Sobre o debate de ontem

O debate de ontem entre os candidatos à presidência me incomodou. E não foi apenas a dificuldade pessoal de Dilma em elaborar um discurso persuasivo, sedutor, chegando ao ponto de parecer menos simpática que, último entre todos, Serra.

A ênfase excessiva na privatização como está sendo feita, a não ser que as pesquisas me digam que estou errado, me parece um erro. 2010 não é 2006. Talvez a demonização de Serra como privatista, de maneira genérica, não seja tão eficiente hoje quanto a perspectiva de que tudo aquilo que os brasileiros conquistaram no governo Lula seja perdido com o modo de Serra governar.

(Um comercial de Serra veiculado naquele momento faz ataques pessoais a Dilma, colocando em dúvida a sua capacidade de gerenciar crises. Certamente é um comercial mais eficiente, mesmo mentindo, mesmo apelando para a baixaria, do que comerciais conceituais condenando a privatização.)

Por exemplo, Dilma precisa aproveitar as oportunidades que aparecerem para lembrar que “eles” passaram oito anos dizendo que o Bolsa Família não prestava, que era bolsa-esmola. Eles nunca entenderam o que o Bolsa Família representa para quem agora sabe que no dia certo vai ter o dinheiro para comprar pão e leite para seus filhos. Ela precisa olhar para a câmera e falar para cada brasileiro: “Você lembra: eles diziam que o Bolsa Família era salário para vagabundo, para gente que não queria trabalhar. Agora, só para se eleger, dizem que vão até criar o décimo-terceiro do Bolsa Família. Será que eles acham que alguém acredita nisso?”

Além disso, Dilma parece ter uma tendência a ficar no varejo das coisas. Tem domínio dos números; mas números são importantes, mesmo, quando fornecem a base para a construção de um sistema de valores que represente a importância do governo de que ela foi parte fundamental.

Ela acaba se comportando mais como a excelente administradora que é, a mulher que pode fazer o Brasil continuar a crescer, do que uma candidata a um cargo político eleitoral. Esquece de contextualizar o que representa o governo Lula, esquece de trabalhar valores como a satisfação dos brasileiros com as suas vidas e a esperança no futuro para ficar em dados burocráticos. Pelo menos nesse debate, faltou a ela a capacidade retórica de construir um raciocínio político que extrapolasse os dados puros e deixasse claro que ela é a única pessoa que pode dar continuidade a um governo que é muito mais do que as obras que realizou. Dilma não está conseguindo captar e comunicar os valores do governo Lula.

Quando Serra insistiu nos recursos do FAT, dizendo que havia emprego de sobra e trabalhador qualificado de menos, ela primeiro deveria aproveitar e lembrar que isso é um grande exemplo do crescimento do país durante o governo Lula; no tempo do governo dele e de FHC era diferente, faltava emprego, o Brasil não crescia, como cresce hoje a 7,5% ao ano. E então ela engatava a segunda e explicava o que significa o número de escolas técnicas construídas. Mostrava que o governo ampliou o acesso ao ensino profissionalizante, explicava a filosofia por trás disso. Deveria mostrar que, mesmo mantendo a qualificação dos trabalhadores, o Governo Lula está oferecendo chances aos jovens que nunca foram oferecidas.

Quando Serra mencionou estradas — embora eu tenha a impressão de que ali havia uma pegadinha, que não sei qual é — ela deveria ter lembrado, antes de mais nada, a herança maldita. Deveria lembrar que ela e Lula — não ela, não Lula: ela e Lula –, ao chegar ao governo, encontraram as estradas destruídas por FHC. Devia falar diretamente ao telespectador: você lembra como era, sabe como era difícil. Serra e Alckmin resolveram isso privatizando estradas, vendendo o patrimônio do povo paulista, e criando pedágios e mais pedágios nas rodovias de São Paulo; é assim que eles fazem o cidadão pagar por um serviço que deveria ser público, e hoje um cidadão tem que pagar sei lá quantos reais — eu não sei o valor; ela tem obrigação de saber — para ir do Rio a São Paulo. Agora, para você ver a diferença entre o nosso governo e o deles: nós também encontramos as rodovias abandonadas no Sul, no Nordeste. Mas em vez de privatizar, nós investimos na recuperação e ampliação das estradas em todo o país. Neste exato momento, enquanto o Serra cobra pedágio, nós estamos duplicando rodovias em Sergipe, em X, em Y. Ao todo, investimos três vezes mais do que o Governo de Serra e FHC. É claro que não pudemos fazer tudo o que era necessário. Ainda falta fazer muito, é claro — segue lista de obras principais, incluindo as do Mato Grosso. E termina: é isso que está em jogo agora. O eleitor vai decidir entre dois modos bem diferentes de governar: se quer as estradas pelas quais passam todos os dias privatizadas, cobrando pedágios absurdos e extorsivos, ou vai eleger um governo que investe o dinheiro público em obras importantes para o futuro e para mais brasileiros.

Dilma domina os números. Mas precisa dominar, acima de tudo, os conceitos. A discussão sobre números interessa a Serra, porque é ele quem precisa desconstruir a obra do governo Lula; Dilma não precisa reafirmá-la de maneira absoluta até porque os 80% de aprovação popular do governo Lula não se devem aos seus belos olhos. Em vez disso, ela precisa retomar o seu significado. Dilma precisa, acima de tudo, evocar a mágica de uma obra sem precedentes na história deste país.

Dilma e o aborto

Dilma caiu na armadilha do aborto e Serra ganhou uma batalha importante. É uma armadilha muito semelhante à que Alckmin caiu em 2006; a diferença é que daquela vez era a privatização.

Já tinha caído antes, na verdade.

Mas na tal “Mensagem da Dilma” sobre o tema, veiculada hoje, ela assumiu uma posição clara, e disse que é “pessoalmente contra o aborto” e defende “a manutenção da legislação atual sobre o assunto”.

O que Dilma deveria dizer é que aborto é uma questão a ser resolvida pelo Legislativo, e se eximir de uma responsabilidade que, afinal, não é sua.

Deveria lembrar a sua própria história e mostrar o que significou, para uma mulher perseguida por uma ditadura sanguinária, ter coragem de gerar uma filha e lutar por ela. O que significou trabalhar para sustentá-la, acompanhar o seu crescimento, estar ao seu lado quando ela estava triste e quando ela estava alegre. Mostrar o orgulho que ela tem pela pessoa que formou.

Dilma deveria mostrar a alegria que sentiu ao pegar, pela primeira vez, o neto recém-nascido em seus braços. Mostrar o valor da família não em declarações que parecem saídas de alguém acuado, mas em seu próprio sentimento e humanidade. A história de Dilma é suficiente para revelar ao Brasil o seu valor como pessoa e como mulher — porque não são mais valores políticos que estão em pauta, mas valores pessoais. E deveria fazer isso de maneira psoitiva, não defensiva.

Maluf fez isso em um comercial antológico. Depois de uma frase infeliz sobre estupro — o famoso “estupra, mas não mata” –, ele reuniu toda a família e deixou claro que não era a favor daquilo. Mostrou que era a favor da família, que valorizava aquilo que tinha — e como um homem que amava tanto a sua família, com tantas mulheres em casa que obviamente amava, poderia ser a favor de algo hediondo como o estupro?

Já vi gente dizendo que não quer vencer a eleição a qualquer preço, e não abre mão de princípios e quetais. Esse é o discurso mais acomodado, mais esnobe que eu conheço. Essa história cai bem em mesa de bar, quando um monte de gente fica dando a explicação que bem entender sobre as razões do sucesso ou do fracasso de uma campanha.

Porque eu quero. Custe o que custar. Com os votos de quem for necessário. Para mim, voto não tem cheiro, não tem cor, não tem sequer ideologia. Voto é voto, e ponto final. O voto de um evangélico tem exatamente o mesmo peso do de um ateu — e Dilma será a presidente de todos, não de um só segmento social. Além disso, tenho como certo uma coisa simples: campanha é uma coisa, governo é outra. A discussão sobre o que deve ser o governo do ponto de vista de uma blogosfera progressista que defende o direito ao aborto, descriminalização da maconha ou coisa do tipo — plataformas que numa campanha eleitoral beiram a imbecilidade e só servem para afastar eleitores — deve ser iniciada no dia 1o de novembro; mas até lá o que importa é fazer o possível e o necessário para ganhar a eleição.

Sob esse aspecto, a campanha de Serra está mais acertada. É um candidato mentiroso, falso, baixo — mas ele faz o discurso que deve ser feito.

Dilma não está fazendo isso. Sua campanha está errada. Se fizeram um primeiro programa eleitoral que para mim — que já vi e fiz mais programas eleitorais que a imensa maioria dos mortais — é o melhor da história, de repente eles resolveram, em pleno segundo turno, privilegiar a informação e a comparação de governos, investindo em um discurso excessivamente racional. Esses são dados que devem sempre estar presentes, claro, mas a esta altura é preciso mais que isso. Não é mais questão de levantar razões para votar ou não na Dilma. Depois de dois meses de campanha na TV e no rádio, as pessoas já sabem o que o governo Lula fez e que Dilma é a candidata de Lula. O que se discute agora é quem é o melhor para sucedê-lo; e essa não será uma escolha feita de modo racional. Comparar governos talvez não seja a estratégia mais eficaz. Ou investir num conceito como o Serra Mil Caras — que sinceramente me parece inócuo.

O que Dilma deve recuperar é a emoção que esteve presente, de maneira magistral e insuperável, no primeiro programa. É a presença de Lula ao seu lado, lhe emprestando o carisma que ela, definitivamente, não tem. E a mensagem deve ser de paz e amor — a mensagem que Lulinha, ainda longe de ser o herói nacional que é hoje, passou em 2002. Dilma deve mostrar que é a garantia de que as pessoas vão continuar cada vez mais felizes, porque comem, porque vão à universidade, porque podem trabalhar, porque vão saber que Lula, através dela, continua olhando por eles.

Não é só a economia, estúpido. É também a emoção.

Enquanto isso, a militância poderia fazer algo que o NPTO está fazendo.

Se o primeiro turno deixou alguma lição, foi a de que as notícias sobre a morte da mídia foram muito exageradas. Foi a sua atuação que conseguiu valorizar Marina Silva (que merece um post e um mea culpa meus) e forçar um segundo turno que parecia remoto quinze dias antes. Não será no Twitter, no Facebook ou nos blogs que a eleição será ganha. É na rua. Se cada eleitor de Dilma se dedicar a conseguir pelo menos um voto nesses quinze dias que restam, nós ganhamos fácil a eleição.

Enquanto isso, para o Helio Jesuíno que veio cobrar post aqui, eu repito o que disse antes: minha guerra ganhei no primeiro turno. E agora com licença que eu vou ali escrever um panfleto para Déda e Dilma, que vai ser lido, ou pelo menos visto, por muito mais gente que os leitores deste blog, que obviamente volta à hibernação.