, apenas como o bom selvagem de Rousseau vítima de brancos odiosos.

Mas o fato é que a americana é uma história bela. Uma história que, apesar de tudo, é também a das pessoas que abandonaram tudo em busca de uma vida melhor. E que sofreram, e muito. Essa história é fácil de entender — e infelizmente, mais fácil ainda de mitificar erroneamente. Crescemos com esses estereótipos falsos: do cowboy galante (mal sabíamos que no Oeste se matava mesmo era na tocaia e atirando pelas costas), do índio morto em guerra aberta, do valor pessoal diante dos grandes interesses econômicos. Mas mesmo que tudo isso seja falso, há também o outro lado: o do cotidiano criado por gente que, apesar de branca e de fazer parte de um dos mais canalhas processos históricos, tinha também o seu valor pessoal. A história acaba sendo obra de gente que, apesar de branca, era corajosa e arriscava, ali, não apenas suas posses, mas também suas vidas.

O western conta um pedaço dessa história. Deturpa tudo, repito. Mas como cinema, como entretenimento, é absolutamente fantástico. Para algumas pessoas, o western é a própria definição do cinema, porque é apenas nele que pode existir em sua plenitude. E quem pensa assim tem toda a razão.